I. As modalidades da acção típica, previstas no nº 1 do art. 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, estão referidas às plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, sem que a sua composição e a sua conversão em doses individuais, constituam elementos da tipicidade.
II. A composição das referidas plantas, substâncias ou preparações, e/ou a sua conversão em doses individuais apenas relevam no que respeita à delimitação do tipo do crime de traficante- consumidor (art.26º, nº 3 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro) e do crime de consumo (art. 40º, nº 2 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, conjugado com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2008).
III. Cannabis sativa é a denominação científica do cânhamo, planta que, para resistir à exposição solar demasiado forte, produz uma resina rica em canabinóides, os quais são sintetizados em todas as partes verdes da planta, em proporções variáveis, sendo o canabinóide responsável pelas suas qualidades psicotrópicas, o tetrahidrocanabinol ou THC.
IV. Sendo o THC um componente da própria planta, ele está sempre presente nesta, de forma natural e variável, em razão da qualidade dela, dos segmentos seleccionados, da zona e condições de cultivo, entre outros factores, pelo que, assegurado está, também, o seu efeito psicotrópico portanto, a capacidade de actuar como droga, e de, por esta via, colocar em perigo o bem jurídico tutelado.
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, da arguida AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 34º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa, e 134º, nº 1, b), e) e f), 140º, nº 3 e 151º, nº 1 do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.
Por acórdão de 18 de Outubro de 2024, foi a arguida condenada pela prática do imputado crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 34º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa, e 151º, nº 1 do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão e na pena de expulsão do território nacional pelo período de 5 anos.
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Inconformada com a decisão, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:
I. DA PERCENTAGEM DE THC
1. A recorrente confessou os factos integralmente e sem reservas.
2. Porém, o exame pericial constante a fls. 97 dos autos não apurou o grau de pureza de tetraidrocanabinol (THC) do produto apreendido, nem tampouco o número de doses.
3. Ora, a determinação da percentagem de THC é absolutamente essencial para se aquilatar da idoneidade da “droga” para lesar o bem jurídico subjacente à norma.
4. A lesão do bem jurídico em causa – saúde pública (no contexto do tráfico de droga) –prossupõe a existência de um produto ou substância estupefaciente suficiente para causar um efeito psicotrópico em determinado número de indivíduos da sociedade.
5. É, pois, necessária uma apreensão de produto ou substância suficiente para tal, não bastando que se assinale ou detete a substância tida como ilegal.
6. A indeterminação da percentagem de THC no produto apreendido acarreta a circunstância de ser impossível estabelecer um nexo com a potencial lesão do bem jurídico (saúde pública).
7. O canábis apreendido só será idóneo a ofender a saúde pública se for apto a causar efeitos psicotrópicos (sendo o THC responsável por tal e não a substância cannabis.
8. Bem assim, como a quantidade de doses individuais for suficiente para ofender a saúde de alguns cidadãos numa determinada sociedade.
9. Deveria ter sido avaliada a danosidade do produto apreendido deveria ter sido calculada o número de doses diárias com base na concentração de THC e na quantidade total de canábis detida, o que não aconteceu.
10. A arguida desconhece a razão pela qual não foi apurado o THC do produto apreendido: É inexistente? É tão diminuto que não foi possível apurar? Não se sabe.
11. A arguida é condenada com base num raciocínio discricionário que traz à colação a concentração-padrão de THC da canábis, para concluir que deverá ter-se por certo que é esse o valor de THC do produto apreendido à arguida, sem que para tal se tenha feito prova.
12. Na ausência de prova da lesão do bem jurídico que a norma incriminatória visa proteger e recorrendo ao princípio do in dubio pro reo, deveria a recorrente ter sido absolvida.
Ainda que assim não se entenda, sempre será de notar o seguinte
13. O crime de tráfico de menor gravidade previsto na alínea a) do artigo 25º do DL nº15/93 refere que nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
14. In casu, não se apurou se a qualidade das plantas apreendias à recorrente e a quantidade de doses individuais.
15. Recorrendo ao princípio do in dubio pro reo, deveria ter-se considerado a qualidade do produto apreendido, bem como a quantidade de doses individuais de forma mais favorável à recorrente.
16. E bem assim ser a mesma condenada por um crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25º do DL nº15/93.
II. DA MEDIDA DA PENA
17. Se este tribunal não entender absolver a arguida pelo crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenada, ou, por outro lado, decidir que a mesma não deve ser condenada por um crime de tráfico de menor gravidade, sempre será de notar que o tribunal violou o disposto nos artigos 40º nº1 e 2 e 71º do Código Penal.
18. Desde logo porque o douto acórdão condenatório afirma que o apuramento da percentagem de THC é essencial para a aferição da gravidade da conduta da Arguida.
19. O Tribunal, à luz do princípio pro reo, que considerar que o produto apreendido não era apto a causar grandes malefícios à saúde dos consumidores, o que (consequentemente) diminui a culpa da recorrente.
20. No entanto, faz-se referência a uma grande quantidade de droga sem se saber no que é que isso se traduz em concreto, designadamente, quantas doses de individuais se poderia extrair daquele produto e se o mesmo era apto a produzir efeitos psicotrópicos.
21. É que esta questão não só tem relevância para aferição da tipicidade da conduta da arguida, mas também para a escolha da sua medida da pena, pelo que temos em crer que a culpa da arguida deveria ter sido considerada como diminuta/média.
Por outro lado,
22. Existem outras várias circunstâncias atenuadoras da sua culpa e que permitem um juízo de prognose favorável:
a) A recorrente confessou integralmente os factos, demonstrando arrependimento sincero.
b) Terminou o 12º ano com sucesso, tirei um curso na área da estética e trabalha nesta área desde os 21 anos, auferindo um ordenado de 7000 dólares e acarretando todas as suas despesas.
c) Aos 33 anos de idade a recorrente e o seu irmão foram espancados à saída de um bar, o que deu origem a um processo criminal que foi imediatamente considerado um crime de ódio pela Los Angeles Police Department, considerando que as agressões foram motivadas pelo facto de a recorrente ser transgénero e o seu irmão homossexual.
d) Nestas circunstâncias a recorrente sofreu uma fratura no cotovelo do membro superior direito, tendo ficado impossibilitada de trabalhar, o que levou a que perdesse tudo o que havia conquistado (emprego, casa, trabalho).
e) A recorrente está ainda no decurso do processo de mudança de sexo, tendo ficado sem liquidez para continuar o mesmo.
f) Ficou desesperada por não conseguir finalizar o seu “processo de identidade” que (naturalmente) é importantíssimo para si e para o qual sempre trabalhou de força esforçada e honesta já tendo realizado tratamento no valor de 30.000,00 dólares.
g) Foi neste contexto desesperado que a recorrente decidiu praticar os factos pelos quais foi condenada, com vista a conseguir algum dinheiro para realizar a operação da mudança de sexo.
h) No entanto, está profundamente arrependida e envergonhada.
i) Não tem antecedentes criminais e conta com o apoio incondicional da sua família que viajou de L.A. para Lisboa para testemunhar nestes autos.
j) Em liberdade, pretende retomar a prática da sua profissão que sempre se afigurou rentável e suficiente para fazer face às suas necessidades mas tem também duas promessas de emprego (juntas aos autos) em áreas e ainda dispõe da possibilidade de optar pela profissão de tradutora, uma vez que domina a língua inglesa, espanhola e portuguesa.
23. Também os seus irmãos, BB e CC, testemunharam acerca da personalidade da recorrente, definindo a mesma como uma pessoa trabalhadora e idónea.
24. Mais, associam a prática deste crime ao episódio de violência que a recorrente sofreu em virtude de ser transgénero e que a impossibilitou de se sustentar e terminar o seu processo de mudança de sexo.
25. Porém, sabem que a irmã (recorrente) não é uma traficante ou alguém ligado ao mundo do crime, tendo sido este um ato isolado e desesperado.
26. Todas as razões nos levam a crer ser possível realizar um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro da recorrente.
27. Não restam dúvidas de que a mesma não só repudia totalmente o seu comportamento tendo confessado integralmente os factos e demonstrado arrependimento, como dispõe de um contexto familiar e aptidões profissionais suficientes para levar uma vida conforme ao Direito.
28. O que nos leva a defender que a pena aplicada à recorrente deverá ser inferior a 5 anos e suspensa na sua execução podendo a suspensão da pena ficar condicionada ao cumprimento de determinadas regras.
NORMAS VIOLADAS:
Artigos 40º nº1 e 2 e 71º do Código Penal.
Artigo 32, nº 2, da Constituição da República Portuguesa
Artigo 127º do Código de Processo Penal
Nestes termos e nos melhores de Direito deverá o presente recurso ser procedente e consequentemente:
a) Ser a recorrente absolvida da prática do crime pelo qual foi condenada;
Caso assim não se entenda:
b) Ser a recorrente condenada num crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25º do DL nº15/93.
Caso também assim não se entenda:
c) A pena aplicada à recorrente deverá ser inferior a 5 anos e suspensa na sua execução.
Admitido o recurso, ao mesmo respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termos da contramotivação as seguintes conclusões:
1º- A Recorrente interpõe o presente recurso, por não se conformar com o Acórdão datado de 18.10.2024, (Ref.º.......43), que a condenou na pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva, pela prática, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.º 21.º/1 do DL 15/93 de 22.01, por referência a tabela I-C anexa ao mesmo diploma.
2º - Como primeiro argumento recursivo, a recorrente defende que, no caso concreto, não foi apurado o grau de pureza do produto estupefaciente (THC), sendo tal informação absolutamente essencial para aquilatar da idoneidade da “droga” para lesar o bem jurídico protegido (saúde pública) e o número de doses envolvidas; no seu entendimento tal omissão acarreta a sua absolvição por força da aplicação do princípio in dubio pro reo.
3º- Compulsados os autos, atenta a prova produzida (confissão integral e sem reserva da arguida, auto de notícia por detenção, auto de apreensão e exame pericial) constata-se que, a arguida era um “correio de droga”, proveniente dos EUA, por via aérea e intercontinental, foi detida em flagrante delito, na posse de canábis com o peso líquido de 26.388,883 gramas; não foi apurado que o produto estupefaciente se destinava ao seu consumo e/ou mesmo que a recorrente era consumidora.
4º- Apesar de no Exame pericial do LPC dos autos não constar o grau de pureza da canábis, o Tribunal “a quo”, fazendo apelo aos dados científicos relativos à concentração-padrão para este tipo de droga, considerou que a Canábis apreendida à Arguida tem a concentração média de THC e considerou preenchida a tipicidade de tal conduta e, por via disso, foi a mesma condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo art.º 21.º/1 do DL 15/93 de 22.01, por Ref.º Tabela I-C.
5º- Ou seja, não é necessário determinar o grau de pureza do produto estupefaciente e o seu número de doses, sendo tal diligência de prova irrelevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, designadamente para o preenchimento do tipo legal de crime.
6º- Este entendimento está vertido no Acórdão do TRE, proc.º271/14.5PFSTB.E1, de 29.03.2016 e no Acórdão do TRL no proc.º353/16.9JELSB.L1-3, de 13.09.2017, que referem que a indicação do grau de pureza da droga apenas se revela essencial para as situações em que está em causa a toxicodependência e a determinação sobre se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente excede a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (Ac. STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25.6.2008, in DR IA Série, de 5.8.2008).
7º- No caso concreto, pode-se concluir que, o Tribunal “a quo” ante o reconhecimento dos factos sem reservas, não teve quaisquer dúvidas quanto à ocorrência dos factos que considerou provados sendo, pois, irrelevantes as dúvidas que a recorrente, na sua interpretação subjetiva, entende que deveriam subsistir a propósito da matéria fáctica que sustenta a sua responsabilização criminal, pelo que, não ocorreu qualquer violação do princípio do in dubio pro reo. (art.º 32.º/2 da CRP), carecendo de fundamento esta questão.
8º - Como segundo argumento recursivo, a recorrente defende que a factualidade apurada é subsumível ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art.º 25.º, al. a) do DL 15/93 de 22.01, pois considera que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída., todavia a alteração da qualificação jurídica não se encontra alicerçada na factualidade provadas.
9º- Do texto e do confronto do disposto nos art.ºs 21.º e 25.º do DL. n.º 15/93, de 22.01, resulta que o tipo fundamental constante do art.º 21.º contém a descrição típica base do crime de tráfico de estupefacientes, de forma compreensiva, prevendo várias formas de ação típica, expondo o art.º 25.º o tipo privilegiado, por referência àquele tipo-base, assente numa considerável diminuição da ilicitude do facto, visão global conclusiva que será obtida, ante o caso concreto, considerando, nomeadamente, os meios utilizados e afetos ao tráfico, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
10º- No caso dos autos, ante os factos provados, o tipo (canábis) e quantidade de estupefaciente transacionado e transacionável (26.388,883 gramas), a extensão geográfica (transporte intercontinental), o modo de execução (transporte aéreo dos EUA para Portugal) da arguida afiguram-se-nos relevantes e são próprias do grande tráfico, pelo que, não se encontra verificada, na ação e seus contornos, uma situação de acentuada diminuição da ilicitude que permita a integração no tipo privilegiado.
11º- Numa apreciação global entendemos que a situação vertida nos autos uma situação de tráfico internacional de estupefacientes, pelo que o enquadramento jurídico de tais factos à luz do tipo fundamental do art.º 21.º se mostra correcto e acertado, pelo que deve improceder esta questão.
12º- Como terceiro argumento recursivo, a recorrente discorda da dosimetria da pena, partindo do pressuposto que praticou um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade. Entende que, a pena aplicada deve ser reduzida, em face da sua confissão integral e sem reservas, do facto do produto estupefaciente não ser apto a causar grandes malefícios à saúde público, o que diminui a sua culpa.
13º- o Ministério Público defende que, o Tribunal “a quo”, na determinação da medida concreta da pena, teve em conta a culpa do agente (art.º 40.º/2 do CP), as exigências de prevenção (geral e especial), as finalidades da punição (Cfr. art.º 71.º e 70.º do CP) e os princípios de proporcionalidade, necessidade, adequação e subsidiariedade (art.º 18.º/CRP).
14º- Ante esta análise e ponderação dos factos assentes (ponto 1. a 15.), o Tribunal “a quo” julgou (e bem) ser justa, proporcional e adequada à gravidade da conduta do(a) recorrente e à medida da sua culpa, a aplicação de uma pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.º 21.º/1 do DL 15/93 de 22.01, por referência a tabela I-C anexa ao mesmo diploma, [cuja moldura penal tem como limite mínimo 4 anos de prisão e limite máximo 12 anos de prisão], não havendo motivo para a sua redução, nem para a sua suspensão na execução.
15º- O Tribunal “a quo” sopesou as razões de prevenção geral como sendo elevadas, uma vez que Portugal, pela sua localização geográfica, é um dos países de circulação (de entrada) de produtos estupefacientes na Europa, por via aérea, funcionado quer como ponto de entrada, quer como placa giratória; as razões de prevenção especial são também elevadas, porquanto, a recorrente acedeu a fazer o transporte do produto estupefaciente, por força da sua fragilidade pessoal e económica; o grau de ilicitude dos factos é elevado, dadas as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, bem como a circunstância de estarmos perante uma situação de tráfico internacional/intercontinental de estupefacientes (voo do EUA para Portugal); a quantidade de canábis apreendida (26.388,883 gramas) (droga leve), com um grau médio de danosidade.
16º- Também sopesou o modo de transporte do produto estupefaciente, que revela uma ainda maior resolução criminosa; a intensidade do dolo que é elevada e actuou com dolo directo; a frequência da prática deste tipo de crime; a energia criminosa particularmente intensa revelada pela adesão da arguida a um plano.
17º- O Tribunal “a quo”, sopesou (favoravelmente) o facto de a recorrente estar integrada familiar e socialmente; a ausência de antecedentes criminais; a confissão dos factos e o arrependimento, bem como o bom comportamento prisional e a manifestada vontade de mudar de vida; por fim, teve em conta que inexiste qualquer circunstância que justifique uma atenuação especial da pena.
18º- Sucede que, o recurso deve improceder, porquanto, não se mostram violadas as regras de produção e valoração da prova, nem as regras de experiência comum e os critérios de normalidade, nem os critérios de determinação da pena (art.º 70.º e 71.º do CP), não existindo qualquer motivo para a alteração da medida concreta da pena como pretende a recorrente.
19º- Como quarto argumento recursivo, a recorrente defende que a pena aplicada – após redução – deve ser suspensa na sua execução.
20º- Cremos que, não assiste razão à recorrente quanto aos fundamentos invocados para impugnar a pena aplicada, uma vez que, tal como já referido, não há lugar à redução da pena, falecendo o pressuposto formal de aplicação do art.º 50.º/1 do CP, por a pena ser superior a 5 anos.
21º-Acresce que, a suspensão da execução da pena pretendida jamais realizaria as exigências de prevenção geral, nem satisfaria as expectativas da comunidade sobre a reafirmação da validade das normas violadas e evitando a prática de novos crimes, nem seria adequada à promoção da ressocialização do agente fundamento da prevenção especial.
22º- Ora, no caso dos autos e tendo por base as finalidades das penas (cfr. Art.º 40.º/1 do CP), de protecção de bens jurídicos, não permitem a formulação desse juízo de prognose favorável (pressuposto material) , não sendo a ameaça da execução da pena suficiente, nem adequada para que a arguida se abstenha da prática de novos crimes, pelo que, apenas a pena de prisão efectiva se revela adequada e eficaz a alcançar as finalidades da punição e a salvaguardar eficientemente os bens jurídicos que foram persistentemente violados pela arguida.
23º- Em síntese, o Tribunal “a quo” julgou corretamente e operou uma sensata subsunção jurídica e aplicação do direito, mormente quanto à determinação da medida da pena, sendo que, o acórdão recorrido não viola e/ou mal interpreta o art.º 32.º/2 da CRP, os art.º 40º, 50.º, 70.º e 71.º do CP e o 127.º do CPP, devendo o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência, nos termos do art.º 420.º/1, al. a), do CPP.
Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida.
Por acórdão de 20 de Fevereiro de 2025, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Em 7 de Março de 2025, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, arguiu a nulidade do acórdão de 20 de Fevereiro de 2025, por violação das regras de competência, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 11.º, nº 1, com referência ao art. 432º, nºs 1, c) e 2, 32º, nº 1 e 119º, e), todos do C. Processo Penal, por ser competente para conhecer do recurso o Supremo Tribunal de Justiça.
Em acórdão de 3 de Abril de 2025, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu como segue:
Termos em que acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a arguida nulidade, declarando nulo o Acórdão proferido em 20 de Fevereiro de 2024, por ser este Tribunal materialmente incompetente para julgar o presente recurso:
Mais determinam a remessa dos autos ao Tribunal competente para dele conhecer: o Supremo Tribunal de Justiça.
Notifique e, após, remeta de imediato os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, dando disso conhecimento à primeira instância.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, realçando, i) que o grau de pureza do estupefaciente detido e transportado por via internacional, não é relevante, por não estar em causa o cometimento de um crime de consumo, p.e p. pelo 40.º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, conjugado com o Acórdão nº 8/2008, mas um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º do mesmo diploma legal, aliás, confessado pela arguida, ii) que a situação de facto dos autos não revela uma ilicitude consideravelmente diminuída, dada a elevada quantidade de estupefaciente em causa, a extensão geográfica da acção criminosa e o seu modo de execução, pois a arguida foi um correio de droga, peça fundamental da cadeia delitiva, não merecendo tratamento penal de favor, iii) que sendo a culpa, a ilicitude e as exigências de prevenção geral elevadas, e moderando a medida da pena, as exigências de prevenção especial, a confissão, de reduzido valor, e a situação familiar e pessoal da arguida, a pena decretada é justa, proporcional e necessária, e concluiu pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
Respondeu a arguida, reafirmando a argumentação da motivação, sublinhando que o tribunal recorrido não podia retirar da natureza do produto apreendido e da sua quantidade, a conclusão da sua aptidão para lesar o bem jurídico tutelado pelo art. 21º do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro, e que, não obstante a confissão da arguida, se a canábis não tivesse uma percentagem de THC capaz de causar efeitos psicotrópicos, não poderia causar danos, verificando-se uma tentativa impossível, e concluiu nos exactos termos em que terminou as conclusões formuladas.
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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
3. Factos provados
A matéria de facto provada que provém da 1ª instância é a seguinte:
“(…).
1) Em 13/12/2023, pelas 06:40 horas, a Arguida desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, proveniente do voo ..., com origem em Miami (Estados Unidos da América).
2) Nesse momento, a Arguida transportava no interior da sua bagagem de porão, constituída por uma mala tipo trolley, cor de rosa, da marca Ifly, bem como por uma mala tipo trolley, bege, da marca It Expander, com as etiquetas ..........00 e ..........93, o total de 58 embalagens a vácuo, de plástico preto, contendo no seu interior canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta Cannabis sativa L) com o peso líquido de 26.388,883 g, distribuídas da seguinte forma:
- 8 embalagens com o peso líquido de 3.600,000 gramas;
- 20 embalagens com o peso líquido de 9.193,500 gramas;
-5 embalagens com o peso líquido de 2.251,000 gramas;
- 10 embalagens com o peso líquido de 4.570,000 gramas;
- 14 embalagens com o peso líquido de 6.298,383 gramas;
- 1 embalagem com o peso líquido de 476,000 gramas.
3) No mesmo momento, foram apreendidos à Arguida:
- 1 telemóvel da marca Apple, modelo iPhone 12;
- 1 mala tipo trolley, cor de rosa, da marca Ifly;
- 1 mala tipo trolley, bege, da marca It Expander;
- 5,00 dólares americanos, em notas emitidas pela Reserva Federal dos Estados Unidos da América.
4) A Arguida atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com a intenção de receber e carregar consigo a Canábis acima referida, cujas caraterísticas, natureza e quantidade conhecia, com o propósito de a entregar a terceiros a troco de quantias monetárias.
5) O telemóvel apreendido à Arguida destinava-se a contactar com os indivíduos, de identidade desconhecida, que lhe haviam fornecido a Canábis, bem como com os destinatários desse produto.
6) A Arguida é natural dos Estados Unidos da América e não possui emprego estável, residência ou qualquer outra ligação profissional ou familiar com Portugal,
7) Tendo-se deslocado para território nacional com o exclusivo propósito de praticar os factos acima referidos.
8) A Arguida confessou os factos, de forma integral e sem reservas.
9) A Arguida não tem antecedentes criminais conhecidos.
10) Do teor do relatório social efetuado em relação à Arguida, resulta o seguinte:
- «À data dos factos constantes nos autos, AA vivia na morada dos autos, casa de sua mãe. O espaço territorial da morada referida localiza-se na cidade de Los Angeles. Neste meio urbano, inicialmente no período anterior a 2010, a envolvente residencial revestia-se pela exclusão social, em contextos habitacionais estigmatizados por práticas antissociais. Do mencionado pela arguida, essa situação foi substancialmente alterada, a partir do ano civil de 2010, por isso, quando a arguida conta 21 anos, tendo ocorrido a reestruturação do planeamento territorial, consentâneo com toda uma nova edificação habitacional e por sua vez nova rede do sector terciário. AA no presente com 35 anos de idade, nasceu na cidade de ..., no sul da Califórnia. Do que a arguida reportou, o seu processo de crescimento decorreu sem a presença da figura paterna. Nessa contextualização, referiu que seus pais estiveram casados cerca de onze anos, ao fim dos quais ocorreu a sua separação, período em que a progenitora se encontrava grávida de AA. O núcleo familiar monoparental era então constituído pela própria arguida e seus dois irmãos, mais velhos, atualmente de 49 e 41 anos de idade. A subsistência deste núcleo familiar incorria dos rendimentos que a progenitora obtinha do seu trabalho como operária fabril da indústria aeronáutica. A progenitora tinha a seu cargo os três descendentes inclusive a arguida. O pai de AA quando se separou da mãe, não assumiu os seus deveres parentais, sendo que a progenitora tinha que acarretar sozinha com essa responsabilidade. Quanto à área formativo-profissional, AA disse ter integrado o sistema de educação infantil aos 2-3 anos de idade e progredido ao ensino secundário até ao 12º ano, de modo regular e com sucesso. Por volta dos 21 anos de idade, concluiu curso técnico profissional na área de estética, no Colégio da cidade de ..., ... City College, de 1700 horas. Deste curso adquiriu certificação, de modo a se candidatar a um teste do Conselho Estadual para exercer a profissão de esteticista licenciada. Neste curso simultaneamente às aulas teóricas, tinha a componente prática, com vista a se inserir profissionalmente. No subsistema laboral, disse que o seu percurso profissional dos 21 aos 35 anos de idade, foi basicamente a trabalhar na área de estética, maquilhagem, cabeleireira e unhas. Ao nível socioeconómico a arguida mencionou que se viu condicionada a prosseguir com o estilo de vida que até então mantinha, quando vivia sozinha, em sua casa, na cidade de Hollywood. Desde então, viu-se perante a impossibilidade de prosseguir com a sua atividade profissional de esteticista e técnica de crioterapia, bem como da incapacidade em responder às despesas de manutenção de sua habitação. Assim sendo, disse que ainda nesse período, contava 33 anos, viu-se impelida a recorrer ao apoio de sua mãe. Passou a residir em sua casa, na morada dos autos e, de algum modo dependente economicamente da sua ajuda. Essa situação configurou-se de elevado constrangimento, em virtude de até essa altura ser ela própria responsável pela sua autonomia financeira. Disse que o seu salário correspondia em média a 7000 dólares, dependendo do montante auferido, em resultado da atividade profissional de esteticista crioterapia dirigida aos clientes. Ainda aludiu que os tratamentos no âmbito do seu processo terapêutico da transexualidade, até então foram da sua inteira responsabilidade, sendo que referiu a quantia de superior a 30.000 dólares. No que se refere à área da saúde, AA referiu que em junho de 2022, contava 33 anos de idade, por ocasião de momento de lazer num bar, com seu irmão BB, de 42 anos de idade, ambos foram vítimas de espancamento pelo Segurança do referido estabelecimento de diversão. Este acontecimento revestiu-se pela violência, decorrente de atitude discriminatória e de rejeição, da parte do Segurança face à condição de transgénero (num processo de mudança clínica de género) da arguida, assim como o facto de seu irmão ser homossexual. Nessas circunstâncias, a arguida sofreu fratura no cotovelo do membro superior direito e seu irmão fratura no maxilar em 3 posições, o que implicou o tratamento hospitalar de ambos (irmão submetido a várias cirurgias) e acompanhamento em fisioterapia à arguida. Ao que AA referiu a sua situação socioeconómica agravou-se à data dos factos, defrontando-se com falta de liquidez. Seu corpo sofria mudanças de diversa natureza, situação que pressupunha a manutenção do processo terapêutico da transexualidade. Além disso, as diversas cirurgias a que seu irmão foi submetido. A acrescer a situação de saúde delicada de sua mãe, doente com diagnóstico da doença de fibromialgia e osteoporose. AA está presa preventivamente desde 13 de dezembro de 2023, à ordem do presente processo. Tem manifestado adequação comportamental e capacidade de ajustamento às regras prisionais, não registando qualquer sanção disciplinar. (…) Face às circunstâncias do presente processo, a arguida manifesta a interiorização da noção de norma e não tem dificuldade em reconhecer gravidade da prática de crimes como aquele que está acusada. Revela conhecer os eventuais danos causados junto da vítima. Disse que frequenta aulas de português, 2ª e 4ª feiras, das 14h às 16h desde de março a junho do ano em curso/ 2024. Após o interregno, correspondente ao período de férias, retomou esta semana, o período de aulas. Expressou uma evidente motivação e apetência à sua participação nas aulas. No que se refere à área da saúde, AA referiu que tem vindo a ser seguida no processo terapêutico de mudança de género, à data da sua reclusão. Este processo que decorreu no Hospital ... - desde os 25 até hoje, com os 35 anos de idade. Neste âmbito do processo terapêutico, ainda necessita de finalizar os tratamentos. Da sua situação jurídico-penal atual, enquanto detida referiu que foi observada pelos serviços clínicos do E.P. de ..., mais precisamente na fase inicial da sua detenção, designadamente em consulta de psicologia. Do que período da sua reclusão, de dezembro de 2023 até ao presente, a arguida disse que estabelece contacto telefónico regular com sua mãe e ainda com seus irmãos. Disse também que beneficia de suporte financeiro. Em termos familiares, tudo indica que a atual prisão não alterou o funcionamento familiar do agregado relativamente à arguida, para o efeito disse que se trata de uma família bastante coesa e que lhe tem prestado todo o apoio, inclusive nesta fase da sua detenção e de todo o processo jurídico-penal, inclusive da sua defesa. A mãe é a figura de destaque, sendo referenciado como se constituindo o suporte crucial à estabilidade e harmonia familiar, assinalando também a vingada vinculação afetiva que vem mantendo. No que respeita às suas perspetivas de inserção social e aos seus projetos de vida em liberdade, é de destacar que mantém a intenção de voltar para a casa da mãe, tendo expressado a intenção de prosseguir com a aprendizagem da língua portuguesa. Além da língua espanhola também é sua intenção dominar a língua portuguesa. Nesta conformidade, entende que adquirindo mais conhecimento de línguas estrangeiras, esta pode ser a possibilidade de novas oportunidades de trabalho, designadamente de poder optar pela atividade de tradutora em inglês – português. A arguida ainda que tivesse tido ausência da figura parental, na sequência da separação dos progenitores, anterior ao seu nascimento, foi a figura de sua mãe quem acarretou com toda a responsabilidade do processo de crescimento. No decurso da sua socialização foi adquirindo competências literárias, sociais, laborais e formativas, que terão contribuído, desde cedo, para a sua integração e autonomia pessoal, por volta dos 21 anos de idade. Na área da saúde e da necessidade de optar pela mudança de género, pela idade dos 25 anos de idade, no Hospital ... - desde os 25 até hoje, com os 35 anos de idade. Esta situação foi aceite e apoiada por toda a família em particular sua mãe e toda a linhagem materna. No campo socioeconómico a arguida vivia com recursos próprios disponíveis, assinalando a sua prioridade na manutenção do seu trabalho pela sua autonomização e resposta financeira dos seus tratamentos, no processo terapêutico da transsexualidade. No período que antecedeu a sua reclusão, vivenciava uma crise económica em parte decorrente de ter ficado desempregada na sequência de ter sido violentamente espancada, por Segurança de um bar, aonde se encontrava a conviver, com seu irmão. O apoio familiar que detém no país de origem e a evolução pessoal que tem demonstrado em meio institucional, configuram-se necessárias à continuidade e sustentabilidade de um modo de vida pró-social.».
11) A Arguida é transexual,
12) Praticou os factos na sequência de ter perdido o emprego, a casa e o carro, tudo em resultado de ter sido agredida por um indivíduo e de, em consequência, ter sofrido a fratura do cotovelo direito,
13) E de, por esse facto, necessitar de dinheiro para pagar a cirurgia de mudança irreversível de sexo que pretendia realizar.
14) A Arguida iria auferir 4.000,00 dólares pela prática dos factos acima referidos.
15) A Arguida está arrependida de ter praticado os factos supra aludidos.
(…)”.
B) Factos não provados
Não se provou que:
“(…).
16) O produto estupefaciente apreendido à Arguida era Canábis (resina).
(…)”.
C) Fundamentação quanto à qualificação jurídico-penal dos factos
“(…).
Diz o n.º 1 do artigo 21.º do Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que comete o crime de tráfico e outras atividades ilícitas:
«1 – Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III (…)».
O presente crime é um crime de perigo abstrato, que visa proteger vários bens jurídicos: numa primeira linha, a saúde pública, aqui se integrando a vida e a integridade física dos consumidores; numa segunda linha, a economia do Estado afetada com a economia paralela instituída pelos traficantes de estupefacientes .
Do tipo-de-ilícito objetivo deste crime fazem parte (para o que aqui interessa) os seguintes elementos: o recebimento, o transporte, o trânsito e a detenção, sem autorização, de Canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta Cannabis sativa L.), substância estupefaciente prevista na Tabela I-C, que está em anexo ao acima referido Regime Jurídico.
Do Mapa a que se reporta o n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de março, resulta que (com base em dados epidemiológicos referentes ao uso habitual, no conteúdo médio de Tetraidrocanabinol existente nos produtos da Canábis e numa concentração média de 2% de THC) o limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária de um consumidor da droga acima referida é de 2,5 gramas.
Na ausência de dados relativos ao grau de pureza da droga (não consta do relatório pericial que dá suporte aos factos provados), apelando-se aos dados científicos relativos à concentração-padrão para este tipo de droga, deve considerar-se que a Canábis apreendida à Arguida tem a concentração média de THC acima referida. Ou seja, inexistindo nos autos qualquer dúvida de que a substância apreendida à Arguida é aquela aqui em causa, a inexistência da referência, no relatório pericial referido na fundamentação dos factos provados, ao grau de pureza da Canábis releva, apenas e só, para a aferição da gravidade relativa da conduta da Arguida (no tocante à ilicitude da sua conduta) e já não quanto à tipicidade de tal conduta.
No tocante ao tipo-de-ilícito subjetivo do crime, o mesmo é integrado pelo dolo, em qualquer uma das suas formas (artigo 14.º do Código Penal).
Tendo em consideração a matéria de facto provada, resulta ser evidente que a conduta da Arguida preencheu o tipo-de-ilícito objetivo e o tipo-de-ilícito subjetivo do crime de que vem acusada, sendo, neste último caso, na modalidade de dolo direto.
(…)”.
D) Fundamentação quanto à determinação da medida concreta da pena
“(…).
Ao crime de tráfico e outras atividades ilícitas corresponde uma moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão (n.º 1 do artigo 21.º do acima referido Regime Jurídico).
Na eleição do tipo de pena, e na determinação concreta do seu quantum, deve proceder-se da seguinte forma (artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal) :
- Ponderação das finalidades da punição (prevenção geral e especial, maxime positiva) e preferência pelas penas não privativas da liberdade (desde que estas realizem aquelas finalidades de forma adequada e suficiente);
- Determinação da pena concreta em resultado de uma operação de construção de uma moldura que, limitada pela culpa, se concretiza na determinação das exigências de prevenção geral (que variam entre uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e um limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação de uma pena sem colocar em causa a sua função de tutela de tais bens);
- Determinação das exigências de prevenção especial, que se circunscrevem na moldura definida pela prevenção geral.
No caso vertente, ao crime em apreço apenas é aplicável pena de prisão, pelo que há que considerar:
- Culpa: circunscreve-se no dolo direto, sendo de grau elevado/médio, tendo em consideração, por um lado, a (grande) quantidade de droga aqui em causa, a elevada carga intencional colocada pela Arguida na prática dos factos (que está bem espelhada no facto de, no contexto da prática dos factos, a mesma ter decidido empreender uma viagem intercontinental), mas também, por outro, os motivos (a difícil condição económica da Arguida) e os fins (a necessidade de obtenção de dinheiro para realizar uma operação que permitisse a mudança de género) visados pela Arguida.
- Prevenção geral positiva: as exigências são elevadas, considerando:
O facto de serem elevadas as atuais exigências sociais de repressão deste crime, que é muitíssimo frequente;
A circunstância de ser muito elevada a ilicitude presente na prática dos factos, tendo em consideração a elevada quantidade de droga aqui em apreço – isto pese embora esta droga, apesar de tudo, se circunscreva no universo das drogas ditas “leves”.
- Prevenção especial positiva: as exigências são baixas, tendo em consideração:
Em favor da Arguida:
- A ausência de antecedentes criminais;
- A confissão, integral e sem reservas, dos factos – pese embora o escasso relevo da confissão, na medida em que a Arguida foi detida em flagrante delito;
- O arrependimento demonstrado pela Arguida;
- O facto de a Arguida se mostrar bem integrada a nível social, designadamente em termos familiares, ter mantido um bom comportamento prisional e ter demonstrado pretender empreender um projeto de vida que a afaste da prática de crimes.
Considerando a culpa e as exigências de prevenção geral e especial, julga-se ser adequado condenar a Arguida na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
(…)”.
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Âmbito do recurso
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.
Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.
Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).
Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:
- A atipicidade da conduta e a incorrecta qualificação jurídico-penal dos factos;
- A incorrecta determinação da medida concreta da pena;
- A substituição da pena de prisão.
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Da atipicidade da conduta e da incorrecta qualificação jurídico-penal dos factos
1. Alega a arguida – conclusões 1 a 12 – que o exame pericial feito ao estupefaciente apreendido não apurou o grau de pureza de THC nem indicou o número de doses individuais que o mesmo é susceptível de produzir, o que significa não ser possível estabelecer o efeito psicotrópico capaz de ser causado nos consumidores, nem o número de doses suficientes para ofender a saúde daqueles, pelo que, não pode ser afirmado que a canábis apreendida é idónea a causar o referido efeito psicotrópico, lesando o bem jurídico tutelado, vindo [a arguida] a ser condenada por um juízo discricionário que apela à concentração-padrão de THC no estupefaciente e aceita que deverá ser o valor da concentração-padrão a ter-se por verificado no caso, quando, na falta de prova de lesão do bem jurídico, e por aplicação do princípio in dubio pro reo, se impunha a sua absolvição.
Vejamos.
A arguida foi condenada nos autos pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 34º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa, por no dia 13 de Dezembro de 2023, ter desembarcado no aeroporto de Lisboa, proveniente dos Estados Unidos da América, trazendo no interior da sua bagagem de porão, cerca de 26380 gramas de canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta Cannabis sativa L.), o que fez de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de receber e transportar tal produto, com o propósito de o entregar a terceiro, mediante compensação pecuniária, conhecedora das suas características e quantidade, e de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Do relatório do exame nº .......69-BTX realizado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, junto aos autos (referência ......27) consta apenas a identificação da substância apreendida como canábis (folhas e sumidades), nada sendo referido quanto ao teor de THC e quanto ao número de doses.
A canábis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta cannabis sativa L., integra a Tabela I-C, anexa ao Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, sendo, por isso, uma planta e substância sujeita a controlo (arts. 2º e 3º do mesmo diploma legal).
Dito isto.
Dispõe o art. 21º, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, tipificando o crime de tráfico e outras actividades ilícitas, na parte em que agora releva:
1 – Quem, sem para tal se encontra autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
(…).
Trata-se de um crime comum – pode ter por agente qualquer pessoa – de perigo abstracto – consuma-se com a mera criação do perigo ou risco do dano para o bem jurídico tutelado, não integrando o perigo o tipo, antes sendo apenas motivo da proibição – e exaurido ou de empreendimento – a protecção do bem jurídico tutelado recua a momentos anteriores a qualquer manifestação danosa, que tutela, em primeira linha, o bem jurídico saúde e integridade física dos cidadãos portanto, a saúde pública, e num segundo plano, a integridade física, a vida e mesmo, a liberdade, dos consumidores, e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
[Tipo de ilícito objectivo]
- A acção típica, i.e., que o agente, sem para tal se encontrar autorizado, cultive, produza, fabrique, extraia, prepare, ofereça, ponha à venda, venda, distribua, compre, ceda ou por qualquer título receba, proporcione a outrem, transporte, importe, exporte, faça transitar ou ilicitamente detenha, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III;
[Tipo de ilícito subjectivo]
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto (em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal).
[Tipo de culpa]
A realização do facto típico com culpa dolosa enquanto atitude contrária ou indiferente à violação do bem jurídico, pressuposta a consciência da ilicitude da conduta.
As diversas modalidades da acção típica estão referidas às plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, sem que a composição destas plantas, substâncias ou preparações, e a sua conversão em doses individuais, constituam requisitos de tipicidade.
A composição das referidas plantas, substâncias ou preparações, e/ou a sua conversão em doses individuais apenas relevam no que respeita à delimitação do tipo do crime de traficante- consumidor (art.26º, nº 3 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro) e do crime de consumo, p. e p. pelo art. 40º, nº 2 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, conjugado com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2008 (DR-I, nº 150/2008, de 5 de Agosto de 2008) que fixou jurisprudência no sentido de que «Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só 'quanto ao cultivo' como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.».
Com efeito, e como resulta do disposto do Preâmbulo e do nº 1 da Portaria nº 94/96, de 26 de Março – que visa, além do mais, definir os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária de plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente – a definição prévia de tais limites quantitativos máximos é elemento importante para a aplicabilidade do nº 3 do artigo 26º e do nº 2 do artigo 40º, ambos daquele diploma.
Assim, e no que à tipicidade respeita, os limites quantitativos máximos de plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV de consumo mais frequente, só relevam quando a acção típica consista em detenção de estupefaciente para consumo próprio.
Não é, porém, esta a situação dos autos, uma vez que, como decorre da matéria de facto provada fixada pela 1ª instância [pontos 1 a 4, 7 e 14 dos factos provados], a arguida transportou, por via aérea, dos Estados Unidos da América para Portugal, um pouco mais de 26 quilogramas de canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta cannabis sativa L), a fim de aqui, entregar o estupefaciente a terceiros, recebendo, como compensação, 4000 dólares, sendo, pois, em linguagem comum, um ‘correio de droga’.
Diga-se, aliás, que cannabis sativa é a denominação científica do cânhamo, planta esta que, para resistir a exposição solar demasiado forte, produz uma resina rica em canabinóides, os quais são sintetizados em todas as partes verdes da planta, em proporções variáveis, sendo o canabinóide responsável pelas suas [da planta] qualidades psicotrópicas, o tetrahidrocanabinol ou THC.
Sendo, pois, o THC um componente da própria planta, ele está presente nesta, de forma natural e variável, em razão da sua [da planta] qualidade, dos segmentos seleccionados da planta, da zona e condições de cultivo, entre outros, mas está sempre nela presente pelo que, assegurado está, também, o seu efeito psicotrópico portanto, a capacidade de actuar como droga, e de, por esta via, colocar em perigo o bem jurídico tutelado.
Em suma, e por desnecessidade de maiores considerações, a provada conduta da arguida preenche a previsão do art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa, sendo, por isso, uma conduta típica.
2. Pretende, por outro lado, a arguida – conclusões 13 a 16 – que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, pois que, não se tendo apurado a qualidade do estupefaciente apreendido nem a quantidade de doses individuais, pela aplicação do princípio in dubio pro reo, a sua conduta preenche o tipo do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a) do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Vejamos.
Não obstante o grande desvalor social da actividade de tráfico de substâncias estupefacientes, o legislador, não podendo ignorar que tal actividade é exercida com distintos graus de perigosidade, exigindo diferenciadas reacções penais, ao lado da previsão do tipo matricial (art. 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), criou um tipo especial agravado (art. 24º do mesmo diploma), criou um tipo especial privilegiado (art. 25º do mesmo diploma legal) e criou ainda o tipo especial de tráfico-consumo (art. 26º do mesmo diploma).
Detenhamo-nos no tipo especial privilegiado, por ser esta a incriminação que a arguida reclama para a qualificação da sua conduta.
Dispõe o art. 25º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com a epígrafe «Tráfico de menor gravidade»:
Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
Na nota justificativa enviada à Assembleia da República, na parte relativa ao art. 25º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, foi enfatizado o propósito de, com ele, permitir “ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo do tráfico menor, que apesar de tudo não pode ser aligeirado de modo a esquecer-se o papel essencial que os dealers de rua representam na cadeia do tráfico. Haverá, assim, que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial.”.
O tipo em análise fica preenchido quando, preenchido o tipo do art. 21º ou do art. 22º, se mostre consideravelmente diminuída a ilicitude do facto. Mas não é uma qualquer diminuição da ilicitude do facto que possibilita a aplicação do tipo privilegiado, pois a lei exige mais, exige uma diminuição considerável, portanto, uma diminuição notável, importante.
A considerável diminuição da ilicitude do facto deve resultar de uma avaliação global da situação de facto, cuja ponderação incluirá, entre outros factores – a presença do advérbio “nomeadamente”, na previsão legal, significa poderem e deverem ser consideradas todas as circunstâncias que, concorrendo no caso, sejam relevantes para aferir se, objectivamente, a ilicitude da acção tem menor relevo que a tipificada para os arts. 21º e 22º –, os meios utilizados [a organização e a logística], a modalidade e circunstâncias da acção [em função do grau de perigosidade para a difusão do estupefaciente], e a qualidade e/ou quantidade das substâncias, plantas ou preparados [em função da intensidade do ‘ataque’ ao bem jurídico protegido].
Ao estabelecer uma moldura penal significativamente mais branda, o art. 25º impõe ao intérprete verificar se a imagem global do facto se enquadra ou não, dentro dos limites das molduras penais dos arts. 21º e 22º, sob pena de a reacção penal ser, à partida, desproporcionada pois, a concretização da considerável diminuição da ilicitude em cada caso, exige a aplicação de critérios de proporcionalidade que são pressupostos da definição das penas e depende, em grande parte, de juízos essencialmente jurisprudenciais (Maria João Antunes, Droga, Decisões de Tribunais de 1ª Instância, 1993, Comentários, GPCCD, pág. 296).
No que respeita às circunstâncias tipificadas no art. 25º, cumpre dizer, i) relativamente aos meios utilizados, traduzidos na organização e na logística de que o agente se serve, que eles podem ser nulos, incipientes, médios ou de grande dimensão e sofisticação, aqui devendo ser ainda incluída a posição relativa do agente na pirâmide da rede do tráfico, ii) relativamente à modalidade ou às circunstâncias da acção, releva, essencialmente, o grau de perigosidade para a difusão da droga designadamente, a maior ou menor facilidade de detecção da sua penetração no mercado, e o número de consumidores fornecidos, iii) relativamente à qualidade das plantas, substâncias ou preparações, referida à respectiva perigosidade, ela pode ser aferida pela sua colocação em cada uma das tabelas anexas ao Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e pelos resultados da investigação científica relativamente à capacidade aditiva de cada uma e às consequências do respectivo uso e, iv) relativamente à quantidade das plantas, substâncias ou preparações, há que ponderar, em função dela, o maior ou menor risco para os valores tutelados pela incriminação.
Revertendo para o caso concreto e relembrando, em síntese, a matéria de facto provada, temos que:
- No dia 13 de Dezembro de 2023, a arguida desembarcou no aeroporto de Lisboa, transportando na sua mala de porão 26.388,883 gramas de canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta Cannabis sativa L);
- A arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com intenção de receber e carregar consigo a canábis, cujas caraterísticas, natureza e quantidade conhecia, com o propósito de a entregar a terceiros;
- A arguida iria receber 4.000,00 dólares pela realização do transporte da canábis;
- A arguida é cidadã dos Estados Unidos da América, não tem qualquer relação laboral ou familiar com Portugal, tendo viajado para Lisboa com o único propósito de fazer o transporte da canábis.
Pois bem.
Relativamente aos meios utilizados, traduzidos na organização e na logística utilizada, resulta que a arguida recebeu o estupefaciente de terceiros, transportou-o dos Estados Unidos da América para Portugal, por via aérea, onde deveria entregá-lo a terceiros, recebendo então a contrapartida monetária acordada, sendo pois, e conforme já dito, ‘um correio de droga’, integrando uma organização, de dimensão não concretamente apurada, de tráfico internacional de estupefacientes. Neste tipo de tráfico, o ‘correio de droga’ não se encontra, seguramente, no topo da hierarquia da organização, mas desempenha um papel essencial, designadamente, no transporte de estupefaciente por via aérea.
Relativamente à modalidade ou às circunstâncias da acção, face ao tipo de tráfico executado, temos apenas a acção do transporte da canábis.
Relativamente à qualidade das plantas, substâncias ou preparações, referida à respectiva perigosidade, há que notar que a canábis é, entre nós, uma droga de iniciação, sendo a mais procurada pelas camadas mais jovens de consumidores, droga que, não obstante ser comummente qualificada de droga leve [deixando-se a nota de não ter sido propósito do legislador aderir à distinção entre drogas duras e drogas leves, como claramente se afirma no Preâmbulo do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro], provoca dependência psicológica e causa perturbações do sistema nervoso central, com alteração do humor e das percepções.
Relativamente à quantidade das plantas, substâncias ou preparações, há que reconhecer que os mais de 26 quilogramas de canábis transportados pela arguida constituem uma considerável quantidade deste estupefaciente.
Relativamente ao proventos visados, mas não obtidos, pela arguida, estava em causa a quantia de 4000 dólares, quantia que não deixa de ser importante.
Diga-se, por último, convocando o que em 1., que antecede, se deixou dito, quanto à relevância/irrelevância da ausência de determinação do THC da canábis transportada e do número de doses individuais que produziria, bem como, quanto à presença natural do THC na canábis, que face à quantidade de estupefaciente em causa, não se vê, sempre com ressalva do respeito devido, como possa ser chamado a intervir o princípio in dubio pro reo,
Assim, considerando globalmente a situação objectiva revelada pelos factos provados, com especial destaque para o transporte intercontinental, por via aérea, de mais de 26 quilogramas de canábis, entendemos que da imagem global do facto não resulta uma ilicitude consideravelmente diminuída.
Consequentemente, não se mostra preenchido o tipo do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a) do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
3. Em conclusão, mostra-se correctamente feita pela 1ª instância, a qualificação jurídico-penal da provada conduta da arguida, devendo, por isso, ser mantida a sua condenação pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabelas I-C, anexa.
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Da incorrecta determinação da medida concreta da pena
4. Alega a arguida – conclusões 17 a 22, 27 e 28 – que foram violados os arts. 40º e 71º do C. Penal, quer porque o acórdão condenatório afirma que o apuramento do THC é essencial para aferir a gravidade da conduta, quer porque à luz do pro reo, a canábis não era apta a causar grandes malefícios à saúde dos consumidores, quer porque existem circunstâncias atenuadoras da culpa, tais como, a confissão integral, o arrependimento sincero, os seus hábitos de trabalho, a agressão de que foi vítima por crime de ódio – por ser transgénero –, e que a impossibilitou de continuar a trabalhar, tendo perdido caso e emprego e a liquidez necessária para continuar o processo de mudança de sexo, sendo este o contexto que a levou a praticar os factos, a inexistência de antecedentes criminais, o apoio familiar que tem e as suas aptidões profissionais, pelo que, a pena deverá ser inferior a 5 anos de prisão.
Vejamos.
Estabelece o art. 40º do C. Penal, com a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», no nº 1 que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Dispõe, por seu turno, o nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, exprimindo esta a responsabilidade individual do agente pelo facto, sendo, assim, o fundamento ético da pena. Prevenção geral – protecção dos bens jurídicos – e prevenção especial – reintegração do agente na sociedade – constituem, assim, as finalidades da pena, através delas se reflectindo a necessidade comunitária da punição do caso concreto.
É neste quadro que vai funcionar o critério legal de determinação da medida concreta da pena, previsto no art. 71º do C. Penal.
Conforme dispõe o seu nº 1, a determinação da medida concreta da pena é feita, dentro dos limites definidos pela moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, estabelecendo o seu nº 2 que, para este efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número.
Assim, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).
A medida concreta da pena resultará do grau de necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem que possa ser ultrapassada a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o ponto mais baixo onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 227 e seguintes e 238 e seguintes, e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014 (processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1, in www.dgsi.pt), a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Seguindo a mesma orientação, Anabela Miranda Rodrigues sustenta que, «[e]m primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, Nº 2, Abril-Junho, 2002, págs. 181-182).
Como se vê, a tarefa de determinação da medida concreta da pena não corresponde ao exercício de um poder discricionário do julgador e da sua arte de julgar, mas ao uso de um critério legal, constituindo a pena concreta o resultado de um procedimento juridicamente vinculado.
Em todo o caso, o controlo desta operação pela via do recurso, podendo incidir sobre a questão do limite ou da moldura da culpa e sobre a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, não pode, no entanto, ter por objecto o quantum exacto da pena, salvo se se mostrarem violadas as regras da experiência ou se a medida concreta fixada se mostrar desproporcionada (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 197).
5. Na tarefa de determinação da medida concreta da pena portanto, em sede de aplicação do critério legal previsto no art. 71º do C. Penal, a 1ª instância ponderou:
- A elevada ilicitude do facto, dada a considerável quantidade de estupefaciente envolvida, apesar de se incluir no grupo das drogas leves;
- O dolo directo com que actuou a arguida, em intensidade considerada como médio/elevado, face à quantidade do estupefaciente e ao empreendimento de uma viagem intercontinental;
- A difícil situação económica da arguida e a necessidade de obtenção de meios financeiros para a realização de cirurgia de mudança de sexo;
- A inexistência de antecedentes criminais;
- A confissão integral e sem reservas, se bem que, de reduzido relevo, uma vez que a arguida foi detida em flagrante delito;
- O arrependimento;
- A integração familiar e social da arguida;
- O adequado comportamento da arguida às regras da instituição prisional onde se encontra e a vontade em se afastar da prática de novos crimes.
Considerou também a 1ª instância serem elevadas as exigências de prevenção geral, e serem baixas as exigências de prevenção especial de ressocialização.
Com este circunstancialismo e exigências de prevenção, decretou o tribunal a quo à arguida, além do mais, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
Começamos por notar que, contrariamente ao afirmado pela arguida, no que respeita à gravidade da conduta praticada, o acórdão recorrido não considerou a percentagem de THC na canábis apreendida como essencial para a aferição daquela gravidade. Com efeito, o que se nele se pode ler é que «(…) inexistindo nos autos qualquer dúvida de que a substância apreendida à Arguida é aquela aqui em causa, a inexistência da referência, no relatório pericial referido na fundamentação dos factos provados, ao grau de pureza da Canábis releva, apenas e só, para a aferição da gravidade relativa da conduta da Arguida (no tocante à ilicitude da sua conduta) e já não quanto à tipicidade de tal conduta.», não se descortinando aqui a afirmada essencialidade, mas apenas, que a referida omissão deveria ser reflectida na avaliação do grau de ilicitude do facto.
Devendo reconhecer-se que a canábis não tem a mesma capacidade aditiva de drogas como a cocaína e a heroína, e que, nessa medida, tem uma menor danosidade social do que estas, certo é que entre nós, conforme dito, é uma droga de iniciação, especialmente procurada pelos consumidores mais jovens. Por outro lado, a arguida deteve e transportou um pouco mais de 26 quilogramas de canábis, quantidade que é significativa. Acresce dizer que, sendo desconhecida a percentagem de THC nela presente, ela não pode andar distante do conteúdo médio do THC existente nos produtos da canábis, pois nenhuma organização de tráfico internacional de estupefacientes pagaria 4000 dólares a um ‘correio de droga’ para que este transportasse um produto estupefaciente incapaz de ser colocado no mercado de consumo, por falta das respectivas qualidades psicotrópicas.
É pois, médio/baixo, o grau de ilicitude do facto.
Concordamos com a 1ª instância quanto a ser elevada a intensidade do dolo com que a arguida actuou, até porque revestiu a modalidade de directo, revelando considerável energia criminosa.
Militam a favor da arguida, concordando com a 1ª instância, a confissão integral, se bem que, de reduzido valor para a descoberta da verdade, o arrependimento, a inexistência de antecedentes criminais e a inserção social e familiar, sendo que estas, contudo, preexistindo à prática do crime, não constituíram factor impeditivo dessa prática.
Aceitando-se as dificuldades económicas e financeiras da arguida, não se compreende que a desejada cirurgia de mudança de sexo tenha prevalecido sobre a opção por manter uma conduta conforme ao direito.
Por outro lado, o comportamento adequado às regras da instituição prisional é o que se exige de todo e qualquer recluso e releva, essencialmente, na apreciação do cumprimento da pena.
Finalmente, concordamos também com a 1ª instância, quanto a serem elevadas as exigências de prevenção geral, quer pela frequência com que o tráfico de estupefacientes continua a ser praticado, não obstante as pesadas penas com que é punível, quer, sobretudo, pelo grande alarme que causa na comunidade, designadamente, devido ao reflexo que tem na criminalidade contra a propriedade e, não raras vezes, contra as pessoas, a que se soma a circunstância de se tratar de tráfico internacional, e quanto a serem reduzidas mas, em todo o caso, não desprezíveis, atenta a opção feita pela arguida acima assinalada, as exigências de prevenção especial.
Assim, considerando a moldura penal abstracta aplicável ao crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro – pena de prisão de 4 a 12 anos –, notando-se alguma sobreposição das circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, sendo elevadas as exigências de prevenção geral e reduzidas as de prevenção especial, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão decretada pela 1ª instância, situada, precisamente, entre o primeiro oitavo e o primeiro quarto daquela moldura, mostra-se necessária, adequada, proporcional e plenamente suportada pela medida da culpa da arguida, estando, aliás, em linha, com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, para casos, em tudo, semelhantes (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça 27 de Fevereiro de 2025, processo nº 6/24.4JAPDL.S1, de 5 de Fevereiro de 2025, processo nº 2/24.1PEPDL.S1 e de 17 de Outubro de 2024, processo nº 756/23.2JAPDL.S1, in www.dgsi.pt).
Não se justifica, pois, a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal, devendo manter-se a pena fixada pelo tribunal a quo.
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Da substituição da pena de prisão
6. Alega a arguida – conclusão 28 – que, a ser-lhe fixada uma pena de prisão inferior a 5 anos, deve a mesma ser suspensa na respectiva execução, ainda que condicionada a determinadas regras, que não especifica.
No corpo da motivação, densificou a alegação, dizendo que a confissão integral, o arrependimento demonstrado, a inserção familiar, as suas aptidões profissionais e o reconhecimento do desvalor da acção praticada permitem a formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro.
Vejamos.
Estabelece o art. 50º do C. Penal, no seu nº 1 que, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. São, assim, dois, os pressupostos de cuja verificação, faz a lei depender a aplicação do instituto.
Um, de natureza formal, tem por objecto a medida concreta da pena principal a substituir, que não pode ser superior a cinco anos de prisão.
Outro, de natureza material, traduz-se na necessidade de formulação pelo tribunal, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as suas condições de vida, as circunstâncias do crime e a sua conduta anterior e posterior a este, a mera censura do facto e a ameaça da prisão darão adequada e suficiente realização às finalidades da punição.
Não estando, desde logo, verificado o pressuposto de natureza formal de que depende a aplicação da pretendida pena de substituição, não pode a arguida, dela, beneficiar.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCS. (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).
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Lisboa, 26 de Junho de 2025
Vasques Osório (Relator)
Ana Paramés (1ª Adjunta)
Ernesto Nascimento (2º Adjunto)