HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
DEFENSOR
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. A defesa do arguido deve ser assegurada até ao trânsito em julgado da sentença, o que só ocorre quando esta se torna insusceptível de reclamação ou de recurso ordinário, razão pela qual pretendendo o arguido a substituição do seu defensor por causa em que a lei a admita ou pretendendo o defensor ser substituído, seguir-se-ão os procedimentos correspondentes sem que daí resulte prejuízo para a defesa, mantendo-se o defensor do arguido em funções até à sua substituição, como prevê o art. 66º, nº 4, do Código de Processo Penal.
II. Aliás, resulta expressamente do art. 100º, nº 1, al. e), do Estatuto da Ordem dos Advogados que o advogado não pode cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas, acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que ainda que exista motivo justificado para a cessação do patrocínio, o advogado não deve fazê-lo por forma a impossibilitar o cliente de obter, em tempo útil, a assistência de outro advogado.
III. A argumentação expendida pelo requerente não evidencia insuficiência processual traduzida numa condenação sem assistência de defensor, assim como a providência de habeas corpus não permite sindicar a bondade da decisão condenatória.
IV. A providência de habeas corpus destina-se a pôr cobro a situações de prisão ilegal, não constituindo o meio adequado para apreciar ou declarar nulidades processuais.

Texto Integral

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório:

AA, melhor identificado nos autos, atualmente recluso no Estabelecimento Prisional de ..., onde cumpre a pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão em que foi condenado pelo Juízo Local Criminal de ... por sentença transitada em julgado em 27.01.2025, sustentando-se no disposto no art.º 222.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, (diploma a que se reportam todas as disposições legais citadas sem menção de origem), veio requerer providência de habeas corpus mediante requerimento subscrito pelo seu mandatário, apresentado no tribunal da condenação e que tem o seguinte teor (transcrição – itálico nosso):

(…)

I. O Arguido, ora requerente, encontra-se em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional de ....

II. Estando aí por força de sentença condenatória, aplicada no âmbito do processo supra, em razão de condenação pela prática, enquanto autor material e na forma consumada de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d) e e), por referência ao art.º 255.º, al. a), todos do C. Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.

III. O arguido encontra-se detido de 7 de Março de 2025.

IV. Tal como decorre dos presentes autos, os mesmos realizaram-se em 4 sessões de julgamento (13/05/2024; 11/10/2024; 15/11/2024 e 28/11/2024), nas quais o arguido foi representado por Defensor oficioso, sendo que na primeira a sua defesa foi assegurada por outra Defensora, com substabelecimento com reserva a seu favor.

V. Tendo o arguido, posto o seu defensor lhe ter informado, aquando da leitura da sentença, que iria suspender inscrição na Ordem dos Advogados e deixar de assumir o seu patrocínio;

VI. Nessa senda, em 16/12/2024, o arguido vem a formular pedido de apoio judiciário, a fim de apresentar recurso da decisão condenatória, Vide Ref. Citius .....82;

VII. Cujo deferimento nunca chegou a constar dos autos físicos ou processuais;

VIII.Pelo que, o arguido, não apenas não recebeu quaisquer notificações ulteriores, quer judiciais, quer do PAJ formulado e só veio a ter conhecimento da decisão final, a qual transitou em julgado em 27/01/2025, quando, por sua livre iniciativa, se deslocou ao posto da PSP de ..., a fim de tratar de um outro assunto e acabou por aí ser detido.

IX. Tendo-lhe sido apenas nomeado novo defensor em 17/03/2025.

X. Momento em que o prazo de recurso fora já precludido.

XI. Razão pela qual se viu o arguido impedido de, contra a sua vontade, apresentar recurso que impugnasse a decisão condenatória.

XII. Exclusivamente por falta de defensor que assumisse o seu patrocínio.

XIII.Situação que, novamente se refira, em tempo, tentou acautelar.

XIV. Mas que, por motivos alheios à sua vontade, tal não ocorreu e se encontra na presente situação detentiva.

XV. A qual é manifestamente ilegal, por preterição evidente do princípio da legalidade, constitucionalmente plasmado no art.º 27.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 5.º da Declaração Europeia dos Direitos Humanos.

Termos em que,

Se requer provimento ao presente pedido de habeas corpus, ordenando a imediata libertação do Arguido e concedendo ao mesmo, prazo legal para formulação de recurso da decisão condenatória supra mencionada.

O Mmo. Juiz do Juízo Local Criminal de...prestou nos autos a informação a que se reporta o n.º 1 do art. 223.º nos seguintes termos:

Em obediência ao disposto nos artigos 222.°, n.º 2 e 223.°, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, remeto de imediato a Vª Ex.ª a petição de “habeas corpus”, apresentada pelo Ilustre mandatário do arguido BB, instruída com certidão dos autos a que respeita, com a informação de que o arguido se encontra em cumprimento de pena efetiva de prisão de 1 ano e 9 meses, na sequência de sentença condenatória proferida nestes autos, já transitada em julgado.

Com o devido respeito, é nosso entendimento que a situação não se enquadra nos fundamentos do habeas corpus, elencados no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mormente tendo em atenção o disposto no artigo 66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

Com efeito, esse n.º 4, do artigo 66.º, do Código de Processo Penal dispõe:

Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo.

De todo o modo, ainda que tal tivesse acontecido e se considerasse constituir nulidade insanável, o certo é que, como se pode ler no sumário de Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2010, proferido no proc. n.º 21/07.2SULSB-E.S1, que também se pronunciou sobre pedido de habeas corpus, “mesmo as nulidades insanáveis, que a todo o tempo invalidam o acto em que foram praticadas e os actos subsequentes, ficam cobertas pelo trânsito em julgado da decisão, o que significa que, transitada em julgado a decisão, jamais podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas quaisquer nulidades, mesmo aquelas que a lei qualifica de insanáveis”.

De todo o modo Vossa Ex.ª como sempre, decidirá conforme for de Justiça.

Instrua com certidão de todo o processado e remeta pelo meio mais expedito para o Ex. Senhor Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

A actualidade da prisão resulta dos elementos com que os autos foram instruídos, tendo sido solicitada informação complementar relativa ao trânsito em julgado da sentença e data de início do cumprimento da pena.

Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário do arguido, realizou-se audiência conforme previsto no artigo 223.º, n.º 2.

Finda a audiência a Secção reuniu para deliberação, como prevê o n.º 3 do mesmo artigo.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Resulta dos autos, com relevo para a decisão desta providência, o seguinte:

1. Por sentença do Juízo Local Criminal de ... de 28.11.2024, transitada em julgado em 27.01.2025, foi o arguido e ora requerente AA condenado na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão pela autoria de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. d) e e), por referência ao art.º 255.º, al. a), todos do Código Penal.

2. O arguido iniciou o cumprimento da pena em 07.03.2025, estando actualmente detido para esse efeito no Estabelecimento Prisional de ....

Posto isto, há que reconhecer a tempestividade da petição, atenta a actualidade da privação da liberdade, tanto quanto é certo que o requerente se encontra em cumprimento da pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão que lhe foi imposta por sentença transitada em julgado.

Também a legitimidade do requerente é inquestionável à luz do disposto nos artigos 31.º, n.º 2, da CRP e 222.º, n.º 2, do CPP.

A petição estriba-se na circunstância de a audiência de julgamento se ter prolongado por quatro sessões em que o arguido foi representado por defensor oficioso, tendo sido por este informado por ocasião da leitura da sentença que iria suspender a inscrição na Ordem dos Advogados e deixar de assumir o seu patrocínio, razão pela qual formulou pedido de apoio judiciário em 16/12/2024 para interpor recurso da sentença, cujo deferimento nunca chegou a constar dos autos, não tendo recebido quaisquer notificações ulteriores, apenas lhe tendo sido nomeado novo defensor em 17/03/2025, quando o prazo de recurso já havia precludido, não tendo apresentado recurso da sentença por falta de defensor que assumisse o patrocínio.

É pacífico na jurisprudência, como na doutrina, o entendimento de que o habeas corpus, no recorte dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 224.º do Código de Processo Penal, se traduz numa providência urgente e de natureza extraordinária que visa essencialmente garantir o direito à liberdade individual tutelado pelo art. 27.º da CRP, constituindo o adequado instrumento reactivo contra o abuso de poder por detenção ou prisão ilegal, tendo como escopo a imediata reversão dessas situações, suposto que a ilegalidade da detenção ou da prisão se ofereça como manifesta, traduzindo ostensivo abuso de poder.

A lei processual penal distingue os procedimentos de habeas corpus por detenção ilegal e por prisão ilegal.

O requerente funda a sua pretensão em prisão ilegal motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

No que tange à prisão ilegal, o procedimento correspondente pauta-se pela livre disponibilidade (pode ser requerido pelo próprio cidadão privado da liberdade ou por qualquer outra pessoa no gozo dos seus direitos políticos), pela celeridade (é apresentado à própria autoridade à ordem da qual o preso se encontrar, que o remete de imediato ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo decidido pela competente Secção Criminal no prazo de oito dias) e pela simplicidade da tramitação (o seu objecto é restrito à previsão da alínea ou alíneas do n.º 2 do art. 222.º que quadrem ao caso, com exclusão de quaisquer outras questões de fundo ou de forma que extravasem aquele âmbito).

O Supremo Tribunal de Justiça vem considerando uniformemente que o habeas corpus só poderá fundar-se nas circunstâncias taxativamente previstas na lei, sendo inadmissível a utilização desta providência para sindicar os motivos determinantes da prisão, questionando o mérito da decisão condenatória, a sua pertinência de facto ou de direito ou quaisquer outras razões, que não as expressamente previstas, susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão ou a sua regularidade.

No que especificamente concerne à prisão ilegal, que constitui o alicerce da pretensão do requerente, podem constituir fundamento de habeas corpus:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Não oferece dúvida que a defesa do arguido deve ser assegurada até ao trânsito em julgado da sentença, o que só ocorre quando esta se torna insusceptível de reclamação ou de recurso ordinário, razão pela qual pretendendo o arguido a substituição do seu defensor por causa em que a lei a admita ou pretendendo o defensor ser substituído, seguir-se-ão os procedimentos correspondentes sem que daí resulte prejuízo para a defesa, mantendo-se o defensor do arguido em funções até à sua substituição, como prevê o art. 66º, nº 4, do Código de Processo Penal. Aliás, resulta expressamente do art. 100º, nº 1, al. e), que o advogado não pode cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas, acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que ainda que exista motivo justificado para a cessação do patrocínio, o advogado não deve fazê-lo por forma a impossibilitar o cliente de obter, em tempo útil, a assistência de outro advogado.

Em síntese, a argumentação expendida pelo requerente não só não evidencia insuficiência processual traduzida numa condenação sem assistência de defensor como acresce a circunstância de a providência de habeas corpus não permitir sindicar a bondade da decisão condenatória nem constituir meio processualmente adequado para a rever, finalidade que apenas poderia ser atingida mediante recurso extraordinário de revisão, nos termos previstos nos arts. 449.º e ss. do CPP.

É ponto assente que a providência de habeas corpus se destina a pôr cobro a situações ilegais, não constituindo o meio adequado para apreciar ou declarar nulidades processuais. O alegado pelo requerente não preenche qualquer dos fundamentos legais que poderiam sustentar esta providência de natureza excepcional. Na verdade, não está em causa uma prisão ordenada por entidade incompetente, estando o requerente preso para cumprimento de pena imposta em processo criminal cuja decisão transitou em julgado; também não se trata de prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permita, tanto quanto é certo que o crime por que o ora requerente foi condenado é punível com pena de prisão; e não se trata, por fim, de prisão que tenha perdurado para além do prazo fixado na lei ou decorrente de decisão judicial, porquanto se encontra ainda longe o termo do cumprimento da pena. Consequentemente, o pedido de habeas corpus deverá improceder por inequívoca e manifesta falta de fundamento bastante, de acordo com a previsão do art. 223.º, n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar manifestamente improcedente a petição de habeas corpus por falta de fundamento legal.

Atento o carácter manifestamente infundado da providência condena-se o requerente no pagamento da quantia correspondente a 8 (oito) UC, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.

Fixa-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UC (art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).


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Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2025

(Processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários)

Jorge Jacob (relator)

Ernesto Nascimento

Ana Paramés