RECURSO DE REVISTA
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO
OBJETO
MÉRITO DA CAUSA
CONHECIMENTO
INADMISSIBILIDADE
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Sumário

Numa reclamação contra um despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 643.º do Código de Processo Civil, apenas pode estar em causa a admissibilidade do recurso de revista e a correção do despacho reclamado, não cabendo conhecer de questões relativas ao mérito do recurso que o reclamante suscite.

Texto Integral

Reclamante: Grace for the People, Unipessoal, Lda.

Reclamados: Caetano Power S.A. e RCI Banque – Sucursal Portugal

I. Em 3 de junho de 2025, foi proferido o seguinte despacho:

1. Por sentença do Juízo Central Cível – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... foi julgada improcedente a acção proposta por Grace for the People, Unipessoal, Lda., contra Caetano Power S.A. e RCI Banque – Sucursal Portugal, na qual a autora formulou os seguintes pedidos:

– reconhecimento da resolução dos contratos de compra e venda e de crédito celebrados com as rés.;

– condenação da 1.ª ré. a proceder à recolha do veículo;

– condenação da 2.ª ré a restituir à autora a quantia de € 4.176,92, correspondente às prestações pagas quanto ao contrato de financiamento celebrado entre as partes;

– condenação das rés, solidariamente:

- A reembolsar os prémios de seguro automóvel pagos pela autora de setembro de 2021 a janeiro de 2022, no valor de € 331,43;

- A pagar lucros cessantes durante o mesmo período no valor de € 10.800,00;

- A pagar o custo de emissão da 2.ª via do DUA, no valor de € 10,00;

- A pagar danos patrimoniais e não patrimoniais de € 3.500,00 e € 5.000,00, respetivamente.

Para julgar improcedentes os pedidos, a sentença considerou o seguinte:

A resolução ocorre nos contratos bilaterais quando uma das partes o não cumpre (sublinhado nosso) justificando-se, assim, que a contraparte o rompa (artigo 432.º do Código Civil) ou quando há uma alteração anormal da base negocial que atinge o equilíbrio das prestações (artigo 437.º do Código Civil).

A resolução é, por conseguinte, motivada, com efeitos imediatos e sem dependência ou observância de qualquer prazo contratual.

O caso dos autos enquadra-se numa evidente resolução contratual motivada.

Assim sendo, a questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se a A. tinha ou não razão para resolver o acordo com fundamento em justa causa imputável às RR.

Importa, pois, apreciar se, perante a factualidade que ficou apurada, os comportamentos da R. são susceptíveis de configurar justa causa de resolução da relação contratual.

Ora, como acima referimos, apesar de estar verificada a mora da 2.ª R. na entrega do D.U.A., a sua não entrega definitiva ocorreu devido à não colaboração da A. na rectificação do número do chassis e que já consideramos atentatória da boa-fé.

Desde modo, entendemos que a A. não podia recorrer à resolução do contrato, nos moldes que o fez.

Dispõe-se no art. 342. do Código Civil que compete àquele que invocar um direito fazer a prova dos respectivos factos constitutivos.

Ora, na presente acção, a A. não demonstrou que a resolução que invocou é lícita, pelo que em consequência, não assiste à A. o direito a peticionar a condenação das RR. nos termos peticionados.”

Foi ainda julgada procedente a reconvenção deduzida pela segunda ré, que havia pedido:

– a resolução, por incumprimento definitivo, por parte da autora, do contrato de financiamento automóvel n.º ...01, e;

– a condenação da autora a pagar à 2.ª ré a quantia de € 32.001,37 acrescida de juros de mora desde a resolução do contrato (12.02.22) e até efetivo e integral pagamento que, bem como da quantia de € 300,00 que corresponde à comissão devida pelos serviços prestados pela 2.ª ré, ou;

– a condenação da autora a pagar à 2ª ré a quantia de € 10.285,74 em resultado do uso do bem até janeiro de 2022, que corresponde ao valor da prestação mensal de € 571,43 multiplicada pelos 18 meses em que decorreu a moratória.

Para assim decidir a reconvenção, o tribunal considerou resolvido o contrato de financiamento automóvel n.º ...01, por incumprimento definitivo, por parte da A., condenando a autora a pagar à 2.ª ré a quantia de € 32.001,37, acrescida de juros de mora desde a resolução do contrato (12.02.22) e até efectivo e integral pagamento, bem como da quantia de € 300,00, pedida a título de comissão pelos serviços prestados.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em recurso de apelação interposto pela autora, foi decidido “julgar parcialmente procedente o recurso, condenando-se a A. a pagar à 2ª R a quantia de 29.868,88 € (vinte e nove mil, oitocentos e sessenta e oito euros e oitenta e oito cêntimos), e não de 32.001,37 € como fixado na sentença recorrida, mantendo-se no demais a mesma decisão”.

A parcial procedência, resultou apenas de uma correcção das contas feitas para apurar o montante da condenação no pedido reconvencional.

A propósito da resolução oposta pela autora, a Relação decidiu:

“Num primeiro momento, eram as RR que estavam em mora relativamente ao cumprimento da obrigação de entrega dos documentos (art 882º n.º 2 do Cód. Civil), o que poderá ter provocado danos à Autora (uma vez que não podia retirar rendimento da utilização do veículo), e poderia motivar um pedido de indemnização por responsabilidade contratual (art, 562º do Cod. Civil). Mas a partir do momento em que começou a recusar injustificadamente a assinatura do documento que permitiria a correcção do erro na identificação do chassis e a emissão do DUA, foi a A. quem ficou em mora, enquanto credora, uma vez que deixou de praticar os actos necessários ao cumprimento da referida obrigação de entrega dos documentos (art 813º, parte final, do Cód. Civil).

Não se verificava por isso uma situação de incumprimento definitivo por parte das RR. da obrigação de entrega dos documentos do veículo, surgindo como não fundamentada a resolução dos contratos (arts 432º e 801º do Cód. Civil).”

2. A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo a revogação do acórdão recorrido: “Revogando-o, e, em seu lugar, outro produzido, decretando a sua revogação e, concomitantemente, havendo por procedentes todas as pretensões da A, e improcedentes a oposição contra ela deduzida e também o pedido reconvencional formulado, vossas excelências farão sagaz e hábil Justiça”.

Justificando a admissibilidade da revista, a recorrente afirmou que “a condenação da A, nas Instâncias, teve fundamentação essencialmente diferente, pelo que nada obsta á admissibilidade do presente recurso. Na verdade, enquanto para a 1ª Instância a resolução do contrato operada pela Autora não é lícita, para a 2ª Instância os RR não incorreram em incumprimento definitivo. Com todo o respeito, ambas incorreram num equívoco (leia-se em erro de julgamento), uma vez que a resolução dos contratos é lícita por força do incumprimento definitivo dos RR.”

A 2.ª ré contra-alegou, suscitando, desde logo, a inadmissibilidade da revista, por se verificar o obstáculo da dupla conformidade decisória entre as instâncias (n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil), não tendo sido interposto recurso de revista excepcional e, se assim se não entender, a improcedência do recurso.

O recurso não foi admitido, pelo despacho de 25 de Fevereiro de 2025: «O recorrente para afastar a dupla conforme e assim justificar a admissibilidade do recurso de revista refere que “Na verdade, enquanto para a 1ª Instância a resolução do contrato operada pela Autora não é lícita, para a 2ª Instância os RR não incorreram em incumprimento definitivo”. Não se percebe esta afirmação : tanto a 1ª instância como a Relação consideraram que a resolução do contrato operada pela Autora não era lícita, precisamente porque os RR não incorreram em incumprimento definitivo que pudesse justificar aquela resolução do contrato declarada pela A…Sendo certo que a questão da avaliação da dupla conforme nem sempre se revela fácil, no caso estamos perante duas decisões que consideram o mesmo quadro normativo, com base nos mesmos factos, de acordo com o mesmos institutos jurídicos”.

3. A autora reclamou para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 643.º do Código de Processo Civil, reiterando ser essencialmente diferente a fundamentação das decisões das instâncias e observando que “A dupla conforme não é propriamente uma couraça impeditiva do acesso ao S.T.J, perante o acórdão que faz seus os erros de julgamento da sentença de que advém, ainda que tirado por unanimidade. Ou seja: a dupla conforme só deverá funcionar contanto que tanto a sentença quanto o acórdão que a confirma estejam imunes a flagrantes erros de julgamento, o que manifestamente não é o caso. Donde se segue que, reconhecer verificada a dupla conforme no caso em apreço, equivaleria à perpetuação de uma injustiça”. Acrescentou ainda que o acórdão recorrido enfermava de nulidade.

A 2.ª ré respondeu, suscitando a falta de pagamento da taxa de justiça (questão, entretanto, ultrapassada) e a improcedência da reclamação.

4. A reclamação é improcedente, por não se poder entender que as decisões assentem em fundamentação essencialmente diferentes – ou, na verdade, em fundamentações diferentes.

Foi o Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que introduziu o filtro da dupla conforme no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do recurso de revista. No entanto, só com o Código de Processo Civil de 2013 é que passou a relevar a diferença de fundamentação das decisões das instâncias – não qualquer diferença, mas apenas aquela que traduz uma alteração essencial da fundamentação.

É fácil de compreender a modificação, que confere um sentido material à dupla conformidade decisória.

Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, numa formulação que sintetiza expressivamente o sentido com que o Código de Processo Civil de 2013 veio acrescentar a exigência de que a fundamentação adoptada pelas instâncias que chegaram à mesma decisão fosse essencialmente diferente, “Esta alteração do conceito de dupla conformidade, enquanto obstáculo ao normal acesso em via de recurso ao STJ, operada pelo actual CPC, obriga o intérprete e aplicador do direito– analisada a estruturação lógico argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias, coincidentes nos respectivos segmentos decisórios – a distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente: não é, na verdade, qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.É necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal. Note-se que este regime normativo (que sucedeu ao inicialmente editado pelo DL 303/07, estabelecendo a absoluta irrelevância da fundamentação para aferir da existência ou inexistência de dupla conforme) destina-se a permitir ao STJ sindicar, em revista normal, o decidido pela Relação nos casos em que – sendo coincidentes os segmentos decisórios da sentença apelada e do acórdão proferido na apelação – a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância.”

Ora, no caso presente, da interpretação das decisões em confronto resulta que ambas concluíram pela improcedência da acção, não reconhecendo à autora o direito de resolução que pretendeu exercer, por não se fundamentar em incumprimento definitivo das rés.

Nada se diz na reclamação sobre a reconvenção, nada havendo, portanto, a decidir.

4. A revista é, pois, inadmissível.

Assim, indefere-se assim a reclamação.

Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 ucs.»

II. Grace for the People, Unipessoal, Lda. veio requerer que obre este despacho recaísse um acórdão, devendo ser admitida a revista “que, julgada, deverá ser havida por procedente e, consequentemente, decretada: A anulação do acórdão recorrido; A criação, nos factos provados, de uma alínea materializando que desde 09.04.2020, o AA16MZ é propriedade da N...S.A. – sucursal em Portugal; O aditamento de uma alínea aos factos provados abrigando o facto de que o 2º R não inscreveu em seu benefício a reserva de propriedade do AA16MZ. A condenação do 2º R em litigância de ma fé; A improcedência do pedido reconvencional; A licitude da resolução dos contratos com fundamento em incumprimento por banda das RR.”.

RCI Banque – Sucursal Portugal respondeu, sustentando ser inadmissível a reclamação, devendo o requerimento apresentado ser “liminarmente indeferido e desentranhado dos autos, com a consequente condenação da A. em multa pela prática de ato dilatório, manifestamente contrário à lei”.

É admissível a reclamação (para a conferência) dos despachos dos relatores, nos temos do disposto no n.º 3 do artigo 652.º do Código de Processo Civil; e esta possibilidade vale mesmo para a hipótese de não ter sido admitido o recurso e o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para o apreciar, ao abrigo do regime previsto no artigo 643.º do mesmo Código: esta reclamação é julgada individualmente e, desta decisão, é possível reclamar para a conferência – n.º 4 do artigo 643.º do Código de Processo Civil.

Nestes termos, cumpre apreciá-la. Não cabe, portanto, determinar o seu desentranhamento e aplicar a multa defendida pela reclamada.

III. Começa por dizer-se que, tratando-se de uma reclamação contra um despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 643.º do Código de Processo Civil, apenas pode estar em causa, na mesma reclamação, a admissibilidade do recurso de revista e a correção do despacho reclamado. Só se a reclamação contra a não admissão do recurso obtiver provimento, caso em que se procederá de acordo com o previsto no n.º 6 do mesmo artigo 643.º, requisitando o processo ao tribunal recorrido, se julga a revista; o que significa que não se tomará conhecimento, nesta reclamação, das questões relativas ao mérito do recurso que a reclamante suscita.

Com efeito, como fundamento da reclamação agora apresentada, a reclamante, invocando o acórdão deste Supremo Tribunal de 11.05.2023, 7ª Secção (Cível), in Processo C, relatado pelo Exmo. Conselheiro Oliveira Abreu, cujo sumário transcreveu parcialmente: (“I. Doutrina e Jurisprudência vem, pacificamente, defendendo que, não obstante a dupla conformidade existente entre decisões, sem fundamentação inovatória, essa mesma conformidade deixa de operar quando haja erro de direito na aplicação da lei adjectiva civil, nomeadamente se a parte pretende reagir contra o não uso ou o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto, quando se invoca um erro de direito.”), veio invocar: diversos erros de julgamento e nulidades do acórdão recorrido.

Ora, da leitura completa do acórdão citado, decorre que o acórdão se está a referir à hipótese de se invocar, no recurso de revista, erro de direito na aplicação das regras (processuais) que conformam os poderes da 2.ª instância na reapreciação da matéria de facto, constantes do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não à alegação de erro de direito simplesmente.

A essa hipótese, acrescentamos agora, o Supremo Tribunal de Justiça tem ainda juntado a alegação de violação das regras (processuais) que disciplinam a forma de recorrer, a definição do objecto e a fundamentação da impugnação da decisão de facto, constantes do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

Assim se pode verificar, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. 656/20.8T8PRT.L1.S1, que se cita apenas a título de exemplo: “I. Nem a limitação dos poderes de controlo do Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria de facto, nem o n.º 4 do artigo 662.º do Código de Processo Civil impedem que, na revista, o Supremo Tribunal aprecie o cumprimento das regras relativas à identificação do objecto e à motivação do recurso de facto, definidas pelo artigo 640.º, ou ao exercício dos poderes de controlo pela Relação (n.ºs 1 e 2 do artigo 662.º)” (ponto I do respectivo sumário).

IV. Não apresentando a presente reclamação nenhum fundamento que contrarie a não admissão do recurso, nada há a conhecer.

Assim, indefere-se a reclamação.

Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 ucs.

Lisboa, 3 de Julho de 2025

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

José Maria Ferreira Lopes

António Oliveira Abreu