I - Quem tem personalidade jurídica tem personalidade judiciária, consistindo esta na susceptibilidade de ser parte.
II - Não se verifica a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária se da globalidade da petição inicial e da forma como a autora identificou a ré, a conclusão a retirar é que a acção não foi proposta contra um estabelecimento comercial, que não tem personalidade judiciária, mas sim contra a sucursal da ré, sociedade comercial.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Citizens`Voice – Consumer Advocacy Association, com sede na Praceta ..., em ..., intentou a presente acção popular, a prosseguir como ação declarativa com processo comum, contra a ré Pingo Doce -Distribuição Alimentar, SA., com sede na Rua..., em Lisboa, pedindo o seguinte:
Seja declarado que a ré:
a) Teve o comportamento descrito no §3 supra;
b) Violou qualquer uma das seguintes normas: artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84; artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90; artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018; artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008; artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96; artigo 11, da lei 19/2012; artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/ce; artigo 3, da diretiva 2006/114/ce; artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/ce; artigo 102, do tfue;
c) Especulou nos preços das embalagens de tablete de chocolate de amêndoas, da marca Milka, 135 gramas e das toalhas de plástico Paw Patrol, de 120x180 centímetros na sua sucursal situada na Rua ..., em ...,
d) Publicitou enganosamente o preço das embalagens de tablete de chocolate de amêndoas, da marca Milka, 135 gramas, e das toalhas de plástico Paw Patrol, de 120x180 centímetros na sua sucursal situada na Rua ..., em ...,
e) Teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e doloso ou, pelo menos, grosseiramente negligente;
f) Agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares;
g) Com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;
h) Causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhecê-lo.
Em consequência de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:
i) A indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a título doloso ou negligente, em montante global:
1. A determinar nos termos do artigo 609 (2) do Cód. de Processo Civil;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. E com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
j) Subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. A fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do Cód. Civil, determinado em 0,45 euros por cada embalagem de tablete de chocolate de amêndoas, da marca Milka, 135 gramas e 1,74 euros por cada toalha de plástico Paw Patrol, de 120x180 centímetros respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Rua ..., em ..., durante, pelo menos, entre 30de maio de 2023, às 08h00, e 10de junho de 2023, às 14h35 (portanto, durante 12 dias seguidos, senão mais) e entre 12de maio de 2023, às 08h00, e 12de junho de 2023, às 18h32;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. E com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
k) Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. A fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do Cód. Civil, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a dataem que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais; h) Causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhecê-lo.
Em consequência de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:
i) A indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a título doloso ou negligente, em montante global:
1. A determinar nos termos do artigo 609 (2) do Cód. de Processo Civil;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. E com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
j) Subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. A fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do Cód. Civil, determinado em 0,45 euros por cada embalagem de tablete de chocolate de amêndoas, da marca Milka, 135 gramas e 1,74 euros por cada toalha de plástico Paw Patrol, de 120x180 centímetros respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Rua ..., em ..., durante, pelo menos, entre 30de maio de 2023, às 08h00, e 10de junho de 2023, às 14h35 (portanto, durante 12 dias seguidos, senão mais) e entre 12de maio de 2023, às 08h00, e 12de junho de 2023, às 18h32;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. E com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
k) Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. A fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do Cód. Civil, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a dataem que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;
3. E com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
l) Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
1. Nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;
2. Acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;
3. E com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
m) Ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3) do Cód. de Processo Civil, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente;
n) Porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que a autora, agindo como interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supra aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2) do Cód. de Processo Civil e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.
Subsidiariamente e nos termos do §4 (m):
o) O comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra.
Em qualquer caso, deve:
p) O comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danosque tal comportamento lhes causou;
Requer-se ainda que:
q) Decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
r) Decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
s) Seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;
t) Declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança dasquantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;
u) Declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;
v) Declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5% sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;
w) Declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.
x) Declare a autora interveniente isenta de custas;
y) Condene a ré em custas.
Como fundamento, a autora alega que no estabelecimento comercial da ré situado na Rua ..., em ..., no período entre o dia 30 de Maio de 2023 e o dia 10 de Junho de 2023 o chocolate de amêndoas da marca Milka tinha num letreiro o preço indicado de € 1,74 e nas caixas de pagamento era cobrado aos clientes o preço de € 2,19. A autora considera que este facto consistiu em publicidade enganosa e numa prática restritiva das regras de concorrência e dos direitos dos consumidores.
A autora alterou a causa de pedir e o pedido acrescentando que no período entre o dia 12 de Maio de 2023 e o dia 12 de Junho de 2023 a ré também anunciava aos seus clientes a venda das toalhas de plástico Paw Patrol a um preço inferior ao que era cobrado nas caixas de pagamento.
A ré invocou a incompetência do juízo central cível em razão da matéria, a ineptidão da petição inicial e a não verificação dos pressupostos da acção popular quanto ao tipo de interesses em que a autora fundamenta a sua pretensão.
A autora apresentou articulado de resposta.
Findos os articulados, foi proferido saneador-sentença que decidiu:
1. Julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência deste juízo central cível em razão da matéria para apreciar a presente ação que foi invocada pela ré;
2. Julgar verificada a ineptidão da petição inicial por falta da causa de pedir relativamente à alteração da causa de pedir e do pedido que foi requerida pela autora quanto à vendadas toalhas de plástico Paw Patrol no período entre o dia 12 de maio de 2023 e o dia 12 de junho de 2023 e absolver a ré da instância nesta parte;
3. Julgar verificada a ineptidão da petição inicial por falta do pedido relativamente aos pedidos formulados pela autora nas alíneas a) a h) do pedido e absolver a ré da instância nesta parte;
4. Julgar verificada a exceção dilatória inominada de falta de verificação dos pressupostos da ação popular quanto ao tipo de interesses em que a autora fundamenta a sua pretensão na parte relativa à venda do chocolate de amêndoas da marca Milka no período entre o dia 30 de maio de 2023 e o dia 10 de junho de 2023 e absolver a ré da instância nesta parte.
Não ocorreu litigância de má fé porque a autora e a ré limitaram-se a sustentar a sua posição divergente quanto aos factos que estavam em discussão (art. 542º nº1 e 2 do Cód. de Processo Civil).
Nos termos do art. 306º nº1 e 2 do Cód. de Processo Civil, fixo o valor da causa em € 60.000,00.
As custas serão a cargo da autora, fixando-se o seu montante em um décimo das custas que normalmente seriam devidas (art. 20º nº3 da Lei nº83/95 de 31 de agosto).
Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Este Tribunal, por acórdão de 20/03/2025, decidiu:
- julgar improcedente a apelação;
- julgar verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré, em consequência do que a absolvem da instância;
- julgar improcedente o pedido de condenação da ré, como litigante de má-fé.
Custas da acção e do recurso, pela autora/apelante, que delas está isenta.
Ainda inconformada, a Autora interpôs recurso de revista no qual formula as seguintes conclusões:
1. Nos termos do artigo 671 (3) do CPC, o recurso de revista é, em regra, inadmissível quando o acórdão da Relação confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão da primeira instância – situação designada por “dupla conforme”, todavia, inexiste dupla conforme sempre que, embora o sentido decisório se mantenha, a fundamentação jurídica da decisão da Relação seja inovadora ou substancialmente distinta da adotada pela primeira instância.
2. No caso concreto, a exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da ré foi suscitada apenas em sede de recurso subordinado, não tendo sido objeto de apreciação em 1.ª instância, pelo que não ocorre a situação de dupla conforme.
3. Ainda que se entendesse existir dupla conforme, deveria ser admitida revista excecional, nos termos do artigo 672 (1, b, c), do CPC, dada a relevância jurídica e social das questões suscitadas, designadamente no âmbito de ação popular em defesa dos consumidores.
4. O caso dos autos apresenta contornos de novidade, com potencial efeito paradigmático sobre litígios futuros, o que justifica uma pronúncia clarificadora por parte do Colendo Supremo Tribunal de Justiça.
5. Acresce que o acórdão recorrido encontra-se em contradição direta e perfeita com o douto acórdão desse Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 13.03.2025, proferido no processo n.º 5623/23.7T8BRG.S1, com idêntico pedido, causa de pedir, parte passiva e, na parte ativa, a mesma representante (ou substituta como certa doutrina defende) dos interesses em causa.
6. A divergência interpretativa verificada entre os dois arestos justifica a admissão da revista, por forma a assegurar a coerência e a segurança jurídica.
7. Finalmente, com o devido respeito, a decisão recorrida incorre em erro de interpretação e aplicação das normas legais relativas à personalidade judiciária da ré, ao julgar verificada a exceção dilatória e absolver a ré da instância.
8. Termos em que se requer seja o presente recurso de ser admitido e julgado.
9. Personalidade Jurídica e Judiciária da Ré: a ação foi proposta contra a sociedade “PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A.”, devidamente identificada no formulário Citius com personalidade jurídica e judiciária.
10.A referência a uma “sucursal” na petição inicial é meramente descritiva do local onde os factos ocorreram e não implica falta de personalidade jurídica da ré.
11.A própria ré reconheceu na contestação que a ação foi proposta contra ela, não havendo qualquer confusão quanto à sua identidade.
12.Prevalência do Formulário Citius: conforme o artigo 7 (2), da Portaria 280/2013, prevalece o indicado no formulário eletrónico submetido via Citius, onde a ré está corretamente identificada.
13.Mesmo em caso de divergência entre o formulário e a petição, tal discrepância poderia ser sanada nos termos legais, o que não afeta a validade da ação.
Termos em que, ex vi do alegado supra, os apelantes rogam a VossaS Excelências, Colendos(as), Senhores(as), Juízes(as) Conselheiros(as), que seja concedido provimento ao recurso de revista interposto, revogando-se a decisão de absolvição da instância da ré por falta de personalidade judiciária e determinada a baixa ao tribunal de primeira instância para o prosseguimento dos autos.
A magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães respondeu ao recurso, pugnando pela revogação do acórdão recorrido que absolveu a ré da instância da ré por falta de personalidade judiciária, e que se determine a apreciação das questões suscitadas no recurso interposto.
Contra alegou a ré/recorrida PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., pugnando pela inadmissibilidade da revista; assim não se entendendo, deve o recurso ser julgado improcedente.
Na hipótese de procedência do recurso quanto à questão da personalidade judiciária e consequente revogação do acórdão proferido, requer que, nos termos do nº2 do art. 665º, seja confirmada a sentença que decidiu:
(i) pela verificação de ineptidão da petição inicial por falta da causa de pedir relativamente à alteração da causa de pedir e do pedido que foi requerida pela autora;
(ii) pela verificação de ineptidão da petição inicial por falta do pedido relativamente aos pedidos formulados pela autora nas alíneas a) a h) do pedido;
(iii) pela verificação de exceção dilatória inominada de falta de verificação dos pressupostos da ação popular quanto ao tipo de interesses em que a autora fundamenta a sua pretensão.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Da admissibilidade da revista.
Na 1ª instância, a acção foi julgada improcedente por ter sido julgado inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir, relativamente à venda das toalhas de plástico Paw Patrol, inepta também quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) a h), e julgado verificada a excepção dilatória inominada de falta de verificação dos pressupostos da acção popular, na parte relativa à venda do chocolate Milka, motivo por que a Ré foi absolvida da instância.
O acórdão da Relação igualmente absolveu a Ré da instância, mas por julgar verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré.
Assim, e embora a sentença e o acórdão da Relação tenham chegado à mesma decisão – absolvição da ré da instância – fizeram-no a partir de fundamentos essencialmente diferentes, o que descaracteriza a dupla conforme (art. 671º, nº3), sendo a revista admissível em termos gerais.
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Objecto do recurso:
Saber se a ré dispõe de personalidade judiciária.
Apreciação e decisão.
A decisão recorrida julgou verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré, decisão assim justificada:
“A autora afirma várias vezes (pelo menos 4) que a presente acção é movida contra a sucursal da ré, sita na de Rua..., ..., distrito de ..., e, mais relevante ainda, usa como fundamento para a competência territorial do Tribunal a quo, o seguinte: “…, a autora interveniente pede a condenação da sucursal da ré, sita em ..., Rua ..., ... distrito de ..., com base na sua invocada responsabilidade civil contratual e extracontratual”.
Donde poder concluir-se que a autora/apelante, quis efectivamente intentar a presente acção contra a referida sucursal da ré.
Ora, como se afirma no Ac. que vamos seguindo: “… não existe uma sucursal da ré na cidade .... É do conhecimento público (facto notório) que a ré dispõe de uma rede de estabelecimentos comerciais que cobre a totalidade do território nacional. Esta rede nada tem a ver com a representação da sociedade, mas apenas com a captação de clientes. É por este motivo que a ré dispõe de mais do que um estabelecimento comercial na mesma cidade, como acontece em ..., o que seria incompreensível se estivesse em causa uma forma local de representação. Acresce que os estabelecimentos comerciais da ré não têm liberdade de gestão e actuação e não podem ser considerados centros autónomos de negócios. A forma de actuação da ré é definida centralmente. Os estabelecimentos comerciais não têm liberdade para a fixação dos preços, não contratam com fornecedores, não podem contratar trabalhadores e não têm autonomia financeira, estando, pelo contrário, sujeitos a uma obrigação de reporte em relação à ré. E que “estando em causa um estabelecimento comercial verifica-se a falta de personalidade judiciária, porquanto, ao contrário do que acontece com as sucursais nas circunstâncias previstas no art. 13º nº 1 do Cód. De Processo Civil, os estabelecimentos comerciais não têm personalidade judiciária e não podem demandar ou ser demandados.
No caso destes autos, como daqueles, é pacífico que a citada “sucursal da ré” não constitui nem uma verdadeira sucursal, nem uma agência, filial, delegação ou representação, mas antes e apenas um estabelecimento comercial da sociedade comercial Pingo Doce, S.A.
(…).
Donde, poder concluir-se que a autora/apelante intentou a acção contra entidade que não goza de personalidade judiciária.”
(…)
Com efeito, essa é a única interpretação aceitável de todas as referências contraditórias feitas na petição inicial. Apesar de não ser aceitável que a identidade da pessoa jurídica contra quem o autor pretende intentar a acção seja obscura ou dúbia, temos de reconhecer que foi o que sucedeu neste caso. E tal conclusão assenta no que vem alegado ao longo da petição.”
Vejamos se este entendimento é de confirmar.
A personalidade judiciária é um pressuposto processual, consistindo, na definição do art. 11º do CPCivil, “na susceptibilidade de ser parte.”
Nas palavras de Antunes Varela- Miguel Bezerra – Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 107 e ss.:
“Partes – figura essencialmente processual, embora com raízes substantivas – são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da acção, a providência judiciária.
A personalidade judiciária consiste, assim, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei.
(…)
O critério legal fixado na lei para se saber quem tem personalidade judiciária é o da correspondência (coincidência ou equiparação) entre a personalidade jurídica (ou capacidade de gozo de direitos) e a personalidade judiciária.
“Quem tiver personalidade jurídica, prescreve o nº2 do art. 5º (actual art. 11º), tem igualmente personalidade judiciária.”
Todos os indivíduos, quer sejam maiores ou menores (…) gozam de personalidade judiciária, podem ser partes em juízo, visto que todos eles podem ser sujeitos, em princípio, de quaisquer relações jurídicas.
E o corolário aplicável às pessoas singulares entende-se de igual modo às pessoas colectivas (associações ou fundações), quer às sociedades a que seja reconhecida personalidade jurídica. Também as pessoas colectivas e as sociedades, embora agindo necessariamente em juízo por meio dos seus representantes estatutários, são as verdadeiras partes da acção, sempre que esta seja proposta em nome delas ou contra elas.”
Pelo art. 13º do CPCivil, é ainda conferida personalidade judiciária às sucursais agências, filiais (das sociedades ou pessoas colectivas). Como referem Antunes Varelas e outros, obra citada, p. 113, “estas entidades, como meros órgãos de administração local que são, dentro da estrutura da sociedade ou pessoa colectiva, não gozam de personalidade jurídica, porque não constituem sujeitos autónomos de direitos e obrigações. Apesar disso, a lei (…) reconhece personalidade judiciária às sucursais, agências, filiais ou delegações, quer para demandarem, quer para serem demandadas, sempre que a acção proceda de facto por elas praticado.”
Posto isto, revertamos ao caso dos autos.
Na petição inicial, onde o autor obrigatoriamente deve identificar as partes (art. 552º, nº1,a), do CPC), o réu é ali identificado como “Pingo Doce -Distribuição Alimentar, SA.”, com sede na Rua ..., ....
Percorrendo o articulado inicial, são vários os pontos que demonstram que a autora identifica e imputa ao Réu Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., factos ilícitos, praticados na loja de ..., que “justificam a necessidade de reacção através de acção popular” (sic):
- “Sendo a presente acção movida contra a sua sucursal, com estabelecimento em ..., ..., ...” – art. 20º;
- “A Ré dedica-se à distribuição alimentar, por intermédio da venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar” – art. 23º;
- “A Ré comercializa produtos alimentares na loja de venda ao público supra referida” – art. 24º;
- A Ré detém uma posição dominante nos mercados relevantes” – art. 25º;
- A Ré é um dos maiores operadores na distribuição alimentar a retalho, detendo nesse posicionamento de mercado, uma posição de domínio” – art. 26º.
Os excertos da p.i. transcritos mostram, com o devido respeito, que a presente acção não foi intentada contra o “estabelecimento comercial” que a Ré possui no ..., mas contra a Ré Pingo Doce – Distribuição Alimentar SA, pese embora o pouco rigor terminológico usado na p.i.
No acórdão do STJ de 13.03.2025, P. 5623/23, num caso com contornos semelhantes, escreveu-se o seguinte que merece a nossa inteira concordância:
“A Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA, é como a sua firma indica, uma sociedade anónima, dotada de personalidade jurídica desde a data do registo definitivo do acto pelo qual se constituiu (cf. art. 5º do CSC) e, consequentemente, dotada também de personalidade judiciária.
É verdade, que no articulado a autora se refere a uma “sucursal”, com estabelecimento na cidade de ... - porque alega a autora, a certa altura da p.i., “os factos que estribam a presente acção foram praticados pelo estabelecimento comercial do Pingo Doce”. Por esta razão , a “sucursal” da ré estabelecida na cidade de ..., estaria, na visão da autora, simultaneamente “envolvida”. É à luz disto que se compreendem afirmações da autora não absolutamente alinhadas com as anteriores, como a de que a “a ré é a mesma entidade, que tem sede em ..., tal como identificado no art. 19º da p.i,., e sucursal com estabelecimento na morada identificada no art. 20 da p.i., sendo sobre esta última, sucursal que a acção é movida.
Em suma, não há razões para duvidar de que, nas passagens em que se refere também à sucursal, a intenção da autora é de demandar esta enquanto “desdobramento” da sociedade ré, ou seja, da sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar. Não havendo razão para duvidar-se disto, deve dar-se razão à autora na questão suscitada no presente recurso.
Diga-se ainda que, mesmo que entendesse que a autora havia demandado exclusivamente a “sucursal” e não – nem sequer adicionalmente – a Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., o juiz deveria, em obediência do princípio da economia processual, da necessidade de evitar a realização de actos inúteis (cfr. art. 130º do CPC) e, acima de tudo, do seu dever de gestão processual (em especial os arts. 6º, nº2 e 590º, nº2, alínea a) do CPC) considerar a hipótese de suprimento da falta de legitimidade processual nos termos legais aplicáveis.”
Com o que procede a revista, não podendo manter-se o acórdão recorrido.
Na resposta, a Recorrida pede que, julgado procedente o recurso, o STJ conheça das demais questões suscitadas na apelação e cujo conhecimento ficou prejudicado por se ter considerado que a Ré carecia de personalidade judiciária, nos termos do nº2 do art. 665º.
Consagra-se neste artigo a regra da substituição, nos termos do qual “se o tribunal recorrido deixar de conhecer de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
A pretensão da Recorrida não pode ser atendida em face da regra clara do art. 679º do CPC que manda aplicar ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, “com excepção do que se estabelece nos artigos 662º e 665º.”
Por conseguinte, tendo o acórdão sido revogado, impõe-se a remessa dos autos à Relação para que nesta sejam apreciadas em primeira mão as questões omitidas (cfr., Abrantes Geraldes, Recursos (…), Almedina, 5ª edição, pag. 426).
Decisão.
Em face do exposto, decide-se:
- Revogar o acórdão recorrido;
- Determinar a baixa dos autos à Relação para apreciação das questões suscitadas na apelação e cujo conhecimento ficou prejudicado pela absolvição da instância da Ré por falta de personalidade judiciária.
Custas pela Recorrida.
Lisboa, 03/07/2025
Ferreira Lopes (Relator)
Rui Machado e Moura
Arlindo Oliveira