AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO DE IMÓVEL
COMODATO PARA USO DETERMINADO
Sumário

I - Em ação de reivindicação de propriedade de imóveis, reconhecida a propriedade recai sobre quem ocupa o imóvel o ónus de alegação e prova dos factos que justificam a ocupação do prédio objeto de reivindicação, por constituir matéria impeditiva do direito à restituição, como decorre do art.º 342º/2 CC.
II - Face à previsão do art.º 1137º/1 CC, o comodato para “uso determinado” contém a delimitação da necessidade temporal que visa satisfazer, denotando que o uso convencionado da coisa tem de se encontrar adstrito a um tempo determinado de utilização, ou pelo menos, determinável.
III - A entrega dos imóveis pelo autor à ré, a título de comodato e o respetivo uso da coisa, pelo comodatário, para habitação da ré e da filha menor do autor e ré, na sequência do divórcio, num quadro de relação de família e de ex-conjugalidade, confere ao comodatário título legítimo de ocupação das frações enquanto tiver a guarda da filha ou até à maioridade da filha de autor e ré, motivo pelo qual não se justifica a restituição.

Texto Integral

Reiv-Comodato-1270/21.6T8PVZ.P1


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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório

Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:

- AUTOR: AA, divorciado, residente na rua .... ... ..., Matosinhos, NIF ...11; e

- RÉ: BB, divorciada, residente na rua .... Norte, ... ..., Matosinhos

veio o autor pedir que:

a) Se declare resolvida a promessa de doação à Ré do usufruto vitalício das frações identificadas no art.º 1º da petição.

b) A condenação da ré a ver declarar que o Autor é dono e legítimo proprietário das frações, referenciadas no art.º 1º da petição.

c) A condenação da Ré a restituir de imediato as frações ao Autor, com tudo o que as compõe, livres de pessoas e coisas.

d) Considerar a Ré interpelada para proceder a essa entrega imediata com a citação para a presente ação.

e) A condenação da ré a pagar ao Autor a quantia de € 700,00 por cada mês que decorra desde a citação e até efetiva entrega das frações, e bem assim, juros moratórios à taxa legal contados desde o vencimento de cada uma dessas prestações e até efetivo pagamento.

Alegou para o efeito a inscrição de aquisição de tais frações a seu favor na Conservatória do Registo Predial e ser seu legítimo possuidor há mais de 20 anos, agindo como proprietário.

Mais alegou, que celebrou com a ré um contrato-promessa de doação tendo por objeto o usufruto de tais frações e um contrato de comodato tendo por objeto as mesmas frações.

Tal contrato-promessa foi celebrado no termo da relação conjugal entre autor e ré, sob a condição de, num período em que iriam ainda coabitar, nenhum dos dois receber em casa qualquer terceiro, nomeadamente com quem mantivesse relacionamento íntimo, e que o usufruto a transmitir à ré fosse inatacável por terceiros, nomeadamente credores da ré. A ré não cumpriu estas condições, e passou a receber em casa o seu namorado e a expor o autor a tal circunstância, e mantém uma dívida no valor de €273.519,50. Posteriormente, apresentou queixa criminal contra o autor por violência doméstica.

Em 15 de outubro de 2020 foi decretado o divórcio e dissolvido o casamento celebrado entre autor e ré.

A ré habita o apartamento em causa com a filha do casal. O valor locativo mensal das frações autónomas corresponde a €700,00.

Mais alegou que quando o Autor permitiu que a Ré fosse morar para a habitação onde presentemente se encontra e, como se disse, no pressuposto de que ela cumpriria e se preencheriam as condições necessárias à realização da doação originariamente projetada, o Autor facultou-lhe também um contrato de comodato, no sentido de a Ré poder requerer a ligação de energia elétrica, gás e água.

Considera que o fim determinado pelo contrato foi instantâneo, tendo visado tão-só permitir a ligação de energia elétrica, gás e água, como dele expressamente consta, que não a simplesmente permitir a ocupação dos bens do Autor, tendo-se pois destinado a antecipar a doação que se projetava e cuja resolução da promessa é peticionada.

Mais referiu, que se serve da citação para a presente ação para interpelar a Ré para que ela lhe restitua as frações em causa, exigindo-lhe, a restituição das mesmas. Considera que a ré ocupa sem título as referidas frações, o que causa prejuízo ao Autor, privando-o desse lucro que ele auferiria.


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Citada a ré, contestou e deduziu reconvenção.

Na contestação defendeu-se por impugnação, alegando que não ocorreu qualquer alteração das circunstâncias, porque o autor tinha conhecimento das dividas da ré e por outro lado, reporta a alegada relação de namoro a data anterior à celebração do contrato-promessa e o alegado conhecimento desses factos não impediu que autor e ré celebrassem em fevereiro de 2021 o contrato de comodato.

Em reconvenção, a ré veio pedir a condenação do reconvindo/autor no pagamento de €100.000,00, acrescidos de juros, à taxa legal.

Alegou para o efeito que no contrato-promessa em causa, se estipulou uma cláusula penal de €100.000,00 para o caso de incumprimento, em que o autor incorreu, porque não celebrou o contrato de doação do usufruto.


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Na réplica o autor veio impugnar os factos alegados, mantendo a posição expressa na petição. Suscitou a nulidade do contrato-promessa e da cláusula de indemnização nele inserida, com fundamento em fraude à lei, subsidiariamente, a redução equitativa da cláusula penal, para a quantia de € 5 000,00.

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Dispensou-se a audiência prévia.

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Proferiu-se despacho saneador, com indicação do objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

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O autor veio requerer a ampliação do pedido o que foi indeferido.

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Procedeu-se à audiência de julgamento, com observância de todas as formalidades legais.

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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

“Pelo exposto decide-se:

A) Declarar a nulidade parcial do contrato-promessa de doação descrito nas alíneas c) e d) dos factos provados, na parte que vincula autor e ré, mantendo-se a sua validade na parte em que vincula o autor e a sua filha CC;

B) Declarar e condenar a ré a reconhecer que o autor é proprietário das frações autónomas de um prédio urbano sito na Rua ..., ..., concelho de Matosinhos, uma correspondente a habitação, no quarto andar esquerdo norte, outra correspondente a um compartimento de arrumos com número A-59, na cave, e outra correspondente a lugar de estacionamento com o número ...0, na cave, assim descritas na suprarreferida Conservatória sob os n.ºs ...28/19990805- AL, GQ, e EJ;

C) Julgar a presente ação improcedente no restante e, em consequência, absolver a ré do pedido nessa parte;

D) Julgar a reconvenção deduzida pela ré totalmente improcedente e, em consequência, absolver o autor reconvindo do pedido.


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Custas por autor e ré, na proporção do decaimento, que se fixa equitativamente em 20% para o autor e 80% para a ré”.

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O Autor veio interpor recurso da sentença.

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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:

(…)

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A ré veio apresentar resposta ao recurso, na qual formulou as seguintes conclusões:

(…)


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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

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No Tribunal da Relação, em 06 de fevereiro de 2025, o Autor veio requerer a junção da certidão da sentença proferida em 24 de outubro de 2024, no Processo Comum (Tribunal Singular) ..., sem nota de trânsito em julgado.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.

As questões a decidir:

- da admissibilidade do documento;

- do direito à restituição do imóvel e indemnização pela ocupação do mesmo.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

a) O autor é titular da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, datada de 20/11/2006, por compra, respeitante às frações autónomas de um prédio urbano sito na Rua ..., ..., concelho de Matosinhos, uma correspondente a habitação, no quarto andar esquerdo norte, outra correspondente a um compartimento de arrumos com número A-59, na cave, e outra correspondente a lugar de estacionamento com o número ...0, na cave, assim descritas na supra referida Conservatória sob os n.ºs ...28/19990805- AL, GQ, e EJ; (art.º 1.º da petição inicial).

b) Autor e ré casaram civilmente, no regime imperativo de separação de bens, em 9 de maio de 2018; (art.º 14.º da petição inicial)

c) Autor e ré apuseram as suas assinaturas no escrito particular junto como documento n.º 22 com a petição inicial (fls. 27), intitulado “Contrato-promessa de doação”, datado de 11 de Setembro de 2020, no qual consta nomeadamente que o autor promete doar a CC, sua filha menor, a raiz ou nua propriedade das frações autónomas descritas em a) e à ré o usufruto vitalício das mesmas frações, e a ré e CC prometem aceitar tal doação, a outorgar quinze dias após a desocupação das frações pelos atuais arrendatários (art.º 41.º da petição inicial) e que a seguir se reproduz:





d) No mesmo escrito constava ainda: “Cl.ª 7ª – A validade deste contrato fica submetida à condição suspensiva do decretamento, com natureza definitiva, do divórcio dos 1.º e 3.º Contraentes. Cl.ª 8.ª – Dada a impossibilidade de execução específica do presente contrato, é fixada a cláusula penal de €100.000,00 (cem mil euros) caso ocorra incumprimento por parte do 1º Contraente das doações aqui prometidas”; (art.º 41.º da petição inicial).

e) Autor e ré apuseram as suas assinaturas no escrito particular junto como documento n.º24 com a petição inicial (fls. 30), intitulado “Aditamento a contrato-promessa de doação”, datado de 15 de outubro de 2020, no qual consta nomeadamente que sem prejuízo de as donatárias passarem a habitar de imediato as frações em causa após a sua desocupação pelos inquilinos, que a outorga da escritura de doação terá lugar após cessação da moratória do contrato de mútuo associado, que se prevê ocorrer em março de 2021, (art.º 43.º da petição inicial) e cujo teor de reproduz:





f) Autor e ré apuseram as suas assinaturas no escrito particular junto como documento n.º45 com a petição inicial (fls. 52), intitulado “Contrato de comodato”, datado de 1 de Fevereiro de 2021, no qual consta nomeadamente que o autor dá em comodato à ré as frações autónomas descritas em a), até outorga da escritura de doação que o autor quer fazer à filha de ambos, sendo o primordial propósito do contrato permitir à ré celebrar contratos de abastecimento de água, gás, eletricidade e congéneres (art.º 92.º da petição inicial) e que de seguida se reproduz:

g) Atualmente a ré habita as frações autónomas descritas em a) juntamente com a filha menor do casal; (art.º 69.º da petição inicial)

h) O autor não diligenciou ainda pela outorga da escritura de doação aludida em c) e d); (art.º125.º da contestação)

i) A ré apresentou queixa criminal contra ao autor reportada a factos ocorridos em dezembro de 2020, que deu origem ao processo criminal n.º ..., em que se aprecia também uma queixa do autor contra a ré por violência doméstica. (art.º 71.º da petição inicial)


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- FACTOS NÃO PROVADOS

- Que autor e ré tivessem acordado que o estipulado em c) e d) dependia da condição de nenhum dos dois permitir a entrada de terceiros na casa onde coabitavam e que o usufruto doado à ré fosse inatacável por terceiros, nomeadamente credores (art.º 36.º, 37.º, 39.º e 74.º da petição inicial).

- Que após subscrição do escrito referido em c) e d), a testemunha DD passasse a ir buscar e trazer a ré ao prédio onde coabitava com o autor e nessas ocasiões ambos se abraçassem e beijassem, e que falasse com ele ao telefone na presença do autor e lhe dissesse “estou a falar com o meu amante”, fazendo ruídos lúbricos, e colocando a chamada em alta voz com insultos ao autor (art.º 46.º, 47.º e 63.º da petição inicial).

- Que após subscrição do escrito referido em c) e d), a ré colocasse em exibição as suas cuecas na casa de habitação onde ambos viviam, deixasse visíveis garrafas de champanhe e taças, agendas com anotações respeitantes a encontros e comemorações com o namorado DD, descrições de contactos íntimos com estes, e deixasse vestígios da presença de DD na casa, como manchas em lençóis (art.º 48.º a 52.º e 56.º da petição inicial).

- Que após subscrição do escrito referido em c) e d), o autor tomasse conhecimento que a autora era devedora aos CTT de €273.519,50 (art.º 75.º, 77.º e 79.º da petição inicial, e 114.º da contestação).

- Que o valor locativo das frações descritas em a) corresponda a €700,00 mensais (art.º 98.º da petição inicial).


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3. O direito

- Admissão do documento -

No Tribunal da Relação, em 06 de fevereiro de 2025, o Autor veio requerer a junção da certidão da sentença proferida em 24 de outubro de 2024, no Processo Comum (Tribunal Singular) ..., sem nota de trânsito em julgado.

Em regra, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, como decorre do art.º 423º/1 CPC.

A parte pode ainda juntar documentos até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final ficando neste caso sujeito ao pagamento de multa, como se prevê no art.º 423º/2 CPC.

Contudo, da conjugação do art.º 423º/3 e 425º CPC, resulta que pode ser requerida a junção dos documentos até ao encerramento da discussão em 1ª instância, quando a apresentação não tenha sido possível até ao momento previsto no nº2 do art.º 423º, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

Este regime previsto no nosso sistema jurídico desde o Código de Processo Civil de 1939, assenta os seus fundamentos nos princípios da economia processual e da boa-fé processual. Pretende-se que por motivos de ordem e disciplina processual, que quem afirma um facto ofereça desde logo, se puder, a prova documental das suas afirmações, habilitando a parte contrária a tomar posição sobre os factos de forma informada[2].

A possibilidade de apresentar os documentos até ao encerramento da discussão em 1ª instância decorre do princípio de que o juiz deve julgar segundo a verdade.

Daqui resulta que não apresentando a parte o documento com o articulado, como era seu ónus, não fica impedida de o fazer em momento posterior, até ao encerramento da discussão em 1ª instância.

Como se prevê no art.º 425º CPC depois do encerramento da discussão, em sede de recurso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento.

Como observava ALBERTO DOS REIS: “[c]oncilia-se assim o princípio de disciplina processual que postula o oferecimento imediato de documentos, com o princípio de justiça segundo o qual a decisão deve ser a expressão, tão perfeita e completa quanto possível, da verdade dos factos que interessam ao litígio”[3].

A junção de documentos em sede de recurso está, contudo, subordinada ao critério estabelecido no art.º 651º CPC, no qual se determina que:

“As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art.º 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.

Dispõe o art.º 425ºCPC:

“Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.

Decorre deste regime que em sede de recurso, nas alegações, as partes podem juntar documentos, quando:

- a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento – superveniência objetiva (fundada na data do facto a provar ou do documento comprovante) ou subjetiva (baseada no desconhecimento da existência do documento, na indisponibilidade dele por parte do interessado ou na necessidade de alegação e prova do facto);

- se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando esta se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo[4].

A junção de documentos faz-se, em regra, na 1ª instância e até ao encerramento da discussão, como resulta do art.º 425º CPC, o que bem se compreende na medida em que se trata de um meio de prova e destina-se à prova dos factos controvertidos, submetidos à apreciação do juiz para efeito de enquadramento jurídico da questão a decidir[5].

Desde logo, a lei apenas admite a junção dos documentos, com as alegações, o que significa que não admite a junção de documentos em momentos posteriores, contrariamente ao que se previa no anterior regime (art.º 706º CPC).

Com efeito, no regime anterior à reforma, os documentos supervenientes podiam ser juntos até se iniciarem os vistos aos juízes, solução que não foi transposta para o novo regime de recursos (DL 303/2007 de 24/08 ), o que bem se compreende, porque neste regime o processo é apresentado aos vistos com o projeto do acórdão, o que significa que tem de constar dos autos todos os elementos que permitam ao juiz relator analisar as questões colocadas no recurso antes da remessa do processo aos vistos.

No caso concreto, nas alegações de recurso, o apelante não protestou juntar qualquer documento. Vem requerer, em momento posterior, em requerimento avulso, a junção de um documento.

Não pode assim ser admitida a sua junção, por não respeitar o momento próprio para o fazer.

Argumenta o apelante que a sentença que juntou, foi proferida em 24 de outubro de 2024, em momento posterior à apresentação das alegações de recurso, pretendendo com a sua junção a alteração da decisão de facto. Refere, ainda, que a sentença não transitou em julgado, o que justifica a suspensão da instância, com fundamento em motivo justificado.

Na apelação, o apelante não requereu a reapreciação da decisão de facto e não impugnou o segmento da sentença que julgou nulo o contrato-promessa de doação do usufruto a favor da ré-apelada. O facto da referida sentença não ter transitado em julgado é de todo irrelevante para apreciar o objeto do recurso, quando a questão da validade do contrato-promessa de doação do usufruto não é objeto do recurso. Não existe motivo justificado para suspender a instância até que ocorra o trânsito em julgado da referida decisão.

Daqui decorre que a junção do documento é extemporânea, porque foi requerida, depois da apresentação das alegações de recurso da sentença, sendo certo que nesta peça, a apelante não fez qualquer alusão à possível junção de documentos, nem requereu a sua junção com fundamento em justo impedimento e para justificar a junção indica motivos que não revelam a superveniência objetiva ou subjetiva.

Conclui-se que a junção do documento é extemporânea, porque não acompanhou as alegações de recurso e carece de fundamento legal, pelo que, rejeita-se a junção do documento, o qual deve ser desentranhado e devolvido ao apresentante.

O incidente será tributado, com custas a cargo do apelante.


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- Da restituição dos imóveis e indemnização pela indevida ocupação -

Nas conclusões de recurso, o apelante insurge-se contra o segmento da sentença que julgou improcedente o pedido de restituição do imóvel e a indemnização peticionada.

Estruturada a ação, como ação de reivindicação de propriedade, na sentença julgou-se procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade do autor em relação às frações indicadas na petição, mas não se determinou a restituição das mesmas à posse do autor, nem se arbitrou a indemnização peticionada pelo uso indevido das mesmas pela ré.

Na fundamentação da decisão, ponderou-se, como se passa a transcrever:

“4. Dos pedidos de entrega das frações e indemnização pela ilícita ocupação

A procedência da reivindicação de propriedade implicaria em princípio a procedência do pedido de entrega do prédio, nos termos do art.º 1311.º, n.ºs 1 e 2, do CC.

Resulta, no entanto, das alíneas f) e g) dos factos provados que a ré ocupa atualmente as frações em causa com fonte numa traditio a favor da filha menor do casal, que é sua promitente donatária. Como supra já se concluiu, o contrato-promessa celebrado entre o autor e a sua filha menor mantém-se válido e eficaz.

A traditio é o negócio jurídico pelo qual as partes num contrato-promessa antecipam a entrega da coisa objeto do contrato prometido. A posição em que o beneficiário da entrega fica investido será variável, nomeadamente em função do contrato prometido ou do tipo de vínculo que o transmissário tenha com a coisa entregue, podendo ou não investir o transmissário numa verdadeira posse.

Inegável, no entanto, a eficácia obrigacional da traditio. Concretizada, enquanto o contrato-promessa se mantiver válido e eficaz, não poderá o transmissário exigir a devolução da coisa entregue, revogando unilateralmente o negócio da traditio.

Mas neste caso, a titular deste direito relativo com fonte no contrato não é a ré, mas a sua filha menor. Embora não de forma totalmente inequívoca, resulta da petição inicial que a residência desta menor foi fixada junto da mãe na sequência do divórcio.

Sendo assim, não será exigível à ré entregar ao autor as frações autónomas objeto de traditio a favor da sua filha menor, com residência fixada junto de si, nos termos do art.º 1906.º, n.º 5, do CC.

Conclui-se assim pela improcedência do pedido de entrega das frações bem como da indemnização pela sua ocupação ilícita pela ré, que não se verifica”.

O apelante insurge-se contra a decisão, por entender, como resulta dos pontos 13 a 20 das conclusões de recurso, que o contrato promessa de doação não está sujeito a execução especifica, não estando por isso vinculado à doação da nua propriedade à filha, conservando a possibilidade desistir do negócio até à sua celebração. Mais refere que o proprietário da raiz não tem o poder de usar e fruir do bem e pretendendo reservar para si o usufruto sempre lhe assistia o direito de reivindicar as frações. Por fim, refere que os contratos-promessa têm, em geral, eficácia obrigacional, na medida em que criam para o promitente a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido; mas tal não é o caso de um contrato promessa de doação, uma vez que o promitente não está vinculado ao seu cumprimento. O facto da filha residir com a ré, sua mãe, não obsta à restituição das frações, nem a válida celebração do contrato-promessa de doação da raiz ou nua propriedade das frações à filha confere a esta – muito menos à Ré – qualquer direito que obste à reivindicação, não implicando qualquer traditio das frações em causa.

A apelada considera que lhe assiste o direito a usar e ocupar as frações, com fundamento no contrato de comodato celebrado com o autor em 01 de fevereiro de 2021.

Argumenta que a entrega do gozo do imóvel à Ré (através do Contrato de Comodato) não se circunscreveu, assim, ao cumprimento de uma obrigação contratual de conteúdo puramente patrimonial, mas também a função específica de satisfazer a necessidade de habitação da filha, que com a Ré saiu da anterior casa de morada da família (onde o Autor continuou a viver).

Conclui, que quer pelo facto da ré-apelada ocupar as frações em causa com fonte numa traditio a favor da filha menor do casal, que é sua promitente donatária, quer pelo facto de vigorar um Contrato de Comodato através do qual o Autor deu de comodato à Ré as frações em causa até ao momento da outorga da escritura de doação que o Autor irá fazer à filha de ambos, a ré encontra-se licitamente no gozo do imóvel, desde o momento em que o autor lho entregou no âmbito do contrato de comodato.

A questão a apreciar consiste em determinar se assiste ao autor o direito à restituição dos imóveis à sua posse, acrescida da indemnização pela ocupação indevida, pela ré, das frações em causa.

Como se prevê no art.º 1311º/2 CC havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.

Demonstrado o direito de propriedade do Autor sobre os prédios dos autos, a ré só poderá evitar a restituição dos mesmos, se demonstrar que tinha sobre eles outro direito real que justificasse a sua posse ou que os detém a título de direito pessoal bastante.

Como ensinava MANUEL RODRIGUES no seu estudo sobre “A reivindicação no direito civil português”, além das formas gerais de defesa, “o réu pode na ação de reivindicação defender-se com razões próprias desta ação.

O Réu pode dizer:

- que o objeto reivindicado lhe pertence;

- que tem sobre ele um direito real de usufruto; e

- em certos casos poderá mesmo defender a sua detenção, invocando um direito pessoal – o arrendamento, o depósito”[6].

Recai sobre o réu o ónus de alegação e prova dos factos que justificam a ocupação do prédio objeto de reivindicação, por constituir matéria impeditiva do direito à restituição, como decorre do art.º 342º/2 CC.

A celebração de um contrato-promessa, acompanhado de tradição da coisa a favor do adquirente, atribui um direito pessoal bastante que concede a fruição e gozo da coisa objeto de reivindicação.

Resulta dos factos provados que em 11 de setembro de 2020 foi celebrado entre autor e ré um contrato-promessa de doação do usufruto sobre várias frações de um prédio constituído em propriedade horizontal, que pertencem em propriedade ao autor. Com a celebração do contrato não entregou o autor à ré as chaves dos imóveis. Resulta dos termos do contrato que as frações em causa estavam arrendadas e só após extinção do arrendamento e entrega dos imóveis ao autor e depois de celebrado o contrato de doação, estaria o autor em condições de atribuir as chaves dos imóveis à ré.

No mesmo contrato, o autor prometeu doar a nua propriedade dos mesmos imóveis à filha de autor e ré.

Conforme decorre da sentença recorrida, o contrato-promessa de doação do usufruto foi declarado nulo, não produzindo, pois, qualquer efeito. Subsiste, contudo, o contrato-promessa de doação da nua propriedade ou raiz a favor da filha de autor e ré, segmento da sentença que não foi objeto de impugnação.

Não se operou a tradição dos imóveis por mero efeito da celebração do contrato-promessa de doação, pois tal efeito ali não ficou consignado. Acresce que sendo nulo o contrato de doação do usufruto, não produz qualquer efeito.

Na situação concreta, é o próprio autor que afirma na petição inicial que cedeu as frações à ré, com fundamento na celebração de um contrato de comodato, facto que se considerou provado sob a alínea f). Provou-se, ainda, que a ré juntamente com a filha, habitam nas referidas frações (alínea g)).

O comodato, previsto no art.º 1129º CC, consiste no:

“contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.

O Código Civil prevê o comodato de coisas móveis e imóveis, consistindo o comodato de coisas imóveis na utilização gratuita de um prédio, com a obrigação de a restituir.

O contrato de comodato constitui um contrato de natureza real, que se considera perfeito com a entrega da coisa para que o comodatário se sirva dela[7]. Com a entrega da coisa estabelece-se o vínculo jurídico entre as partes, definindo as obrigações das partes e determinando o uso da coisa pelo comodatário.

O comodatário tem um direito temporário de utilização da coisa que lhe foi emprestada, sendo a obrigação de restituição uma obrigação essencial deste contrato[8].

A restituição da coisa constitui uma consequência da extinção do contrato e uma obrigação do comodatário, nos termos do art.º 1135º/h) CC.

Como se prevê no art.º 1137ºCC, sob a epígrafe “Restituição”:

“1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para restituição da coisa, mas esta foi determinada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.

2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.

3.[…]”.

O termo do contrato pode resultar da fixação de um prazo certo, o que significa que no termo do prazo o comodatário deve entregar a coisa.

As partes podem ainda não convencionar qualquer prazo e nessa situação o comodatário é obrigado a restituir logo que lhe seja exigida.

Porém, “a lei permite que a fixação do termo resulte do uso determinado para o qual a coisa é emprestada. […][n]estes casos, quando esse uso finde a coisa deve ser restituída independentemente de interpelação”[9].

MENEZES LEITÃO observa que: “o uso tem normalmente um termo final, estipulado pelas partes ou resultante da determinação do uso”[10].

Tem-se entendido na jurisprudência que só integra o conceito de comodato para uso determinado, “aquele em que a coisa entregue ao comodatário é por este objeto de uma utilização que se esgota num ato ou numa série de atos de execução temporalmente delimitada, ou delimitável logo no momento da celebração do contrato”[11].

E também “o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstrato que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129º do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso”[12].

Neste sentido, se pronunciaram, com argumentos que também acompanhamos, os Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 20224, Proc. 53/23.3T8VNG-A.P1, Ac. Rel. Porto 03 de junho de 2024, Proc. 962/22.7T8VNG.P1, Ac. Rel. Porto 21 de novembro de 2024, Proc. 1140/22.0T8PVZ.P1, Ac. Rel. Porto 20 de fevereiro de 2025, Proc. 5290/21.2T8VNG.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Como se observa no Ac. STJ 15 de maio de 2025, Proc. 2691/20.7T80ER.L1.S1(acessível em www.dgsi.pt): “a relação de comodato corresponde estruturalmente a um quadro de duração limitada. Esse limite pode resultar do acordo das partes ou pode resultar indiretamente, da circunstância de a coisa ter sido emprestada para uso determinado. O comodato “precário” comodato que ao não ter prazo fixado ab inicio, nem um uso determinado da coisa comodatada pelo beneficiário – pode cessar a todo o tempo, por vontade unilateral do comodante.

O efeito do comodato “precário” – ilegitimidade da recusa da restituição pelo beneficiário perante a vontade do comodante – vem sendo preconizado de forma reiterada pela Jurisprudência do STJ, que assenta na ideia chave, de que a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico.

O comodato para “uso determinado” contém a delimitação da necessidade temporal que visa satisfazer, denotando que o uso convencionado da coisa tem de se encontrar adstrito a um tempo determinado de utilização, ou pelo menos, determinável”.

Contudo, também é de considerar na interpretação do conceito, estando em causa uma relação de família e de ex-conjugalidade, a posição seguida no Ac. STJ 09 de abril de 2019, Proc. 697/10.3TCFUN.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), onde se teceram as seguintes considerações:

“A questão da determinação da duração do comodato assume particular relevo no caso concreto, dado que as partes não estipularam qualquer prazo.

Na decisão recorrida entendeu-se que a duração do comodato seria até à maioridade dos filhos comuns do autor e da ré ou enquanto ela tivesse a guarda dos menores.

Resulta da factualidade provada [pontos 8, 9, 10, 11 e 12] que o autor não entregou o apartamento (agora reivindicado) à ré para exclusiva satisfação da necessidade habitacional desta, mas sim porque com ela viviam os filhos, menores de idade, do ex-casal. A entrega do gozo do imóvel à ré não se circunscreveu, assim, ao cumprimento de uma obrigação contratual de conteúdo puramente patrimonial. Assumiu também a função específica de satisfazer a necessidade de habitação dos filhos, que com a ré saíram da anterior casa de morada da família (onde o réu continuou a viver).

Assim, quando a decisão recorrida se refere à maioridade dos filhos comuns do autor e da ré, como um elemento a atender em matéria de duração do contrato, está a explicitar os efeitos jurídicos próprios da específica finalidade que o concreto comodato serve (não está a extravasar o objeto do recurso).

Deste modo, como decorre do art.1137º do CC, dada aquela específica finalidade do comodato, não pode o autor comodante exercer o direito de exigir a restituição do imóvel a todo o tempo. Mas já não lhe está, todavia, vedada a resolução do contrato baseada em justa causa, como dispõe o art.1140º do CC.

Se, em geral, se pode afirmar que a gratuitidade do comodato assenta numa ideia de puro altruísmo (resultante, por exemplo, de uma relação de amizade entre as partes ou de generosidade social para com quem se encontre em situação de particular necessidade), tratando-se de comodato entre familiares, a cedência gratuita de um bem, e em particular de um imóvel destinado a habitação, constituirá, muitas vezes, expressão da solidariedade própria das específicas relações que se estabelecem entre estas pessoas.

A cedência do gozo de um imóvel poderá, mesmo, respeitar ao cumprimento da obrigação de prestar alimentos, pelas pessoas referidas no art.2009º do CC (em cujo elenco se inclui o ex-cônjuge), como se prevê no art.2004, n.2. Embora no caso concreto não esteja em discussão qualquer questão diretamente respeitante à atribuição de alimentos, a relação de família e de ex-conjugalidade encontra-se na base da finalidade específica a que atende o art.º1137º do CC para limitar o direito de exigir a restituição a todo o tempo da coisa comodatada”.

Tendo presente estas considerações sobre o “uso determinado” e ponderando os factos provados de onde decorre a entrega dos imóveis pelo autor à ré, a título de comodato e o respetivo uso da coisa, pelo comodatário, no caso, para habitação da ré e da filha menor do autor e ré (alíneas f) e g)), na sequência do divórcio, num quadro de relação de família e de ex-conjugalidade, é de considerar que dispõe a ré de título legítimo de ocupação das frações enquanto tiver a guarda da filha ou até à maioridade da filha de autor e ré, motivo pelo qual não se justifica a restituição.

Desde logo, cumpre ter presente que subsiste o contrato-promessa de doação da nua-propriedade a favor da filha de autor e ré, o que foi afirmado na sentença e não está impugnado.

É certo que este contrato não é suscetível de execução especifica, nem atribui, só por si, à filha do autor o direito à ocupação dos imóveis. O contrato celebrado apenas tem por objeto a obrigação de celebrar o contrato de doação, podendo o autor desistir da sua celebração. A nua-propriedade não confere o uso.

Neste sentido se pronunciou o Ac. STJ 09 de maio de 2019, Proc. 1563/11.0TVLSB.L1.S3 (acessível em www.dgsi.pt).

Porém, no contrato-promessa celebrado em 11 de setembro de 2020, resulta dos seus considerandos, que o contrato foi celebrado num quadro de dissolução do casamento, por divórcio, e consignou-se que:

“-a fração onde a respetiva família habita não pertence a qualquer deles;

- que, na condição de o divórcio ser decretado, é propósito do 1º Contraente assegurar uma habitação à sua filha menor, aqui 2ª Contraente, atribuindo-lhe a respetiva raiz ou nua propriedade e o usufruto vitalício ou o direito de habitação à respetiva mãe”.

Na cláusula 5ª, estabeleceu-se:

“O contrato de doação aqui prometido será outorgado no prazo de quinze dias após a desocupação das frações por parte dos arrendatários e a sua entrega ao 1º Contraente, para o que este notificará a 3ª do dia, hora e local dessa outorga, altura em que lhe serão por ele entregues as respetivas chaves e onde a 2ª e a 3ª Contraentes passarão de imediato a habitar, deixando de o fazer na fração indicada no cabeçalho deste contrato”.

Em 15 de outubro de 2020 foi decretado o divórcio, o que significa que estava verificada a condição prevista para o contrato-promessa produzir efeitos.

Em 01 de fevereiro de 2021 o autor e a ré celebraram o contrato de comodato, referenciado na alínea f)) dos factos provados. O contrato foi celebrado em momento posterior à dissolução do casamento, por divórcio.

Efetivamente, de acordo com a cláusula 2ª do contrato de comodato, ficou expressamente convencionado que o contrato foi celebrado sem prazo. Porém, estabeleceu-se um uso: “durará até que seja outorgada a escritura de doação que o 1º contraente irá fazer à filha de ambos os contraentes”.

Atenta a natureza do contrato-promessa de doação, o qual como se referiu não é suscetível de execução especifica, aparentemente, não está determinado um limite temporal para o uso das frações.

Resulta da al. g) dos factos provados que a ré e a filha ocupam as frações em causa para habitação.

De igual forma se provou que o autor não diligenciou pela outorga da escritura de doação aludida em c) e d) (alínea h) dos factos provados).

O autor-apelante não fez depender a restituição das frações da celebração da escritura de doação a favor da ré, mas apenas da celebração da escritura a favor da filha, ainda menor. Podemos, pois, concluir que pretendendo o autor doar a nua propriedade das frações a favor da filha para assegurar uma habitação à sua filha menor, como consta dos considerandos do contrato-promessa de doação e apesar de estar em condições de o fazer ainda não ter celebrado tal ato, pretende, através do comodato garantir a habitação da filha menor enquanto estiver à guarda da ré ou até atingir a maioridade.

Resulta da conjugação deste quadro factual a atribuição da fração para um uso determinado, com um limite temporal: enquanto estiver à guarda da ré ou até atingir a maioridade.

Pretendeu-se, assim, acautelar a habitação da filha, enquanto menor, que reside com a progenitora, porque se assumiu que deixariam de residir na casa onde até ali residiam e onde passou a residir apenas o autor.

Enquanto se verificar essa particular relação familiar, fruto das responsabilidades parentais (art.º 1877 a 1879º CC e art.º 1887º CC) e geradora de obrigações para os progenitores, assiste à ré o direito a habitar nas frações.

Neste contexto, dispõe a ré-apelada de título que legitima a ocupação das frações, com fundamento no contrato de comodato e enquanto tiver a guarda da menor, filha do autor e ré, ou, até à maioridade desta, motivo pelo qual não se justifica proceder à restituição.


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Nos pontos 21 a 24 das conclusões de recurso, insurge-se o apelante contra o segmento da sentença que julgou improcedente o pedido de indemnização, pretendendo a atribuição de uma indemnização pela ocupação indevida das frações a partir da citação.

Conforme resulta do disposto no art.º 1305º CC: “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

O proprietário goza de modo pleno dos seus direitos significa que, acima deles, não existe qualquer outro poder. O direito é exclusivo porque o proprietário pode exigir que os terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando atos que afetem o seu exercício[13].

A propriedade como direito que é está dotada de garantia jurídica. A sua violação dá direito a indemnização, por responsabilidade civil.

Fundando-se a obrigação de indemnizar na prática de facto ilícito, a responsabilidade do agente deve ser aferida à luz do regime da responsabilidade civil, nos termos do art.º 483º CC.

Sendo lícita a ocupação das frações, não assiste ao apelante o direito à indemnização peticionada.

Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso.


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Nos termos do art.º 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.


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Custas a cargo do apelante.

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Desentranhe e devolva o documento.

Custas do incidente a cargo do apelante.


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Porto, 26 de junho de 2025

(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)

Assinado de forma digital por

Ana Paula Amorim

Juiz Desembargador-Relator

Miguel Baldaia Morais

1º Adjunto Juiz Desembargador

António Mendes Coelho

2º Adjunto Juiz Desembargador







______________________________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.        
[2] Cf. ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pág. 6.
[3] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, ob. cit., pág. 11.
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, julho 2013, pág.184-185.ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, 2ª edição, Revista e Atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 532.
[5] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, ob. cit., pág.227.
[6] MANUEL RODRIGUES “A reivindicação no direito civil português” Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 57, pág. 193.
[7] LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito das Obrigações-Contratos em Especial, Vol. III, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2010, pág.372 e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição revista e atualizada, reimpressão Coimbra, Coimbra Editora- Grupo Wolters Kluwer Portugal, 2010, pág. 741.
[8] ANTÓNIO AGOSTINHO GUEDES E JÚLIO VIEIRA GOMES, Coord., Comentário ao Código Civil-Direito das Obrigações-Contratos em Especial, UCP Editora, Lisboa, abril 2023, pág.590.
[9] ANTÓNIO AGOSTINHO GUEDES E JÚLIO VIEIRA GOMES, Coord., Comentário ao Código Civil-Direito das Obrigações-Contratos em Especial, ob. cit., pág. 590.
[10] LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito das Obrigações-Contratos em Especial, ob. cit., pág. 375.
[11] Cf. Ac. Rel. Coimbra 11 de março de 2014, Proc. 886/11.3TBVIS.C1, acessível em www.dgsi.pt
[12] Ac. Rel. Guimarães 06 de novembro de 2014, Proc. 96/10.7TBCHV.G1, acessível em www.dgsi.pt
[13] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, reimpressão, Coimbra Editora, grupo wolters kluwer, fevereiro 2011, pág. 93.