ACIDENTE DE TRABALHO
PREDISPOSIÇÃO PATOLÓGICA
Sumário

I - Analisando o corpo e as conclusões do recurso de apelação, verifica-se que a Recorrente indica os pontos de facto que considera incorretamente julgados bem como a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
II - O evento ocorreu no local e no tempo de tempo de trabalho, no desempenho das funções pelo sinistrado, sendo os elementos documentais prova válida, com força probatória e, por conseguinte, passíveis de valoração positiva.
III - A predisposição patológica não exclui o direito à reparação integral, salvo se for ocultada.
IV - Quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avalia-se como se tudo dele resultasse, a menos que, pela lesão ou doença anterior, o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 2506/23.4T8OAZ.P1

Origem: Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis

(secção social)

Relatora: Juíza Desembargadora Sílvia Gil Saraiva

Adjuntos: Juiz Desembargador Nelson Nunes Fernandes

Juiz Desembargador António Luís Carvalhão


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Recorrente: “A..., S.A.”

Recorrido: AA


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Sumário:

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Acordam os Juízes subscritores deste acórdão da quarta secção, social, do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO[1]:

AA (Autor) instaurou contra “A..., S.A.” e “B..., Lda.” (Rés), a presente ação declarativa de processo especial emergente de acidente de trabalho, peticionando a condenação das Rés:

I - a reconhecer que:

a. no dia 15.05.2023, pelas 15h00m, quando o A. estava a trabalhar em Oliveira de Azeméis, foi vítima de acidente caracterizável como de trabalho;

b. que por força do mesmo sofreu as lesões e sequelas acima melhor indicadas;

c. a existência de nexo de causalidade entre esse acidente e as lesões sofridas pelo mesmo.

II - a pagar ao A.:

a. uma pensão anual, vitalícia e atualizável no montante de €809,44 (sendo €756,46 da responsabilidade da Ré seguradora e €52,98 da responsabilidade da Ré entidade patronal), devida a partir de 29.06.2023, calculada com base na retribuição anual ilíquida de €23.126,89 e na IPP de 5,00%;

b. a quantia de €1.181,13 (sendo €1.053,39 da responsabilidade da Ré seguradora e €127,74 da responsabilidade da Ré entidade patronal) a título de indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias sofridos;

c. a quantia de €30,00, respeitante a despesas de transporte com as suas deslocações obrigatórias ao GML de Entre Douro e Vouga e este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis;

d. juros de mora já vencidos e os vincendos, à taxa legal de 4%, contados a partir do vencimento das obrigações e até efetivo e integral pagamento,

Para sustentar a sua pretensão, alegou, em síntese, ser trabalhador da “B..., Lda.”, como serralheiro de moldes.

No exercício das suas funções ao serviço da entidade empregadora, em 15 de maio de 2023, pelas 15h00, o Autor, ao desapertar uma peça, o dedo polegar direito virou-se para trás, tendo daí resultado dor nesse dedo.

Em consequência direta e necessária deste evento, o Autor sofreu traumatismo do dedo polegar direito com dor à mobilização da articulação metacarpo falângica. Em virtude de tais lesões, o Autor esteve afetado de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) no período de 16.05.2023 a 28.06.2023 e não ficou afetado de incapacidade permanente parcial.

À data do acidente, auferia o vencimento mensal de €1.420,00 recebido 14 vezes ao ano, acrescido da quantia de €165,00 x 11 meses de subsídio de alimentação e de €1.431,89 anuais de outras remunerações regulares.

O Autor recebeu da Ré seguradora a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos o valor de € 624,83.

Despendeu € 30,00 em despesas de transporte, em deslocações ao Tribunal, ao GML.

A Ré seguradora, contestou, alegando que o evento participado não se poderá qualificar como acidente de trabalho, porquanto, o Autor estava a desempenhar uma tarefa normal e habitual, sem que se tenha verificado a ocorrência de qualquer acidente, entendido como um evento naturalístico, ocasional, súbito e com origem externa.

Alega que o Autor já apresentava uma doença pré-existente, em data anterior ao alegado acidente, não existindo nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, uma vez que as queixas apresentadas pelo Autor são consequência de patologia de causa natural.

Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou a matéria de facto assente, o objeto do litígio e os temas da prova.

Foi determinado o desdobramento do processo para apenso de fixação da incapacidade para o trabalho.

No apenso de fixação da incapacidade permanente o Autor foi considerado curado sem qualquer desvalorização. Por conseguinte, não lhe foi fixada uma incapacidade permanente.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença, em 3 de fevereiro de 2025, cujo dispositivo é o seguinte:

«III – Decisão.

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência reconheço que o autor sofreu acidente de trabalho em 15.05.2023, pelas 15 horas, quando estava a trabalhar nas instalações da empresa B..., Lda, de que resultaram lesões que consolidaram, sem incapacidade permanente, em 28 de junho de 2023 e, por via disso, condeno a ré a pagar ao autor as seguintes quantias:

A ré seguradora:

A quantia €1.198,97, a título de indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.

A ré empregadora:

A quantia de €127,73, a título de indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.

No mais, absolvo as rés do pedido.

Custas pelas rés, na proporção da responsabilidade, fixando-se o valor da causa em € 1.326,70.

Registe e notifique.» (Fim da transcrição)

Da referida sentença, a Ré (seguradora) interpôs recurso de apelação pugnando pela sua revogação.

Termina as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. «A Recorrente não se conforma com a douta sentença de fls. ..., que considera o pedido do Autor parcialmente procedente por provado e, consequentemente, na condenação ali aplicada.

2. Por um lado, a matéria de facto provada foi incorretamente julgada e não se encontra devidamente fundamentada, por outro, não existiu correta aplicação do Direito.

3. A questão apontada prende-se com o não cumprimento pelo Autor do ónus que lhe competia, de provar a verificação do acidente que alega ter sofrido.

4. A sentença recorrida, para além de padecer de erro de apreciação da prova e de insuficiente fundamentação, enferma, ainda, de manifesto erro de julgamento no que respeita à matéria de direito, e de tal modo grave que, com o devido respeito que é muito, toda a decisão assenta em conclusões absurdas.

5. Entende a Recorrente que, salvo melhor opinião, os pontos 5, 6 (apenas "Em consequência do acidente") e 7 dos factos provados foram erradamente julgados, porquanto conforme acima referidos, o Autor nenhuma prova fez da existência de um acidente caracterizável como acidente de trabalho, não existindo nos autos, elementos suficientes para considerar por provados os factos atinentes a ocorrência do suposto evento, conforme infra demonstraremos.

6. Da mínima prova existente interpretada de acordo com os procedimentos, princípios e as regras da experiência comum não é permitida a realização da reconstituição possível de toda a dinâmica do sinistro.

7. Quanto ao acidente, nenhuma prova testemunhal foi produzida.

8. Como uniformemente tem sido defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, e sustentado pela generalidade da doutrina, a presunção de causalidade, estabelecida no citado artigo 10.º da LAT, tem apenas o alcance de libertar os Sinistrados ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o dano reconhecido na sequência do evento infortunístico, não os libertando, do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões.

9. Apesar da total falta de prova, o Tribunal considerou que o Autor cumpriu o ónus de provar os factos por si alegados unicamente por existir “descrição uniforme”.

10. Sucede que, todos os “elementos descritivos” têm a mesma origem e provêm da mesma fonte, ou seja, do Sinistrado.

11. Estes meios de prova revelam-se manifestamente insuficientes para demonstrar a verificação de qualquer acidente de trabalho, porquanto resultam única e exclusivamente do declarado pelo Autor.

12. Em igual sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de Setembro de 2014, disponível em www.dgsi.pt, a que a sentença recorrida inclusivamente faz referência e cujo entendimento aderimos integralmente: “Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.

13. Ou seja, apenas deveriam ser valorados quando corroborados por outros meios de prova.

14. A admitirmos esta fundamentação como válida, então, com o devido respeito, o julgamento revela-se totalmente inútil, bastando que os Sinistrados que se limitam à participação do acidente. Isto é, bastaria a alegação dos factos que sustentam a pretensão do Autor.

15. Assim, deverá o Tribunal ad quem alterar a resposta dada à matéria de facto, uma vez que do confronto dos meios de prova indicados pela ora Recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se conclui, de forma inequívoca, que a convicção do Tribunal a quo assentou em flagrante erro, colocando em causa, inclusivamente, a distribuição do ónus da prova, de tal modo que, a decisão da matéria de facto em causa não pode subsistir.

16. Deve, por isso, em face dos meios de prova indicados, retirar-se dos factos dados por provados, os pontos 5, 6 (apenas "Em consequência do acidente") e 7, incluindo-os na materialidade não provada.

17. Em virtude de tais alterações decorrerá naturalmente a absolvição da Ré na totalidade dos pedidos julgados procedentes.» (Fim da transcrição)

O Autor (Ministério Público) contra-alegou, opondo-se à procedência do recurso.


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O Meritíssimo Juiz a quo admitiu o recurso interposto como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (v.g. a Recorrente prestou caução).

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Recebidos os autos o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, não emitiu parecer, considerando que o sinistrado se encontra patrocinado pelo Ministério Público.

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Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II - Questões a decidir:

O objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente [artigos 635.º, n.º3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, ex vi, artigo 1.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo do Trabalho], por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso e da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

As questões a decidir consistem em saber:

- Da impugnação da matéria de facto dada como provada:

● Da insuficiente fundamentação da matéria de facto;

● Que se retirem da matéria de facto dada como provada e se aditem à matéria de facto dada como não provada os pontos 5) e 6) (apenas na expressão “Em consequência do acidente”) e o ponto 7).

- Do erro na aplicação do direito.

● Inexistência de evento qualificável como acidente de trabalho.


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III- FUNDAMENTOS DE FACTO:

Matéria de facto dada como provada em primeira instância[2]


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1. Em 15.05.2023, o autor trabalhava como serralheiro de moldes, sob as ordens, direção e fiscalização de B..., Lda, mediante o pagamento do vencimento mensal de €1.420,00 recebido 14 vezes ao ano, acrescido da quantia de €165,00 x 11 meses de subsídio de alimentação e de €1.431,89 anuais de outras remunerações regulares.

2. O autor recebeu da ré seguradora a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos o valor de €624,83.

3. Em 15.05.2023, vigorava entre a B..., Lda, e a ré seguradora um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº ..., na modalidade de prémio variável com cobertura da retribuição anual ilíquida de apenas €21.613,04.

4. Na tentativa de conciliação, realizada a 14.03.2024, o autor não concordou com as conclusões do Perito do GML de Entre Douro e Vouga, juntando relatório médico para onde remeteu os seus pontos de dissidência, entendendo ser portador de uma IPP de 5% e, consequentemente, reclamou da Ré seguradora o pagamento do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €809,44, sendo destes €756,46 da responsabilidade da ré seguradora e €52,98 da responsabilidade da Ré empregadora devida a partir de 29.06.2023 calculada com base na IPP de 5% e na retribuição anual ilíquida de €23.126,89. Reclamou ainda o pagamento da quantia de €1.181,13 referente a diferenças indemnizatórias pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, sendo destes €1.053,39 a cargo da seguradora e €127,74 a cargo da empregadora, bem como o pagamento da quantia de €30,00, respeitante a despesas de transporte obrigatórias entre o gabinete médico-legal e o Juízo de Trabalho de Oliveira de Azeméis. Reclamou por fim o pagamento de juros à taxa legal (4,00%), devidos desde o vencimento das prestações e até efetivo e integral pagamento. Por sua vez, a ré seguradora não aceitou a existência do acidente, a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, nem o coeficiente de desvalorização e os períodos de incapacidade arbitrados pelo Gabinete Médico-legal. Aceitou apenas a categoria profissional do sinistrado, a sua retribuição e a transferência para si da responsabilidade infortunística, em função da retribuição anual ilíquida de €21.613,04, nos termos da citada apólice de seguro. Consequentemente, nada aceitou pagar ao autor a título de capital de remição ou a qualquer título. Finalmente, a ré entidade patronal concordou com a existência do acidente, a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, a categoria profissional do sinistrado, a sua retribuição e transferência para a Ré seguradora da responsabilidade infortunística, em função da retribuição anual ilíquida de €21.613,04, nos termos da citada apólice de seguro, assumindo a responsabilidade da restante retribuição anual ilíquida no valor de €1.153,85. Mais, concordou com as conclusões do Perito do GML de Entre Douro e Vouga de acordo com as quais, o autor sofreu um período de 44 dias de incapacidade temporária absoluta, não tendo daquele evento resultado para o mesmo qualquer sequela. Consequentemente, nada aceitou pagar ao autor a título de capital de remição, mas apenas do valor de €127,74 a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária sofrido e na medida da sua responsabilidade acima indicada.

5. No dia 15.05.2023, pelas 15h00m, quando se encontrava a trabalhar em Oliveira de Azeméis, o autor sofreu acidente, que consistiu em, ao desapertar uma peça, o dedo polegar direito virou-se para trás, tendo daí resultado dor nesse dedo.

6. Em consequência de tal acidente, o autor sofreu entorse do polegar direito, com espessamento (sem rotura) dos ligamentos colaterais radial e cubital.

7. Em virtude de tais lesões, o autor esteve afetado de incapacidade temporária absoluta (ITA) no período de 16.05.2023 a 28.06.2023 (44 dias).

8. Em data anterior a 15.05.2023, o autor já apresentava um espessamento dos ligamentos colaterais medial e radial em relação com distensão ligamentar, a que se associa espessamento sinovial desta articulação e da também da trapezometacárpica, resultante de doença natural associada a fenómenos degenerativos que não foi agravada, de forma permanente, pelo acidente.


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Matéria de facto dada como não provada em primeira instância

Não se provaram os seguintes factos:

1. Por força do acidente o autor ficou com dor à mobilização da articulação metacarpofalângica.

2. O autor gastou a quantia de €30,00 em despesas de transporte, com as suas deslocações obrigatórias ao referido GML e a este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis, por ter usado viatura própria dado que os transportes públicos disponíveis não dispõem de horário compatível, percorrendo uma distância de cerca de 38Km (ida e volta) até ao GML e de 5 km (ida e volta) até a este Juízo.


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Da impugnação da decisão de facto:

Os Ónus do Recorrente na Impugnação da Matéria de Facto

Nos termos do n.º 1 do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, o Recorrente tem o dever de delimitar o âmbito do recurso, indicando os segmentos da decisão que considera erróneos e especificando a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida [alíneas a) e c) do n.º 1].

Adicionalmente, deve fundamentar, de forma concludente, as razões da sua discordância, analisando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, na sua perspetiva, justifiquem uma decisão diferente [alínea b) do n.º 1]. Embora estas exigências se refiram à fundamentação do recurso, não se impõe ao recorrente a reprodução integral, nas conclusões, de tudo o que alegou sobre os requisitos previstos no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Tratando-se de recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, as conclusões devem indicar os pontos de facto que se consideram incorretamente julgados e que se pretende ver alterados.[3] O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que, na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º, os aspetos de formais devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[4]. (negrito nosso)

A Impugnação da Decisão de Facto

A impugnação da decisão de facto não se esgota com a mera discordância do Recorrente face ao decidido, expressa de forma imprecisa, genérica ou descontextualizada, nem na simples reprodução parcial e descontextualizada de excertos de depoimentos. É o apelante, ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, quem se encontra em melhores condições para indicar, fundamentadamente, os eventuais erros de julgamento a esse nível.

Como refere Ana Luísa Geraldes[5], a prova de um facto, por regra, não resulta de um só depoimento ou de parte dele, mas da conjugação e análise crítica de todos os meios de prova produzidos, ponderados globalmente, segundo as regras da lógica, da experiência e, se aplicável, da ciência.

Neste contexto de apreciação global e crítica da prova produzida: «mostra-se facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências da apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.» (Fim da transcrição)

Impõe-se, portanto, o confronto desses elementos com os restantes que fundamentaram a convicção do Tribunal (e que constam da motivação da decisão), recorrendo-se, se necessário, às demais provas produzidas e documentadas, apontando eventuais disparidades, contradições ou incorreções que afetem a decisão recorrida.

Papel do Tribunal da Relação na Reapreciação da Prova

É hoje jurisprudência pacífica que o objetivo da segunda instância, na apreciação de facto, não é a mera repetição do julgamento, mas sim a deteção e correção de erros de julgamento concretos, específicos, claramente indicados e fundamentados – cfr. o n.º 1, do artigo 662.º, do Código de Processo Civil.

Descarta-se, assim, a tese de que a modificação da decisão sobre a matéria de facto só possa ocorrer em casos de erro manifesto na apreciação dos meios probatórios, ou de que o Tribunal da Relação, tendo em conta os princípios da imediação e da oralidade, não possa contrariar o juízo formulado em 1.ª instância relativamente a meios de prova que foram objeto de livre apreciação.

Todavia, se o Recorrente impugnar apenas determinados pontos da matéria de facto, os restantes não poderão ser alterados, sob pena da decisão do Tribunal da Relação incorrer em nulidade, nos termos da segunda parte, alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Princípio da Livre Apreciação da Prova

No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, ou da livre convicção, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas sem qualquer hierarquização pré-estabelecida e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção formada acerca de cada facto controvertido.

Note-se, ainda, o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414.º do Código de Processo Civil, segundo o qual: «a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.»

Sem prejuízo da relevância de tais princípios e sem olvidar que o Juiz de 1.ª instância se encontra, pela imediação com a produção da prova, em condições particularmente favoráveis para a apreciação da matéria de facto (condições que, em regra, não se repetem em sede de julgamento no Tribunal da Relação), não há dúvidas de que a opção legislativa consagrada no citado n.º1, do artigo 662.º [e, ainda, nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito legal] aponta no sentido de o Tribunal da Relação assumir-se:

«(…) Como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem (…), fica claro que a Relação tem autonomia decisória competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.»[6] (Fim da transcrição e negrito nosso)

Contudo, como sublinha Ana Luísa Geraldes[7], em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida[8], deverá prevalecer a decisão proferida pela 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.» (Fim da transcrição). Mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.» (Fim da transcrição)

Isto significa que, na reapreciação da prova em 2.ª instância, não se procura obter uma nova (e diferente) convicção a todo o custo, mas sim verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, considerando os elementos probatórios constantes dos autos, e aferir, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão sobre a matéria de facto.

É necessário, em qualquer caso, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo Recorrente, impondo, dessa forma, uma decisão diferente da proferida pelo tribunal recorrido – artigo 640º, n.º 1, alínea b), parte final, do Código de Processo Civil.

Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que se baseou a parte impugnada da decisão, tendo em conta o conteúdo das alegações do Recorrente e Recorrido, sem prejuízo de oficiosamente, considerar quaisquer outros elementos probatórios que tenham fundamentado a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Isto enquadra-se no princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

Segundo Miguel Teixeira de Sousa[9]: «Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…), estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…). Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º 1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.» (Fim da transcrição)

Em suma, para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, é necessário averiguar se ocorreu alguma anomalia na formação da respetiva “convicção”, designadamente, se na formação da convicção do julgador de 1.ª instância, expressa nas respostas dadas aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter sido subjacentes, nomeadamente as regras da experiência comum, da ciência e da lógica, a conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos dados como assentes.

Não obstante, e apesar de a apreciação em primeira instância ser construída com recurso à imediação e à oralidade, tal não impede à «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1.ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…). Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada.»[10] (Fim da transcrição)

Contudo, importa referir que, no contexto do julgamento da matéria de facto, seja ao nível da 1.ª instância, seja na sua reapreciação no Tribunal da Relação, a reconstrução dos factos não persegue uma verdade absoluta ou uma certeza naturalística (própria de outros ramos das ciências), mas sim um grau de certeza empírica e histórica, baseado numa elevada probabilidade.

Como salienta Manuel de Andrade: «a prova não é certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica).»[11] (Fim da transcrição)

Apreciação dos Pontos Concretos

Feito este enquadramento, cumpre aferir quais os pontos concretos a apreciar por este Tribunal:

A Recorrente requer o seguinte:

● Que se retirem da matéria de facto dada como provada e se aditem à matéria de facto dada como não provada os pontos 5) e 6) (apenas na expressão “Em consequência do acidente”) e o ponto 7).

Os pontos de facto impugnados têm o seguinte teor:

5. No dia 15.05.2023, pelas 15h00m, quando se encontrava a trabalhar em Oliveira de Azeméis, o autor sofreu acidente, que consistiu em, ao desapertar uma peça, o dedo polegar direito virou-se para trás, tendo daí resultado dor nesse dedo.

6. Em consequência de tal acidente, o autor sofreu entorse do polegar direito, com espessamento (sem rotura) dos ligamentos colaterais radial e cubital.

7. Em virtude de tais lesões, o autor esteve afetado de incapacidade temporária absoluta (ITA) no período de 16.05.2023 a 28.06.2023 (44 dias).

O Tribunal a quo fundamentou os pontos de facto impugnados da seguinte forma:

«O Tribunal formou a sua convicção sobre os factos provados e não provados nos seguintes elementos probatórios:

A descrição do acidente não foi confirmada por prova testemunhal, nem sequer pelas declarações do autor que faltou ao julgamento, muito embora tenha explicado o que sucedeu na junta médica.

O autor tem o ónus da prova da ocorrência do acidente.

Mas a prova do acidente deve seguir um critério de normalidade (aquilo que normalmente também é aceite pelas próprias seguradoras, na medida em que a maioria dos acidentes não é alvo de qualquer verificação) e de possibilidade (aquilo que, nas circunstâncias do caso concreto, é possível ao sinistrado).

Muitos acidentes de trabalho não são verificados por ninguém com exceção do próprio sinistrado e, por isso, normalmente, a prova do acidente resulta das declarações do sinistrado apoiadas numa apreciação seguindo um juízo de normalidade e conjugado com o que se passou a seguir ao acidente, designadamente a verificação das queixas no período imediato ao acidente por outras pessoas (normalmente colegas de trabalho que estavam no local, mas não viram o acidente porque estavam a fazer o seu próprio trabalho); a assistência médica e a diferença temporal entre o acidente relatado e o momento da primeira assistência; as descrições do acidente na fase imediatamente a seguir ao acidente (designadamente junto da primeira assistência médica); a descrição efetuada pelo sinistrado ao longo das várias fases do processo (primeira assistência médica, participação à seguradora, participação ao tribunal, descrição junto do perito singular, descrição na junta médica e descrição em declarações no julgamento), etc…

No caso concreto, temos de admitir que a prova não é muita, mas a falta do sinistrado ao julgamento, com ausência de declarações formais, não pode, só por si, levar a que se diga que não existe qualquer prova da ocorrência do acidente, porque quase todos os meios de confirmação probatória indicados, em situações em que não há testemunhas diretas do acidente, baseiam-se nas declarações do sinistrado. Mesmo o depoimento de testemunhas que viram o sinistrado a queixar-se logo após o acidente, consideram a explicação que lhes é dada pelo próprio sinistrado nesse momento, aquilo que ele lhes conta que aconteceu, ainda que possam verificar aspetos diretamente, como as próprias lesões se estas forem visíveis (o que não era o caso na situação em análise).

Por isso, a prestação de declarações formais em audiência pelo sinistrado, embora possa sempre trazer algo de novo, na medida em que há contraditório e o sinistrado pode explicar melhor a situação ou revelar contradições que antes não foram exploradas, em princípio, limita-se à confirmação daquilo que ele já foi revelando ao longo de todo o procedimento.

Por isso, o que importa saber é se os elementos dos autos, que tiveram uma necessária intervenção do próprio sinistrado, são suficientes para afirmar a ocorrência do acidente e as suas circunstâncias.

No caso, não existem testemunhas que possam confirmar indícios imediatos da existência do acidente relatado, mas também não existem discrepâncias entre as várias situações processuais em que o sinistrado revelou ter sofrido um acidente, mais concretamente:

1.º momento – primeira assistência médica junto dos serviços clínicos da seguradora: queixas álgicas do 1.º dedo da mão direita após esforço físico (folhas 8, consulta de 17.05.2023);

2.º momento – segunda assistência médica junto dos serviços clínicos da seguradora: diz ter feito esforço a desapertar uma peça e queixa-se de dores na articulação trapézio – metacarpiana (folhas 8, consulta de 23.05.2023);

Na descrição do acidente constante do registo clínico junto dos serviços clínicos da ré seguradora consta como acidente ocorrido em 15.05.2023 descrito como “ao desapertar uma peça o dedo ficou para traz e fez esforço” e, numa descrição detalhada “estava a apertar uma peça de aço e esforçou o 1º dedo da mão direita. Tem dor desde aí”;

Na participação do acidente apresentada pela ré empregadora, datada de 22.06.2023, por pessoa diferente do sinistrado, consta acidente ocorrido em 15.05.2023, às 15h, nas instalações da ré empregadora, com a seguinte descrição: “ao desapertar uma peça o dedo ficou para trás e fez esforço” (folhas 18);

Na participação ao tribunal o sinistrado descreveu o seguinte: acidente ocorrido em 15.05.2023, pelas 16 horas, “ao desapertar a peça da bucha maq. (torno mecânico) e aplicando o movimento normal diário na execução da tarefa, senti o polegar vir para trás; acompanhado de forte dor! Depois desse dia nunca mais me senti igual no meu trabalho! Inclusive em algumas tarefas diárias da vida!” (folhas 1);

Perante o perito médico singular o sinistrado referiu que “no dia 15/05/2023, pelas 15 horas, refere ter sofrido acidente de trabalho: diverso. Estava a desapertar uma peça, referindo que o dedo polegar direito “virou para trás”. Do evento terá resultado dor no polegar direito”.

Estes são os elementos descritivos que constam dos autos e, destes elementos, podemos concluir que existe uma descrição uniforme do evento ao longo de todo o procedimento, em todas as fases e perante todos os interlocutores, sendo que a própria seguradora aceitou a descrição como tal e fez 7 consultas ao sinistrado, até ter declinado a responsabilidade, não por considerar que o acidente não ocorreu, mas por entender que a descrição não corresponde a um acidente de trabalho, pois como resulta da carta de folhas 17, datada de 5.07.2023, a ré seguradora declara que considerou todas as informações disponíveis sobre o que aconteceu a 15-05-2023, mas a lesão que o sinistrado sofreu não foi causada por um acidente de trabalho, pois “nem toda as lesões que acontecem ou se manifestam durante o horário de trabalho se podem considerar acidentes de trabalho. Neste caso, o acontecimento que causou esta lesão não pode ser considerado um acidente”.

Logo, consideramos que, dentro dos critérios de normalidade e possibilidade, os elementos existentes nos autos são suficientes para permitir afirmar uma convicção objetivamente verificável de que aquele evento, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, ocorreu, sem prejuízo das respetivas consequências e qualificação jurídica.

As consequências resultantes do acidente (ou a sua inexistência), quer temporárias, quer permanentes, resultaram da posição maioritária dos peritos em junta médica sustentada nos exames efetuados.» (Fim da transcrição)

Cumpre apreciar e decidir:

Verifica-se que a Recorrente cumpriu os ónus que recaem sobre quem impugna a decisão da matéria de facto, sendo, portanto, necessária a reapreciação dos pontos de facto impugnados.

No caso em apreço, inexistiu prova direta da ocorrência do evento descrito no facto provado no ponto 5).

A recorrente alega que a fundamentação da matéria de facto é insuficiente, por não ser possível compreender os específicos meios de prova em que o Tribunal se baseou para julgar concretamente toda a matéria de facto, designadamente a que caracteriza o acidente de trabalho.

Contudo, sem razão.

O Tribunal fundamentou os factos provados numa análise crítica e global da prova documental existente nos autos, aplicando os critérios de normalidade e possibilidade, mesmo na ausência de prova testemunhal ou de declarações de parte do autor em julgamento.

A fundamentação do Tribunal, conforme a sentença, inclui os seguintes pontos:

Critério de Normalidade e Possibilidade: O Tribunal sustentou que a prova de um acidente deve seguir um critério de normalidade (o que é normalmente aceite pelas seguradoras, visto que a maioria dos acidentes não é diretamente verificada por terceiros) e de possibilidade (o que é concebível para o sinistrado nas circunstâncias concretas).

Declarações do Sinistrado e Elementos Corroborantes: Embora a descrição do acidente não tenha sido confirmada por prova testemunhal nem pelas declarações de parte do autor (que faltou ao julgamento), o Tribunal referiu que a prova de acidentes resulta frequentemente das declarações do sinistrado, apoiadas num juízo de normalidade e conjugadas com os acontecimentos posteriores ao acidente. Isso inclui a verificação de queixas imediatas por outras pessoas (colegas), a assistência médica, a diferença temporal entre o acidente relatado e a primeira assistência, e as descrições feitas pelo sinistrado ao longo das várias fases do processo.

Descrição Uniforme do Evento: O Tribunal deu especial relevo à descrição uniforme e consistente do evento ao longo de todo o procedimento e perante todos os interlocutores, incluindo:

- Primeira e segunda assistências médicas junto dos serviços clínicos da seguradora.

- Descrição do acidente no registo clínico da ré seguradora.

- Participação do acidente apresentada pela entidade empregadora, datada de 22.06.2023.

- Participação ao tribunal pelo sinistrado.

- Referência feita ao perito médico singular.

Comportamento da Seguradora: O Tribunal salientou que a própria seguradora aceitou a descrição do evento e realizou sete consultas ao sinistrado. A recusa de responsabilidade pela seguradora não se baseou na negação da ocorrência do acidente, mas sim na sua convicção de que a descrição não correspondia a um acidente de trabalho. Este ponto é central para a decisão do Tribunal, que considerou os elementos existentes suficientes para afirmar com base em critérios de normalidade e possibilidade, a ocorrência do evento nas circunstâncias de tempo e lugar descritas.

Consequências do Acidente: As consequências do acidente (ou a sua inexistência) foram determinadas pela posição maioritária dos peritos em junta médica, com base nos exames efetuados.

Acresce que, conforme salienta o Ministério Público nas contra-alegações do recurso:

● A alegação de insuficiente fundamentação não procede, pois, o Tribunal esclarece o raciocínio que presidiu ao julgamento dos factos e indica os elementos de prova específicos em que se baseou.

● O Tribunal, numa análise "fria, competente e pormenorizada", concluiu que a prova documental existente, "atenta a sua homogeneidade e força", era suficiente para provar os factos.

● A prova dos factos 5, 6 e 7 decorre dos elementos documentais juntos aos autos pela própria Ré, como as participações de acidente onde o evento está identificado em termos de data, hora e local, e as suas circunstâncias.

● A prova do nexo de causalidade e consequências (factos 6 e 7) resulta do exame da junta médica, cujos peritos, após audição do sinistrado e consulta dos elementos dos autos, chegaram às suas conclusões.

● Realça que a seguradora não infirmou a ocorrência do evento, mas apenas a sua qualificação como acidente de trabalho e o nexo de causalidade com as lesões.

● Afirma que a impugnação da Ré é "meramente genérica" e "não corresponde à verdade", visto que os elementos sobre onde, quando e como ocorreu o evento constam expressamente da participação de acidente remetida pela entidade patronal e junta aos autos pela própria Ré.

● Conclui que os elementos documentais são “elementos de prova válidos, com força probatória e por isso valoráveis em termos positivos”, e que o Tribunal agiu corretamente ao onsidera-los provados.

Efetivamente, resulta dos autos (cfr. ref.ª 14934166.º Citius), com data de 22.06.2023, que a Ré empregadora fez a participação de acidente de trabalho à Ré seguradora, com a informação nela contida de que, no dia 15.05.2023, cerca das 15h00, o Recorrido, ao desapertar uma peça, “o dedo ficou para trás e fez esforço”.

Mais se verifica nos autos que o Recorrido/Sinistrado foi acompanhado pelos serviços clínicos da Recorrente (cfr. ref.ª 14934166.º Citius), que providenciaram a sua assistência e, inclusive, a Recorrente pagou-lhe a quantia de €624,83 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos [cfr. o facto provado sob o ponto 2)].

Importa ainda referir que a Recorrente nunca infirmou a ocorrência do evento, contestando apenas a sua qualificação como acidente de trabalho e o nexo de causalidade com as lesões.

Assim, a fundamentação apresentada pelo Meritíssimo Juiz “a quo” não é insuficiente, nem existem elementos novos a acrescentar.

Considerando o conjunto probatório, conclui-se que não existe erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.

Por esses motivos, mantêm-se inalterados os referidos pontos fácticos.


*

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO:

A sentença sob recurso alicerça a sua decisão num processo de raciocínio estruturado a partir da análise de duas matérias, a seguir identificadas:

A – A existência de acidente de trabalho: a sua reparação e o cálculo das prestações devidas.

B – A determinação da entidade responsável pela reparação infortunística do evento.

Em sede recursiva, a Recorrente coloca em crise, desde logo, a questão da qualificação do evento como acidente de trabalho.

No tocante a esta matéria, o Tribunal recorrido explanou o seu raciocínio (em síntese) nos seguintes termos:

I – No caso em apreço, não restam dúvidas estarmos perante um evento enquadrável na definição constante no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro[12].

II – Relativamente ao nexo de causalidade entre as lesões e o acidente refere que, independentemente de o Autor poder, efetivamente, ter uma doença preexistente, daquele evento, resultou, pelo menos, um agravamento temporário das lesões existentes.

III – Não obstante o movimento efetuado pelo Autor se tratar de um movimento normal da sua vida laboral, haverá alguma especificidade ergonomicamente incorreta que gera um quadro doloroso que a perícia relacionou com este evento e, por isso, considera ser um acidente de trabalho, com um quadro doloroso temporário e sem sequelas permanentes.

IV – Procedeu ao cálculo das quantias devidas a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos.

Trata-se de uma sentença bem estruturada e fundamentada, que utilizou uma fundamentação de direito, assertiva, clara e compreensível.

Importa aquilatar se a solução é a acertada.

A Ré defende a existência de erro na aplicação do direito, alegando, desde logo, a falta de demonstração factual que permita aferir a ocorrência de qualquer evento traumático.

Contudo, sem razão.

Como se verificou, a impugnação à matéria de facto não teve êxito.

Do facto provado sob o ponto 5), é irrefutável a ocorrência de um evento qualificável como acidente de trabalho.

A Lei não fornece uma definição básica de “acidente”. No entanto, a doutrina e a jurisprudência têm destacados três elementos delimitadores do conceito de acidente de trabalho, de verificação cumulativa:

-> O elemento temporal (tempo de trabalho)

-> O elemento espacial (local de trabalho)

-> O elemento causal (nexo de causa e efeito entre o acidente e a lesão)

O núcleo essencial da “noção” de acidente de trabalho encontra-se plasmada no artigo 8.º, n.º 1:

Há um acidente de trabalho quando ocorre um acidente que produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou ganho ou morte.”

Do artigo 8.º depreende-se que a ligação principal com a prestação de trabalho ocorre quando o acidente se verifica “no local e no tempo de trabalho” (artigo 8.º, n.º 1) – atos devidos na prestação de trabalho.

«Local do trabalho»: “todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente sujeito ao controlo do empregador” – artigo 8.º, n.º 2, alínea a). Esta definição é mais abrangente do que a do artigo 193.º do Código do Trabalho, que o limita ao local contratualmente definido para o trabalhador exercer a sua atividade.

«Tempo de trabalho além do período normal de laboração»: “o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas do trabalho” – artigo 8.º, n.º 2, alínea b). Esta definição é mais ampla do que a prevista no artigo 197.º, n.º 1, do Código do Trabalho, uma vez que não abrange apenas o período em que o trabalhador exerce a sua atividade ou permanece adstrito à realização da prestação e as interrupções taxativamente referidas no artigo 197.º, n.º 2, do Código do Trabalho.

No caso de teletrabalho ou trabalho à distância, considera-se local de trabalho aquele que conste do acordo de teletrabalho – artigo 8.º, n.º 2, alínea c)

O acidente de trabalho traduz-se num facto complexo.

Tem um pressuposto relacional: relação de trabalho com dependência económica (não apenas contrato de trabalho individual de trabalho).

Pressupõe a ocorrência de um facto ou evento em sentido naturalístico: acontecimento súbito (não de uma ação continuada), violento (que altera o equilíbrio interior), inesperado e de ordem exterior ao lesado (origem estranha à constituição da vítima).

Contudo, paulatinamente tais características têm vindo a ser questionadas, de tal modo que só parece subsistir hoje, a exigência de subitaneidade e, ainda assim, entendida em termos amplos ou flexíveis (súbito não significa própria ou necessariamente instantâneo).

Com efeito, nem o acontecimento exterior direto e visível, nem a violência são, hoje, critérios indispensáveis à caraterização do acidente.

Pressupõe que esse facto ou evento provoque lesão, perturbação funcional ou doença causalmente ligada ao dano (morte ou redução na capacidade de ganho).

Assim, o nexo de causalidade relevante pressupõe a existência de uma cadeia sucessiva de causalidade relevante (um duplo nexo de causalidade nas duas cadeias de nexos causais do dano-evento), entre:

a. o pressuposto relacional e o evento;

b. o evento e a lesão; e

c. a lesão e a redução da capacidade de ganho ou a morte.

Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, os requisitos de um acidente de trabalho têm de ser alegados e provados por quem reclama a respetiva reparação, neste caso, o sinistrado e/ou beneficiários legais, por serem factos constitutivos do direito invocado.

Acresce que, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, o nexo causal presume-se quando a lesão ocorrer no local e no tempo de trabalho, bastando ao trabalhador alegar e provar que a lesão ocorreu nestes termos (artigos 349.º e 350.º do Código Civil).

A presunção “úris tantum” legalmente consagrada, neste âmbito, tem por objetivo:

-> O reconhecimento da enorme dificuldade em definir, com segurança, critérios para a determinação da causalidade relevante.

-> O reconhecimento de que a prova plena e positiva dos factos constitutivos do direito à reparação seria, em muitos casos, impossível para as vítimas e/ou seus familiares, face à falta ou falibilidade da prova testemunhal e outras.

-> Manifestar a preocupação do legislador em libertar o sinistrado de parte significativa do dever geral de prova no que a estes pontos específicos respeita[13].

Contudo, o artigo 10.º, n.º 1, consagra apenas uma presunção úris tantum de causalidade entre a lesão constatada no local e no tempo de trabalho, ou nas circunstâncias previstas no artigo 9.º, e o acidente, mas não dispensa quem pretenda invocar a existência de um acidente de trabalho do ónus da prova da verificação do próprio evento causador das lesões.

Análise do Caso Concreto:

Relativamente aos factos provados sob os pontos 05), 06), e 07):

Em síntese: no local e tempo de tempo de trabalho, e no desempenho das suas funções, o Autor, ao desapertar uma peça, sofreu uma torção no polegar, o que lhe causou dor.

Conclusão: o evento verificou-se no local e tempo de trabalho (elementos espacial e temporal) – cfr. artigo 8.º, n.º 2, alíneas a) e b), da LAT.

A factualidade descrita configura um evento, em sentido naturalístico, súbito e exterior à vítima (movimento corporal que gera lesões), emergindo da relação de trabalho. Deste evento decorreram lesões – entorse do polegar direito, com espessamento (sem rotura) dos ligamentos colaterais radial e cubital -, as quais se presumem consequência do evento qualificado como acidente de trabalho, por força do artigo 10.º, n.º 1, da LAT.

A Recorrente alega a inexistência de um evento traumático (o que se demonstra infundado), aduzindo que a sintomatologia é compatível com doença natural associada a fenómenos degenerativos (espessamento dos ligamentos colaterais medial e radial) – cfr. o facto provado sob o ponto 8).

O que nos conduz ao artigo 11.º, n’s 1 e 2, da LAT.

Nas palavras de Carlos Alegre[14]:

«A predisposição patológica não é, em si, doença ou patogenia: é, antes, uma causa patente ou oculta que prepara o organismo para, num prazo mais ou menos longo e segundo graus de vária intensidade, poder vir a sofrer determinadas doenças. O acidente de trabalho funciona, nesta situação, como agente ou causa próxima desencadeadoras da doença ou lesão.» (Fim da transcrição)

A predisposição patológica não exclui o direito à reparação integral, salvo se for ocultada (artigo 11.º, n.º 1).

Mesmo que a predisposição patológica tenha sido a causa única da lesão ou doença, o direito à reparação não é excluído, ocorrendo tal exclusão apenas quando, além de existir a predisposição patológica, esta tenha sido ocultada[15].

Contudo, é necessária a existência de um acidente de trabalho, ou seja, que exista uma causa próxima desencadeadora da lesão e o sinistrado sofra sequelas desta que não sofreria se não fosse a causa, patente ou oculta, em que se consubstancia a predisposição patológica.

Acresce que, nos termos do n.º 2, do artigo 11.º, quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avalia-se como se tudo dele resultasse, a menos que, pela lesão ou doença anterior, o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente Lei.

O artigo 11º, n.º 2, trata de duas situações que nada têm que ver com a predisposição patológica, devendo antes qualificar-se como situações de concurso de causas/danos.

Preveem-se aqui as situações em que se verifique:

-> Lesão ou doença anterior ao acidente, que agrave a lesão ou doença consecutiva ao acidente.

-> Agravação da lesão ou doença anterior ao acidente por causa de lesão ou doença consecutivas ao acidente.

Em qualquer das situações, a incapacidade avalia-se como se tudo resultasse do acidente, exceto se, pela lesão ou doença anterior, a vítima já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da LAT [(vide, ainda, a instrução geral n.º 5, alínea e), do Dec. Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro – Tabela Nacional de Incapacidades)].[16]

Note-se, porém, que a utilidade da presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 11.º, é apenas a de libertar o sinistrado ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o evento e as lesões, não os ilibando de provar a ocorrência do próprio evento causador das lesões.

Voltando ao caso em análise, é evidente que a doença natural associada a fenómenos degenerativos do sinistrado não foi ocultada à seguradora. Adicionalmente, a torção do polegar (um movimento corporal) provocou um agravamento temporário das lesões preexistentes.

Do exposto, conclui-se que ocorreu um acidente de trabalho, pelo que, as conclusões do recurso improcedem, mantendo-se, assim, o decidido na douta sentença recorrida.


*

V. DECISÃO:

*

Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em:

I) Julgar totalmente improcedente a impugnação da matéria de facto.

II) Julgar, no mais, totalmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente/seguradora.

Custas pela Recorrente com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao Regulamento Custas Processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).

Valor do recurso: o da ação (artigo 12.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).

Notifique-se e registe-se.


Porto, 30 de junho de 2025
Sílvia Saraiva
Nelson Fernandes
António Luís Carvalhão
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