DOCUMENTO PARTICULAR
RECONHECIMENTO DE DÍVIDA
ASSINATURA
AUTENTICIDADE
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator):
I. Uma vez impugnada a autenticidade de assinatura aposta em documento particular de reconhecimento de dívida competirá ao apresentante fazer prova da respetiva autoria;
II. Feita essa prova de autenticidade, operará uma presunção de autenticidade de todo o documento e, consequentemente, poderá afirmar-se, por ilação, a existência de um reconhecimento de obrigação;
III. Não sendo possível atingir um grau de certeza quanto à autoria da assinatura aposta em documento particular, essa dúvida deve ser resolvida contra o apresentante do documento, dando por não provado o facto respetivo.

Texto Integral

Decisão:
Decidem os abaixo indicados Juízes Desembargadores desta 2.ª Secção:
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I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo Local Cível do Funchal – J2 - 1061/20.1T8FNC;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de processo comum;
- Decisão recorrida – Sentença.
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (autor): - ---;
- Recorrido (réu): - ---. --
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I.III. Síntese dos autos:
Pediu o autor condenação do réu ao pagamento da quantia de €4.440,00 (quatro mil quatrocentos e quarenta), a que acresceriam juros de mora à taxa legal, desde data da declaração de reconhecimento da dívida até integral pagamento, tendo computado inicialmente os vencidos no valor de €388,77 (trezentos e oitenta e oito euros e setenta e sete cêntimos).
Sustentou tal pretensão dizendo que:
- O réu, por escrito, confessou-se devedor ao autor da quantia de 4.400,00€;
- A dívida reconhecida teve origem no facto de ter contratado os serviços do réu, enquanto advogado, para que requeresse junto do Fundo de Garantia Salarial créditos laborais emergentes de cessação de contrato de trabalho que manteve com sociedade terceira;
- O réu não reclamou o crédito do autor, como mandatado;
- Reconhecendo a sua falta profissional, emitiu a referida declaração de reconhecimento de dívida, com a finalidade de o compensar do prejuízo sofrido,.
Citado, contestou o réu.
Excecionou ilegitimidade ativa e impugnou motivadamente a ação, dizendo, em síntese, não ter assinado qualquer documento de reconhecimento de dívida.
Mais deduziu reconvenção, pedindo condenação do autor a pagar-lhe a quantia de 4.148,00€, acrescida de juros de mora, por serviços jurídicos prestados e não pagos; e no montante de 3.000,00€, a título de danos morais.
Sustenta tais pedidos dizendo, em síntese:
- Ter prestado ao reconvindo serviços como advogado;
- Que tais serviços importaram no valor indicado, cujo foi comunicado ao mandante e reconvindo, que o não liquidou, devendo ser compensados;
- Que ficou muito abalado e ansioso com o comportamento do autor, sofreu prejuízos na sua imagem e reputação profissionais, que computa no valor que indica a título de danos não patrimoniais.
Pediu ainda a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização.
- O autor/reconvindo replicou, pugnando pela improcedência da exceção de ilegitimidade e da reconvenção;
- Realizou-se audiência prévia, aí se julgando improcedente a invocada exceção de ilegitimidade ativa e declarando inadmissível a reconvenção, enquanto pedido compensatório;
- Realizada audiência final foi proferida a sentença recorrida.
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II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações:
1. O presente recurso tem por objeto a reapreciação da prova gravada e da prova documental.
2. Estão em causa os seguintes pontos incorretamente julgados na decisão recorrida:
a. A contratação referida em 1. foi efetuada, após aconselhamento e orientação do Réu, para o Autor requerer junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos créditos laborais emergentes da cessação de contrato de trabalho por justa causa com a sociedade (...)”.
b. O Réu estava absolutamente vinculado a requerer o pagamento dos créditos laborais do Autor.
c. A falta do requerimento referido em b) levou a que o Autor não recebesse qualquer quantia do Fundo de Garantia Salarial.
d. No dia 17 de dezembro de 2017, por escrito, o Réu “declara-se devedor da quantia de quatro mil e quatrocentos e quarenta euros (€ 4.440,00)” ao Autor, sendo o pagamento de tal quantia “pago em prestações mensais, sucessivas e iguais, a combinar posteriormente” e ficando o documento “suspenso até informação/resposta por escrito da Companhia de Seguros (...) sobre o pedido de ativação do Seguro de responsabilidade profissional
e. O Réu fez com que o Autor assinasse o documento referido em d) sem que da sua leitura conste qualquer declaração de vontade que o vincule;
f. Até à presente data, o Autor não recebeu qualquer informação quanto à cobertura da seguradora referida em d) e não recebeu a quantia referida em c).
3. Os referidos factos deverão ser levados para o capítulo dos factos provados.
4. A decisão diversa impõe-se, em conformidade com a fundamentação das presentes alegações pela qual se faz a apreciação crítica e conjugada a prova documental – declaração de confissão de dívida - e o depoimento de parte do Autor.
5. Relativamente às alíneas a), b), c), d), e) e f), importa destacar as respostas do Autor ao Tribunal a quo e ao respetivo mandatário gravadas nas passagens dos minutos 01:52 a 47:48 da gravação n.º 20241008101510_1680894_2871390.
6. O depoimento de parte do Autor, apesar de algumas limitações, é claro, genuíno e esclarecedor do contexto e itinerário temporal da relação subjacente à declaração de dívida em causa, devendo ser valorado como tal.
7. A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto ao não considerar provada a existência da confissão de dívida constante dos autos.
8. Sendo certo que a dívida confessada pelo Recorrido ao Recorrente subsiste, com base nos elementos documentais e na inversão do ónus da prova, prevista no artigo 458.º do Código Civil.
9. Assim, o douto Tribunal a quo desvalorizou indevidamente os elementos probatórios, nomeadamente, a declaração de confissão de dívida e o resultado do exame pericial, violando o disposto no artigo 458.º do CC que prescreve a presunção de existência da relação subjacente.
10. A sentença recorrida afastou-se indevidamente deste princípio ao exigir do Recorrente a prova da relação fundamental, ignorando que o documento intitulado "declaração unilateral de reconhecimento de dívida" constitui, nos termos do citado artigo, um instrumento suficiente para presumir a dívida do Recorrido.
11. Não considerou devidamente a inversão do ónus da prova prevista no artigo 344.º do Código Civil, que impunha ao Recorrido a demonstração inexistência da relação fundamental ou a inexigibilidade da dívida reconhecida.
12. Tanto assim o é que, em sede de motivação de facto, não faz qualquer tipo de valoração ao depoimento de parte do Recorrido, conforme se lhe impunha.
13. Como também não considerou o estatuído pelo n.º 1 do artigo 376.º do CC, de que os documentos particulares fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, salvo se a sua autenticidade for impugnada e demonstrada a falsidade.
14. Ora, no caso em apreço, o Recorrido limitou-se a impugnar a assinatura, sem produzir prova convincente da sua falsidade, não podendo tal impugnação ser suficiente para afastar os efeitos legais do documento.
15. Assim, devem os factos das alíneas a) a f) da douta sentença recorrida ser tido por provados e, consequentemente, conduzir ao reconhecimento da dívida do Recorrido ao Recorrente no valor peticionado.
16. Pelo exposto é imperioso concluir pela total procedência dos pedidos formulados na petição inicial.
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O réu, notificado, não contra-alegou.
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II.II. Questões a apreciar:
- Da alteração da decisão de facto relativa à autenticidade de assinatura aposta em documento particular, por referência aos meios de prova indicados pelo recorrente e também aos ónus legalmente operantes;
- Da eventual alteração, consequente, dos restantes pontos da decisão de facto objeto de impugnação;
- Das consequências jurídicas do que venha a ser decidido em termos de fixação definitiva da matéria de facto dos autos.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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II.III.I. Recurso da decisão de facto:
II.III.I.I. Admissão do recurso:
De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 640.º do Código de Processo Civil (CPC), para admissão da impugnação de facto o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (al. a); os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão de facto diversa (al. b) e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto em causa (al. c).
A interpretação destas exigências legais tem merecido amplo labor jurisprudencial de forma a tornar operativas as garantias e as exigências legalmente estabelecidas.
Olhando especificamente a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), conclui-se que tem procurado estabilizar entendimentos nesta matéria, o que fez inclusivamente em acórdão uniformizador.
Tal doutrina assenta, em primeiro lugar, no que pode qualificar-se como afastamento do formalismo excessivo, o que impõe que os requisitos estabelecidos pelo art.º 640.º devam ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que serão critérios orientadores de limitação de uma interpretação excessivamente restritiva do preceito.
Em segundo lugar, construindo uma doutrina qualificável como segmentação dos ónus impugnatórios.
De acordo com esta doutrina, há dois ónus que a parte deve cumprir: - um primário, traduzido no cumprimento das exigências do art.º 640.º n.º 1 (indicação do objeto de dissenso de facto; indicação dos meios de prova e da decisão alternativa a proferir); e um secundário, traduzido na indicação das passagens relevantes da prova gravada.
Os ónus primários têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e o ónus secundário terá um cariz mais operativo, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Conclui esta doutrina que, sendo diferentes as naturezas e funções de cada um dos ónus, o seu desrespeito terá diferentes consequências – o incumprimento dos requisitos estabelecidos nas alíneas do n.º 1 implica rejeição do recurso (total ou parcial, consoante a extensão da falta), já o incumprimento do requisito estabelecido no n.º 2, al. a) só conduzirá a rejeição se afetar gravemente o exercício do contraditório ou o exame da questão pelo tribunal de recurso.
Vertendo ao caso, o recorrente indica a matéria de facto que pretende impugnar e que, em síntese, se refere a um facto básico, a assinatura de documento de reconhecimento de dívida, ligada a um acervo factual que se pode considerar pressuposto dessa emissão, relativo à contratação de serviços do réu/recorrido, como advogado, e ao prejuízo que o resultado da prestação teria importado para si.
Indica também o sentido que pretende seja dado à decisão dessa matéria (que traduz, simplesmente, um trânsito do objeto de impugnação do elenco dos factos não provados para os provados).
Indica como meios de prova as suas próprias declarações em audiência, indicando os trechos que considera pertinentes, conjugadas com o teor do documento de reconhecimento de dívida, cumprindo, assim, adequadamente, os ónus exigidos por lei.
Deve, assim, admitir-se a impugnação, o que se decide.
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II.III.I.II. Matéria de facto dada por provada na sentença:
É a seguinte a matéria factual estabelecida na 1.ª instância:
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Facto provado:
1. O Autor contratou os serviços do Réu.
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Factos não provados
a) A contratação referida em 1. foi efetuada, após aconselhamento e orientação do Réu, para o Autor requerer junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos créditos laborais emergentes da cessação de contrato de trabalho por justa causa com a sociedade “(...)”.
b) O Réu estava absolutamente vinculado a requerer o pagamento dos créditos laborais do Autor.
c) A falta do requerimento referido em b) levou a que o Autor não recebesse qualquer quantia do Fundo de Garantia Salarial.
d) No dia 17 de dezembro de 2017, por escrito, o Réu “declara-se devedor da quantia de quatro mil e quatrocentos e quarenta euros (€ 4.400,00)” ao Autor, sendo o pagamento de tal quantia “pago em prestações mensais, sucessivas e iguais, a combinar posteriormente” e ficando o documento “suspenso até informação/resposta por escrito da Companhia de Seguros (...) sobre o pedido de ativação do Seguro de Responsabilidade Profissional”.
e) O Réu fez com que o Autor assinasse o documento referido em c) sem que da sua leitura conste qualquer declaração de vontade que o vincule.
f) Até à presente data, o Autor não recebeu qualquer informação quanto à cobertura da seguradora referida em c) e não recebeu a quantia referida em c).
g) O Réu é uma pessoa de bem, vista por todos como uma pessoa honesta e com a notícia desta ação, todos os colegas do Réu ligaram-lhe a perguntar o motivo da entrada da mesma, provocando um forte estado de ansiedade ao Réu.
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II.III.I.III. Síntese inicial dos fundamentos de impugnação:
Decorre da posição do recorrente que este pretende que se estabeleça como provado que o réu/recorrido prestou deficientemente os seus serviços de advogado contratado, deixando de praticar atos essenciais para que recebesse prestação por perda de posto de trabalho e que, na sequência, tendo-o reconhecido expressamente, teria assinado, de mão própria, documento a reconhecer uma dívida, que traduziria uma verdadeira assunção da obrigação de indemnizar o mandante por prejuízos advenientes de uma deficiente prestação de serviços de advocacia.
Dando por assente que foi realizado exame pericial à assinatura, cujo resultado foi inconclusivo, assentar uma impugnação de uma decisão de não provado relativa à sua autenticidade, apresenta-se, à partida, pleno de dificuldades.
Se se considerar que, além do próprio teor do documento, o recorrente assenta a impugnação apenas nas suas próprias declarações em juízo, sem qualquer outro suporte probatório, essas dificuldades parecem atingir o limite do intransponível – a parcialidade da declaração e a ausência de qualquer outro meio de prova que as enquadre e sustente (além do próprio documento objeto de prova) tornam-nas insuficientes para o resultado pretendido.
Se conjugarmos as asserções anteriores com os juízos constantes da motivação de facto da sentença, mais corpo ganham ainda estas afirmações.
O tribunal a quo foi expresso em desvalorizar as declarações em audiência de ambas as partes (e, portanto, não apenas as do autor/recorrente), precisamente por não estarem suportadas em qualquer outro meio de prova e, portanto, sobrelevando a sua parcialidade e ausência de corroboração, além de outras insuficiências intrínsecas (no caso do autor é apontada expressamente alguma confusão no teor do declarado).
Chegando a este ponto de análise, ainda a priori, pode concluir-se que a pretensão de reversão da decisão de facto quanto à autenticidade da assinatura aposta no documento em causa, mais que uma reavaliação dos meios de prova produzidos, torna-se sobretudo um pedido de reformulação do juízo sobre a oneração probatória operante.
O recorrente nas suas conclusões di-lo expressamente, sustentando que deveria ter sido imposta uma inversão do ónus da prova, algo que deverá também ser considerado nesta sede.
Estabelecida esta base, deve avançar-se para a análise dos fundamentos impugnatórios.
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II.III.I.IV. Apreciação dos fundamentos de impugnação:
Começando pelo próprio teor do documento, diz o recorrente que a perícia grafológica realizada concluiu pela inconclusividade quanto à autoria da assinatura constante no documento, mas que a inconclusividade da perícia não é suficiente para afastar a presunção estabelecida pelo n.º 1 do artigo 458.º do CC.
Este primeiro argumento é manifestamente não sustentado, por padecer de petição princípio.
O preceito citado (art.º 458.º do Código Civil - CC) pressupõe a existência de uma declaração válida, algo que está em causa quando se discute a autenticidade de uma assinatura.
Diz o referido art.º 458.º n.º 1 que se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Precisa o n.º 2, quanto a reconhecimentos escritos que a promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.
A avaliação que se está a fazer neste momento não é acerca dos efeitos jurídicos do reconhecimento, é a determinação prévia de existência de um reconhecimento.
Está em causa saber se o documento é verdadeiro ou forjado e, portanto, não se pode dar por adquirido à partida aquilo que se pretende determinar a final.
Diz depois o recorrente que o recorrido não logrou apresentar qualquer prova idónea nesse sentido, limitando-se a impugnar genericamente a validade da declaração. Essa postura é insuficiente para afastar a presunção de veracidade que recai sobre o documento apresentado pelo Recorrente.
Naquilo que esta afirmação se refere à validade da declaração, relevam, mutatis mutandis, as afirmações anteriores – não se pode afirmar a validade ou a eficácia de uma declaração sem estar assente a existência dessa declaração. Uma coisa é uma declaração documentada, ou seja, uma manifestação de conhecimento e vontade expressa por escrito, outra coisa é um simples documento, que poderia ser referida como um simples papel, em que consta um sinal grafológico que alguém afirma ser uma assinatura.
Para o tribunal a quo o que existe é apenas isso – um escrito, ou um papel, cuja autoria e assinatura não se provou e, portanto, factualmente não passa de um escrito, não traduzindo uma declaração de vontade.
Será que se pode considerar, como sustenta o recorrente, que a simples existência de um escrito faz presumir a sua veracidade?
A resposta a esta pergunta implica analisar o respetivo teor e também verificar da correta imputação do ónus probatório dos respetivos atos de emissão, especialmente da assinatura nele aposta.
O documento em causa, reproduzido, tem este teor:
(...)
Da sua análise ressalta:
- Tratar-se de um documento particular simples, sem reconhecimento de assinaturas;
- Tratar-se de um documento cuja elaboração foi especialmente cuidada, inculcando uma aparência de escrito com "natureza" ou "força" jurídica;
- Haver referência ao seguro de responsabilidade profissional na companhia de seguros --- (compatível com a invocação de seguro de responsabilidade civil de advogado);
- Haver referência ao domicílio profissional do emitente (e não, portanto, pessoal), também compatível com uma assunção de responsabilidade de advogado.
Desenvolvendo estas considerações por referência à posição assumida pelas partes (ao longo do processo e, especificamente, no recurso), ressalta uma constatação evidente: – a situação em discussão não permite meio termo de avaliação.
Olhando o documento e a posição das partes, conclui-se necessariamente que uma delas litiga com elevada má-fé e atua de forma grosseiramente ilícita, com afetação de esferas de responsabilidade civil, criminal e, eventualmente (se for o réu) também disciplinar.
Caso a verdade afirmada pelo autor/recorrente subsista, teremos uma situação de facto em que um advogado elaborou, de forma pré-ordenadamente falsa, um documento com aparência de assunção de dívida, aproximando a sua atuação de uma fraude, e colocando o advogado abaixo dos limiares mínimos da ética exigível à função.
Caso a verdade afirmada pelo réu/recorrido subsista, teremos uma ostensiva falsificação de documento, com claro intuito fraudatório, com manifesta ilicitude penal e civil.
O que o tribunal a quo concluiu, perante estas verdades antitéticas, foi uma impossibilidade de determinar qual era a verdadeira e foi esse o sentido da decisão de facto.
Olhando o documento a se, qualquer das versões é possível.
É certo que a aparência do documento e o seu teor induzem uma avaliação de autenticidade, especialmente por se tratar de um reconhecimento de uma dívida com as características da que está em discussão – um documento de reconhecimento de responsabilidade profissional de advogado, elaborado com linguagem jurídica, preciso na definição da obrigação assumida e dos seus limites, contendo referência a factos ligados à pessoa do réu (a alusão ao seu domicílio profissional e, principalmente, a referência ao seguro de responsabilidade civil).
Essa avaliação facial é, todavia, algo muito diverso de uma presunção (homini), como afirmada pela recorrente.
Da análise do documento não se pode excluir uma falsificação completa, bem elaborada no teor e correspondida numa falsificação de assinatura.
Neste ponto, importa tomar em consideração, também nesta sede, a conclusão constante do relatório pericial realizado pela Polícia Judiciária, onde se pode ler:
A qualidade e quantidade das semelhanças e diferenças registadas no confronto da escrita suspeita de assinatura (...) com a dos autógrafos de ---, bem como das limitações referidas (...), não permitem obter resultados conclusivos.
Ficando a dúvida neste ponto, não se vê como poderiam as dúvidas ser removidas apenas com declarações da parte interessada, como pretende o recorrente.
Estabelecer uma certeza jurídica de autenticidade de documento e assinatura, contra (ou perante) uma prova pericial que não o faz, sem qualquer outra base, é manifestamente inviável.
Admitindo que, no limite, existisse alguma possibilidade de tal suceder, tal só ocorreria perante declarações que fossem capazes de conferir a única explicação possível para a situação de facto, o que permite, ainda assim, prosseguir na análise.
O tribunal a quo, na sua motivação, qualificou o depoimento do autor de confuso e incerto, juízos que este pretende infirmar, com indicação dos seguintes trechos:
− Autor: Eu não contratei (…) Foi-me informado para… eu fiquei
desempregado metendo a carta e estando desempregado teria direito a proteção
jurídica (…) Eu confiei-lhe, eu levei-lhe os documentos e sempre com a palavra dele de que estava sob proteção jurídica.
− Juiz: Quando é que lhe deu os documentos?
− Autor: Foi nesse verão, não sei precisar a data, mas foi nesse verão de 2010.
Entretanto também me disse que o processo deveria ser feito online e por isso nunca recebi documento e confiei plenamente. Basicamente foi isso (…)
− Juiz: Olhe, o senhor confiou, o senhor entregou os documentos e o
Dr. ---disse que o processo era online. E depois?
− Autor: E depois foi um processo que foi andando e sempre que falava com
ele, dizia que estava a tratar processo de insolvência da empresa e que não havia bens. (…)
− Juiz: Pronto. Entretanto (…) o senhor não recebeu nada, não é assim?
Da empresa (…) Não confrontou o Dr. --- relativamente a isso (…)?
− Autor: Sim, entretanto apercebi-me da situação (…) aí já eu próprio tratei,
já como deve ser. Fiz um pedido de proteção jurídica. Entretanto falei com o Dr. --- AA que me explicou que por erro profissional teria que confrontar o Dr. ---e foi daí que apareceu o documento do reconhecimento de dívida.
(…)
− Juiz: O senhor --- fala com o Dr. --- não é? E ele diz-lhe
que deve ter havido um erro profissional e que o senhor --- teria de confrontar o Dr. ---relativamente a isso. Pronto, e o senhor --- confrontou o Dr. ---? (…) o que é que falaram e o que foi dito?
- Autor: Ele disse que, após ter falado com o Dr. ---, o Dr. ---
teria que reconhecer o seu erro profissional por não ter recebido o valor do Fundo de Garantia Salarial ou dos ordenados em atraso e teria que assinar uma declaração de dívida nesse sentido, o que ele fez à minha frente.
− Juiz: Certo. Esta declaração foi feita onde? (…)
− Autor: Esse era um escritório na ---.
− Juiz: Era o escritório de quem? De quem era este escritório?
− Autor: Era do Dr. ---. (…)
− Juiz: Então o senhor falou-lhe disto e ele sem mais disse “sim senhor,
eu reconheço a minha dívida”, é isso?
− Autor: Fez o documento à minha frente no computador e assinou e eu
assinei também lá. Depois cheguei a ir ao escritório do Dr. --- com este documento (…) em Machico.
- Juiz: Tem ideia de quando é que isto foi assinado? (…)
− Autor: Tenho ideia que foi em 2017, mas não tenho presente na memória.
− Juiz: Eu quero perceber é que resposta é que o senhor --- teve
do Dr. ---, compreende?
− Autor: A resposta dele basicamente foi que reconhecia o erro, que o prazo
prescreveu e que faria depois a exposição à seguradora (…) deles, de advogados, a ver se faria o pagamento desse erro profissional. (…)
- Juiz: (…) a notificação é de 10 de outubro de 2017 (…) da ordem, sim
(…) e efeitos é processo de impugnação a instaurar.(…)
− Mandatário do Autor: O senhor fez alguma coisa em algum sítio para
recuperar este dinheiro?
− Autor: Não, negativo. Não porque eu não sabia exatamente o que fazer
(…) e entretanto confiei ao Dr. ---a resolução desta situação (…)
− Mandatário do Autor: (…) e nessa sequência tem uma reunião com o Dr.
---em que ele assume o erro e diz que elaborou este documento à sua frente, no escritório dele e assinou
− Autor: E assinou e eu também.
− Mandatário do Autor: O senhor leu este documento? Foi explicado, a si?
(…) o senhor tem a noção do que está aqui escrito?
− Autor: Penso que sim (…) o documento diz que é o reconhecimento de
um erro profissional por ter deixado prescrever o prazo de garantia que seria de um ano.
− Mandatário do Autor: Sabia quando iria receber este dinheiro? (…) O
documento dizia quando é ia receber este dinheiro?
− Autor: Não (…) mas acho que não tem qualquer referência a datas de
pagamento.
- Mandatário do Autor: ou o senhor ficou com a referência de que este
documento iria valer depois da companhia de seguros responder à participação do Dr. ---?
− Autor: foi a ideia que eu fiquei porque foi o que foi falado na altura se não
estou em erro.
− Mandatário do Autor: desta data para frente o senhor teve ou não teve
mais nenhum contacto com o Sr. ---para saber se o seguro tinha feito, tinha dito alguma coisa (…)?
− Autor: Sim tive contacto porque até houve reclamação de créditos e
reunimos na Ordem dos Advogados na tentativa de resolução deste assunto.
− Mandatário do Autor: o senhor teve alguma informação de que o seguro
recusou a responsabilidade, por exemplo?
− Autor: (…) ele disse que não pagava, que não reconhecia (…).”
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A análise destas declarações pode dizer-se que, de algum modo, dá sentido a um juízo probatório favorável à posição do autor, pelo menos numa avaliação geral, por ser o mais compatível com regras de experiência e com a supra referida análise facial do escrito.
As hesitações e falta de assertividade apontadas a quo não podem, só por si, ser elementos decisivos de avaliação.
Tais falhas podem decorrer de falta espontaneidade e sinceridade, como podem decorrer de simples dificuldades de expressão do declarante, de pouco à vontade numa sala de audiências, ou de uma série de outros fatores possíveis, sendo até, nalguns casos – particularmente no que concerne a eventos com grande desfasamento temporal –um atestado de sinceridade do que é declarado (bem pior avaliação devem merecer declarações com grande precisão, quando proferidas muitos anos depois de um evento não especialmente impressivo na memória de alguém).
A verdade é que decisão a quo, que beneficiou de imediação e contacto direto com o declarante, desvalorizou essas confusões e o tribunal de recurso não tem elementos que permitam infletir tal desvalorização.
Em todo o caso, voltando ao ponto favorável, a verdade é que a tese apresentada pelo declarante é aquela que, em termos de experiência e num quadro de normalidade social, confere maior sentido à matéria em discussão.
Em termos simples, é a versão de facto mais plausível.
Assim, resumindo-a, é compatível com a experiência que alguém que contrate um advogado para tratar de uma prestação subsequente a um despedimento/extinção de posto de trabalho, vendo que o assunto não resolve favoravelmente, venha a abordar outro advogado que, apercebendo-se da falha do primeiro no cumprimento do mandato, o contacte e procure uma solução.
Nesse contexto, ganha sentido a possibilidade de ter existido um reconhecimento de uma falta profissional, o que, ligado à existência de um seguro de responsabilidade civil profissional, teria levado à emissão da declaração de dívida em causa.
Neste quadro, mais coerente se torna esta possibilidade ante a consideração (que até consta do próprio documento), que a assunção não implicaria um desembolso de qualquer quantia pelo advogado, sendo o pagamento remetido para a seguradora.
Neste quadro, também se explica a precipitação do litígio, de forma perfeitamente coerente em termos de experiência comum: - Uma vez que a seguradora declinasse assumir a responsabilidade pelo pagamento, o autor voltar-se-ia naturalmente para o réu, para que o assumisse pessoalmente.
A tese contrária, que partiria também da existência de uma contratação de advogado e da mesma perceção de uma falha na representação (que, neste caso, poderia ser meramente putativa), é bastante menos plausível.
Em primeiro lugar, porque pressupõe que tenha sido delineado entre o autor e um novo advogado (substituto do réu) um verdadeiro plano criminoso, que passaria pela falsificação de um documento de reconhecimento de dívida. Tal plano, além de exigir um especial engenho, implicaria uma fortíssima energia criminosa e deixaria sempre por explicar a simples razão de não ser tentada uma responsabilização do mandatário numa ação e não ser apresentada queixa disciplinar contra o mesmo.
Seja mais ou menos plausível alguma das versões, é ostensiva a falta de outros elementos de prova nos autos para suporte de qualquer delas.
As dúvidas que se suscitam podem ser assim resumidas:
- Porque prescindiram ambas as partes de inquirição das testemunhas que arrolaram, em sede de audiência final (não consta da gravação da audiência final qualquer referência ao circunstancialismo que envolveu a tomada dessa decisão)?
- Porque não foi sequer indicado como testemunha o Dr. ---, advogado que seria o único terceiro com conhecimento direto da situação, de acordo com as declarações do autor, sendo o profissional que teria tomado conta da sua representação após o termo da relação com o réu e cuja intervenção teria conseguido levar a um entendimento e à assinatura do documento de assunção de dívida?
- Há alguma documentação relativa a participação de responsabilidade civil profissional feita pelo réu à seguradora que cobre os seus riscos de responsabilidade profissional?
- Uma vez que foi discutida a responsabilidade profissional, mesmo que inicialmente o documento de reconhecimento a dispensasse, porque não foi depois da contestação apresentado algum documento relativo às faltas do mandatário, designadamente relativo à situação do autor junto do Fundo de Garantia Salarial?
Para melhor enquadrar estas dúvidas, fez-se um reexame integral da prova documental junta.
Desta, salienta-se:
- Por requerimento de 10/3/2020 o advogado réu fez juntar aos autos documento comprovativo de pedido de levantamento de sigilo profissional;
- Que foi o réu-advogado que, em nome do autor, que instaurou ação de declaração de insolvência da entidade patronal deste, por falta de cumprimento de obrigações emergentes de contrato de trabalho, insolvência que veio a ser declarada por sentença de 2015;
- Que o processo de insolvência da anterior entidade patronal do autor foi encerrado, por falta de massa, ainda em 2015;
- Que o autor se apresentou depois à própria insolvência, que foi declarada por sentença de novembro de 2018;
- Que o processo de insolvência do autor foi também encerrado, por falta de bens (sentença de 7/3/2019, altura em que se iniciou incidente de exoneração do passivo restante;
- Que, por decisão de 10/10/2022, foi tornada definitiva decisão de exoneração do passivo restante do aqui autor (certidão apresentada a 18/1/2024);
- Que, conforme certidão emitida pelo Ordem dos Advogados, o domicílio profissional do réu, desde 4/2/2015 e até 2019, situou-se na --- (morada correspondente à que consta do documento de reconhecimento de dívida);
- Que foi junta cópia de informação apresentada pelo administrador da insolvência do autor (documento de janeiro de 2019) em que figura na lista dos reclamados um crédito do aqui réu/reconvinte, com o seguinte descritivo: - 4.148,00€ de capital por falta de pagamento de serviços jurídicos prestados pelo reclamante;
A conclusão que se tira desta análise não permite, manifestamente, dissipar dúvidas quanto à autenticidade da assinatura.
Permite estabelecer, adicionalmente, que o autor é uma pessoa que viveu, ou tem vivido, em situação de precaridade, tendo sido declarado insolvente; como permite estabelecer que, em data anterior à existência destes autos, o aqui reconvinte-recorrido reclamara crédito de honorários no processo de insolvência.
Tudo somado, entre a possibilidade, a plausibilidade e a efetiva prova, nada existe de concreto e palpável que possa levar a alterar o decidido pelo tribunal a quo quanto à inexistência de uma certeza quanto à autoria do documento e assinatura em discussão.
Será possível e, como referido, até mais plausível que tenha sido o réu a fazê-lo, mas uma certeza judicial não se pode afirmar.
Chegando a este ponto, a única questão que cumpre reavaliar nesta sede será a correta aplicação, pela Mm, juíza a quo, do ónus probatório operante.
A questão está bem expressa no acórdão da Relação de Coimbra de 24/10/2023 (Henrique Antunes, trc.pt)1, que indica a existência de um sistema gradativo de ilações.
Assim:
a) Primeira ilação: genuinidade da assinatura e, portanto, da autoria do documento; invocado um documento assinado, fica objecto de prova bastante que a assinatura é genuína: se a parte não impugnar a veracidade da assinatura, tem-se ela por demonstrada (art. 374.°, n.° 1, do Código Civil); se a parte impugnar a veracidade da assinatura ou então, não sendo a assinatura da própria parte, declarar que não sabe se é genuína (art. 374.º, n.º 1, do Código Civil), a genuinidade da assinatura terá de ser objecto de prova, recaindo o ónus da prova sobre o apresentante do documento (devendo o tribunal, na dúvida, tomar a assinatura como não genuína - art. 374.º, n.º 2, do Código Civil).
b) Segunda ilação: da genuinidade da assinatura, conclui-se a genuinidade do texto do documento; o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos descritos faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (art. 376.°, n.º 1, do Código Civil)
c) Terceira ilação: a demonstração da genuinidade do texto transforma o documento em confessório, isto é, os factos nele relatados consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (art.º 376.º, n.º 2, do Código Civil); isto não impede, no entanto, que o autor do documento possa demonstrar a inveracidade daqueles. O valor probatório do documento assinado pode ser ilidido através da prova de uma das seguintes circunstâncias: a demonstração da falsidade material do documento (art. 376.º, n.º 1, in fine, do Código Civil), i.e., a prova da alteração do seu conteúdo, antes ou depois da subscrição pelo signatário;(...)
A situação dos autos, como estabelecida a quo, considerando esta tipologia de ilações, é de considerar não estabelecida, pelo autor, logo a 1.ª ilação.
Ante a impugnação da assinatura, competiria ao apresentante do documento particular demonstrar probatoriamente a sua veracidade, sendo que, na dúvida, o tribunal teria que a declarar não autêntica (por falta de prova de um facto constitutivo do direito – a declaração, de mão própria, de uma dívida).
Caindo o estabelecimento da primeira ilação, ficam prejudicadas as subsequentes.
Nesta exata questão, ou, mais genericamente, nas questões de prova de autenticidade de assinatura em documentos particulares, a doutrina jurisprudencial tem sido uniformemente esta (vide, designadamente, acórdãos da Relação de Lisboa de 31 maio 2011, Tomé Gomes2, jurisprudencia.pt e 24/10/2023, Teresa Albuquerque, dgsi.pt e Relação de Coimbra de 13 abril 2021, Maria João Areias3, jurisprudencia.pt4).
Quer isto dizer, portanto, que o ónus de prova recaía, efetivamente, sobre o autor, que o não cumpriu.
Decorre desta avaliação que a decisão de facto se deve manter, não havendo razões sustentadas para a alterar.
É o que se decide. –
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II.III.II Recurso de direito:
Estabelecida a matéria de facto nos autos, verificando-se que a decisão de primeira instância foi consequente com a falta de prova de um reconhecimento de dívida, válida e eficazmente efetuada, nada há também a modificar em sede de decisão jurídica.
O sentido da decisão não merece dúvida ou sequer alguma menção particular, devendo acolher-se o decidido, incluindo, portanto, os fundamentos jurídicos apresentados na sentença.
É o que se decide, negando-se a apelação. --
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III. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 26-06-2025,
João Paulo Vasconcelos Raposo
Laurinda Gemas
Fernando Besteiro
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1. Contrato de mútuo. Documentos particulares. Assinatura. Arguição da falsidade do documento. Ónus da prova. Efeito retroativo da nulidade do contrato – Tribunal da Relação de Coimbra
2. jurisprudencia.pt/acordao/74131/pdf/
3. jurisprudencia.pt/acordao/199920/pdf/
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa