CASAL
BENS COMUNS
PARTILHA
COMPENSAÇÃO
AFECTAÇÃO DE DINHEIRO PRÓPRIO
DIREITO DE HABITAÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CONTRAPARTIDA
Sumário

1. Em caso de afectação de dinheiro próprio de um dos cônjuges à aquisição de um imóvel que constitui bem comum do casal (porque o valor afectado é inferior a metade do preço da aquisição), assiste ao referido cônjuge o direito a ser compensado por essa afectação aquando da partilha dos bens comuns do casal entretanto dissolvido por divórcio.
2. Para que surja o direito a tal compensação é necessário que se demonstre que tal dinheiro próprio foi efectivamente afectado à aquisição do bem comum, não sendo suficiente o seu depósito em contas bancárias à ordem e conjuntas do casal.
3. Se no âmbito do divórcio por mútuo consentimento os ex‑cônjuges acordaram na atribuição a um deles do direito a que respeita o art.º 1484º do Código Civil, de habitação da casa de morada de família (instalada em imóvel que é bem comum do casal), o titular deste direito fica tão só obrigado a efectuar as reparações ordinárias e assegurar as despesas de administração e os impostos e encargos, como se fosse usufrutuário, mas não a entregar qualquer contrapartida pela utilização exclusiva da casa de morada de família, como ficaria se a utilização fosse determinada nos termos do art.º 1793º do Código Civil.
4. Neste caso, e tendo o ex‑cônjuge titular do direito ao uso exclusivo da casa de morada de familiar passado a efectuar o pagamento integral das prestações do mútuo bancário contraído pelo casal para aquisição do imóvel, assiste-lhe um crédito sobre o outro ex‑cônjuge correspondente a metade do que assim pagou desde a data da produção dos efeitos patrimoniais do divórcio.(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 19/1/2017 F. requereu a abertura de inventário notarial para partilha dos bens comuns do ex-casal por si formado com M.
Tendo o requerente sido nomeado cabeça de casal e tendo apresentado relação de bens, foi a mesma objecto de reclamação apresentada pela requerida em 20/11/2017.
Após várias vicissitudes na tramitação do inventário notarial, em 3/10/2022 o requerente apresentou requerimento em que pediu a remessa do inventário ao tribunal de primeira instância, nos termos do nº 2 do art.º 12º da Lei 117/2019, de 13/9, no que foi acompanhado pela requerida, através de requerimento de 17/10/2022.
Tendo sido deferida a remessa, o requerente veio (por requerimento de 25/11/2022) impugnar:
• o despacho notarial 45/338/EMF, de 28/2/2019 (pontos 12º, 13º e 14º);
• o despacho notarial 51/338/EMF, de 23/5/2019 (ponto 4º).
Nos mesmos termos (do art.º 13º, nº 2, da Lei 117/2019, de 13/9), a requerida veio (por requerimento de 22/1/2022) impugnar:
• o despacho notarial 45/338/EMF, de 28/2/2019 (pontos 13º e 14º).
Recebidos os autos no tribunal recorrido, foi designada data para realização de audiência prévia, a qual teve lugar a 17/3/2023, com continuação a 17/4/2023, e na qual os interessados concordaram na adequação do processado, mas declarando o requerente, no que concerne à impugnação do despacho notarial de 23/5/2019, não prescindir da sua apreciação, mas considerar que o mesmo pudesse ser analisado posteriormente.
Com data de 27/9/2023 foi proferido despacho em que foram conhecidas as impugnações apresentadas por ambos os interessados relativamente ao despacho notarial de 28/2/2019, com o seguinte dispositivo:
Pelos fundamentos expostos:
4.1. Julgo parcialmente procedente a impugnação ao despacho do Notário quanto ao ponto n.º 13 do acto 45/338/EMF de 28.02.2019, com a rectificação determinada no Despacho n.º 48/338/EMF de 14/03/2019, revogando parcialmente esse despacho, concluindo que a interessada deve ser compensada pela quantia de 65.000,00 € e ainda pelos valores de i) € 18.000,00 (dezoito mil euros) de IMT, ii) € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros) de Imposto do Selo; e iii) € 11.500,00 (onze mil e quinhentos euros) de despesas com notário e registos, os quais pagou com dinheiro próprio para aquisição do imóvel que é bem comum.
O montante de € 100.000,00, cuja compensação deve operar nos termos do disposto no n.º 2 do referido artigo 1726º do Código Civil, deverá ser corrigido oportunamente, no momento da dissolução e partilha, com a devida correcção/actualização monetária, em conformidade com o artigo 551º do Código Civil.
4.2. Mantenho a decisão constante do ponto 14.º do Despacho 45/338/EMF de 28/02/2019, que decidiu indeferir totalmente a pretensão da Requerida quanto aos pontos 89 a 101 da Reclamação contra a Relação de Bens, na qual a Requerida invocou que desde a saída do Requerente da casa de morada de família, em 26/12/2011, sustenta sozinha todos os custos inerentes ao imóvel que é património comum dos ex‑cônjuges (designadamente prestação mensal com o financiamento bancário; quotas de condomínio; seguros; Imposto Municipal sobre Imóveis; Taxa de esgotos; e Taxa de protecção civil), de que pretendia ser ressarcida, os quais, à data de 20/11/2017, perfaziam a quantia global € 68.988,70, concluindo que a Requerida não tem direito a ser ressarcida de quaisquer custos, de carácter ordinário, inerentes ao imóvel que é património comum do casal (designadamente prestação mensal com o financiamento bancário; quotas de condomínio; seguros; Imposto Municipal sobre Imóveis; Taxa de esgotos; e Taxa de protecção civil).
*
Custas do incidente a cargo do cabeça de casal e reclamante, na proporção de ½ para cada, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s – vd. art.º 1130º/4 do CPC, aditado pela Lei n.º 117/2019, de 13.09 e tabela II do RCP”.
O requerente recorre deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A. O ponto 6. da matéria de facto não menciona a proveniência dos 37.500,00 € pagos a título de sinal, nem o modo do seu pagamento, e, por isso, deve ser substituído, em conformidade com os artigos 81 e 82 da Reclamação da Requerida (adiante: “Reclamação”) por três pontos (6., 6.-A e 6.-B) cuja redacção deverá ser a seguinte:
6. O pai da Requerida, Sr. Eng.º P., transferiu/depositou na conta da Requerida, entre 13/12/2007 e 20/12/2007, várias quantias que perfazem um montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), através dos seguintes movimentos bancários:
i) transferência efectuada no dia 13/12/2007, no montante de 4.500,00 (cf. doc. n.º 9 anexo à Reclamação);
ii) depósito efectuado no dia 14/12/2007, no montante de 6.000,00 (cf. doc. n.º 10 anexo à Reclamação);
iii) depósito efectuado no dia 17/12/2007, no montante de 8.000,00 (cf. doc. n.º 11 anexo à Reclamação);
iv) depósito efectuado no dia 20/12/2007, no montante de 6.500,00 (cf. doc. n.º 12 anexo à Reclamação).
6.-A. [Actual corpo do ponto 6. da matéria de facto].
6.-B. O sinal no montante de 37.500,00 foi pago da seguinte forma:
i) o montante de 25.000,00 foi pago através do cheque n.º ...990, datado de 18/01/2008, sacado da conta bancária n.º ...430, cujo único titular é a Requerida (cf. doc. n.º 7 anexo à Reclamação);
ii) o montante de 12.500,00 foi pago através do cheque n.º ...280, datado de 18/01/2008, sacado da conta bancária n.º ...930, conta conjunta da Requerida e do Requerente (cf. doc. n.º 8 anexo à Reclamação).
B. Em consequência, deve o ponto 8. da matéria de facto ser também alterado, passando a ter a redacção seguinte:
8. O pai da Requerida, Sr. Eng.º P., transferiu/depositou ainda na conta da Requerida e na conta conjunta do casal, entre 08/02/2008 e 13/11/2008, várias quantias que perfazem um montante de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), através dos seguintes movimentos bancários:
[Anteriores alíneas v) a xiii) do ponto 8. da matéria de facto, que deverão ser numeradas de i) a ix)]
C. O ponto 9. da matéria de facto afirma, contra a verdade, que os primeiros 25.000,00 € entregues pelo pai da Requerida foram transferidos para as contas conjuntas do casal; e omite sem fundamento os 26 factos concretos alegados pela Requerida no art. 84 da Reclamação (alíneas a) [ i) , ii) ] e b) [ i) a xxiv) ]); pelo que deve ser rectificado em conformidade.
D. Os valores indicados nos pontos 10., 11. e 12. da matéria de facto (18.000,00 €, 5.500,00 € e 11.500,00 €) não foram alegados pela Requerida na Reclamação; tendo-o sido apenas na Impugnação que deduziu contra as decisões do Notário (adiante: “Impugnação da Requerida”). Em consequência, devem estes pontos da matéria de facto ser integralmente excluídos, por terem sido acolhidos em violação do ónus de alegação (art. 5.º do CPC) e do princípio da concentração, e constituírem, por essa razão, uma inadmissível ampliação unilateral da matéria de facto, baseada numa ampliação não consentida da causa de pedir (arts. 264.º, 265.º n.º 1, do CPC) com (pretensos) factos essenciais não alegados oportunamente. Esta conclusão é suportada pelos seguintes acórdãos: (1) AcSTJ, 01/10/2015, proc. n.º 903/11.7TBFND.C1.S1, dgsi.pt; (2) AcSTJ, n.º 2834/18.0T8STR.E1.S1, dgsi.pt; (3) AcTRP, 10/01/2023, proc. 12/01/2015, proc. n.º 1990/13.9YYPRT-A.P1, CJ, 2015, Tomo I, págs. 162-165; (4) AcTRC, 15/10/2013, proc. n.º 2445/05.0TBLRA-C1, dgsi.pt; (5) AcTRG, 07/06/2023, proc. n.º 117/22.0T8VCT.G1, dgsi.pt)
E. Ao revogar parcialmente a decisão notarial, no sentido de incluir os valores indicados nos pontos 10., 11. e 12. na decisão sobre a matéria de facto, o douto Tribunal pôs em causa a dita decisão com base em “factos” essenciais não alegados perante o Digníssimo Notário, e que não o foram por responsabilidade exclusiva da Requerida, tratando a Impugnação da Requerida como uma espécie de recurso hierárquico, em violação do dever de aplicação subsidiária do regime da apelação (cf. art. 4.º n.º 2, al. c) do Regime do Inventário Notarial, por analogia; AcTRP, 13/10/2020, proc. n.º 969/17.6T8AMT.P2, dgsi.pt; AcTRE, 27/05/2021, proc. n.º 1468/20.4T8EVR.E1, dgsi.pt) – V., para mais pormenores, os arts. 12 a 36 das presentes Alegações.
F. Os valores indicados nos pontos 10., 11. e 12. da matéria de facto (18.000,00 €, 5.500,00 € e 11.500,00 €) não são verdadeiros, e foram “provados” por meio de presunção judicial simples a partir de documento, disfarçada de prova documental, numa situação em que existia prova documental com força probatória plena (facturas/guias) que não foi apresentada, em violação do disposto nos arts. 342.º n.º 1, 351.º e 393.º n.º 2 do CCiv – V., para mais pormenores, os arts. 37 a 50 das presentes Alegações.
G. Ainda que partindo do pressuposto de que “o montante de 100.000,00 foi apenas doado à Requerida, e não ao casal”, constituindo bem próprio da Requerida, isso não basta para a mesma ter direito a qualquer compensação nos termos do art. 1726.º do CCiv, porque falta dar resposta à questão de facto essencial quanto a esta matéria, a qual se circunscreve às seguintes perguntas:
1) Os 100.000,00 € entregues à Requerida foram mesmo afectados, parcial ou integralmente, à compra do imóvel comum do ex-casal?
2) Se sim, qual o modo como se deve imputar, nos gastos concretos com a compra do imóvel, os concretos montantes entregues?
V., para mais pormenores, os arts. 53 a 59 das presentes Alegações.
H. Relativamente aos primeiros 25.000,00 € entregues à Requerida, ficou provado que foram entregues na conta n.º ...430 do BCP em 4 prestações seguidas, num espaço de 8 dias (de 13 a 20 de Dezembro de 2007); e que 25.000,00 € saíram da mesma conta mesma conta por cheque, no dia 18/01/2008, para pagamento do sinal. Não ficou provado: o percurso do dinheiro doado entre o dia 20/12/2007 e o dia 18/01/2008, o que corresponde ao período do Natal e do Ano Novo, um dos períodos de mais avultadas despesas extraordinárias para a maioria das famílias. Esta situação cria um dúvida legítima: qual a prova de que os 25.000,00 não foram entregues para acorrer às despesas do período de Festas?
I. A dúvida existe porque a Requerida não apresentou aos autos os extractos da conta n.º ...430 para os meses de Dezembro de 2007 e Janeiro de 2008; pelo que, na falta de documentos que incumbia à Requerida apresentar (cf. art. 342.º do CCiv) para desfazer uma dúvida, a dita dúvida deveria ter sido resolvida contra Requerida (cf. art. 414.º do CPC). Em consequência, não resulta provado que os primeiros 25.000,00 € entregues à Requerida foram afectados à compra do imóvel comum do ex-casal. – V., para mais pormenores, os arts. 60 a 71 das presentes Alegações.
J. Quanto aos restantes 75.000,00 €, a afirmação da Requerida — segundo a qual, essencialmente, os 75.000,00 restantes terão sido afectados ao pagamento do remanescente do preço do imóvel e ao pagamento das despesas inerentes à mesma — NÃO PASSA DE CONCLUSÃO: não constitui facto, quer essencial, quer instrumental, quer complementar.
K. Nenhum facto adicional tendo sido alegado pela Requerida sobre esta matéria, aplicam-se a esta questão as considerações constantes das Conclusões D e E das presentes, bem como a Jurisprudência aí referida. – V., para mais pormenores, os arts. 72 a 92 das presentes Alegações.
L. Em relação aos montantes de 25.000,00 € e 75.000,00 €, o CC deverá necessariamente ser absolvido do pedido (e não da instância), em conformidade com a jurisprudência do TRP (Acórdão de 09/07/2014, proc. n.º 16/13.7TBMSF.P1, dgsi.pt).
M. A (suposta) obrigação de compensação do valor de 100.000,00 € nos termos do art. 1726.º do CCiv constitui uma obrigação pecuniária, pelo que não lhe é aplicável a actualização monetária prevista no art. 551,º do CCiv, por força do princípio nominalista – art. 550.º do CCiv., pelo que o Tribunal de 1.ª instância errou na solução desta questão.
N. O art. 2109.º n.º 3 do CCiv (referente ao instituto da colação), não pode ser aplicado ao caso por analogia, porque o caso em apreço está plenamente previsto no art. 550.º do CCiv – ou seja, não existe nenhuma lacuna carecida de integração por via de analogia (cf. art. 10.º n.º 1 do CCiv). – V., para mais pormenores, os arts. 110 a 118 das presentes Alegações.
Pela requerida foi apresentada alegação de resposta, aí pugnando pela improcedência do recurso.
A requerida recorre igualmente deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A. É objecto do presente recurso a Decisão, numerada como 4.2., constante do Despacho proferido em 27/09/2023 (ref.ª 426743727), que julgou improcedente a Impugnação apresentada pela Interessada em 22/11/2022 (ref.ª Citius 421285388) e consequentemente manteve “a decisão constante do ponto 14.º do Despacho 45/338/EMF de 28/02/2019, que decidiu indeferir totalmente a pretensão da Requerida quanto aos pontos 89 a 101 da Reclamação contra a Relação de Bens”, na parte em que o douto Tribunal a quo decidiu manter a decisão do Digníssimo Notário de não reconhecer à Interessada o direito a ser compensada, nos termos do nº1 do artigo 1697º do Código Civil, pelos valores que suportou sozinha, com dinheiro próprio, relativos às prestações mensais com o financiamento bancário/contrato de mútuo com hipoteca que foi contraído pelos ex-cônjuges para aquisição do imóvel que é bem comum e corresponde à Verba 29 do Activo da Relação de Bens.
B. O douto Tribunal a quo cometeu os erros de julgamento que são absolutamente cruciais para a decisão ora recorrida, e que inquinam irremediavelmente a mesma, ao seguir a tese falaciosa do Cabeça de Casal/Recorrido e considerar que “tudo indica que a vontade das partes foi a de fazer coincidir o valor atribuído ao uso da casa com o da prestação devida ao banco pela amortização do empréstimo hipotecário”, o que faz com base nas seguintes premissas essenciais: i) Por um lado que, citando, “A argumentação do cabeça de casal de que apenas celebrou esse acordo no convencimento de que a Requerida ficaria como única responsável pelo pagamento de todos os encargos periódicos é razoável”; ii) E por outro que, citando, é “também defensável a subsunção destes factos ao disposto no artigo 1489º do Código Civil, cabendo ao usuário do bem suportar todas as reparações, despesas e encargos anuais”.
C. Tais pressupostos da decisão recorrida constituem gritantes erros de julgamento, sendo que, muito pelo contrário, nada nos autos permite concluir, nem sequer de forma indiciária, que a vontade das partes foi a de que a Interessada/Recorrente suportasse integralmente com dinheiro próprio, sem direito a ser compensada nos termos legais, as prestações mensais do crédito hipotecário contraído por ambos os cônjuges para a aquisição do imóvel que é bem comum a partilhar.
D. Constitui um erro de julgamento, absolutamente inequívoco e crucial, em que incorreu o douto Tribunal a quo a consideração de que o pagamento das prestações mensais do crédito hipotecário é subsumível ao disposto no artigo 1489º do Código Civil, sendo como tal uma obrigação exclusiva da Interessada/Recorrente enquanto titular do direito de uso e habitação do imóvel que constitui a Verba 29 da Relação de Bens.
E. O empréstimo bancário para aquisição de habitação própria contraído por ambos os cônjuges importa a assumpção de uma dívida de reembolso das quantias mutuadas e respectivos encargos, juros e impostos, sendo uma dívida comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges, tal como resulta do artigo 1691º n.º 1 alínea a) do Código Civil, acrescendo que, como determina o artigo 1697º n.º 1 do Código Civil, quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal.
F. Sendo esse o caso dos presentes autos, tendo a Interessada/Recorrente e o Cabeça de Casal/Recorrido, na vigência do matrimónio, outorgado com a Caixa Geral de Depósitos o contrato de crédito hipotecário para a aquisição do imóvel que constitui a Verba 29 do Activo da Relação de Bens, conforme decorre dos factos provados 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 do Despacho recorrido.
G. A dívida de reembolso das quantias mutuadas e respectivos encargos, juros e impostos, para aquisição do imóvel que é bem comum a partilhar e correspondia à casa de morada de família, não se enquadra em nenhuma das obrigações inerentes ao direito de uso e à habitação nos termos do artigo 1489 nº 1 do Código Civil, não sendo possível concluir, por força da aplicação da referida disposição legal, que a obrigação de pagamento das prestações mensais correspondentes ao reembolso do crédito hipotecário acompanha a titularidade do direito de uso e habitação do imóvel que foi objecto de tal contrato de crédito bancário.
H. Corresponde a uma interpretação legal manifestamente errada do douto Tribunal a quo o entendimento de que se subsume ao disposto no artigo 1489º do Código Civil a obrigação de pagamento das prestações mensais correspondentes ao reembolso do crédito hipotecário contraído pela Interessada/Recorrente e pelo Cabeça de Casal/Recorrido junto da Caixa Geral de Depósitos para aquisição do imóvel que constitui a Verba 29 do Activo da Relação de Bens, não permitindo o disposto na referida disposição legal conduzir à conclusão, errada, de que com a atribuição do direito de uso e habitação à Interessada/Recorrente, em virtude do acordo sobre o destino da casa de morada de família nos termos do facto provado 13, o Cabeça de Casal/Recorrido ficou desobrigado da sua parte no cumprimento dessa obrigação contratual, cabendo consequentemente à Interessada/Recorrente suportar de forma integral tal dívida da responsabilidade de ambos os ex‑cônjuges relativa à aquisição do imóvel que é bem comum a partilhar sem que tivesse direito a ser compensada nos termos legalmente previstos.
I. Constitui um erro de julgamento, absolutamente crucial, da fundamentação da decisão ora recorrida o entendimento do douto Tribunal a quo de que “a argumentação do cabeça de casal de que apenas celebrou esse acordo no convencimento de que a Requerida ficaria como única responsável pelo pagamento de todos os encargos periódicos é razoável”.
J. Não resulta da factualidade dada como provada no Despacho recorrido nenhum facto de onde decorra, minimamente que seja, que a Interessada/Recorrente, como contrapartida do uso da casa de morada de família a título exclusivo juntamente com os filhos nos termos do acordo referido no facto provado 13, assumiria, sem direito a ser compensada, o pagamento integral das prestações mensais do crédito hipotecário contraído pelos ex-cônjuges para a aquisição do imóvel.
K. Não resulta da factualidade dada como provada no Despacho recorrido nenhum facto de onde decorra, minimamente que seja, que o Cabeça de Casal/Recorrido apenas celebrou esse acordo convencido de que a Interessada/Recorrente ficaria como única responsável pelo pagamento das prestações mensais do crédito hipotecário contraído pelos ex-cônjuges para a aquisição do imóvel, até porque é matéria que constitui uma invocação argumentativa do Cabeça de Casal/Recorrido, da qual só se lembrou muito recentemente em sede de Impugnação das decisões do Digníssimo Notário nos termos do artigo 13º nº2 da Lei nº117/2019, de 13 de Setembro, e sobre a qual não foi produzida qualquer tipo de prova.
L. O texto do acordo sobre o destino da casa de morada de família, referido no facto provado 13, não só não permite a interpretação de que a Interessada/Recorrente assumiria em exclusivo a obrigação de pagamento das prestações mensais do crédito hipotecário, como conduz necessariamente à conclusão inversa daquela a que chegou o douto Tribunal a quo e afasta a tese falaciosa do Cabeça de Casal/Recorrido de que “só assinou o acordo constitutivo do direito de habitação em apreço porque estava convencido que, no plano das relações internas (entre os ex-cônjuges), a Requerida ficaria única responsável pelo pagamento de todos os encargos/prestações periódicos (não extraordinários), sem direito a ser ressarcida, caso contrário teria pugnado, em sede de acção de divórcio, por uma solução do tipo previsto no art.º 1793.º do CCiv.”.
M. É na interpretação do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado aquando do divórcio, nos termos que constam do facto provado 13, que se tem de encontrar a resposta sobre a tutela para a pretensão da Interessada/Recorrente, a quem foi atribuído o uso exclusivo de tal habitação, de ser compensada por, conforme resulta dos factos provados 5, 6, 14, 15, 16 alínea a), e 17, ter arcado sozinha com as despesas mensais com a aquisição do imóvel em apreço que se mantem como bem comum a partilhar, ou seja, com as prestações do crédito hipotecário do imóvel correspondente à Verba 29 da Relação de Bens, desde a saída do Cabeça de Casal da casa de morada de família, em 26/12/2011, ou, seguindo o entendimento do dou douto Tribunal a quo, desde a data dos efeitos patrimoniais do divórcio, em 9/02/2012.
N. Resulta dos factos provados 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 13 do Despacho recorrido que a Interessada/Recorrente e o Cabeça de Casal/Recorrido, casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, na constância do casamento, contraíram um empréstimo bancário, garantido por hipoteca, junto da Caixa Geral de Depósitos, para aquisição do imóvel que constituía a casa de morada de família e corresponde actualmente à Verba 29 do Activo da Relação de Bens, tendo, no âmbito do divórcio convolado para mútuo consentimento, celebrado um acordo sobre a casa morada de família, devidamente homologado, através do qual o direito de uso e habitação da casa morada de família ficou atribuído à Interessada/Recorrente até à partilha, sem mais.
O. Tal como reconhece o próprio Tribunal a quo no Despacho recorrido, citando, “é certo que não ficou expresso, no acordo de atribuição da casa de morada de família, que competia à usufrutuária do bem pagar a respectiva prestação relativa ao crédito hipotecário”.
P. Nada no acordo sobre o destino da casa de morada de família permite concluir i) que existiu uma assumpção, expressa ou implícita, pela Interessada/Recorrente da obrigação de pagamento integral das prestações do crédito hipotecário sem direito a que viesse a ser compensada pelo património comum aquando da partilha, ou sequer que essa alegada obrigação servisse de compensação por esse uso e ocupação exclusiva pela mesma, ou ii) que o Cabeça de Casal/Recorrido apenas tenha celebrado esse acordo no convencimento de que a Interessada/Recorrente ficaria como única responsável pelo pagamento dessas prestações mensais referentes à aquisição do imóvel que é bem comum a partilhar.
Q. Tratando-se, como é o caso, de um negócio formal (acordo apresentado na acção de divórcio), se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, não pode valer em sentido diferente do declarado e do que aí não consta.
R. i) resultando do texto do acordo sobre o destino da casa de morada de família, sem mais, a atribuição do direito de uso e habitação à Interessada/Recorrente, juntamente com os seus filhos, até se proceder à partilha, nada mais tendo aí ficado expressa ou implicitamente convencionado pelas partes, nomeadamente quanto ao pagamento das prestações mensais de reembolso do crédito hipotecário (cfr. facto provado 13 do Despacho recorrido), ii) atendendo a que, conforme supra se disse, nas obrigações inerentes ao uso e habitação nos termos do artigo 1489º do Código Civil não se enquadra a obrigação de pagamento das prestações mensais correspondentes ao reembolso do crédito hipotecário contraído para aquisição do imóvel, e iii) considerando até que as partes inclusive estavam representadas por advogados e nada ficou plasmado no acordo firmado quanto a uma assumpção pela Interessada/Recorrente da obrigação de pagamento integral das prestações do crédito hipotecário, ou sequer qualquer compensação pelo uso e ocupação exclusiva pela mesma, não poderia o douto Tribunal a quo interpretar o texto do acordo nos termos em que o fez ao considerar “razoável” a “argumentação do cabeça de casal de que apenas celebrou esse acordo no convencimento de que a Requerida ficaria como única responsável pelo pagamento de todos os encargos periódicos”, incorrendo assim num manifesto erro de julgamento que inquina irremediavelmente a decisão recorrida.
S. Contrariamente àquilo que resulta do Despacho recorrido, não se poderia deixar de presumir que a vontade real das partes foi a que ficou plasmada no acordo, negócio formal, livremente alcançado entre os ex-cônjuges no âmbito do processo de divórcio, e que o Cabeça de Casal/Recorrido subscreveu, não merecendo qualquer tutela a tese, que não ficou minimamente comprovada, de que não pugnou “em sede de acção de divórcio, por uma solução do tipo previsto no art.º 1793.º do CCiv” por estar convencido de que a Interessada/Recorrente ficaria única responsável pelo pagamento das prestações mensais do crédito hipotecário.
T. Contrariamente à conclusão, errada, vertida pelo douto Tribunal a quo no Despacho recorrido, nada indica “que a vontade das partes foi a de fazer coincidir o valor atribuído ao uso da casa com o da prestação devida ao banco pela amortização do empréstimo hipotecário”, porquanto não foi produzida qualquer prova nos autos nesse sentido, e consequentemente não consta da factualidade provada um único facto que sequer indicie essa suposta vontade das partes, sendo tal conclusão inclusivamente contrariada pelo teor do acordo que alcançaram sobre a atribuição da casa de morada de família nos termos que constam do facto provado 13.
U. E, consequentemente, face à matéria de facto provada nos autos nos termos que constam do Despacho recorrido, e nos termos conjugados do artigo 1691º n.º 1 alínea a) e do artigo 1697º n.º 1 ambos do Código Civil, não poderia o douto Tribunal a quo deixar de julgar procedente a pretensão da Interessada/Recorrente de que lhe seja reconhecido o crédito, a compensar pelo património comum no momento da partilha, correspondente a metade do valor que tem suportado sozinha referente às prestações mensais do contrato de mútuo com hipoteca que corresponde a uma dívida comum do extinto casal.
V. O Cabeça de Casal/Recorrido nunca peticionou nos presentes autos uma compensação pelo facto de ter sido atribuído exclusivamente à Interessada/Recorrente, por acordo entre ambos, o direito de uso e habitação sobre o imóvel que constituía a casa morada de família.
W. Constitui um erro de julgamento do douto Tribunal a quo considerar “justo e equilibrado” compensar o Cabeça de Casal/Recorrido através da imputação à Interessada/Recorrente da obrigação de pagamento integral da dívida comum dos ex-cônjuges referente ao reembolso do crédito hipotecário.
Pelo requerente foi apresentada alegação de resposta, aí pugnando pela improcedência do recurso.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas em cada um dos dois recursos, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com:
• A alteração da matéria de facto;
• O reconhecimento do crédito da requerida decorrente da utilização de dinheiro próprio para a aquisição de bem comum;
• O reconhecimento do crédito da requerida decorrente da satisfação de uma dívida comum com dinheiro próprio;
• A aplicação do disposto no art.º 551º do Código Civil.
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Na decisão recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (já está considerada a rectificação de erros materiais ordenada pelo despacho de 4/12/2024 e corrigem-se as referências processuais):
1. Em 4 de Setembro de 2004, a requerida e o requerente casaram um com o outro, sem celebrarem convenção antenupcial e, por isso, no regime de comunhão de bens adquiridos.
2. Em 09/02/2012, deu entrada no Tribunal de Família de Loures, a acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, convertido em divórcio por mútuo consentimento, a qual correu termos na Instância Central da Comarca de Lisboa Norte, 1ª secção de Família e Menores – J3, com o processo nº xxx/12.7TMLSB, no âmbito do qual, por sentença proferida em 07/05/2014, e transitada em julgado em 15/09/2014, foi decretado o divórcio da requerida e do requerente.
3. Na pendência do casamento, a 18 de Janeiro de 2008, a requerida e o requerente celebraram o contrato promessa de compra e venda da fracção correspondente ao bem imóvel relacionado como verba 29 do activo na relação de bens apresentada pelo requerente.
4. A 17 de Novembro de 2008, a requerida e o requerente celebraram escritura pública de compra e venda relativamente ao referido imóvel.
5. A requerida e o requerente compraram o bem imóvel identificado na verba 29 da relação de bens pelo preço de € 375.000,00.
6. A 18/01/2008 a requerida e o requerente celebraram contrato promessa de compra e venda, pelo qual foi acordado o preço de aquisição no montante de € 375.000,00, tendo na data de outorga daquele contrato os promitentes compradores pago a título de sinal o montante de € 37.500,00.
7. Requereram um empréstimo no montante de € 310.000,00 para pagamento do preço do imóvel à “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”.
8. O pai da requerida transferiu/depositou na conta da requerida e na conta conjunta do casal várias quantias que perfazem o montante global de € 100.000,00, através dos seguintes depósitos bancários:
i. transferência efectuada no dia 13/12/2007, no montante de € 4.500,00;
ii. depósito efectuado no dia 14/12/2007, no montante de € 6.000,00;
iii) depósito efectuado no dia 17/12/2007, no montante de € 8.000,00;
iv) depósito efectuado no dia 20/12/2007, no montante de € 6.500,00;
v) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 08/02/2008, no montante de € 10.000,00;
vi) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 24/04/2008, no montante de € 10.000,00;
vii) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 30/04/2008, no montante de € 10.000,00;
viii) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 09/07/2008, no montante de € 8.350,00;
ix) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 10/07/2008, no montante de € 8.350,00;
x) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 24/10/2008, no montante de € 8.000,00;
xi) depósito efectuado na conta da requerida (a referência à “Requerente” que consta da decisão recorrida trata-se de um lapso manifesto, que aqui se deixa desde já rectificado) no dia 29/10/2008, no montante de € 9.000,00;
xii) depósito efectuado na conta conjunta do casal no dia 12/11/2008, no montante de € 5.000,00;
xiii) transferência efectuada na conta conjunta do casal no dia 13/11/2008, no montante de € 6.300,00.
9. Todos os montantes depositados pelo pai da requerida na sua conta bancária (depósitos identificados no ponto anterior de i) a xiii)) foram de seguida transferidos para as contas conjuntas do casal na CGD – conta n.º xxxxxxxxx6730 e conta n.º xxxxxxxxx3930. (rectificado, nos termos adiante decididos)
10. Os ex-cônjuges, quando compraram o bem imóvel identificado na verba 1 da relação de bens, liquidaram o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis número 2008/313789, no valor de € 18.000,00, em 11/11/2008. apresentado no Serviço de Finanças de Loures-3, Moscavide em 11/11/2018 e respectivo comprovativo de cobrança número ...203. (eliminado, nos termos adiante decididos)
11. E liquidaram o valor do imposto do selo, num total de € 5.500,00. (eliminado, nos termos adiante decididos)
12. E tiveram despesas com notário e registos num total de € 11.500,00. (eliminado, nos termos adiante decididos)
13. Com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio do casal, a 15.09.2014, ficou acordado entre ambos, que a requerida ficaria com o direito de uso e habitação da casa de morada de família, juntamente com os filhos, até se proceder à partilha, conforme resulta do acordo quanto à casa de morada de família celebrado aquando do divórcio por mútuo consentimento.
14. Desde a data da saída do requerente da casa de morada de família, em 26/12/2011, que tanto o imóvel como o seu recheio se encontram na posse da requerida.
15. Desde a referida data a requerida sustenta todos os custos inerentes ao imóvel, património comum dos ex-cônjuges, sem qualquer ajuda do requerente.
16. Custos esses que correspondem a:
a) Prestação mensal com o financiamento bancário;
b) Prestação de condomínio;
c) Seguros;
d) Imposto municipal sobre imóveis (IMI);
e) Taxa de esgotos;
f) Taxa de protecção civil.
17. Em 26/12/2011 a requerida começou por pagar a título de prestação mensal com o financiamento bancário o montante de € 926,73, (respeitante à prestação do mês de Janeiro de 2012); o montante de tal prestação mensal tem vindo a baixar, ascendendo na presente data a € 670,00, tendo até à data de 20/11/2017 a requerida despendido o montante global € 51.580,05 (cinquenta e um mil quinhentos e oitenta euros e cinco cêntimos).
18. A prestação de condomínio tem na presente data o valor de € 109,82, tendo desde 26/12/2011 até à data de 20/11/2017 a requerida despendido o montante global € 7.797,22 (sete mil setecentos e noventa e sete euros e vinte e dois cêntimos).
19. A título de seguro da casa de morada de família paga a requerida o valor mensal de € 70,93, tendo desde 26/12/2011 até à data de 20/11/2017 a requerida despendido o montante global € 3.766,50 (três mil setecentos e sessenta e seis euros e cinquenta cêntimos).
20. A título de taxa de esgotos paga a requerida o valor médio mensal de € 10,43, tendo desde 26/12/2011 até à data de 20/11/2017 a requerida despendido o montante global € 500,76.
21. A título de taxa de protecção civil paga a requerida o valor médio mensal de € 10,43, o que corresponde a um valor anual de € 125,19, tendo até à data de 20/11/2017 a requerida despendido o montante global € 250,38.
22. A título de IMI pagou a requerida, desde 26/12/2011 até à data de 20/11/2017, o montante global € 5.594,55.
23. Os custos supra elencados nos pontos antecedentes perfazem a quantia global € 68.988,70 (sessenta e oito mil novecentos e oitenta e oito euros e setenta cêntimos), que a requerida custeou sozinha, desde o dia 26/12/2011 até à data de 20/11/2017.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721), quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, resulta das conclusões da alegação de recurso do requerente que este visa o aditamento de dois novos pontos ao elenco de factos provados (que identifica como 6 e 6-B, passando o ponto 6 a 6-A), a par da alteração dos pontos 8 e 9 e da eliminação dos pontos 10 a 12.
Ou seja, no que respeita à dimensão primária ou fundamental do ónus da especificação, correspondente à delimitação do objecto da impugnação da decisão de facto, pode-se afirmar que o requerente deu cumprimento ao mesmo, já que delimitou a impugnação com relação aos pontos referidos, concretizando igualmente as alterações pretendidas. Pelo que há que conhecer da mesma impugnação, nos termos assim delimitados.
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Relativamente aos pontos 6, 8 e 9, referem-se os mesmos à relação existente entre a entrega pelo pai da requerida da quantia de € 100.000,00 e a utilização desse montante para o pagamento do preço do imóvel adquirido pelo casal (na parte em que não foi pago com recurso ao empréstimo bancário).
O requerente não coloca em crise a existência de cada uma das entregas elencadas no ponto 8 (as quais perfazem os referidos € 100.000,00). Do mesmo modo, não coloca em causa o destino de cada um dos montantes parcelares entregues (a conta da requerida e a conta conjunta do casal). Aliás, por isso mesmo haverá que rectificar o teor do ponto 9, quando aí se refere que todos os montantes foram depositados em conta bancária da requerida, assim se suprindo a contradição entre tal referencia conclusiva e o que resulta das duas últimas alíneas do ponto 8).
Todavia, o requerente entende que há que individualizar as quatro primeiras entregas identificadas no ponto 8 (que perfazem € 25.000,00) das restantes aí identificadas, do mesmo modo havendo que concretizar como foi pago o sinal de € 37.500,00, através da identificação das duas contas bancárias onde foram sacados os cheques respectivos, tudo nos termos alegados pela requerida e que não foi objecto de impugnação pelo requerente.
Recuperando o teor da reclamação apresentada pela requerida (requerimento de 20/11/2017), aí alegou a mesma que o seu pai lhe fez “uma doação, por conta da sua legítima, no montante de € 100.000,00”, para o casal poder adquirir o referido imóvel (ponto 79).
E depois de assim alegar genericamente essa “doação”, concretiza os valores parcelarmente entregues que perfazem os referidos € 100.000,00, mais concretizando o “caminho” de cada um dos valores parcelares em questão.
Na resposta à reclamação (requerimento de 13/12/2017) o requerente confirma a existência dos referidos € 100.000,00 entregues pelo pai da requerida, bem como a descrição do “caminho” bancário que levou cada um dos valores parcelares que compõem tal quantia. Mas qualifica a entrega dos referidos € 100.000,00 como “uma doação do Pai da Requerida ao casal” (ponto 32º).
Pelo que, na economia da reclamação da requerida, o que está em causa não é apurar o percurso de cada um dos valores parcelares que compõem os referidos € 100.000,00, desde que saíram da detenção do pai da requerida, mas saber a quem é que se destinavam todas e cada uma das entregas realizadas pelo mesmo (se apenas à requerida ou ao casal e, designadamente, se se destinaram ao pagamento do preço da aquisição do imóvel).
Nessa medida, a redacção dos pontos 6, 8 e 9, apesar de não se mostrar literalmente idêntica à factualidade alegada pela requerida, apresenta-se como correspondendo à factualidade que se revela essencial para o conhecimento da reclamação apresentada, nesta parte. E as pretendidas correcções/aditamentos correspondem tão só aos instrumentos factuais de onde se retira tal factualidade essencial. Pelo que, face ao que acima ficou exposto, não carece essa factualidade instrumental de figurar no elenco dos factos provados, como pretendido pelo requerente.
O que equivale a concluir que, nesta parte, improcedem as conclusões do recurso do requerente, não havendo que alterar o elenco de factos provados, salvo quanto à rectificação da redacção do ponto 9, nos seguintes termos:
9. Todos os montantes depositados pelo pai da requerida (depósitos identificados no ponto anterior de i) a xiii)) foram de seguida transferidos para as contas conjuntas do casal na CGD – conta n.º xxxxxxxxx6730 e conta n.º xxxxxxxxx3930.
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Relativamente aos pontos 10 a 12, sustenta o requerente que os valores aí identificados (€ 18.000,00, € 5.500,00 e € 11.500,00) não foram alegados pela requerida na reclamação, pelo que não podiam ser considerados pelo tribunal recorrido, já que se trata de factualidade essencial e que, por isso, carecia de alegação, à face do disposto no art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Para além disso o requerente sustenta ainda que se trata de factualidade falsa e que só podia ser demonstrada por meio de documento, uma vez que estão em causa pagamentos de valores sujeitos a emissão de factura/guia de pagamento.
Depois de alegar no ponto 79 da sua reclamação (requerimento de 20/11/2017) que o seu pai lhe fez a doação de € 100.000,00 para poder adquirir o imóvel, concretizando em seguida que desse montante € 25.000,00 foram utilizados para pagar o sinal (pontos 81 i) e 82), a requerida alega no ponto 83 que o “remanescente do valor de aquisição do imóvel e as despesas inerentes à mesma (IMT, IS e despesas com notário e registos), foram pagos através do financiamento obtido junto da CGD no montante de € 310.000,00” e bem ainda através dos remanescentes € 75.000,00.
É certo que a requerida não concretizou quais os valores das despesas suportadas com IMT, imposto de selo e despesas com notário e registos. Mas tendo alegado que a totalidade dos € 100.000,00 doados foi empregue na operação respeitante à aquisição do imóvel, e sabendo-se que além disso também o valor mutuado (€ 310.000,00) foi afectado a tal operação, daí resulta a alegação de terem sido despendidos € 410.000,00 com a aquisição do imóvel. Pelo que, tendo o preço pago sido de € 375.000,00, resulta implícito da alegação da requerida que os valores das despesas suportadas com IMT, imposto de selo e despesas com notário e registos ascende a € 35.000,00 (diferença entre € 410.000,00 e € 375.000,00).
E se é certo que tal alegação do valor assim despendido se apresenta como genérica, a aquisição processual dos factos concretizadores desse facto genericamente alegado pode resultar da actividade instrutória, como resulta da al. b) do nº 2 do art.º 5º do Código de Processo Civil.
Ou seja, nesta parte não assiste razão ao requerente quando pretende que o tribunal não podia dar como provados os concretos valores de cada um das despesas em questão, na medida em que foi alegado pela requerida, ainda que de forma genérica, que tais despesas foram realizadas e que o valor total das mesmas ascenderia a € 35.000,00, assim podendo ser concretizados os valores parcelares de cada uma das despesas, na medida em que essa concretização resultasse da prova produzida sobre esta questão fáctica genérica.
Nesta medida, o tribunal recorrido motivou a concretização dos valores em questão, nos termos que ficaram a constar dos pontos 10 a 12, pela seguinte forma:
Estes factos resultam da admissão por parte do cabeça de casal de que o pai da Reclamante doou a quantia de € 100,000,00, conforme o artigo 574º nº 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi do artigo 82º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, e dos documentos nsº 5, 6 e 23 juntos com a Reclamação contra a Relação de Bens, os quais não foram objecto de impugnação”.
Quanto ao referido documento 5, corresponde à cópia do contrato promessa de compra e venda outorgado em 18/1/2008 e respectivos anexos (licença de utilização, plantas do imóvel e mapa de acabamentos), sem que do seu conteúdo e sentido se possa retirar que o IMT ascendeu a € 18.000,00, que o imposto de selo ascendeu a € 5.500,00, e que as despesas com notário e registos ascenderam a € 11.500,00.
Quanto ao referido documento 6, corresponde à certidão da escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada em 17/11/2008, daí se retirando o preço da compra e venda (€ 375.000,00), o valor mutuado (€ 310.000,00) e a certificação do pagamento de IMT em 11/11/2008 (mas sem menção ao valor concretamente pago), e retirando-se ainda que foi paga a quantia de € 3.000,00 pela realização do acto notarial em questão, acrescida de € 25,00 de imposto de selo, para além do valor da certidão (€ 47,89).
Quanto ao referido documento 23, corresponde a um extracto da conta à ordem ...730 da Caixa Geral de Depósitos (trata-se da primeira conta conjunta do casal que está identificada no ponto 9 dos factos provados), daí resultando um movimento com data de 11/11/2008, inscrito a débito com a descrição “IMT xxxxxxxxx3930”. Todavia, este conjunto de algarismos corresponde à identificação da outra conta conjunta do casal (aquela que está identificada em segundo lugar no ponto 9 dos factos provados). E no documento 25 junto com a reclamação da requerida (que corresponde a um extracto da referida conta à ordem xxxxxxxxx3930 da Caixa Geral de Depósitos) resulta um movimento a crédito com a mesma data de 11/11/2008, no mesmo valor de € 18.000,00 e com a descrição “IMT”.
Ou seja, a partir dos documentos em questão não é possível afirmar que o IMT pago ao Estado foi no valor de € 18.000,00, do mesmo modo que não é possível afirmar que o imposto de selo pago ao Estado foi no montante de € 5.500,00, e nem tão pouco é possível afirmar que as despesas com notário e registos ascenderam ao total de € 11.500,00.
Do mesmo modo, a partir do conteúdo dos restantes documentos juntos pela requerida também não se alcança tal factualidade relativa aos pagamentos em questão (desde logo porque não se mostram juntas cópias das liquidações e cobrança dos impostos, das contas das despesas notariais e registrais, ou mesmo dos recibos comprovativos do seu pagamento).
Ou seja, inexiste prova bastante a partir de onde resultem os pagamentos parcelares que perfazem a referida quantia de € 35.000,00. E como só nessa circunstância seria possível adquirir para o elenco de factos provados a factualidade concretizadora respectiva, torna-se forçoso concluir pela procedência das conclusões do recurso do requerente, nesta parte, com a eliminação dos pontos 10 a 12 do elenco de factos provados, por não se tratar de factualidade que resulte da instrução da reclamação apesentada pela requerida.
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Em suma, e no que respeita à impugnação da decisão de facto há lugar à rectificação do ponto 9 e à eliminação dos pontos 10 a 12, mantendo-se no mais o elenco dos factos provados que consta da decisão recorrida.
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Da utilização de dinheiro próprio para a aquisição de bem comum
O requerente não coloca em que crise que a entrega da quantia de € 100.000,00 pelo pai da requerida correspondeu a uma doação. E a benefício da argumentação apresentada aceita igualmente que tal doação foi feita apenas à requerida e não ao (ex‑)casal.
Ou seja, apresenta-se como pacífico o entendimento (constante da decisão recorrida) que a quantia em questão corresponde a um bem próprio da requerida, tendo presente o regime de bens (comunhão de adquiridos) do dissolvido casamento.
Por outro lado, e tendo presente o disposto no nº 1 do art.º 1726º do Código Civil sempre se há-de considerar que o imóvel adquirido em 17/11/2008 passou a integrar o património conjugal, já que o valor máximo que poderia ter sido afectado a tal aquisição era o referido montante de € 100.000,00, inferior a metade do preço da aquisição (€ 375.000,00).
Ou seja, e caso se deva afirmar a afectação do dinheiro da requerida à referida aquisição do imóvel, decorre do nº 2 do art.º 1726º do Código Civil o direito da mesma a ser compensada por essa afectação.
Com efeito, e como refere expressamente o requerente na sua alegação de recurso “é pacífico nestes autos que o único fundamento para compensação, relativamente à referida quantia, seria o facto de esta ter sido empregue ou afectada à compra do imóvel comum do casal, nos termos do art. 1726.º do CCiv”.
Todavia, o requerente entende que essa afectação (total ou parcial) não está demonstrada, assim sendo de afastar a referida compensação.
Na decisão recorrida afirma-se que a requerida deve ser compensada pela referida quantia de € 100.000,00, porque parte do preço do imóvel adquirido (€ 65.000,00) e as despesas com IMT, imposto de selo e encargos com notário e registos (€ 35.000,00) foram pagos com recurso a tal quantia.
Sucede que da factualidade apurada não se consegue retirar tal conclusão.
É certo que está demonstrado (ponto 9) que a totalidade das verbas identificadas no ponto 8 (e que correspondem aos referidos € 100.000,00) foi transferida para as contas bancárias conjuntas do casal. Mas não está demonstrado que essas contas bancárias conjuntas do casal apenas serviram para efectuar o pagamento do preço do imóvel e das despesas referidas, sendo por isso que foram providas com os referidos € 100.000,00. E também inexiste qualquer factualidade a partir de onde se possa concluir pela referida relação entre a entrega dos referidos € 100.000,00 pelo pai da requerida e a utilização desse montante para o pagamento do preço do imóvel (e das despesas associadas à formalização do negócio). Designadamente, e não obstante a requerida ter alegado (ponto 79 da reclamação) que a doação foi feita pelo seu pai “para poder adquirir tal bem imóvel”, essa factualidade não consta do elenco de factos provados. E, do mesmo modo, também não se consegue retirar da factualidade apurada que a doação (de € 100.000,00) teve em vista “cobrir” a diferença entre o valor mutuado e o preço do imóvel.
Aliás, e como bem nota o requerente, a forma escalonada como os referidos € 100.000,00 foram entregues, associada ao lapso temporal verificado (a primeira entrega, de € 4.500,00, ocorreu em 13/12/2007, e a décima terceira e última entrega, de € 6.300,00, ocorreu em 13/11/2008), associada à circunstância de todos os montantes parcelares terem sido transferidos para as duas contas à ordem do (ex‑)casal, indicia que o destino dos mesmos montantes poderá ter sido a satisfação das necessidades quotidianas do agregado familiar.
Ou, dito de forma mais simples, a partir da singeleza da factualidade apurada (porque assim foi alegada pela requerida) nada permitir concluir que os montantes parcelares entregues pelo pai da requerida e que foram sendo transferidos para as contas conjuntas do (ex‑)casal ficaram aí depositados e foram destinados unicamente ao pagamento (parcial) do preço do imóvel, a par do pagamento das despesas associadas (IMT, imposto de selo e despesas com notário e registos).
O que equivale a afirmar, na procedência das conclusões do recurso do requerente nesta parte, que não há lugar à compensação pretendida pela requerida nos termos do nº 2 do art.º 1726º do Código Civil, quanto ao valor de € 100.000,00, assim se impondo a revogação do ponto 4.1 do dispositivo da decisão recorrida, e mais ficando prejudicado o conhecimento da última questão suscitada (respeitante à actualização monetária do valor compensatório em questão).
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Da satisfação de dívida comum com dinheiro próprio
Tendo a requerida reclamado (para além do mais que não releva nesta parte) a compensação de metade do que despendeu com o reembolso do mútuo contraído para aquisição do imóvel, na decisão recorrida ficou assim afirmada a inexistência desse direito de crédito:
No circunstancialismo fáctico apurado, sendo a casa de morada de família um bem comum, e sendo atribuído à reclamante o direito de uso e habitação da casa até à data da partilha, esse uso exclusivo pode ser objecto de compensação ao outro co‑proprietário, o aqui cabeça de casal, que teve de proceder a um pagamento pela utilização de outra casa, a qual teve necessidade de arranjar. Assim, em abstracto o aqui CC poderá ter direito a ser ressarcido, por recurso aos meios comuns, nem que seja pelo instituto do enriquecimento sem causa, o qual reveste natureza subsidiária, caso não veja a sua posição acautelada aquando da partilha dos bens comuns do casal- vd. sobre este tema Ac. Rel. Lisboa de 11-02-2021, processo 1787/13.6TBVFX‑A.l1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, o qual teve por objecto a apreciação do montante da compensação devida pela atribuição à Apelada do uso exclusivo da casa de morada de família até à partilha ou venda deste imóvel. Não obstante nesse caso as partes tivessem convencionado que competia à cônjuge que ficou com o uso exclusivo pagar a respectiva prestação relativa ao crédito hipotecário, tudo indicando que a vontade das partes foi a de fazer coincidir o valor atribuído ao uso da casa com o da prestação devida ao banco pela amortização do empréstimo hipotecário, ainda assim o tribunal decidiu “que aquela fica obrigada a pagar (até à partilha) uma compensação monetária, no valor de 264 €, pelo uso exclusivo do imóvel, continuando a suportar na íntegra a prestação bancária (incluindo os 236 € que eram da responsabilidade do Requerente), não tendo sido considerado nenhum acréscimo de valor relativo ao recheio”.
No caso em apreço, é certo que não ficou expresso, no acordo de atribuição da casa de morada de família, que competia à usufrutuária do bem pagar a respectiva prestação relativa ao crédito hipotecário, e bem assim todas as despesas de manutenção do imóvel, impostos, seguro e condomínio, mas tudo indica que a vontade das partes foi a de fazer coincidir o valor atribuído ao uso da casa com o da prestação devida ao banco pela amortização do empréstimo hipotecário.
A argumentação do cabeça de casal de que apenas celebrou esse acordo no convencimento de que a Requerida ficaria como única responsável pelo pagamento de todos os encargos periódicos é razoável, sendo também defensável a subsunção destes factos ao disposto no artigo 1489º do Código Civil, cabendo ao usuário do bem suportar todas as reparações, despesas e encargos anuais. Nestes autos não foi feita qualquer prova do valor locatício daquele imóvel, não invocando a Requerida que as rendas que teria a suportar, na parte que lhe corresponderia, na proporção de metade, seria em montante inferior ao valor que tem suportado com a prestação bancária, em ordem a demonstrar que a atribuição da casa a deixou prejudicada, do ponto de vista financeiro.
(…)
Ocupando a ex-cônjuge uma habitação que é comum sem qualquer pagamento de contrapartida ao CC seria de admitir que este tivesse a possibilidade da reclamação de um crédito, sobre o acervo patrimonial na partilha - vd. neste sentido Ac. Rel. Guimarães de 15.11.2018, proc. 1448/17.7T8BRG.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, não tendo os cônjuges definido uma compensação a pagar pelo cônjuge que fica com o direito de utilizar provisoriamente a casa de morada de família ao outro cônjuge, e sendo a casa um bem comum de ambos os cônjuges, é justo e equilibrado que a Requerida fique a única responsável pelo pagamento de todos os encargos e prestações periódicas (não extraordinários), sem direito a ser ressarcida, como compensação ao outro da privação do uso e fruição de um bem que também lhe pertence”.
Contrapõe a requerida que está em causa uma dívida da responsabilidade de ambos os (ex-)cônjuges e que foi satisfeita apenas pela requerida, pelo que à face do nº 1 do art.º 1697º do Código Civil tornou-se a mesma credora do requerente por metade dos valores entregues à entidade bancária mutuante. Mais sustenta que o disposto no nº 1 do art.º 1489º do Código Civil não abrange a dívida em causa, e bem ainda que não se consegue retirar do acordo relativo à utilização da casa de morada de família (instalada no imóvel em questão) que a contrapartida de tal utilização se expressa no pagamento integral das prestações do mútuo.
Na decisão recorrida não se coloca em crise que ambos os (ex‑)cônjuges são devedores das prestações do mútuo contraído para aquisição do imóvel, tendo presente o disposto no art.º 1691º, nº 1, al. a), do Código Civil, e desde logo porque ambos outorgaram o contrato respectivo, na pendência do casamento, obrigando-se solidariamente perante a instituição bancária mutuante à restituição do capital mutuado, acrescido de juros e demais acessórios.
Assim, e tendo presente o disposto no nº 1 do art.º 1697º do Código Civil, resulta evidente que o pagamento dessas prestações com dinheiro próprio de qualquer um deles faz nascer o correspondente direito de crédito sobre o outro pelo que haja satisfeito, para além do que lhe competia, mas só sendo exigível tal crédito com a partilha do património conjugal.
Ou seja, estando demonstrado que desde a saída do requerente da casa de morada de família é a requerida quem suporta integralmente a prestação mensal em questão, deve-se afirmar o crédito da mesma sobre o requerente, correspondente a metade do que pagou, a esse título.
Todavia, o tribunal recorrido entendeu (ainda que não o tenha expressado) que tal crédito se tem por compensado com o crédito do requerente emergente da utilização exclusiva da casa de morada de família por parte da requerida.
Sucede que no acordo respectivo nada ficou dito relativamente ao pagamento de qualquer contrapartida pecuniária pela utilização da casa de morada de família.
Não obstante, isso não impediu o tribunal recorrido de entender que foi essa a vontade das partes que esteve na base do referido acordo, tendo presente que a requerida nada alegou no sentido de ficar prejudicada, do ponto de vista financeiro, ao ter de suportar em exclusivo o pagamento das prestações bancárias, como contrapartida da utilização da casa de morada de família.
Torna-se evidente que da factualidade apurada não se pode retirar a vontade das partes no sentido da utilização exclusiva da casa de morada de família pela requerida ter por contrapartida a satisfação integral das prestações do mútuo bancário por parte desta.
É certo que resulta do nº 1 do art.º 1793º do Código Civil que o tribunal pode “dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”, ficando tal arrendamento sujeito às regras do arrendamento para habitação e podendo o tribunal definir as condições do contrato, depois de ouvidos os cônjuges (nº 2). Ou seja, estando em causa a celebração de um contrato de arrendamento, é pressuposto do mesmo a fixação de uma contrapartida pecuniária (a renda), a pagar pelo cônjuge a quem for atribuído o uso exclusivo da casa de morada de família.
Mas no caso concreto dos autos aquilo que resulta da vontade das partes (homologada judicialmente) não foi a atribuição da utilização exclusiva da casa de morada de família instalada em bem comum do (ex-)casal através do seu arrendamento à requerida, mas antes a atribuição à mesma do direito ao uso e habitação do imóvel em questão, até se proceder à partilha.
O direito de habitação de casa de morada está previsto no art.º 1484º do Código Civil, consistindo na faculdade do titular do direito de se servir da mesma, na medida das suas necessidades e da sua família.
E de acordo com o art.º 1485º do Código Civil tal direito pode ser constituído por contrato, mais resultando do art.º 1489º do Código Civil que apenas constitui obrigação do titular do direito de habitação efectuar as reparações ordinárias e assegurar as despesas de administração e os impostos e encargos, como se fosse usufrutuário.
Ou seja, não se verificando qualquer invalidade na constituição, por acordo entre as partes, do direito de habitação da casa de morada de família a favor da requerida, daí não decorre ter a mesma ficado obrigada à entrega de uma contrapartida ao requerente, por essa habitação. É que, a existir tal contrapartida, então não faria sentido as partes acordarem “a favor da A. o direito de uso e habitação da casa de morada de família, bem comum dos cônjuges” (é nestes termos que ficou reduzida a escrito a vontade das partes no acordo referido no ponto 13 dos factos provados, como se constata do teor do documento 31 junto pela requerida com a sua reclamação), antes devendo constar desse acordo (e da subsequente homologação judicial) que a casa de morada de família era dada de arrendamento à requerida, nos termos e para os efeitos do art.º 1793º do Código Civil.
Ou seja, e recorrendo ao disposto no art.º 239º do Código Civil, é de afirmar que a declaração de vontade concordante das partes não pode ser interpretada como significando que a requerida ficava obrigada a uma contrapartida pela utilização da casa de morada de família, porque tal significado não encontra qualquer correspondência no texto do acordo.
Assim, e como não se pode falar do direito do requerente a qualquer contrapartida pela referida utilização da casa de morada de família, o crédito da requerida que emerge do nº 1 do art.º 1697º do Código Civil não pode ser objecto de compensação com esse (inexistente) crédito do requerente.
O que equivale a dizer, de forma mais simples, que a utilização exclusiva da casa de morada de família pela requerida não tem por contrapartida a satisfação das prestações do mútuo bancário por parte desta, na quota parte (metade) que assiste ao requerente.
Assim, a requerida é titular do crédito em questão, correspondente a metade do valor total das prestações mensais do mútuo contraído junto da C.G.D. e que hajam sido integralmente pagas pela requerida, desde 9/2/2012 (data da produção dos efeitos patrimoniais do divórcio) até à data da realização da partilha.
Ou seja, na procedência das conclusões do recurso da requerida importa revogar o ponto 4.2 do dispositivo da decisão recorrida e admitir a sua reclamação, nos termos acima expostos.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso do requerente e revoga-se o decidido no ponto 4.1 da decisão recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que se indefere a reclamação da requerida, na parte respeitante à relacionação do seu crédito de € 100.000,00 (cem mil euros) sobre o património comum a partilhar.
Mais se julga procedente o recurso da requerida e revoga-se o decidido no ponto 4.2 da decisão recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que se defere a reclamação da requerida, na parte respeitante à relacionação do seu crédito sobre o requerente correspondente a metade do valor total das prestações mensais do mútuo contraído junto da C.G.D. e que tenham sido integralmente pagas pela requerida, desde 9/2/2012 até à data da realização da partilha.
Custas, na instância recorrida, pelo requerente e pela requerida, na proporção de metade para cada um.
Nesta instância de recurso as custas do recurso do requerente são suportadas pela requerida e as custas do recurso da requerida são suportadas pelo requerente.

10 de Julho de 2025
António Moreira
Pedro Martins
Paulo Fernandes da Silva