HERANÇA
REPÚDIO DA HERANÇA
ACÇÃO SUB-ROGATÓRIA
INCOMPLETUDE
APERFEIÇOAMENTO
Sumário

1. O objectivo visado pela acção sub-rogatória a que respeita o art.º 1041º do Código de Processo Civil é a obtenção do reconhecimento judicial do direito do credor a ver satisfeito o seu crédito através dos bens que caberiam ao herdeiro repudiante, no confronto com os herdeiros subsequentes.
2. A incompletude do pedido não será reconduzida ao vício da ineptidão da P.I., por falta (parcial) de pedido, quando seja possível apreender, a partir do articulado pelo autor, qual a pretensão que pretende fazer valer contra os réus.
3. Tendo o autor (credor) pedido que fosse declarado o direito de se sub-rogar na posição da ré (herdeira repudiante), aceitando o quinhão hereditário que esta repudiou e tomando o seu lugar no âmbito da herança, mas omitindo no pedido a condenação dos restantes réus (herdeiros subsequentes) na satisfação do seu crédito através dos bens que lhes cabem por efeito do repúdio, verifica-se uma incompletude do pedido.
4. Neste caso não há que indeferir liminarmente a P.I. mas antes notificar o autor para sanar tal deficiência do pedido, através do aperfeiçoamento previsto na al. a) do nº 2 e no nº 4 do art.º 590º do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 21/8/2023 S., S.A. propôs acção sub-rogatória contra E.T. (1ª R.), L.C. (2ª R.), L.T. (3ª R.), M.N. (4ª R.) e M.F. (5ª R.), formulando o seguinte pedido:
(…) deverá a presente acção ser julgada procedente, por provada, nos termos do disposto nos artigos 2067º e 606.º e seguintes do Código civil e, consequentemente, ser declarado o direito de se sub-rogar na posição da 1.ª ré, aceitando o quinhão hereditário que esta repudiou e tomando o seu lugar no âmbito da herança com o NIF (…)”.
Alega para tanto e em síntese que:
• É titular de um crédito no valor actual de € 89.358,64 sobre a 1ª R., o qual se encontra em cobrança coerciva no âmbito de um processo executivo;
• No âmbito dessa execução não foi possível localizar bens da 1ª R. que permitam o pagamento da quantia exequenda;
• Em 27/2/2023 a A. apurou que a 1ª R. repudiou a herança deixada por óbito do seu pai, relativamente à qual os restantes RR. figuram igualmente como herdeiros;
• Considerando o activo que compõe a aludida herança, a sub-rogação afigura-se como essencial para a satisfação dos créditos da A.
Foi proferido despacho liminar, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, indefere-se liminarmente a petição com fundamento na falta parcial do pedido.
Custas pela Autora (cfr. artigo 527.º do Código de Processo Civil)”.
A A. recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. A Recorrente não se conforma a Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 19.09.2023 (notificada à ora Recorrente em 29.09.2023) que indeferiu liminarmente a petição inicial com fundamento na falta parcial do pedido.
2. Entendeu, o Tribunal a quo que: «”a Autora limitou-se a pedir que se declarasse aceitante, por sub-rogação, da herança em apreço, sem pedir o reconhecimento e pagamento do seu crédito”».
3. A Autora, ora Recorrente, cumpriu com todos os requisitos previstos no disposto no art.º 552.º do CPC relativos aos requisitos da petição inicial.
4. Ao decidir como decidiu, a MM.ª Juiz a quo não teve em consideração que o crédito da Autora já se encontra reconhecido e como tal, perfeitamente consolidado, atento o processo executivo em curso - processo n.º xxx/17.1T8OER, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Oeiras – Juízo de Execução – Juiz 1.
5. A Autora expôs todos os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formulou o pedido em conformidade.
6. Autora alegou e juntou documentos que comprovam todo o alegado, mormente, a titularidade do crédito no valor actual de € 89.358,64 sobre a 1.ª Ré, o qual se encontra em cobrança coerciva no âmbito do já mencionado processo n.º xxx/17.1T8OER,.
7. Os Credores do repudiante através da sub-rogação do credor ao devedor, podem aceitar a herança e fazer-se pagar pelos bens da herança (art.º 2067.º CC).
8. A lei não só qualifica esta situação como modalidade de sub-rogação dos credores como também remete expressamente para os termos dos arts.º 606.º e ss. do CC, que regulam em geral esta situação.
9. Analisando o objecto da acção, do alegado pela Autora, facilmente se depreende que a sua pretensão se reporta à faculdade concedida no artigo 2067.º CC, com a epígrafe Sub-rogação dos credores.
10. O direito reconhecido ao Credor do repudiante de aceitar a herança em nome dele pressupõe, nos termos do n.º 1 do art.º 2067.º do CC, que a sub-rogação seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor, o que resulta claro de toda a factualidade exposta pela Autora na petição inicial.
11. Do teor da petição inicial resulta que a Autora, ora Recorrente, expôs todos os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
12. A Autora alegou e demonstrou que, à data do conhecimento do repúdio existia uma dívida da repudiante (1.ª Ré), a qual nunca foi posta em causa e que, atenta a insuficiência de bens, só poderia ser satisfeita (ainda que parcialmente) mediante a propositura da acção sub-rogatória.
13. A Autora juntou prova documental e testemunhal que corroboram toda a factualidade exposta.
14. Mais, instaurou a acção dentro do prazo de caducidade, contra a repudiante (1.ª Ré) mas também contra aqueles para quem passaram os bens da herança repudiada assegurando a legitimidade processual passiva para a demanda, cumprindo os requisitos do art.º 606.º e ss do CC
15. Não se verifica nenhum fundamento para considerar a petição inicial inepta, pelo que não andou bem a Mmª. Juiz a quo.
16. O Tribunal a quo considerou que existia uma falta parcial do pedido indeferindo a petição inicial em conformidade com o disposto no art.º 590º, n.º 1 do CPC.
17. Ora, uma coisa é a falta do pedido, outra coisa diferente é a falta parcial do pedido.
18. Pelo que, sempre deveria, o Tribunal a quo ter convidado a parte ao suprimento da insuficiência detectada, o que não fez.
19. É sabido que o convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir.
20. No entanto, in casu não está em causa a falta de pedido mas apenas a falta parcial do pedido pelo que, poderia e deveria a MM.ª Juiz a quo ter determinado o convite ao suprimento da insuficiência detectada.
21. A Sentença Recorrida não decidiu pela inexistência do pedido. Decidiu pela inexistência parcial do pedido. Pelo que, forçoso será concluir que o pedido existe, não sendo, no entanto, suficiente.
22. o Tribunal a quo deveria assim ter optado pelo convite ao aperfeiçoamento.
23. O Tribunal a quo não teve em consideração que só a completa ausência ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir é que é geradora de ineptidão sendo que, resulta claro de todo o teor da Sentença Recorrida que não há uma completa ausência ou ininteligibilidade do pedido.
24. Na petição apresentada pela ora Recorrente não falta, nem é ininteligível, a indicação do pedido ou da causa de pedir, da mesma forma que, não existe qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir.
25. No caso em apreço, a causa de pedir foi devidamente concretizada e determinada, de forma inteligível, estando assim em conformidade com o pedido - ainda que parcial – reconhecido na Sentença Recorrida.
26. In casu não estamos perante uma verdadeira ineptidão da petição inicial contrariamente ao que foi decidido.
27. Da leitura da petição inicial facilmente se infere a razão de ser da acção instaurada pelo que, nenhuma razão existe para o indeferimento da petição inicial, sem que se verificasse o convite ao aperfeiçoamento.
28. Os Réus ainda nem sequer haviam sido citados para a acção.
29. O Tribunal a quo não considerou que podem existir insuficiências ou imprecisões na formulação do pedido ou na exposição ou concretização da matéria de facto, as quais podem e devem ser remediadas mediante a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art.º 590.º, n. º4, como é o caso dos presentes autos.
30. Este vício é gerador de nulidade nos termos dos art.º 195 n.º 1 e 2.º do CPC por influir na decisão da causa, sendo o meio próprio para arguir tal nulidade a interposição de recurso de acordo com o art.º 615.º, n.º 1, d) do CPC.
31. Posto que, com vista ao suprimento da invocada nulidade da decisão recorrida pelos motivos supra expostos, deverá a sentença em crise ser anulada, para que, o Tribunal a quo cumpra com o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial pela Autora, ora Recorrente.
Os RR. foram citados para os termos da acção e do recurso, não tendo sido validamente apresentada qualquer alegação de resposta.
Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 656º do Código de Processo Civil foi proferida decisão singular em 21/5/2025, aí tendo sido julgado procedente o recurso, com a revogação da decisão recorrida.
Por requerimento de 6/6/2025 a 1ª R. veio pedir que recaia acórdão sobre a matéria da decisão singular, confirmando a decisão recorrida, e sendo que nesse requerimento invoca que as conclusões da reclamação em questão são aquelas que constam dos 9 pontos que aqui se reproduzem:
1. A Autora veio interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou a acção totalmente improcedente e, por conseguinte, absolveu os Réus de todos os pedidos, indeferindo liminarmente a petição inicial.
2. Sucede que, vem agora o Tribunal da Relação por decisão singular anular tal decisão.
3. Porém, o pedido formulado pela Recorrente não está completo, claro, preciso e determinado e não poderia ter tido outra decisão, senão a declaração de ineptidão da petição inicial e a declaração de nulidade de todo o processo.
4. A acção instaurada pela Recorrente sempre estaria viciada por força da caducidade da acção, dado que, alega que o seu conhecimento da existência da herança adveio do processo executivo. Ora, de acordo com o artigo 2067.º do Código Civil a acção deve ser interposta no prazo de 6 (seis) meses a contar do conhecimento do repudio.
5. Ao contrário do que alega na sua petição inicial, o conhecimento do repúdio já existia há mais de 6 meses, tendo em conta os autos executivos tiveram início em 2017, contradizendo a Recorrente que o repúdio data de 2023, quando na verdade remonta ao ano 2022, mais concretamente, a 04 de Maio de 2022.
6. Acresce que “Conforme refere Carvalho Fernandes, o meio judicial para os credores operarem a faculdade que lhes é conferida pelo artigo 2067º do Código Civil é a acção em que deduzam o pedido de pagamento dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles que receberam os bens por efeito do repúdio.”
7. No caso em apreço, o repúdio ocorreu, porém, a herança foi aceite pelos filhos da repudiante, pelo que, conforme explicita o supra referido acórdão, a acção judicial instaurada pela Recorrente teria sempre de ser improcedente, por existir ilegitimidade passiva dos Réus, dado que, não foram chamados os filhos da repudiante que aceitaram a herança, conforme se pode verificar não só pela escritura de repúdio, como também pela escritura de habilitação de herdeiros.
8. Ora, não tendo sido interposta a acção contra quem deveria nela constar, para além da falta de pedido e de causa de pedir conforme bem decidiu o Tribunal a quo, a acção instaurada pela Recorrente nunca teria um desfecho favorável, dado que, sempre levaria a absolvição da instância, por ilegitimidade das partes.
9. Nessa medida, deverá a presente decisão singular ser revogada por acórdão que confirme a sentença proferida pelo Tribunal a quo.
A A. apresentou resposta à reclamação em questão, aí pugnando pela manutenção da decisão singular.
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Perante o julgamento singular do objecto do recurso, nos termos dos art.º 652º, nº 1, al. b), e 656º, ambos do Código de Processo Civil, pode a parte que se considere prejudicada por essa decisão singular requerer que recaia um acórdão sobre a matéria aí conhecida, nos termos e para os efeitos do nº 3 do mesmo art.º 652º.
Assim, e não obstante os 9 pontos acima reproduzidos, e que a 1ª R. pretende que constituem as conclusões da reclamação, aquilo que importa apreciar e decidir em conferência prende-se com o objecto do recurso da A.
Ora, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, as quais hão-de corresponder à indicação, de forma sintética, dos fundamentos pelos quais vem pedida a alteração ou anulação da decisão.
Assim, a única questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende-se com a nulidade do indeferimento liminar da P.I. fundado na falta parcial de pedido, face à omissão do convite ao aperfeiçoamento da P.I. para sanação dessa deficiência.
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A factualidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Não sofre controvérsia que a P.I. é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido (al. a) do nº 2 do art.º 186º do Código de Processo Civil), o que desencadeia a nulidade de todo o processo (nº 1 do mesmo art.º 186º), excepção dilatória insuprível pela sua própria natureza e que conduz ao indeferimento liminar da P.I. (art.º 577º, al. b) e 590º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil).
Também não sofre controvérsia que a A. visa exercitar o seu direito a sub‑rogar‑se na posição da 1ª R. relativamente à herança que a mesma repudiou, nos termos permitidos pelo art.º 2067º do Código Civil.
E também não sofre controvérsia que, como ficou referido na decisão recorrida, “a adjectivação de tal direito substantivo encontra-se no artigo 1041.º do Código de Processo Civil, que se encontra inserido no capítulo XI, sob a epígrafe “Herança Jacente”, que preceitua que “a aceitação da herança por parte dos credores do repudiante faz-se na acção em que, pelos meios próprios, os aceitantes deduzam o pedido dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles para quem os bens passaram por virtude do repúdio””.
Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 484), “apesar de o nº 1 deste art. 1041º fazer uma remissão genérica para os meios próprios a que os credores do repudiante devem recorrer, a aceitação da herança deve ser feita em acção declarativa de condenação em processo comum (cf. Carvalho Fernandes, Da Aceitação da Herança pelos Credores do Repudiante, pp. 82-88)”.
Como explica Carvalho Fernandes na obra referida, a respeito da acção a que deve recorrer o credor do repudiante:
a) se tratar de crédito beneficiário de direito real de garantia sobre bens já penhorados, o meio próprio para o exercer é a acção executiva movida por credores da herança repudiada ou dos herdeiros subsequentes (…);
b) se tiver havido declaração de insolvência do repudiante, o meio próprio para invocar o crédito é o processo de insolvência (…);
c) se, entretanto, o repudiante tiver falecido e estiver em curso inventário relativo à sua herança, é este o meio próprio para os credores reclamarem os seus créditos (…).
Não ocorrendo qualquer destes casos, ou outros com meios processuais específicos, a acção declarativa de condenação apresenta-se como meio próprio”.
Do mesmo modo, no acórdão de 21/9/2021 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Maria João Vaz Tomé e disponível em www.dgsi.pt), explica-se que “o meio judicial para os credores exercerem a faculdade – que não depende de autorização judicial, mas é, necessariamente, de exercício judicial (art. 1041.º, n.º 1, do CPC) - de aceitar a herança, “em nome do repudiante”, é a acção em que deduzam o pedido de pagamento dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles que receberam os bens por efeito do repúdio (art. 1041.º, n.º 1, do CPC)”. Mais se afirma nesse acórdão que “a aceitação só se torna efectiva após a obtenção, pelos credores do repudiante, de sentença de reconhecimento dos seus direitos de crédito e do direito de aceitar a herança”. E afirma-se ainda que “os credores do repudiante ficam apenas autorizados a agredir executivamente aqueles bens que, na ausência de repúdio, teriam integrado a garantia patrimonial do seu devedor. Consequentemente, a acção deve ser intentada também contra aqueles para quem os bens passaram por virtude do repúdio (art. 1041.º do CPC): os sucessíveis subsequentes que aceitaram a herança em lugar do repudiante”.
Ou seja, pode-se afirmar que o objectivo visado pela acção sub-rogatória a que respeita o art.º 1041º do Código de Processo Civil é a obtenção do reconhecimento judicial do direito do credor a ver satisfeito o seu crédito através dos bens que caberiam ao herdeiro repudiante, no confronto com os herdeiros subsequentes.
E é nesta medida que se compreende a posição da doutrina e da jurisprudência, no sentido de o credor dever pedir o reconhecimento do crédito sobre o repudiante, a par do reconhecimento do direito a fazer-se pagar pelos bens da herança que caberiam ao repudiante e que, por força desse repúdio, passaram a caber aos herdeiros subsequentes. O que é o mesmo que dizer que o autor (credor) deve pedir que os herdeiros subsequentes sejam condenados nesse pagamento, na medida do que lhes adveio por força do repúdio.
Recuperando tais considerações para o caso concreto dos autos, torna-se evidente que o pedido formulado pela A. (“ser declarado o direito de se sub-rogar na posição da 1.ª ré, aceitando o quinhão hereditário que esta repudiou e tomando o seu lugar no âmbito da herança (…)”) não corresponde inteiramente ao pedido típico da acção sub‑rogatória a que respeita o 1041º do Código de Processo Civil, tal como acima explicitado.
Será, todavia, que esse vício se reconduz à falta de indicação do pedido a que respeita a al. a) do nº 2 do art.º 186º do Código de Processo Civil, desencadeando a ineptidão da P.I. e a consequente nulidade de todo o processo?
A resposta terá de ser necessariamente negativa.
Tendo presente o disposto nos art.º 5º, nº 1, 552º, nº 1, al. d), e 581º, nº 3 e 4, todos do Código de Processo Civil, apresenta-se como pacífico que o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende obter.
Recordando o ensinamento de Alberto dos Reis quanto aos vícios do pedido que desencadeiam a ineptidão da P.I. (Comentário ao Código de Processo Civil, volume 2º, 1945, pág. 360 e seguintes), “a petição chama-se inicial, porque dá começo à instância (…); serve fundamentalmente para o autor expor os fundamentos e o objecto da sua pretensão. Por isso é que, ao mencionar os requisitos a que há-de satisfazer a petição inicial, o artigo 480.º exige que o autor:
4.º Exponha, com a maior clareza e concisão, os factos e as razões de direito sobre que assentam as conclusões;
5.º Formule o pedido com toda a precisão.
Estes preceitos têm a sua sanção no artigo 193.º Não vá, porém, inferir-se daqui que a inobservância rigorosa e textual do que está determinado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 480.º produz sempre a ineptidão da petição. O que se lê nos números citados corresponde a um modelo, a um figurino abstracto, cuja imitação se recomenda a quem haja de propor uma acção; mas a petição não é inepta pelo facto de não atingir a perfeição definida no artigo 480.º”.
Ainda, do mesmo modo, explica o mesmo autor que “depois de exigir que o autor formule o pedido com toda a precisão, o artigo 480.º esclarece no § 2.º, que o pedido deve ser formulado de modo que não haja dúvidas sobre o efeito jurídico, declarativo ou constitutivo, que se pretende obter; e se a acção for de condenação, acrescenta-se, há-de especificar-se a prestação que o réu tem de satisfazer.
Em boa técnica jurídica uma coisa é a pretensão do autor, outra o pedido. A pretensão dirige-se ao réu; o pedido dirige-se ao tribunal. Aquele é um elemento da relação jurídica substancial; este um elemento da relação jurídica processual.
A pretensão exprime o direito que o autor se arroga contra o réu; o pedido traduz‑se na providência que o autor solicita ao tribunal. É claro que a pretensão repercute-se naturalmente no pedido; a espécie de providência que o autor vai pedir ao tribunal deve ser, logicamente, o reflexo da pretensão que se arroga contra o réu”.
Pelo que, continua, “de maneira que o pedido consiste, em última análise, no efeito jurídico que o autor se propõe obter com a acção (art. 480.º, § 2.º). O pedido equivale, assim, ao objecto da acção (art. 502.º, § 2.º). E como o efeito jurídico há-de obter-se através de um acto do juiz – o acto jurisdicional característico que é a decisão – segue-se que o pedido se concretiza na espécie de providência que o autor quer receber do juiz.
Portanto, nos termos da alínea a) do artigo 193.º, a petição será inepta quando por meio dela não puder descobrir-se qual a espécie de providência que o autor se propõe obter do juiz, ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da acção.
A espécie de ineptidão figurada na alínea a) pode apresentar-se de duas maneiras:

1.ª Falta de formulação do pedido;
2.ª Formulação obscura.
O 1.º caso é raro, pois mal se compreende que alguém se apresente em juízo sem dizer o que quer. O 2.º é mais frequente. O autor formula o pedido; mas formula-o em termos tais, que não chega a perceber-se qual é o seu pensamento, qual é o efeito jurídico que se propõe obter.
Voltamos a frisar que a petição não deve considerar-se inepta pelo simples facto de não satisfazer inteiramente a exigência do n.º 5 do artigo 480.º. Já observámos que os n.ºs 4.º e 5.º do artigo 480.º contêm normas ou directivas para a elaboração duma petição inicial perfeita; mas, por não ser perfeita, não se segue necessariamente que a petição seja inepta”.
Esta doutrina quase centenária mantém a sua actualidade.
Assim, e como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 218), “o pedido reunirá os seguintes requisitos: deve ser expressamente referido na petição inicial (existência); ser apresentado de forma clara e inteligível (inteligibilidade); ter um conteúdo determinado ou determinável em face de liquidação da sentença (determinação); ser coerente à causa de pedir ou pedidos cumulados (compatibilidade)”.
Mais explicam que “só a manifestação inequívoca do autor da sua vontade de submeter ao poder jurisdicional a resolução de um litígio e de, relativamente ao mesmo, obter um determinado resultado, permitirá ao tribunal pronunciar-se em termos de proferir uma decisão soberana, revestida de força emergente de caso julgado e passível de ser imposta à outra parte. Daí que a petição seja inepta quando não possa assumir-se que existe algum pedido, sem embargo do relevo que, em determinadas circunstâncias, pode ser atribuído a pedido implícitos inerentes a outros pedidos que tenham sido explicitamente formulados (…)”.
E advertem ainda (pág. 222) que “impõe-se distinguir as situações em que o teor da petição inicial é de tal modo deficitário que se reconduz à falta ou ininteligibilidade do pedido ou de causa de pedir, gerando a ineptidão da petição e a correspondente absolvição da instância, dos casos em que, estando embora presentes esses elementos objectivos da instância, há insuficiências ou imprecisões na formulação do pedido ou na exposição ou concretização da matéria de facto, as quais devem ser remediadas mediante a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 590º, nº 4 (…)”.
Por seu lado Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil online, versão 2024/12, disponível para consulta em https://blogippc.blogspot.com), refere que “o pedido é ininteligível quando, numa perspectiva jurídica, não se consegue perceber o efeito jurídico pretendido pela parte”, mas que “não deve ser confundido com o pedido confuso, obscuro ou ambíguo”, situações que “originam um pedido deficiente, mas não um pedido ininteligível”. E assim conclui que “o dever de esclarecimento do tribunal (art. 6º, nº 2) justifica que se faça uma interpretação extensiva do disposto no art. 590º, nº 2, al. b) e 4, e se aplique ao pedido deficiente o convite ao aperfeiçoamento estatuído neste preceito”.
Ou seja, desde logo pode-se afirmar que a incompletude do pedido não será reconduzida ao vício da ineptidão da P.I., por falta (parcial) de pedido, quando seja possível apreender, a partir do articulado pelo autor, qual a pretensão que pretende fazer valer contra os réus.
E, do mesmo modo, é de afirmar que, sendo possível apreender qual a pretensão que o autor quer fazer valer contra os réus através da acção, não estando a mesma perfeitamente indicada no pedido formulado, e não sendo tal imperfeição geradora da ineptidão da P.I., o dever de gestão processual imposto pelo art.º 6º do Código de Processo Civil determina o recurso ao mecanismo do aperfeiçoamento que emerge do art.º 590º, nº 2, al. b) e nº 4, do Código de Processo Civil, havendo que notificar o autor para sanar tal imperfeição do pedido, em vez de indeferir liminarmente a P.I, por ineptidão da mesma sustentada na falta parcial de pedido.
Ora, no caso concreto dos autos é exactamente isso que sucede, tendo presente as especificidades da acção sub-rogatória, tal como acima explicitado, conjugadas com a posição concreta da A. como credora da 1ª R.
Com efeito, na P.I. a A. invocou ser credora da 1ª R., tendo igualmente justificado a natureza do seu crédito e as características do mesmo, designadamente a sua incorporação em título executivo. Invocou igualmente que já recorreu à acção executiva com vista à realização coactiva da prestação pecuniária que lhe é devida. Invocou igualmente que resulta das diligências executivas a inexistência de bens da 1ª R. que permitam a satisfação do crédito exequendo. E invocou também que, no âmbito dessa execução, foi apurado que a 1ª R. repudiou a herança deixada por óbito do seu pai, sendo que o activo dessa herança se afigura essencial para a satisfação do crédito da A., carecendo, por isso, de recorrer ao mecanismo sub-rogatório a que respeita o art.º 2067º do Código Civil, aceitando a herança em nome da 1ª R., relativamente à qual os restantes RR. também figuram como herdeiros e beneficiários do repúdio da 1ª R.
Ou seja, é patente que a pretensão da A., face aos RR., passa pelo reconhecimento do seu direito a fazer-se pagar do seu crédito através dos bens da herança que preencheriam o quinhão hereditário da 1ª R. e que, em face do repúdio desta, passam a preencher o quinhão hereditário de cada um dos restantes RR.
Nessa medida, e tendo presente o disposto no art.º 1041º do Código de Processo Civil, o meio próprio para exercer tal direito é a acção onde todos eles (a 1ª R., herdeira repudiante, e os restantes RR., herdeiros subsequentes) possam ser condenados no reconhecimento do direito de crédito da A. sobre a 1ª R. e na sua satisfação através dos bens da herança que caberiam à 1ª R.
O que equivale a dizer que o pedido formulado pela A., apesar de não estar em falta nem se mostrar ininteligível, apresenta-se como incompleto, porque a pretensão que a A. dirige contra os RR., tipicamente correspondente ao exercício do direito a que respeita o art.º 2067º do Código Civil, não encontra a sua correcta expressão naquele pedido.
E como tal incompletude corresponde a uma deficiência do pedido, que demanda o exercício dos deveres de gestão processual através da notificação da A. para sanar tal deficiência, não podia o tribunal recorrido ter omitido o cumprimento desse dever e, em vez disso, indeferir liminarmente a P.I. com fundamento na ineptidão da P.I., o que configura a nulidade processual invocada pela A., a determinar a procedência das conclusões do recurso, com a revogação da decisão recorrida.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos, nos termos e para os efeitos da al. b) do nº 2 do art.º 590º do Código de Processo Civil.
Custas, nesta instância de recurso, pela 1ª R., sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que beneficie.

10 de Julho de 2025
António Moreira
Susana Mesquita Gonçalves
João Paulo Raposo