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NOTIFICAÇÕES
ASSISTENTE
ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Sumário
Sumário: I - Em processo penal, em regra, as notificações ao assistente devem ser feitas apenas ao respectivo mandatário, salvas as excepções referidas no art. 113.º, n.º1, do Código de Processo Penal, pelo que as notificações respeitante ao despacho de arquivamento ou para, querendo, deduzir acusação particular, não precisam de ser feitas também à pessoa do assistente. II - O assistente apenas não pode requerer a abertura da instrução pelos mesmos factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação, nem quanto a crimes particulares, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º1, b), do Código de Processo Penal. III - Se a instrução não visa a mera discordância da alteração da qualificação jurídica dos factos aceite pelo Ministério Público, mas também a pronúncia do arguido por ter sido determinado o arquivamento do inquérito, a mesma é admissível.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No âmbito dos autos n.º 945/23.0GBMTJ do Juízo de Instrução Criminal do Barreiro, após o despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, a assistente AArequereu a abertura da instrução e invocou nulidades relativas às notificações que lhe terão sido dirigidas durante o inquérito.
Nessa sequência foi proferido o despacho recorrido pelo Juiz de Instrução Criminal (JIC) com o seguinte teor: “Como ponto prévio, veio a assistente pugnar pela nulidade do inquérito por considerar que não foi devidamente notificada para a morada para deduzir acusação particular. Ora, compulsados os autos, analisados os fundamentos invocados pela assistente e por concordarmos na íntegra com os argumentos esgrimidos pela Digna Magistrada do Ministério Público (refª 442368911 de 05.02.2025), indefere-se a arguida nulidade por entendermos que a mesma não se verifica, sobretudo atenta a obrigatoriedade de constituir mandatário para se assumir a posição processual de assistente. Quanto muito, a verificar-se razão à assistente (que não concebemos), poderíamos cogitar a existência de uma irregularidade, a qual tem um prazo para ser invocada e que poderia ser sanada. De notar, ainda, que o crime de injúria pelo qual a assistente deveria ter deduzido acusação particular, atento o disposto no artigo 287.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, não admitiria a abertura de instrução. Notifique. * Não se conformando com o despacho de arquivamento dos autos proferido pelo Ministério Público veio a assistente requerer a abertura da instrução pugnando pela pronúncia do denunciado BB pelo crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º e 22.º n.º2 al. b) e c) ambos do Código Penal. Ora, a instrução é uma fase facultativa do processo penal e visa, nos termos do artigo 286º do Código de Processo Penal “a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”( nº1), e no caso não houve acusação, pelo que se questiona a decisão de arquivamento a solicitação do denunciante. Na instrução, a atividade de averiguação processual desenvolvida é complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e no fundo destina-se a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal, e esta fase processual termina com o despacho final legalmente denominado de pronúncia ou não pronuncia (artº308º CPP). Para a não pronúncia, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na não punibilidade destes, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de ato processual, mas para a pronúncia, terão de existir a suficiência de indícios dos factos, de quem são os seus autores e a ausência de causas de justificação e de punibilidade. No caso estamos ainda na fase preliminar de admissão ou não desta fase processual. Resulta sem margem para dúvidas, até do despacho de 18.12.2024 (refª 441197510), que o Ministério Público arquivou o inquérito por entender, quanto ao crime de ameaça agravada e detenção de arma proibida, que a expressão utilizada pelo arguido “vou cortar a sua garganta”, acompanhadas de ter ido buscar um pé de cabra e uma faca não indicam que o mal seja futuro e que a mesma não passou de uma infelicidade e censurável em termos éticos e, uma vez que não se logrou a apreensão dos sobreditos objetos, não foi possível que proceder ao seu enquadramento jurídico-penal como crime. Assim, em abstrato, tendo ocorrido um arquivamento, através da instrução visa-se reagir contra esse despacho, por se considerar que tal não devia ocorrer, pelo que pareceria admissível a instrução. Como expressa Germano M. da Silva, Curso de Processo Penal, III, verbo, 3ª ed 2009, pág. 151 “A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura da instrução”. Ora, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, ou seja, traduz a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo M.P. O requerimento do assistente terá assim de se configurar, materialmente, como uma acusação alternativa, funcionalmente semelhante à que seria formulada pelo M.P. se tivesse decidido acusar, de onde constem os factos que considera indiciados e que integrem os crimes, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório. Ora, como é cristalinamente evidente, o requerimento para abertura de instrução formulado pela assistente não reúne as características exigidas pela conjugação dos Artigos 283.º nº1 als. b) e c) e 287 nº2, ambos do CPP, seja ao nível da própria descrição factual da matéria em causa – no que toca à concreta definição dos factos – seja pela ausência do desenho dos imprescindíveis elementos objetivos e subjetivos do crime de homicídio simples na forma tentada. A este nível, não há a alegação de qualquer facto novo que pudesse contribuir para o desenho, quer na dimensão objetiva, quer a nível subjetivo, para o enquadramento da conduta do arguido sob as vestes criminais que, pela assistente, são indicadas no seu requerimento para abertura da instrução. Em boa verdade, a assistente não coloca em causa os meios de prova realizados pelo Ministério Público, mas apenas e tão só, a qualificação jurídica (nomeadamente quanto ao crime de ameaça agravada) efetuada pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, entendendo que aqueles factos merecem uma outra valoração criminal. A assistente não alega que deveriam ser outros os factos objeto de eventual pronúncia ao arguido, omitindo assim, na totalidade, os factos suscetíveis de integrar os ilícitos pelos quais pretende que o arguido seja pronunciado, limitando a sua discordância, no fundo e tão-somente, a uma decisão de carácter técnico, de mero enquadramento jurídico e que se prende com a qualificação criminal de determinado conjunto factual. A assistente não extraiu quaisquer consequências jurídicas do por si alegado que se possa ser considerado de novo em relação à posição do Ministério Público. É certo que o objeto da fase de instrução, como resulta do artigo 286º CPP é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Não se trata de um novo inquérito, com uma atividade de natureza investigatória, pelo que a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação hierárquica. Já a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, essa sim, é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução. A qualificação jurídica dos factos é uma decisão de carácter técnico da autoria do magistrado titular do inquérito e não uma decisão que se prenda com a correta ou incorreta valoração dos indícios recolhidos. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, 2009, pag. 751, anotação 6, “a instrução não pode, em regra, ser requerida para discutir apenas a qualificação jurídica dos factos, uma vez que a lei admite o exercício dessa faculdade pelo arguido relativamente a factos da acusação pública ou particular (…) (artigo 287º, número 1, als. a) e b). Acresce que o legislador fez uma opção clara por concentrar na audiência do julgamento a discussão de “todas as questões jurídicas pertinentes” (artigo 339º, número 4), não se justificando a abertura da instrução com o exclusivo fito de antecipação dessa discussão jurídica”. Nesta medida, sem prejuízo de se dizer que nos inclinámos para considerar que não é admissível o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente quando este se fundamenta, apenas, na discordância da qualificação jurídica levado a cabo pelo MP no arquivamento que formulou, a verdade é que tal discussão não apresenta, in casu, relevância, tendo em conta que a assistente, no seu requerimento para a abertura de instrução, limita-se a discordar do arquivamento, tecendo considerações jurídicas sobre o preenchimento dos crimes em causa, pedindo pronúncia por um crime que o Ministério Público não enquadrou, mas não alega quaisquer factos novos que ali não tenham sido considerados e sem apresentar pontos probatórios de eventual discordância que não foram levados a cabo na investigação e que na sua ótica deveria. Ou seja, é manifesto que a assistente, apesar de legalmente obrigada, não deduziu uma acusação pelo crime que entende estar preenchido, com uma adequada e concreta imputação de factos, situados no espaço e no tempo, descritos sequencialmente, de forma a poderem integrar os elementos típicos dos ilícitos em causa. A descrição factual exarada no requerimento de abertura da instrução é eivada de conclusões, insuscetível de ser enquadrada nos elementos integradores, quer a título objetivo, quer numa dimensão subjetiva, do novo crime que pretende imputar ao arguido. Cabia à assistente, narrar, de uma forma lógica, sequencial e percetível, os factos concretos nos quais se poderia fundar o pretendido despacho de pronúncia, não cabendo essa tarefa ao juiz de instrução. Há assim que concluir, que o requerimento de abertura de instrução não alcança o exigido pela lei no que concerne à narração – ainda que sintética – de factos, objetivos e subjetivos, que permitam alcançar uma definição de crime, para desse modo se desenhar a possibilidade de aplicação de uma pena pelo novo crime contra a pessoa contra quem é deduzida a instrução. Ora, a factualidade de numa discussão de trânsito em que o arguido se dirige à assistente insultando-a, referindo que lhe vai cortar a garganta e em seguida vai buscar um pé de cabra e uma faca, de per si, não são atos de execução para o cometimento de um crime como o de homicídio, o qual obrigaria por parte da assistente uma maior densificação do elemento subjetivo ao nível do dolo. Deste modo, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução, ao não conter tais elementos, não é processualmente prestável para a finalidade a que se destinava, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado, o que gera que a instrução requerida seja inviável, por falta de requisitos legais. Nessa medida, como é consensualmente defendido pela Jurisprudência, em termos processuais tudo se passa como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução. Na verdade, as falhas apontadas ao requerimento de abertura de instrução acarretam que a instrução não tenha objeto, daí não fazer sentido que a mesma tenha lugar, configurando-se a sua realização como uma impossibilidade jurídica e os atos instrutórios como atos inúteis e por isso proibidos por lei (Artº 137 do CPC), na medida em que, ainda que fossem apurados factos passíveis de enquadramento criminal, se viessem a constar da decisão instrutória, sempre esta seria nula por violação do estatuído no Artº 309 nº1 do CPP. Não contendo o requerimento de abertura de instrução matéria que integre, de forma cabal, os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de homicídio na forma tentada que pretende imputar ao arguido, o seu eventual adicionamento pelo juiz numa hipotética decisão instrutória de pronúncia, sempre se consubstanciaria numa alteração substancial de factos, vedada pelo mencionado Artº 309 nº1 do CPP. Ora, a omissão de tais exigências deve conduzir à rejeição de tal requerimento, atuando-se assim similarmente com uma acusação deficiente, nos termos do Artº 311 nsº2 al. a) e 3 al. b) do CPP. Por tudo se conclui que o requerimento da assistente de abertura de instrução, ao não cumprir as exigências dos Arts 283 nº3, als. b) e c) e 287, nº2, ambos do CPP, não permite a definição do objeto da instrução, o que consubstancia a inadmissibilidade legal desta fase processual assim se fundamenta a sua rejeição, nos termos do Artº 287 nº3 do CPP”.
Inconformado com esta decisão interpôs recurso oassistente, tendo formulado, após a motivação do seu recurso, as seguintes conclusões: “I. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo que indefere as nulidades arguidas pela Assistente e rejeita o requerimento de abertura de instrução por esta requerido com fundamento na sua inadmissibilidade legal. II. A fundamentação da decisão de indeferimento da arguida nulidade poderia ser feita por remissão para douta promoção da Digna Magistrada do Ministério Publico desde que esta contivesse a fundamentação de facto e de Direito e que tal despacho tivesse sido notificado à Assistente e à Patrona, o que não sucedeu. III. A Recorrente, ainda na qualidade de ofendida e aquando da denúncia, para efeitos de notificação por via postal simples, nos termos do disposto no artigo 145.º, n.º 5 e n.º 6 do CPP, indicou como morada a ..., conforme decorre de fls. __ dos autos. IV. No decorrer do inquérito, todas as notificações à ora recorrente foram dirigidas para a ..., morada diversa da indicada pela Arguida para o efeito pelo que esta nunca recebeu tais notificações. V. As notificações enviadas por via postal simples para morada diversa da indicada não podem julgar-se válidas por violação do princípio da confiança ínsito no artigo 2.º da CRP. VI. Em matéria de notificação dos actos processuais o n.º 10 do artigo 113.º do CPP determina a obrigatoriedade da sua notificação ao Assistente porquanto diz a lei que “As notificações (…), do assistente (…) podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado (…).” VII. Apenas as “notificaçoÞes respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à contestação, à designação de dia para julgamento e aÌ sentença (…), devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado, sendo que neste caso, o prazo para a prática de acto processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar”. VIII. Da interpretação conjugada destes dois segmentos normativos resulta clara a intenção do legislador de instituir a obrigatoriedade de notificação dos actos processuais na pessoa do assistente, sendo as notificações obrigatórias ao mandatário ou defensor nomeado restritas a determinados actos. IX. E nos casos em que a notificação deve ser, também, dirigida ao mandatário ou defensor, resulta claro que o legislador não dispensa a notificação do assistente ao prever que o prazo para a prática do acto processual subsequente se conta da notificação efectuada em último lugar. X. A relação entre os cidadãos, os Advogados e a Justiça assenta no princípio da confiança que postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas. XI. A Recorrente não foi notificada,na morada que indicou para o efeito, para se constituir Assistente, para deduzir acusação particular, nos termos do disposto nos artigos 285.º e n.º 10 do artigo 113.º, ambos do CPP e não foi, de todo, notificada do despacho de arquivamento ateì ao momento em que foi arguida a nulidade das notificaçoÞes anteriores, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 3 e n.º 4, al. a) e n.º 10 do artigo 113.º, ambos do CPP. XII. Todos estes actos processuais são de notificação obrigatória à Recorrente, nos termos do n.º 10 do artigo 113.º, sendo irrelevante a notificação efectuada ao mandatário ou defensor, porquanto o prazo para a prática do acto processual conta-se da notificação pessoal da Recorrente ou, in limine, da notificação efectuada em último lugar. XIII. Não tendo a Recorrente sido notificada, como resulta obrigatório das disposições legais supra citadas, não se iniciou, sequer, o prazo para a prática do acto subsequente de constituição de assistente (razão pela qual a constituição de assistente requerida em 6 de Maio de 2025 eì legal e tempestiva e foi admitida) ou de dedução de acusação particular. XIV. As sobreditas notificaçoÞes à Recorrente constituem actos processuais legalmente obrigatórios cuja omissão afecta os direitos processuais conferidos ao Assistente (em especial, artigo 69.º, n.º 1 e n.º 2, artigo 285.º e artigo 287.º, todos do CPP) e, por isso, determina a nulidade de tais actos, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 120.º do CPP, a arguir no prazo consignado na al. c) do n.º 3 do mesmo artigo do CPP. XV. Não tendo a Recorrente sido notificada do despacho de encerramento do inquérito e arquivamento, o prazo legal consignado no artigo 120.º, n.º 3, al. c) do CPP não se iniciou. XVI. Ainda que se considerasse que a omissão das sobreditas notificaçoÞes constitui mera irregularidade, sempre se trataria de irregularidade de conhecimento oficioso por afectar o valor do acto praticado e, mesmo assim não sendo, considerando que a Assistente nunca foi efectivamente notificada, durante todo o inquérito, para a prática de qualquer acto na morada que indicou para o efeito, o prazo de 3 dias previsto no artigo 123.º, n.º 1 do CPP também não se iniciou. XVII. Tendo sido legal e tempestiva a arguição das sobreditas nulidades quer junto do Ministério Publico, por requerimento de 27/01/2025, quer no requerimento de abertura de instrução. XVIII. O douto despacho recorrido, ao indeferir as arguidas nulidades violou o disposto nos artigos 69.º, 113.º, n.º 10, 120.º, n.º 1, al. d) e n.º 3, al. c), 145.º, n.º 5 e n.º 6, 246.º, 277.º, nº 3 e n.º 4, al. a) e 285.º, todos do CPP. XIX. Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, julgando-se tempestivas e procedentes as arguidas nulidades e, consequentemente, ordenando-se a devolução dos autos ao Ministério Publico para reparação das nulidades cometidas. Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio XX. Mais decidiu o douto tribunal rejeitar o requerimento de abertura de instrução da Recorrente, por inadmissibilidade legal, por considerar que o requerimento de abertura de instrução não satisfaz as exigências do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, als. b) e c) do CPP, com o que não se concorda. XXI. A Recorrente, notificada do douto despacho que decidiu arquivar o inquérito por julgar não existirem indícios da prática do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do CPP, não sóì não se conformou com o arquivamento como não se conformou com a qualificação jurídica dos factos denunciados e indiciados no inquérito. XXII. O RAI do Assistente pode visar apenas a qualificação jurídica dos factos com o objectivo de o arguido ser pronunciado por crime mais grave do que o imputado na acusação publica, porquanto o seu estatuto processual lhe confere legitimidade para, em nome próprio e sem necessidade de ratificação de outrem, intervir no processo penal nos termos que entender adequados aÌ defesa dos seus direitos e interesses legalmente previstos, in casu, direitos constitucionalmente consagrados como fundamentais como o seja o direito aÌ vida e/ou aÌ integridade física e psíquica. XXIII. Donde, o requerimento de abertura de instrução não poderia ser rejeitado com fundamento em inadmissibilidade legal por visar a qualificação jurídica dos factos. XXIV. A Recorrente insurgiu-se, também, contra o arquivamento do inquérito. XXV. A Recorrente aduziu as razoes de facto e Direito de discordância relativamente aÌ decisão de arquivamento, conforme resulta dos artigos 22.º a 39.º do RAI. XXVI. Nos artigos 40.º a 46.º do RAI a Recorrente descreveu circunstanciadamente os factos que imputa ao Arguido e pelos quais entende que o Ministério Público deveria ter deduzido acusação, nos artigos 47.º a 50.º invoca os factos atinentes ao dolo da conduta imputada e no artigo 52.º identifica as disposições legais aplicáveis. XXVII. Requerendo a produção dos meios de prova que julgou necessários a provar a factualidade imputada. XXVIII. O RAI da Recorrente consubstancia uma verdadeira acusação, uma acusação alternativa aÌ que, na perspectiva da Recorrente, foi, mas não devia ter sido omitida pelo Ministério Publico, delimitando o objecto da instrução, pelo que deveria ter sido admitido e declarada aberta a instrução. XXIX. Consequentemente o douto despacho recorrido, ao rejeitar o Requerimento de Abertura de Instrução da recorrente com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, als. b) e c), 287.º, n.º 2 e n.º 3, todos do CPP. XXX. Termos em que em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento da instrução”.
Apenas o Ministério Público respondeu ao recurso com a apresentação das seguintes conclusões:
“1- Chamada a pronunciar-se sobre nulidade invocada pela assistente/recorrente a Mma. JIC proferiu despacho, devidamente fundamentado, onde plasmou os fundamentos da decisão proferida, considerando, bem em nosso entender não se ter verificado a invocada nulidade ou qualquer outro vicio que importasse conhecer. 2- O requerimento de abertura de instrução apresentado na sequencia de despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Publico deve elencar as razoes de facto e de direito da discordância da acusação e ainda cumprir as regras estatuídas no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal para a dedução de acusação, contendo, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis. 3- O requerimento de abertura de instrução apresentado pela ora recorrente não contém enunciação precisa, concreta e logicamente ordenada, enquadrada no espaço e no tempo, dos factos que integram os elementos típicos objetivo e subjetivo do crime que se pretende imputar ao arguido. 4- O incumprimento desta obrigação legal, tem como consequência a falta de objeto de instrução, e por isso, o debate e decisão instrutório seriam atos inúteis. sendo que caso fossem apurados factos concretos se tal viesse a constar da decisão instrutória seria nula, por violação do disposto no artigo 309º do Código de Processo Penal, impondo a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por ser inadmissível a instrução por falta de objeto, configurando uma inadmissibilidade legal da instrução. 5- A “acusação” apresentada, se levada a juízo, o debate instrutório, não levaria a uma decisão de pronuncia do arguido por falta de elementos essenciais de enquadramento de facto e de direito imputável ao arguido, ou sequer a uma possível condenação. 6- A falta de narração dos factos integradores de ilícito de natureza penal, quer na descrição objetiva dos factos quer no seu elemento subjetivo impede o exercício do contraditório e o cabal exercício de defesa dos arguidos. 7- A instrução, requerida visa a submissão do arguido a julgamento pelos factos que a assistente entende apurados suscetíveis de integrar ilícito de natureza penal e que determinam aplicação de uma pena ou medida de segurança, condicionando e limitando e a atividade de investigação do juiz e a própria decisão final instrutória. 8- Esta vinculação do Tribunal decorre da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, e funcionado como mecanismo de salvaguarda do arguido contra o alargamento arbitrário do objeto do processo, e permite o respeito pelo princípio do contraditório. 9- Ora, não tendo sido articulados no requerimento de abertura da instrução todos os factos necessários a uma eventual decisão de pronúncia, impõe-se concluir que a assistente não cumpriu o imposto art.º 283º, nº 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, o que importa a rejeição liminar do requerimento de abertura da instrução, nos termos do art.º 287º, nº 3 do mesmo diploma, por inadmissibilidade legal desta fase processual. 10- O douto despacho recorrido não violou qualquer uma das normas invocadas pelos recorrentes ou outras, que cumpra conhecer, sendo válido e legal, pelo que se deve manter nos seus precisos termos, assim se fazendo, Justiça”.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa o Ministério Público sustentou a posição assumida em 1.ª instância.
Feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos remetidos à conferência - cfr. art 419.º n.º 3, c), do Código de Processo Penal.
II. Fundamentação. Objecto do recurso.
Conforme dispõe o art. 412.º nº1 do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação, nas quais o mesmo sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente se verifiquem.
De acordo com o disposto no art. 412.º, n.º2, do Código de Processo Penal, versando matéria de direito, como é o recurso interposto pela assistente nestes autos, “as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada”.
Atentas as conclusões apresentadas pela recorrente e as especificações legalmente exigidas, está em causa a decisão quanto a duas questões essenciais:
1. Da verificação da nulidade das notificações efectuadas à assistente;
2. Da admissibilidade do RAI apresentado pela assistente (designadamente atenta a descrição factual e a alteração da qualificação jurídica dos factos).
1- Da verificação da nulidade das notificações efectuadas à assistente
Nas suas conclusões a assistente discorre sobre a eventual nulidade decorrente da omissão ou indevida concretização (para morada incorrecta) das notificações de actos de inquérito.
Apesar dessa genérica invocação, as únicas notificações que são concretamente apresentadas nas conclusões como tendo sido omitidas quanto à pessoa da assistente, são as referentes à notificação da assistente para a dedução da acusação particular e do despacho de arquivamento (a eventual dúvida sobre a notificação para se constituir assistente, por estarem em causa crimes particulares, é irrelevante porque tal constituição foi pacificamente admitida nos autos).
De resto, desconhece-se que outras notificações pretende o assistente terem sido omitidas, sendo evidente que a necessidade de notificação de cada despacho depende da consideração concreta do seu teor.
Assim, quanto à notificação dos referidos actos processuais – despacho de arquivamento e para o assistente deduzir acusação particular – há, como pretende a assistente e o Ministério Público, que considerar o disposto no art. 113.º, n.º10, do Código de Processo Penal.
Apresentando as conclusões uma confusão entre os sujeitos processuais do arguido e da assistente (para além do lapso de escrita evidente), é notório, do mero teor literal da referida disposição legal, que ali se estabelece a regra de que as notificações ao assistente devem ser feitas apenas ao respectivo mandatário.
Dessa regra geral ressalvam-se apenas as notificações “respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à contestação, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil”.
A simples leitura e definição do âmbito destas excepções permite compreender que ali não se integra qualquer dos actos concretamente mencionados pela assistente, respeitante ao despacho de arquivamento ou para, querendo, deduzir acusação particular.
Pelo que nestes casos segue-se a regra geral do disposto no art. 113.º, n.º10, do Código de Processo Penal, de que basta a notificação ser feita aos respectivos advogados (patronos ou mandatários).
Neste quadro legal, em que a segurança e certeza na realização da justiça e a confiança dos cidadãos é muito razoavelmente assegurada pela ligação que estes têm ou devem ter com os respectivos advogados, que são pessoas de formação jurídica específica, mostra-se totalmente razoável que as notificações que lhes respeitam sejam feitas apenas aos seus advogados, não se vislumbrando qualquer princípio constitucional afectado com tal solução.
Pelo que, tendo-se verificado nesses casos a notificação da Patrona da assistente, a notificação desta é regular e suficiente, nada tendo sido omitido neste âmbito.
Aliás, é nesse exacto sentido que vai a promoção do Ministério Público, que o despacho recorrido acolhe, não sendo perceptível a falta de compreensão da fundamentação exposta.
Por isso, improcede a arguição de nulidades de notificação.
2. Da admissibilidade do RAI apresentado pela assistente.
O tribunal a quo não admitiu a instrução requerida pela assistente com o fundamento de que a instrução não é admissível quando visa a mera discordância da alteração da qualificação jurídica dos factos e que não se encontram descritos os factos objectivos e subjectivos de onde poderá resultar a responsabilidade do arguido.
Quanto ao primeiro dos argumentos da decisão recorrida, e independentemente de a assistente indicar uma qualificação jurídica dos factos distinta da referida pelo Ministério Público, é cristalino que pela instrução requerida pela assistente é visada a pronúncia do arguido, relativamente a quem o Ministério Público determinou o arquivamento total do inquérito.
Assim, e mesmo não se destinando a instrução a complementar uma investigação da exclusiva responsabilidade do Ministério Público (como é referido na decisão recorrida), mas apenas, neste caso, a fiscalizar a decisão de arquivamento do Ministério Público, é claro que não está em causa uma mera discordância da qualificação jurídica, mas uma pretensão de atribuição de responsabilidade penal ao arguido, o que, de outra forma, não pode ocorrer, atento o arquivamento do inquérito, ainda que com suporte nos mesmos factos que o Ministério Público considerou insuficientes para algum enquadramento penal.
Se tivesse sido deduzida uma acusação pelos mesmos factos que agora a assistente descreve era compreensível a defesa da inadmissibilidade da instrução.
Aliás, resulta do teor literal do disposto no art. 287.º, n.º1, b), do Código de Processo Penal que a instrução pode ser requerida “pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”.
Ou seja, o assistente não pode requerer a abertura da instrução pelos mesmos factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação, nem quanto a crimes particulares.
Excluindo desta apreciação qualquer crime particular – que se deve ter por definitivamente afastado do objecto do processo em face da falta de dedução da acusação particular – os factos descritos no RAI da assistente foram objecto de arquivamento total.
Não existindo, assim, inadmissibilidade legal da instrução requerida por esta via, sob pena de ficar coartada a possibilidade de intervenção judicial nas decisões de arquivamento do Ministério Público.
Por outro lado, dos pontos 40.º a 42.º e 44.º a 51.º do RAI estão ostensiva e claramente descritos todos os factos objectivos e subjectivos imputados ao arguido, (lugar, tempo e modo da ocorrência, bem como o correspondente dolo, nos mesmos termos habitualmente utilizados pelo Ministério Público), susceptíveis de responsabilidade criminal, com indicação de uma qualificação jurídica nos termos impostos pelo disposto nos arts. 283.º, n.º3 e 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal.
Ainda que se perceba a provável incorrecção da qualificação jurídica apresentada pela assistente (cuja compreensão radicará nos termos da fundamentação do despacho de arquivamento do Ministério Público), não é possível liminarmente excluir a responsabilidade do arguido pelos factos ali descritos, ainda que por diferente enquadramento penal.
Deve retirar-se desse objecto processual o facto 43.º do RAI atenta a sua exclusiva relevância para a imputação de um crime particular, o que, conforme foi já referido, não é admissível. Tendo apenas uma relevância circunstancial e de compreensão dos demais factos as palavras descritas no ponto 44.º do RAI podem ser consideradas.
Pelo que a instrução deve ser declarada aberta com o escopo de análise desses factos e da sua eventual relevância jurídico-penal, conforme é pretendido pela assistente.
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Decisão
Face ao exposto acordam os Juízes Desembargadores da 3ª. Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a. Considerar improcedente o recurso interposto pela assistente na parte relativa à arguição de nulidades do inquérito;
b. Revogar o despacho recorrido na parte referente à rejeição da abertura da instrução, que deverá ser substituída por outro que declare aberta a instrução requerida pela assistente quanto aos factos 40.º a 42.º e 44.º a 51.º do RAI, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Custas pela assistente, que se fixam em 3 UC, sem prejuízo do eventual apoio judiciário (art. 515.º, n.º1, b), do Código de Processo Penal), atenta a improcedência parcial do recurso.
Notifique também o parecer do Ministério Público.
Lisboa, 10 de Julho de 2025,
(elaborado pelo 1.º signatário e revisto)
João Bártolo
Rui Miguel Teixeira
Carlos Alexandre