PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
RUÍDO
RESTAURAÇÃO
APARELHO DE AR CONDICIONADO
COLISÃO DE DIREITOS
Sumário

I. Sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.
II. Conforme artigo 362.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPCivil, são dois os requisitos da tutela cautelar comum:
- A probabilidade séria da existência do direito invocado pelo requerente;
- O justo receio de que outrem cause lesão grave e irreparável ou dificilmente reparável a tal direito.
III. O indicado normativo exige ainda que a providência seja adequada à remoção do concreto periculum in mora.
IV. Por outro lado, ao abrigo do disposto no artigo 368.º, n.º 2, do CPCivil, o Tribunal pode negar o decretamento da providência requerida se os efeitos dela resultantes forem superiores àqueles que se pretendem evitar.
V. Os direitos constitucionalmente salvaguardados devem conjugar-se segundo um critério de proporcionalidade.
VI. O dever de abstenção de emissão de ruídos a que se reporta o artigo 1346.º do CCivil respeita à coisa e ao direito de gozo quanto à mesma, não relativamente à pessoa titular do direito sobre a coisa, pois nesta última situação a questão deve ser enquadrada no âmbito da ofensa do direito de personalidade, conforme o artigo 70.º, n.º 1, do CCivil.
VII. Na colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente prevalece o que deva considerar-se superior, sendo que tal não implica necessariamente a exclusão do outro ou outros direitos em causa, havendo que equacionar se no caso a justa composição deste pode ainda ser alcançada com uma adequação razoável do exercício do direito inferior, conforme aplicação ao caso do princípio da proporcionalidade.
VIII. Os cidadãos têm o direito de obterem dos tribunais as providências adequadas à proteção dos seus direitos de personalidade independentemente dos limites de ruído fixados no Regulamento Geral do Ruído estarem ou não a ser cumpridos.
IX. O ruído do equipamento de uma unidade de tratamento de ar e ar condicionado referente a um restaurante e instalado em prédio habitacional deve salvaguardar o direito ao sono, repouso e sossego dos residentes naquele prédio.
X. Ameaçado tal direito justifica-se que o Tribunal, em sede de procedimento cautelar comum, determine que o equipamento em causa seja desligado diariamente entre as 22 horas e as 10 horas do dia seguinte.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
Neste procedimento cautelar comum, em que são Requerentes AA, BB e LXCALLING, LDA., são Requeridas TROVAS100TROVADORES UNIPESSOAL, LDA, e EPL STRETFOOD LDA., vieram as Requerentes pedir que:
a) As Requeridas sejam condenadas «na imediata e incondicional remoção integral da instalação do motor de extração / exaustão, que ilegalmente instalaram no saguão do edifício»;
b) As Requeridas sejam condenadas «no pagamento de sanção pecuniária compulsória no montante de €1.000,00 (mil euros) por cada dia de incumprimento da injunção referida na alínea antecedente;
Subsidiariamente»,
c) Seja «ordenado o encerramento do estabelecimento (Restaurante) da 2.ª Requerida»;
d) Seja «a 2.ª Requerida condenada no pagamento de sanção pecuniária compulsória no montante de €1.000,00 (mil euros) por cada dia de incumprimento da injunção referida na alínea antecedente;
Subsidiariamente ainda»,
e) Seja «o período de funcionamento do estabelecimento (Restaurante) da 2.ª Requerida limitado ao período compreendido entre as 08h00 e as 20h00 nos dias de semana, sendo interdito o seu funcionamento ao fim de semana»;
f) Seja «a 2.ª Requerida condenada no pagamento de sanção pecuniária compulsória no montante de €1.000,00 (mil euros) por cada dia de incumprimento da injunção referida na alínea antecedente;
Em qualquer caso»,
g) Seja «invertido o contencioso, ficando as Requerentes dispensadas do ónus de propositura da ação principal».
Como fundamento dos seus pedidos, as Requerentes alegaram, em síntese, que as duas primeiras Requerentes são donas da fração H do edifício sito na Rua de São Paulo n.ºs ..., em Lisboa, destinado a habitação, correspondente ao 3.º andar direito, ao passo que a Requerida TROVAS100TROVADORES é dona das frações A e C do mesmo prédio, correspondentes ao rés-do-chão e cave, com entrada pelos números 120/124 e ..., sendo que o referido prédio tem um saguão que é parte comum do mesmo.
Referiram também que aquela Requerida deu à Requerida EPL a exploração do restaurante sito na referida fração C, a qual está autorizada a funcionar enquanto tal e possui um horário de funcionamento entre as 18 e as 01 horas, todos os dias da semana.
Mencionaram igualmente que as Requerentes AA e BB constituíram a Requerente LXCALLING e esta explora a fração H do aludido prédio, como alojamento temporário.
As Requerentes alegaram ainda que para efeitos de escoamento de fumos, odores, cheiros e resíduos produzidos no Restaurante explorado pela 2.ª Requerida, as Requeridas procederam à instalação de um equipamento de extração / exaustão desses fumos, odores, cheiros e resíduos, o qual produz um ruído e motiva que não sejam abertas as janelas da referida fração autónoma H viradas para o saguão, bem como obsta a uma normal conversação naquela fração e que quaisquer aparelhos sonoros sejam ligados em volume acima do normal, impedindo, assim, o sossego e o repouso dos seus habitantes, nos quais se inclui as Requerentes pessoas singulares, provocando ansiedade, dificuldade em adormecer, irritação e cansaço, o que causa prejuízos às Requerentes e é suscetível de insolvência da 3.ª Requerente.
A Requerida EPL deduziu oposição, alegando, em síntese, que se encontra instalada no saguão uma unidade de tratamento de ar com observância da legislação vigente e que o funcionamento desta não causa lesão grave ou de difícil reparação às Requerentes, sendo que o negócio destas coexiste com o funcionamento do restaurante desde pelo menos fevereiro de 2024 e as Requerentes deveriam ter recorrido à ação declarativa ou, quanto muito, ao procedimento de embargos de obra nova, quanto ao qual ocorreu caducidade, termos em que pediu a sua absolvição do pedido.
A Requerida TROVAS100TROVADORES apresentou igualmente oposição.
Alegou, em resumo, que em fevereiro de 2024 foi instalado no referido saguão o sistema de refrigeração e ar condicionado do mencionado restaurante, contando o mesmo com o assentimento de todos os condóminos e, entretanto, a ratificação da Assembleia de Condóminos, termos em que concluiu pela caducidade do direito de embargar tal instalação.
Referiu também que a exaustão/extração de fumos e gases é feita pela parte da frente do edifício e que o sistema de refrigeração e ar condicionado localizado no saguão do mesmo edifício não tem a intensidade, nem as consequências descritas pelas Requerentes, sendo que, entretanto, colocou um dissuasor no equipamento em causa.
Nestes termos, concluiu pela absolvição do pedido.
As Requerentes propugnaram pela improcedência da matéria de exceção invocada pelas Requeridas.
As partes apresentaram documentos e indicaram prova pessoal.
Em 05.03.2026 o Tribunal julgou «não verificada a excepção dilatória atinente a erro na forma de processo utilizada, uma vez que o procedimento cautelar comum, previsto no artigo 362.º do Cód. Proc. Civil, mostra-se o meio processual adequado à tutela dos direitos invocados pelas Requerentes».
Realizou-se audiência final, com sessões em 20.03 e 25.03.2025.
O Juízo Local Cível de Lisboa proferiu em 03.04.2025 sentença cujo dispositivo é do seguinte teor, no que aqui releva:
«[J]ulgo o presente procedimento cautelar comum parcialmente procedente e, em consequência disso:
(i) Determino que as Requeridas Trovas100trovadores Unipessoal Lda. e EPL Streetfood se abstenham de colocar em funcionamento o sistema de refrigeração (Unidade de Tratamento de Ar) e ar condicionado, instalado no saguão do prédio situado na Rua de São Paulo n.º ..., durante o horário compreendido entre as 22:00 e as 10:00, diariamente, devendo desligar o referido equipamento para o efeito, durante esse período de tempo.
(ii) Fixo em 500,00 euros (quinhentos euros) a sanção pecuniária compulsória que as Requeridas pagarão por cada dia em que incorram em incumprimento da injunção judicial constante da alínea i)».
Inconformada, a Requerida EPL recorreu daquela decisão, apresentando as seguintes conclusões:
«A. Entende a R., aqui Apelante, que o Tribunal a quo não proferiu decisão juridicamente acertada ao julgar o presente procedimento cautelar comum parcialmente procedente.
B. A ora Apelante assentou as suas Alegações nos seguintes vectores:
I) Impugnação da decisão acerca da matéria de facto;
II) Impugnação da decisão de direito - Dos pressupostos do procedimento cautelar comum;
III) Da desproporcionalidade da Decisão e do prejuízo considerável para a Recorrente –
Atribuição de efeito suspensivo do recurso.
C. No que concerne à Impugnação da decisão acerca da matéria de facto: a Recorrente pretende ver alterados [mediante a reapreciação da prova gravada e/ou documental] os factos dados como «indiciados» na sentença recorrida nos números 20., 21., 22., 23., 24., os quais devem ser dados como «não indiciados». Por seu turno, o facto 25. deve ser reformulado nos termos que acima se expuseram.
Para além disto, o facto H) deverá ser dado como «indiciado».
D. No que concerne ao facto 20 sempre se referirá que os depoimentos através dos quais a MMa. Juiz do Tribunal se baseou para dar como indiciado o presente facto foram os das Requerentes da ação [i.e. as únicas moradoras e condóminas que se queixam do ruído]. Ou seja, trataram-se de depoimentos totalmente tendenciosos, parciais e interessados, que não deverão merecer crédito.
E. Por seu turno, refere a MMa. Juiz do Tribunal a quo atribuiu credibilidade aos referidos depoimentos uma vez que os mesmos foram «confirmados pelo teor dos vídeos juntos como documentos n.ºs 15, 16 e 17 com o requerimento de 06-01-2025»1.
F. Ora, o Tribunal a quo assentou a sua convicção nos vídeos acima identificados e que foram sendo exibidos sem sede de Audiência de Julgamento. Vídeos, esses, pretensamente filmados da varanda da fração das Requerentes2 e nos quais é, alegadamente, reproduzido o ruído da unidade de tratamento de ar.
G. A Recorrente não só desconhece os termos em que foram filmados os referidos vídeos, como desconhece a veracidade e autenticidade dos mesmos!!
H. No entanto, deverá ter-se por certo e inequívoco o seguinte: a junção e exibição de uns vídeos gravados pelas próprias partes não pode ter a virtualidade de dar como provado uma violação da lei do ruído!
I. Por estarmos perante questões controversas de caracter técnico, tornar-se-ia necessária a produção de outro tipo de prova, nomeadamente pericial, ou mesmo por recurso a ensaios técnicos ou, eventualmente, estudos de incomodidade acústica – prova que não foi produzida nos autos.
J. As Requeridas bastaram-se em arrolar testemunhas [que acabaram por depor sobre algo completamento discricionário e subjectivo (porque o que é ruído para um individuo não será para outro)] e juntar vídeos nos quais, pretensamente, filmam a UTA e nos quais é registado o respectivo barulho da máquina.
K. Nestes termos, não poderia ter a MMa. Juiz ter dado como indiciado o facto 20, devendo o mesmo passar a constar dos «factos não indiciados».
L. No que concerne ao facto 21, Também aqui, a MMa. Juiz do Tribunal a quo criou a sua convicção nas declarações tomadas às partes AA e BB3.
M. Em momento algum foi junta aos autos qualquer queixa ou reclamação de qualquer hóspede que esteja relacionada com o barulho do equipamento [UTA e/ou AVAC] e, no que concerne ao descanso
da Requerente não é junto qualquer relatório médico que pudesse, porventura, sustentar a gravidade da sua lesão.
N. Desta forma, cabendo às Requerentes o ónus de alegação e prova e não tendo as mesmas demonstrado, como lhes competia, a factualidade constante deste número 21, deverá o mesmo ser dado como «não indiciado» - o que desde já se requer.
O. No que concerne ao facto 24, trata-se de um facto cuja prova poderia ter sido feita por via documental – o que não foi feito.
P. Foram, sim, juntas várias reclamações pela ora Recorrente, em sede de Contestação apresentada, as quais estavam sempre relacionadas com o ruído da rua e/ou com a falta de isolamento acústico da casa4. Ou seja, não tendo sido feita qualquer prova neste sentido deverá o mesmo ser dado como «não indiciado».
Q. Relativamente ao facto 25, também aqui, a MMa. Juiz do Tribunal a quo volta a formar a sua convicção nos depoimentos de parte das Requerentes.
R. Mais uma vez trataram-se de depoimentos totalmente tendenciosos e interessados, que não deverão merecer crédito, e que não foram corroborados pelas restantes Testemunhas.
S. Para o efeito veja-se o quanto referiu a Testemunha CC, gravado em suporte digital do Tribunal aos 25 de Março de 2025, desde o minuto 03:15 até 04:15 do respectivo depoimento, quando refere que é uma zona «100% turística» e que «é um caos», por se tratar de muitos «bares e restaurantes. (…) porta sim, porta sim.»
T. Nesta sede deverá ainda atender-se ao depoimento da Testemunha DD, gravado em suporte digital do Tribunal aos 25 de Março de 2025, desde o minuto 15:00 até ao minuto 17:14 do respectivo depoimento, que corrobora o quanto referiu a anterior Testemunha no sentido de se tratar de uma zona bastante turística.
U. Da análise crítica dos depoimentos prestados conclui-se que se trata de uma zona bastante turística, com grandes níveis de ruído na rua, todos os dias, até de madrugada.
V. Aliás, estamos perante um facto notório, acessível a qualquer pessoa mediante, por exemplo, uma consulta no «google maps».
W. Estamos a falar de uma das ruas mais movimentadas de Lisboa, situada no Cais do Sodré, a escassos metros da conhecida «Rua cor de rosa» e do Mercado «Time Out», na qual proliferam bares, restaurantes e vários estabelecimentos de diversão nocturna.
X. Desta forma, e face a tudo o quanto acima de referiu, nunca se poderá dar como «indiciado» o constante do facto 25, no sentido de se tratar de uma zona «residencial com níveis medianos de turismo, a qual denota um acréscimo de ruído provindo da rua, nas sextas-feiras e nos sábados».
Y. Neste sentido, da redação do facto 25 deverá passar a constar algo como:
«O prédio composto pelas frações C e H situa-se na Rua de São Paulo, n.º ..., a qual se localiza no centro de Lisboa, sendo uma zona turística, a qual denota um acréscimo de ruído provindo da rua, diariamente e até de madrugada.»
Z. Passando ao facto H dos «não indiciados», haverá que atender ao constante do depoimento da Testemunha DD, gravado em suporte digital do Tribunal aos 25 de Março de 2025, desde o minuto 27:30 até ao minuto 30:24 do respectivo depoimento, quando refere por exemplo:
«Testemunha DD: Mais tarde, após a Assembleia em que esteve uma das Autoras [a AA], e em que tiveram mais engenheiros, foi discutido por exemplo uma proteção das paredes, no sentido de isolar mais o som. Este prédio nunca foi reabilitado e por isso estas paredes já têm 100 anos.
Foi também proposto por exemplo a construção de um jardim vertical, com uma hera, que para além de efeitos visuais também iria insonorizar o saguão.»
AA. Para além deste depoimento, haverá que atender ao teor do Doc. n.º 24 da Petição Inicial que constitui a Acta da Assembleia de Condóminos de 14.10.2024 da qual resulta, no seu ponto 8, uma proposta feita pelas Requeridas para a redução do ruído - solução essa que passaria pela «instalação de uma peça no equipamento/proteção)» e que havia sido «preconizada pelo fabricante do equipamento de AVAC» - cfr. pág. 3 do mencionado documento junto com a Petição Inicial.
BB. Face ao exposto, e feita uma análise crítica e criteriosa tanto da prova testemunhal como da prova documental junta aos autos, deverá o facto H) ser dado como «indiciado».
CC. Passando à Impugnação de Direito, o decretamento de uma providência cautelar não especificada (ou comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos:
i) Probabilidade séria da existência de um direito;
ii) o fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação;
iii) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas;
iv) a adequação da providência solicitada para evitar a lesão;
v) não resultar da providência prejuízo superior ao dano que ela visa evitar.
DD. No que concerne ao primeiro requisito e conforme supra exposto, deverá concluir-se que as Requerentes não fizeram qualquer prova relativa ao ruído;
EE. As Requerentes não só não demonstraram que o barulho produzido pela UTA e/ou AVAC violasse os valores limites de exposição previstos no art. 11.º do Regulamento Geral do ruido [DL. 9/2007 de 17 de janeiro], como não provaram que o ruído em causa, afetasse o normal gozo e fruição da fração e a prossecução do objeto social da 3.ª Requerente.
FF. O segundo requisito também não se encontra verificado porquanto foi dado como provado que o sistema de UTA / AVAC está em funcionamento desde Fevereiro de 2024 e a presente providência cautelar foi intentada em Dezembro de 2024.
GG. Por outro lado, convém ainda não olvidar que foi dado como «não indiciado» que as Requerentes tenham solicitado a intervenção da Câmara Municipal de Lisboa e da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica5. Ou seja, as Requerentes decidiram fazer uso do presente procedimento cautelar sem nunca terem tentado avançar junto das entidades administrativas competentes.
HH. Da prova efectivamente produzida nos autos a quo, não se extraem quaisquer factos que resultem num receio de uma grave e irreparável lesão.
II. Em suma, face ao enquadramento jurídico e às considerações que antecedem, sempre deveria ter sido de negar a concessão de uma providência cautelar, por falta de verificação do requisito do periculum in mora.
JJ. Tal conclusão vai desaguar no quarto requisito, pois, ainda que as Requerentes entendessem existir a necessidade de acautelar um qualquer direito, nunca tal poderia ser efetivo com recurso a um procedimento cautelar, mas sim através de uma ação declarativa.
KK. Termos em que e atendendo a tudo o quanto se expôs ao longo das presentes Alegações, sempre se deverá concluir pela não verificação dos requisitos que fazem depender a procedência da providência cautelar, tornando-se por de mais evidente que não há qualquer direito a acautelar.
LL. Posto isto e passando ao 3.º Capítulo [Da desproporcionalidade da medida decretada e do prejuízo considerável para a Recorrente], analisando a medida decretada6 e tendo em consideração o horário de funcionamento do restaurante7, facilmente se concluirá que sendo determinado o encerramento do sistema de AVAC e UTA a partir das 22h, a Recorrente ver-se-á impossibilitada de exercer a sua actividade a partir dessa hora.
MM. Estamos em pleno mês de Maio, início de Verão e é um facto notório que tais equipamentos, nesta altura do ano, são essenciais ao funcionamento do restaurante.
NN. Não ser permitido que a Recorrente exerça a sua actividade em período noturno traduz-se numa medida drástica e desproporcional.
OO. Tal decisão, não obstante a sua natureza provisória, terá um efeito prático imediato e irremediável sobre o normal funcionamento da atividade económica da Requerente, afetando diretamente a sua faturação, a retenção de clientela e a imagem do estabelecimento, sobretudo numa época do ano em que a climatização se revela indispensável ao conforto dos clientes e à segurança alimentar.
PP. Note-se que não se provou que o ruído excedesse quaisquer limites legais. Aliás, as Requerentes são as únicas condóminas que se queixam do ruído. No máximo apenas se poderá concluir que exista um incómodo sensorial, que existirá no funcionamento de qualquer sistema de ar condicionado.
QQ. O que está em causa, portanto e conforme já se disse, não é uma lesão grave e irreversível, mas um desconforto gerível e mitigável, o que não justifica a imposição de uma providência tão restritiva.
RR. Desta forma, desde já se requer que ao presente Recurso seja atríbuido efeito suspensivo nos termos do art. 647.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
SS. A interdição do funcionamento do sistema de climatização a partir das 22h00 compromete de forma direta, imediata e objetiva a operação do restaurante, impedindo por completo que o mesmo esteja em funcionamento.
TT. Um eventual funcionamento sem um sistema de ar condicionado afectará de forma irremediável a actividade da Recorrente. Por seu turno, um encerramento às 22h num restaurante que serve apenas jantares teria consequências económicas drásticas.
UU. A limitação temporária de funcionamento nos termos decretados, ainda que cautelar, terá, assim, na prática o mesmo efeito de uma decisão definitiva, na medida em que os danos decorrentes da sua execução não serão reversíveis.
VV. Desta forma, e com vista à salvaguarda dos seus interesses e nos termos do n.º 4 do artigo 647.º do CPC, a Recorrente oferece-se para prestar caução no valor de 30.000,01€ (trinta mil euros e um cêntimo), mediante garantia bancária.
WW. Face ao exposto, deverá a Decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que decida pela improcedência da presente Providência Cautelar, com o que se fará a costumada Justiça!
Quod erat demonstrandum!
Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá a Decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que decida pela improcedência da Providência Cautelar.
Mais se requer que seja atribuído efeito suspensivo ao presente Recurso, nos termos do art. 647.º n.º 4 do Código de Processo Civil, mediante prestação de caução [garantia bancária] no valor de 30.000,01€ (trinta mil euros e um cêntimo).
Assim se fazendo a tão costumada Justiça».
A Requerida LXCALLING contra-alegou, sustentando a rejeição do recurso da decisão de facto quanto aos factos indiciariamente provados 20. a 24., bem como a manutenção da decisão recorrida.
O Tribunal recorrido fixou ao recurso efeito meramente devolutivo, o qual foi mantido pelo aqui relator no despacho que mandou inscrever o processo em tabela.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 663.º, n.º 2, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela Recorrente, está em causa apreciar e decidir:
• Da impugnação da decisão de facto;
• Do mérito da providência requerida.
Assim.
III.
DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO.
(Conclusões B. a BB. das alegações de recurso).
1. Segundo o disposto no artigo 640.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPCivil,
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Ou seja, sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, páginas 163 e 169, o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente», sendo que as exigências decorrentes do apontado regime legal «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (…)».
Na matéria, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2024, processo n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1, refere que «a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto apenas deve verificar-se quando falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, através da referência aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorretamente julgados (alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º), sendo de admitir que as restantes exigências (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º), em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações».
2. Na situação vertente.
A Recorrente impugnou os factos dados como indiciariamente provados sob os n.ºs 20. a 24., entendendo que os mesmos devem tidos como indiciariamente não provados, requereu a reformulação do facto provado n.º 25., conforme termos que expressamente indicou, e pediu que o facto indiciariamente não provado sob a alínea H) fosse dado como indiciariamente provado.
Tal decorre das conclusões C. a BB. das alegações de recurso, nas quais explicitou ainda os concretos meios probatórios que justificam o seu entendimento quanto aos indicados factos indiciários com o n.ºs 20., 21., 24., 25. e sob a alínea H, sendo que tal matéria consta igualmente, com maior desenvolvimento, da motivação de recurso da Recorrente, conforme respetivas fls. 8 a 19.
No que respeita aos factos indiciariamente provados com os n.ºs 22 e 23, quer nas conclusões de recurso, quer nas alegações deste, a Recorrente não indicou «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», conforme artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPCivil, incumprindo, pois, o ónus aí prescrito.
Tal não justifica, porém, a rejeição do recurso da matéria de facto quanto aos indicados factos 22. e 23. e muito menos a rejeição pura e simples do recurso da matéria de facto quanto aos indicados factos 20. a 24., como requer a Recorrida LXCALLING, designadamente nos pontos 9. e 12. a 20. da motivação das suas contra-alegações e respetiva conclusão C.
Com efeito, os factos dados como indiciariamente provados com os n.ºs 22. e 23. pressupõem a ocorrência de «um ruído audível» referido no facto n.º 20.: ambos aqueles factos começam com a expressão «em consequência do ruído», sendo que este consta do indicado facto 20.
Ora, tendo a Recorrente impugnado aquele facto 20, cumprindo quanto ao mesmo os indicados ónus legais de impugnação da matéria de facto, é manifesto que do resultado de tal impugnação podem decorrer efeitos quanto aos factos 22. e 23.: caso o facto 20 seja dado como não provado necessariamente assim se terá que entender também os factos 22. e 23., o que significa que a impugnação destes deve ser apreciada e decidida tão-só nessa medida, carecendo, pois, de fundamento a rejeição do recurso da matéria de facto requerida pela Recorrida.
2.1. Dos factos indiciariamente provados com os n.ºs 20 e 21.
O Tribunal recorrido deu aí como indiciariamente provado que:
«20. O sistema de refrigeração, denominado de unidade de tratamento de ar, e ar condicionado instalado pelas Requeridas produz um ruído audível no quarto virado para o saguão, na sala e na cozinha da fração H;
21. Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado, os hóspedes e as Requerentes que pernoitam no quarto virado para o saguão têm dificuldade em adormecer, o que lhes causa irritação, ansiedade e cansaço»
Fundamentou tal factualidade, em suma, na «análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência da vida», das «declarações tomadas às Requerentes AA e BB», no «teor dos vídeos juntos como documentos n.ºs 15, 16 e 17 com o requerimento de 06-01-2025», no depoimento das «testemunhas CC e EE» e «FF», bem como no «teor da ata de assembleia de condóminos realizada em 14-10-2024».
A Recorrente entende que a factualidade aqui em causa deve ser dada como indiciariamente não provada, considerando, basicamente, que os depoimentos de parte das Requerentes AA e BB e os referidos documentos n.ºs 15, 16 e 17 não merecem credibilidade e entendendo que deveria ter sido produzida «outro tipo de prova, nomeadamente pericial», «queixa ou reclamação de hóspedes que esteja relacionada com o barulho do equipamento» e «qualquer relatório médico que pudesse, porventura, sustentar a gravidade da sua lesão».
Por sua vez, a Recorrida LXCALLING entende que a factualidade em causa deve ser mantida, invocando para tal também os depoimentos das testemunhas FF, GG e HH.
Analisemos.
A partir do medio studio do citius, este Tribunal da Relação de Lisboa ouviu integralmente as declarações de parte das Requerentes AA e BB, assim como os depoimentos das testemunhas FF, GG, HH, CC e EE.
Considerou-se igualmente o documento n.º 14, junto com o requerimento inicial e referenciado por testemunhas ouvidas, assim como os documentos n.ºs 15, 16 e 17 do requerimento das Requerentes de 06.01.2025, bem como o documento n.º 24 junto com aquele requerimento de 06.01.2025 e o documento n.º 2 da oposição da Requerida TROVAS100TROVADORES.
Do confronto crítico de tais elementos probatórios, segundo as regras da lógica e da experiência comum, decorre indiciariamente provada a factualidade em causa: o sistema de refrigeração e ar condicionado instalado produz um ruído audível no quarto virado para o saguão, na sala e na cozinha da fração H, o que perturba o necessário sossego dos que pernoitam no quarto daquela fração, causando-lhes dificuldade em adormecer, irritação, ansiedade e cansaço.
As testemunhas FF, rececionista da Requerente/Recorrida LXCALLING na indicada fração H, e GG, empregada de limpeza daquela Requerente também na mesma fração, foram perentórias quanto à existência do referido ruído a partir do equipamento instalado no restaurante da Requerida EPL, sendo que significaram os respetivos efeitos conforme indicado como indiciariamente provado na decisão recorrida, aludindo ainda a inúmeras reclamações apresentadas pelos clientes da Requerente LXCALLING quanto ao ruído em causa.
A testemunha HH, amigo das Requerentes AA e BB referiu-se igualmente ao referido ruído nos mesmos termos e significado, tendo sido ele que gravou um dos vídeos que foi junto aos autos, relativamente ao qual referiu exprimir a situação efetiva em causa.
As testemunhas CC e EE, arrolados pela Recorrente/Requerida EPL, diretor operacional desta e projetista do equipamento em causa, respetivamente, aceitaram que o mesmo equipamento causa ruído, embora minimizando-o quando confrontados com os vídeos ouvidos e constantes dos autos, sendo que nunca experimentaram a situação concreta relativa à indicada fração H, pois nunca aí estiveram.
Por outro lado, o documento n.º 14 do requerimento inicial e os documentos n.ºs 15, 16 e 17 do requerimento das Requerentes de 06.01.2025, bem como o documento n.º 24 junto com aquele requerimento de 06.01.2025 e o documento n.º 2 da oposição da Requerida TROVAS100TROVADORES, objeto de prova testemunhal ouvida, enquadram a situação em causa.
Aqueles primeiros quatro documentos constituem, respetivamente, uma fotografia e três vídeos quanto ao equipamento em causa, sendo indiscutível o respetivo ruído a partir de tais vídeos, um ruído audível, independentemente da consideração do grau da sua intensidade.
O outro documento constitui uma ata da Assembleia de Condóminos de 14.10.2024, relativa ao prédio que integra a referida fração H, constando dela além do mais, no respetivo ponto 8., a fls. 3 e 4, que:
«A Assembleia foi informada pelo Sr. DD, representante da empresa Trovas l00Trovadores Unipessoal, Lda., condómina das frações A e C, correspondentes à Loja A e C, que a solução preconizada pelo fabricante do equipamento de AVAC instalado no saguão para reduzir a emissão de ruido, é a instalação de uma peça no equipamento (uma proteção). Esta solução suscitou reservas a alguns dos presentes, nomeadamente pela inexistência de qualquer projeto, tendo no entanto sido submetida a aprovação a autorização da instalação da peça de proteção sobre o equipamento.
Resultado da votação:
680 votos a favor (frações: A, B, C, D, E, F, G, J e M);
160 votos contra (frações: H e L);
Autorizou-se a instalação da peça de proteção do fabricante do AVAC existente no logradouro, sobre aquele equipamento para reduzir o ruído».
Ora, de tal decorre claro que em outubro de 2024 o referido equipamento produzia um «ruído» e que se pretendia «reduzir» o mesmo, sinal de que ele era significativo e com efeitos, sabendo-se da audição das testemunhas FF e GG que o problema do ruído persistia nos mesmos termos à data da sua inquirição, 25.03.2025, e da testemunha EE que não lhe foi pedido solução quanto ao mesmo ruído.
Neste contexto, as declarações de parte das Requerentes AA e BB, consonantes com a factualidade indiciariamente considerada provada, são apenas um elemento probatório corroborante do demais probatório indicado, mostrando-se despiciente o recurso a prova pericial ou a junção de relatórios médicos para prova da factualidade em causa, tanto mais que em causa está apenas um juízo meramente indiciário, pois os presentes autos constituem um procedimento cautelar, sem inversão do contencioso.
Em razão do exposto, importa, pois manter os factos indiciariamente provados n.ºs 20 e 21 nos termos expostos na decisão recorrida, improcedendo, assim, o recurso nesta sede.
2.2. Dos factos indiciariamente provados com os n.ºs 22 e 23.
O Tribunal recorrido deu então como indiciariamente provado que:
«22. Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado, os hóspedes, Requerentes e qualquer pessoa que se encontre na sala, cozinha e quarto virados para o saguão, que compõem a fração H não conseguem ter uma conversa em volume normal, caso as janelas de tais divisões se encontrem abertas;
23. Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado, não é audível o som/música produzido por qualquer aparelho sonoro que se encontre ligado em volume normal nas divisões que dão para o saguão, caso as janelas se encontrem abertas».
Conforme resulta do ponto precedente, a discordância da Recorrente decorre da sua impugnação do facto n.º 20, valendo tão-só na medida em que proceda esta, pois quanto aos factos 22 e 23 a Recorrente não indicou meios de prova que impusessem decisão diversa da recorrida, conforme referido artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do CPCivil.
Ora, improcedendo a impugnação quanto ao facto 20, urge nesses termos manter a decisão recorrida quanto aos factos indiciariamente provados n.ºs 22 e 23, improcedendo, pois, também nesta parte, o recurso.
De todo o modo, mesmo que assim não fosse, a factualidade em causa resulta do confronto crítico do depoimento das testemunhas FF, GG e HH segundo as regras da lógica e da experiência comum, decorrendo daí a factualidade em causa.
2.3. Do facto indiciariamente provado com o n.º 24.
Sob aquele número, consta da decisão recorrida como indiciariamente provado que:
«24. Alguns hóspedes da 3.ª Requerente já efetuaram reclamações sobre o ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado».
O Tribunal recorrido fundamentou tal basicamente no depoimento da testemunha FF
A Recorrente entende que tal factualidade deve ser dada como indiciariamente não provada em razão, em suma, da ausência de prova documental que a motive.
Por sua vez, a Recorrida LXCALLING entende de manter a decisão recorrida, alegando que a factualidade em causa decorre «de inequívoca prova testemunhal».
Vejamos.
A testemunha FF foi muito afirmativa quanto à factualidade em causa: referiu claramente e por diversas vezes que os hóspedes que pernoitam no quarto da fração H, com janela para o saguão, queixam-se do ruído decorrente deste e que muitas vezes tem de os mudar de quarto em noite ou noites subsequentes.
O tom perentório e coerente do seu depoimento não coloca as mínimas dúvidas quanto à respetiva veracidade de tal.
A circunstância de haver aquela mudança de quarto explica que não sucedam reclamações formais, designadamente em plataformas informáticas, quanto à LXCALLING.
O constante do artigo 59.º da oposição da Recorrida EPL reporta-se apenas a duas situações ocorridas após o início do funcionamento do equipamento em causa, 09.09.2024 e 21.10.2024, e só por si não desdizem tal prova testemunhal, pois, desde logo, desconhece-se se quem colocou tais posts pernoitou ou não no quarto com janela para o saguão.
De todo o modo, diversamente do que parece supor a Recorrente, a prova da factualidade em causa não depende da apresentação de documentação, sendo admissível na matéria prova testemunhal, livremente apreciada pelo Tribunal.
Nestes termos, também improcede nesta sede o recurso, mantendo-se, pois, os factos em causa, conforme decisão recorrida.
2.4. Do facto indiciariamente provado com o n.º 25.
Consta aí como indiciariamente provado que:
«25. O prédio composto pelas frações C e H situa-se na Rua de São Paulo, n.º ..., a qual se localiza no centro de Lisboa, sendo uma zona residencial com níveis medianos de turismo, a qual denota um acréscimo de ruído provindo da rua, nas sextas-feiras e nos sábados».
O Tribunal recorrido fundamentou tal no «depoimento de parte da 1.ª Requerente, a qual confessou a aludida factualidade nos termos nessa sede descritos, conforme resulta da respetiva assentada», sendo que na ata da sessão de julgamento de 20.03.2025 consta que como tal que «[p]ela depoente [AA] foi referido que o prédio onde se situa o alojamento local explorado pela empresa que representa, se situa na Rua de São Paulo, n.º 126 a ..., que se caracteriza por ser uma zona residencial, mas com níveis medianos de turismo em que se denota um acréscimo de barulho proferidos da rua, nas sextas feiras e aos sábados».
A Recorrente entende que a referida factualidade deve passar a ter a seguinte redação:
«25. O prédio composto pelas frações C e H situa-se na Rua de São Paulo, n.º ..., a qual se localiza no centro de Lisboa, sendo uma zona turística, a qual denota um acréscimo de ruído provindo da rua, diariamente e até de madrugada».
Para tal invoca o depoimento das testemunhas CC e DD, referindo que se trata de «um facto notório».
Por sua vez, a Recorrida LXCALLING invoca o depoimento da testemunha HH e conclui pela manutenção da decisão recorrida.
Analisemos.
A factualidade em apreço é inócua à decisão do mérito da causa: esta tem a ver com o ruído decorrente de equipamento instalado no saguão e os respetivos efeitos, não se alcançando a conexão entre tal e a natureza da zona envolvente, habitacional/turística, assim como o alegado ruído nela existente.
Aliás, a factualidade em causa está envolta de compreensões subjetivas que as boas praticas recomendam não dever constar da factualidade apurada, designadamente quando tem natureza controversa: «zona residencial», «zona turística», «níveis medianos de turismo», «acréscimo de ruído».
Por outro lado, o facto indiciariamente provado n.º 26., não impugnado, é suficientemente elucidativo quanto à zona envolvente do prédio em causa, objetivando o necessário e o ora possível à sua compreensão.
Em consequência, o facto indiciariamente provado 25. deve passar a ter a seguinte redação:
«25. O prédio composto pelas frações C e H situa-se na Rua de São Paulo, n.º ..., localizada no centro de Lisboa, com habitações e afluência diária de turistas».
2.5. Do facto indiciariamente não provado sob a alínea H).
O Tribunal recorrido deu aí como indiciariamente não provado que:
«H) As Requeridas já apresentaram soluções para mitigar o ruído proveniente do ar condicionado (unidade de tratamento de ar), e as Requerentes inviabilizaram todas as medidas e intervenções apresentadas».
Fundamentou tal nos seguintes termos:
«Os factos plasmados em G) e H) surgiram não indiciados, porquanto não se fez prova segura, ainda que a título indiciário, da sua verificação, na medida em que, por um lado, surgiu do depoimento da testemunha DD, que a única medida adoptada para fazer à diminuição do som, foi a introdução de um regulador de velocidade da extração no equipamento. No entanto, tal afirmação foi contrariada pelo depoimento da testemunha CC, diretor operacional, que afirmou que o sistema de regulação de velocidade foi instalado duas semanas depois da abertura do restaurante Cosmo, extraindo-se de tal afirmação que o propósito da sua instalação foi permitir uma maior capacidade de insuflação do ar exterior e não o de reduzir o ruído. Por outro lado, a testemunha EE, técnico que procedeu à instalação do sistema de refrigeração, negou categoricamente que as Requeridas lhe tenham solicitado a adopção de qualquer medida para reduzir o ruído provocado pela máquina, medida essa que, aliás, revelou ser de difícil execução, considerando que tal máquina iria sempre produzir ruído.
Já quanto ao facto plasmado em H) o mesmo deu-se como não indiciado uma vez que não resulta do teor da ata de assembleia de condóminos datada de 14-10-2024 e junta de fls. 91 a 93, que tenha sido apresentada uma medida concreta que fosse eficaz na mitigação do ruído provocado pelo sistema de refrigeração (UTA) e ar condicionado, porquanto a referência a «(…) instalação de uma peça no equipamento (uma proteção)» é demasiado vaga, o que aliás (compreensivelmente) mereceu o voto contra das Requerentes, na medida em que não conseguiram alcançar a eficácia da instalação da referida peça na redução do ruído, nem tão pouco qual a concreta peça a ser instalada».
A Recorrente entende que tal facto deve ser dado como indiciariamente provado com fundamento no depoimento da testemunha DD e no ponto 8 da referida ata de condomínio de 14.10.2025, documento n.º 24 da petição inicial e documento n.º 2 da oposição da Requerida TROVAS100TROVADORES.
Diversamente, a Recorrida LXCALLING, socorrendo-se dos depoimentos das testemunhas CC e EE, entende que a decisão recorrida não deve ser alterada.
Vejamos.
Conforme já deixámos escrito, este Tribunal da Relação de Lisboa ouviu integralmente os depoimentos das testemunhas CC e EE a partir do medio studio do citius, assim como examinou o ponto 8 da referida ata de condomínio de 14.10.2024 referente ao prédio que integra a referida fração H.
Igualmente a partir do médio studio do citius, este Tribunal da Relação de Lisboa ouviu-se também integralmente o depoimento da testemunha DD.
Ora, do confronto crítico de tais elementos probatórios segundo as regras da lógica e da experiência comum entende-se inexistirem razões para alterar a decisão recorrida.
Com efeito, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas CC e EE decorre que o regulador de velocidade de extração foi colocado pouco tempo depois da instalação do equipamento causador do ruído, entre três semanas e dois meses, conforme resulta do que afirmaram respetivamente aquelas testemunhas, no propósito de permitir uma maior capacidade de insuflação do ar exterior e não propriamente no intuito de reduzir o ruído, sendo que aquela última testemunha, que projetou a instalação do equipamento em causa, foi perentória em afirmar que nunca lhe pediram que apresentasse solução para minimizar o ruído em causa, opinando que tal tarefa seria até delicada, pois fez significar que este tipo de equipamentos produz sempre ruído e vem definições de fábrica.
Neste contexto, o depoimento da testemunha DD quanto à apresentação de soluções quanto ao ruído e inviabilizadas pelas Requerentes configura-se inconsistente, quer porque o mesmo alude a soluções que não constam da ata e não estão minimamente documentadas quanto à sua eficácia, caso do «jardim vertical de hera», bem como do «tratamento das paredes» do saguão, quer porque relativamente à solução constante da ata, colocação de uma peça de proteção do equipamento, a própria testemunha referiu problemas, sendo que a execução daquela medida acabou por não ser executada, apesar da aprovação da mesma na referida assembleia de condóminos de 14.10.2024.
Concluindo, improcede também nesta sede a pretensão da Recorrente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
*
Em razão do exposto, este Tribunal da Relação de Lisboa tem, pois, por indiciariamente provados os seguintes factos:
1. A sociedade TROVAS100TROVADORES, UNIPESSOAL LDA., é uma sociedade por quotas que tem por objeto social a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e arrendamento de bens imóveis;
2. A sociedade EPL STREETFOOD, LDA., é uma sociedade por quotas que tem por objeto social a atividade de restauração, em especial a exploração de restaurantes, atividades de restauração em meios móveis, o fornecimento de refeições para eventos e outras atividades de serviço de refeições, a exploração de estabelecimentos de bebidas em especial de bares;
3. A sociedade LXCALLING, LDA., é uma sociedade por quotas, que foi constituída em 28.04.2008, e que tem por objeto social o alojamento, apoio e prestação de serviços a turistas;
4. Desde a sua constituição, são sócias da LXCALLING, LDA., BB e AA, titulares, cada uma, de uma quota no valor de € 2.500;
5. A sociedade LXCALLING, LDA., é titular da marca LISBON CALLING, marca nacional n.º 468440, com registo concedido a 10 de setembro de 2010, para a classe n.º 453 de Nice [alojamento temporário (aluger de -); hoteleiros (serviços -)];
6. Pela Ap. 23, de 17.12.2003, encontra-se registada a constituição da propriedade horizontal do prédio situado na Rua de São Paulo, n.ºs ..., freguesia de São Paulo e concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 795, nas seguintes frações autónomas:
- Fração: A,
- Fração: B,
- Fração: C,
- Fração: D,
- Fração: E,
- Fração: F,
- Fração: G,
- Fração: H,
- Fração: I,
- Fração: J,
- Fração: L,
- Fração: M;
7. Pela Ap. 19, de 24.09.2007, encontra-se registada a alteração da propriedade horizontal do prédio identificado em 6), mais concretamente a divisão da fração C nas seguintes frações:
- Fração: C,
- Fração: N;
8. O prédio identificado em 6. é constituído por um saguão, cujo uso não foi afeto exclusivamente a nenhuma fração, nem é parte integrante de qualquer das frações que o compõem;
9. Pela Ap. 3869, de 26.05.2023, encontra-se registada a aquisição, por compra, a favor de TROVAS100TROVADORES UNIPESSOAL, LDA., da fração C (doravante, fração C) correspondente ao rés-do-chão, com entrada pelo n.º ... do prédio situado na Rua de São Paulo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de São Paulo, concelho de Lisboa, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 795;
10. A fração C referida em 9) possui o Alvará de Utilização n.º 456/UT-CML/2017, emitido em 27.07.2017, pela Câmara Municipal de Lisboa, o qual autoriza a utilização da fração para restauração;
11. Desde fevereiro de 2024, que a sociedade EPL STREETFOOD, LDA., explora o restaurante, denominado “COSMO”, com o consentimento e autorização da sociedade TROVAS100TROVADORES UNIPESSOAL, LDA., na fração C;
12. O restaurante “COSMO” possui um horário de funcionamento entre as 18:00 (dezoito horas) e as 01:00 (uma hora), todos os dias da semana;
13. Pela Ap. 23, de 30.01.2008, encontra-se registada a aquisição, por compra, a favor de AA e BB da fração H (doravante, fração H) correspondente ao 3.º andar direito, destinado a habitação, do prédio situado na Rua de São Paulo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de São Paulo, concelho de Lisboa, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 795;
14. A fração H é composta por quatro quartos, uma sala e uma cozinha, sendo um dos quartos, a sala e a cozinha virados para o saguão e os outros três quartos virados para a fachada do prédio;
15. A fração H é explorada pela sociedade LXCALLING, LDA., através do uso da marca LISBON CALLING, como alojamento temporário;
16. A 1.ª Requerente pernoita, ocasionalmente, na fração H, em quartos não ocupados por hóspedes;
17. A 2.ª Requerente habita na fração H, desde janeiro de 2025, e pernoita no quarto que se encontra virado para o saguão;
18. Pelo menos a partir de fevereiro de 2024, que as Requeridas procederam à instalação, no saguão do prédio referido em 6), do sistema de refrigeração, denominado de unidade de tratamento de ar, e ar condicionado;
19. O sistema de refrigeração, denominado de unidade de tratamento de ar e ar condicionado, é ligado, pelo menos, durante o horário de funcionamento do restaurante «COSMO», entre as 18:00 e a 01:00, todos os dias da semana;
20. O sistema de refrigeração, denominado de unidade de tratamento de ar, e ar condicionado instalado pelas Requeridas produz um ruído audível no quarto virado para o saguão, na sala e na cozinha da fração H;
21. Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado, os hóspedes e as Requerentes que pernoitam no quarto virado para o saguão têm dificuldade em adormecer, o que lhes causa, irritação, ansiedade e cansaço;
22. Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado, os hóspedes, Requerentes e qualquer pessoa que se encontre na sala, cozinha e quarto virados para o saguão, que compõem a fração H não conseguem ter uma conversa em volume normal, caso as janelas de tais divisões se encontrem abertas;
23. Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado, não é audível o som/música produzido por qualquer aparelho sonoro que se encontre ligado em volume normal nas divisões que dão para o saguão, caso as janelas se encontrem abertas;
24. Alguns hóspedes da 3.ª Requerente já efetuaram reclamações sobre o ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado;
25. O prédio composto pelas frações C e H situa-se na Rua de São Paulo, n.º ..., localizada no centro de Lisboa, com habitações e afluência diária de turistas;
26. Na Rua de São Paulo existem diversos bares e restaurantes, e o prédio referido em 6) localiza-se em frente à Igreja de São Paulo, a dois quarteirões do mercado da ribeira.
*
Este Tribunal da Relação de Lisboa tem como indiciariamente não provado que:
A) Para efeitos de escoamento de fumos, odores, cheiros e resíduos produzidos no Restaurante “COSMO” explorado pela 2.ª Requerida, na fração C, as Requeridas procederam à instalação de um motor de extração/exaustão, no saguão do prédio;
B) O ruído produzido pelo motor de extração/exaustão é audível no interior da fração H, propagando-se pelos quartos, sala e cozinha da fração;
C) O ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado propaga-se para o interior de toda a fração H, incluindo para os outros três quartos que se encontram virados para a frente do prédio;
D) Em consequência do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado instalado pelas Requeridas no saguão do prédio, a 3.ª Requerente não consegue prosseguir a sua atividade económica na fração H, devido à falta de hóspedes e encontra-se em situação económico-financeira deficitária;
E) No âmbito do ruído produzido pelo sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado instalado pelas Requeridas no saguão do prédio, as Requerentes solicitaram a intervenção dos serviços de fiscalização da Câmara Municipal de Lisboa e da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica;
F) O ruído audível na fração H provém exclusivamente do barulho da Rua de São Paulo;
G) As Requeridas instalaram um dissuasor de som no sistema de refrigeração, unidade de tratamento de ar e ar condicionado que mitigou o ruído provocado pelo equipamento;
H) As Requeridas já apresentaram soluções para mitigar o ruído proveniente do ar condicionado (unidade de tratamento de ar), e as Requerentes inviabilizaram todas as medidas e intervenções apresentadas;
I) A atividade da 2.ª Requerida depende do funcionamento do sistema de refrigeração;
J) A remoção do sistema de refrigeração do estabelecimento explorado pela 2.ª Requerida conduziria ao seu encerramento.
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
(Conclusões A., B., CC. a QQ. e WW. das alegações de recurso)
Os presentes autos constituem um procedimento cautelar comum.
O Tribunal recorrido determinou que as Requeridas se abstenham de colocar em funcionamento o sistema de refrigeração e ar condicionado em causa, entre as 22 horas e as 10 horas do dia seguinte, diariamente, desligando tal equipamento durante aquele lapso de tempo, bem como fixou uma sanção pecuniária compulsória no valor de €500,00 por cada dia de incumprimento.
Fundamentou tal decisão na violação de direitos de personalidade da Requerente BB, considerando estar em causa «uma lesão grave e irreparável» e invocando «o princípio da prevalência dos direitos de personalidade sobre os direitos de iniciativa económica».
Por sua vez, a Recorrente entende que na situação vertente não ocorre qualquer lesão grave e dificilmente reparável quer por não ter sido feita «prova adequada» quanto a tal, quer por não se estar «perante uma situação iminente, recente ou urgente».
Alega também que não se demonstrou que as Requerentes tenham previamente «solicitado a intervenção da Câmara Municipal de Lisboa e da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica», nem «que o barulho produzido pela UTA e/ou AVAC violasse os valores limites de exposição indicados no art. 11.º do Regulamento Geral do Ruído».
A Recorrente refere ainda que a providência solicitada é inadequada para evitar a lesão, tendo a mesma sido intentada sem qualquer fundamento e em abuso de direito, ocorrendo «desproporcionalidade da medida decretada e do prejuízo considerável para a Recorrente».
Analisemos.
1. Nos termos do artigo 362.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPCivil, «[s]empre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado», sendo que «[o] interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor» e as providências cautelares não especificadas «não são aplicáveis (…) quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por algumas das providências» legalmente «tipificadas».
Naqueles termos, são, pois, dois os requisitos da tutela cautelar comum:
(i) A probabilidade séria da existência do direito invocado pelo requerente: este deve alegar e provar que tem um direito ou interesse juridicamente relevante relativamente ao requerido, não sendo, contudo, necessário um juízo de certeza, mas apenas de simples verosimilhança ou aparência do direito, o denominado fumus boni juris;
(ii) o justo receio de que outrem cause lesão grave e irreparável ou dificilmente reparável a tal direito, o chamado periculum in mora.
O indicado normativo exige ainda que a providência seja adequada à remoção do concreto periculum in mora, assegurando, assim, a efetividade do direito ameaçado, o que tem a ver com a escolha do procedimento e não constitui propriamente um requisito do decretamento do procedimento cautelar comum.
Por outro lado, ao abrigo do disposto no artigo 368.º, n.º 2, do mesmo CPCivil, «a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar».
Ou seja, o Tribunal pode negar o decretamento da providência requerida se os efeitos dela resultantes forem superiores àqueles que se pretendem evitar, havendo aqui uma ponderação dos interesses em jogo, segundo um princípio de proporcionalidade.
2. O direito à integridade pessoal, física e moral, o direito ao trabalho, o direito de livre exercício da iniciativa económica privada, o direito de propriedade privada, o direito à proteção da saúde e o direito a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado constituem direitos constitucionalmente salvaguardados, conforme artigos 25.º, 58.º, 61.º, 62.º, 64.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa, respetivamente.
Embora de natureza diversa, tais direitos devem conjugar-se segundo um critério de proporcionalidade, conforme artigo 18.º, n.º 2, daquela Lei Fundamental: «as restrições [de direitos] devem restringir-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Como refere Jorge Miranda, Direitos Fundamentais, edição de 2020, páginas 337, 339 e 340, «[a] ideia de proporcionalidade é conatural às relações entre pessoas: a reação deve ser proporcional à ação e a distribuição das coisas deve fazer-se com justiça», sendo habitual distinguirem-se «três subprincípios: idoneidade ou adequação, necessidade ou exigibilidade e racionalidade ou proporcionalidade strito sensu».
3. No plano do direito civil, a «tutela geral da personalidade» encontra-se consagrada no artigo 70.º do CCivil, conferindo ao ofendido, em caso de «ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral», o direito de «requerer as providências adequadas à circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida» e, pois, providências de natureza inibitória ou repristinatória, respetivamente, incluindo providências inominadas.
Como refere Luísa Neto, Código Civil Anotado, volume I, com coordenação de Ana Prata, edição Almedina, 2024, página 112, em anotação ao referido artigo 70.º do CCivil, «[o] artigo limita-se a declarar, em termos muito genéricos e muito sucintos, a ilicitude das ofensas ou das ameaças à personalidade física ou moral dos indivíduos, sem descer a minuciosa referência analítica. A delimitação de acordo com as circunstâncias do caso é deixada à lei, à jurisprudência e à doutrina, pelo que são naturalmente admitidas para este efeito providências inominadas, nos termos do processo civil e administrativo».
4. O direito de gozo de coisa imóvel não é ilimitado. Ele acarreta, além do mais, no dever de abstenção de «emissão de (…) ruídos (…), «sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel [vizinho] ou não resulte da utilização normal do prédio de que emanam», conforme artigo 1346.º do CCivil.
Sem aqui entrar na discussão se tais requisitos são alternativos ou cumulativos, em causa estão agravos quanto ao objeto e não relativamente à pessoa titular do direito sobre a coisa, pois nesta última situação a questão deve ser enquadrada no âmbito da ofensa do direito de personalidade, conforme o referido artigo 70.º, n.º 1, do CCivil, não nos termos do artigo 1346.º do CCivil.
Como refere Elsa Vaz de Sequeira, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, edição da Universidade Católica Editora, edição de 2021, página 255, em anotação ao artigo 1346.º, «[a] inserção sistemática, o teor literal e a própria teleologia subjacente a este artigo indicam de forma clara que as restrições aí previstas tutelam tão-só o direito de gozo alheio».
«(…) A essas restrições somam-se as restrições impostas pelos direitos de outra natureza, mormente, pelos direitos de personalidade. O que vale por dizer que a norma que prevê um direito de personalidade ou a cláusula geral estabelecida no n.º 1 do artigo 70.º podem igualmente determinar restrições ao conteúdo dos direitos de gozo sobre imóveis, proibindo, nomeadamente, a prática de atos que ofendam um bem de personalidade. Em caso de desrespeito por essa restrição a tutela far-se-á de acordo com o n.º 2 do artigo 70.º e não ao abrigo da norma ora em análise».
«(…) O artigo 1346.º enuncia os critérios a ter em conta na delimitação recíproca do conteúdo dos direitos de gozo, não porém na delimitação recíproca entre o direito de gozo e o direito de propriedade. Numa palavra, o objeto protegido pelo artigo 1346.º é o prédio e não a pessoa do titular (Sandra Passinhas, [Propriedade e Personalidade no Direito Civil Português] 2017: 488 e 499)».
5. Em caso de «colisão de direitos», o artigo 335.º do CCivil distingue entre «direitos iguais ou da mesma espécie» e «direitos desiguais ou de espécie diferente»: no primeiro caso, «devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes», ao passo que «[s]e os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior».
Naquela última situação a prevalência do direito «superior» não implica necessariamente a exclusão do outro ou outros direitos em causa, havendo que equacionar se no caso a justa composição deste pode ainda ser alcançada com uma adequação razoável do exercício do direito inferior, conforme aplicação ao caso do princípio da proporcionalidade.
Como refere Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, edição de 2010, página 620, «[a] encerrar o regime da colisão entre direitos desiguais ou de espécies diferentes, resta assinalar o significado da prevalência do direito considerado superior. Como corolário, de algum modo, das diferentes circunstâncias que a hierarquização dos direitos revista, em concreto, dela pode resultar a exclusão do exercício do direito inferior, o seu exercício limitado ou diferente do admissível, em abstrato, ou do que vinha a verificar-se».
No mesmo sentido refere Elsa Vaz de Sequeira, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, edição da Universidade Católica Editora, edição de 2014, página 793, em anotação ao artigo 335.º, «na hipótese de se concluir pela superioridade de um direito relativamente ao outro, (…) deve[-se] encontrar uma solução que, sem prejuízo de dar prevalência ao superior, acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido. Com efeito, a prevalência do exercício de um direito relativamente ao exercício de outro direito não significa a exclusão obrigatória e completa deste último. Sempre que seja viável, o juiz deve tentar assegurar alguma oportunidade de exercício ao direito tido por inferior».
Também nesta ótica, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2021, processo n.º 19/18.5T8CBC.G1.S1, sumariou-se que «[o] direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de uma parte prevalece sobre o direito à actividade económica da outra» sendo que «[a] harmonização entre esses direitos há-de obedecer ao princípio da proporcionalidade de modo que, se possível, a afirmação de um direito não implique necessariamente a exclusão do outro».
Em sentido idêntico, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2023, processo n.º 773/19.7T8CBR.C1.S1, refere que «como é entendimento deste STJ, havendo colisão de direitos de espécies diferentes, dum lado o direito à integridade física, ao descanso e ao sono, e do outro o direito ao exercício de uma atividade comercial, prevalece o que deva considerar-se superior, nos termos do n.º 2 do art. 335º do Cód. Civil e não há dúvida de que o direito ao repouso é de valor superior ao direito de exercício de uma atividade comercial».
De todo o modo, «“o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses, inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não for possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite no mínimo o direito secundário[”] (Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 1995, pág. 549)».
«Portanto, a prevalência de um direito superior relativamente ao inferior não significa o “esmagamento” do segundo pelo primeiro».
«E este princípio de proporcionalidade sai reforçado se ambos os direitos forem, como é o caso, tutelados constitucionalmente: os direitos de personalidade encontram abrigo no art. 25º da CRP, subordinado à epígrafe” Direito à Integridade Pessoal”, que inclui a integridade moral e física (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, volume I, 4ª edição revista, pág. 455); e o direito de exploração de atividade comercial no art. 61º da CRP, que protege a liberdade de iniciativa privada (ob. cit. pág. 790)».
«Neste caso, a harmonização de tais direitos deverá conformar-se com as exigências contidas no art. 18º da Constituição mormente com o princípio da proporcionalidade inscrito na parte final do nº 2».
6. No caso vertente.
Em função do alegado e do contexto factual indiciariamente apurado, consigna-se que:
(i) No âmbito da tutela da sua personalidade, a Requerente BB tem direito ao sono, repouso e sossego, designadamente a dormir e viver sem ruídos provocados por outrem;
(ii) Tal direito encontra-se fortemente ameaçado em razão do ruído decorrente de aparelho da Recorrente, havendo um fundado receio de lesão grave e irreparável do mesmo direito, conforme designadamente factos indiciariamente provados 17., 18., 19., 20. e 21;
(iii) A decretada proibição de funcionamento do referido aparelho, diariamente, entre as 22 horas e as 10 horas do dia seguinte, mostra-se adequada à salvaguarda do direito ao repouso e sossego da Requerente BB, mostrando-se, pois, assim assegurada a efetividade do direito ameaçado;
(iv) O prejuízo resultante daquela proibição não exceda consideravelmente o dano que através dela se pretende.
Explicitando.
A providência decretada funda-se exclusivamente na tutela da personalidade da Requerente BB, designadamente no seu direito ao sono, repouso e sossego.
Tal providência não foi decretada em função de direitos das Requerentes AA e LXCALLING.
Conforme decorre da factualidade dada como indiciariamente provada em 20 e 21, a violação do direito da personalidade da Requerente BB já ocorreu e tudo indica que continuará a ocorrer caso não seja decretada uma providência que restrinja a atuação das Requeridas na salvaguarda daquele direito.
A violação do direito de personalidade constitui uma lesão grave e irreparável: como se refere na decisão recorrida «[g]rave porque se trata de um claro atentado a um direito absoluto, que exige medidas imediatas e» irreparável «porque, contrariamente ao que sucede com a violação dos direitos de natureza patrimonial, a violação dos direitos de natureza não patrimonial nunca pode admitir reparação mas, quando muito, uma simples compensação sucedânea».
O direito ao repouso e sossego da Requerente BB é prevalecente quanto ao direito das Requeridas desenvolverem a sua atividade económica, direito de livre exercício da iniciativa económica privada, conforme referido artigo 335.º, n.º 2, do CCivil.
A providência decretada mostra-se proporcional e adequada aos interesses em causa: obsta-se ao funcionamento do equipamento produtor de ruído entre as 22 horas e as 10 horas do dia seguinte, não ao exercício da atividade económica das Requeridas, com o que se mostra equilibrado o exercício dos direitos em causa.
Diversamente do referido pela Recorrente, não ficou indiciariamente demonstrado que as Requeridas instalaram um dissuasor de som, nem que apresentaram soluções para mitigar o ruído que as Requerentes inviabilizaram, nem que a atividade da Requerida depende do funcionamento do sistema de refrigeração, conforme factos indiciariamente não provados G), H) e I).
Neste contexto, carece de qualquer fundamento alegar que as Requerentes litigam de «má fé» ou em «abuso de direito».
Do mesmo modo, quanto à necessidade de prévia intervenção da Câmara Municipal de Lisboa e da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, bem como no que respeita à invocação do denominado Regulamento Geral do Ruído, Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro, nomeadamente do mencionado artigo 11.º do mesmo Regulamento, pois releva no caso a salvaguarda do direito de personalidade da Requerente BB, enquanto direito prevalecente nos termos expostos, constitucional e legalmente consagrado, termos em que sempre seria indiferente ao desfecho dos autos saber se o equipamento das Requeridas excede ou não os valores de incomodidade indicados no Regulamento Geral de Ruído.
Como se refere no acórdão de 07.11.2024 deste Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 1924/23. 2T8SXL.L1-6, igualmente referido na decisão recorrida, «o campo de aplicação deste Regulamento circunscreve-se à actividade administrativa no âmbito da prevenção e controlo da poluição sonora».
«Assim, atento o disposto nos art[s]. 25º, 26º e 202º da Constituição da República Portuguesa, art. 70º do Código Civil e art. 878º do Código de Processo Civil, os cidadãos têm o direito de obterem dos tribunais as providências adequadas à protecção dos seus direitos de personalidade, mesmo que os limites de ruído fixados naquele Regulamento estejam a ser cumpridos».
De todo o modo, como se refere na decisão recorrida, também no caso vertente «nunca seria necessária tal prova, em termos de afirmação da violação do direito, porquanto situando-nos no domínio de uma providência cautelar, terá apenas que existir a aparência do direito, isto é, haverá apenas que se concluir a título meramente indiciário pela violação do direito».
Em suma, improcede o recurso.
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Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede a pretensão da Recorrente, pelo que esta deve suportar as custas do recurso.

V. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso, mantendo-se, pois, a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 10 de julho de 2025
Paulo Fernandes da Silva
Fernando Alberto Caetano Besteiro
Pedro Martins

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1. Ora, o Tribunal a quo assentou a sua convicção nos vídeos acima identificados e que foram sendo exibidos sem sede de Audiência de Julgamento. Vídeos, esses, pretensamente filmados da varanda da fração das Requerentes – o que se desconhece e por essa razão se impugnou em sede de Contestação deduzida pela ora Requerente – e nos quais é, alegadamente, reproduzido o ruído da unidade de tratamento de ar.
2. o que se desconhece e por essa razão se impugnou em sede de Contestação deduzida pela ora Requerente
3. as quais, conforme já se disse, depuseram de uma forma totalmente falaciosa e com nenhum grau de isenção
4. Cfr. art. 59.º e 60.º da Contestação.
5. Cfr. Facto E) dos «não indiciados».
6. i.e. que os equipamentos de climatização (UTA e ar condicionado) instalados no saguão do prédio fossem desligados diariamente entre as 22h00 e as 10h00.
7. Das 18h00 à 01h.