TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

Sumário:
I - Na acusação pública resultava descrita uma conduta do arguido relativa ao transporte e introdução, por si, de produto estupefaciente no estabelecimento prisional, sendo que tal vertente factual não se mostra consagrada nos factos provados ou não provados.
II - Lida a convicção da matéria de facto “depreende-se” que o tribunal aceitou como credível a versão do arguido segundo a qual o produto estupefaciente lhe foi entregue por outro recluso (presume-se que dentro do estabelecimento prisional, considerando que o material necessário para as tatuagens estava na cela, mas podia ter sido fora do estabelecimento na hipótese de ambos os reclusos terem usufruído, por exemplo, de medidas de flexibilização no cumprimento da pena, o que de todo não resulta explicado na decisão recorrida).
III - Padece a decisão recorrida da nulidade invocada, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, ao arguido AA (filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de …, nascido a ... de ... de 1986, preso no estabelecimento prisional de …), estava imputada na acusação pública a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01.
Na sequência da audiência de discussão e julgamento, foi a seguinte a decisão proferida, que se transcreve:
“Perante o exposto, julgo improcedente a acusação e, em consequência, absolvo o arguido AA da prática do crime de tráfico de estupefacientes por que vem acusado.
*
Custas.
Não são devidas custas.
*
Períodos de privação da liberdade.
Não existem períodos de privação da liberdade a referir.
*
Ao abrigo do disposto no art.º 35º, n.º 2, do DL 15/93, de 22/1, declaro perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido nos autos.
Proceda à destruição do estupefaciente apreendido, nos termos do art.º 62º do DL 15/93.
Cumpra o disposto no art.º 64º, n.º 1, do DL 15/93.
Extraia certidão do processado e remeta à Comissão de Dissuasão da Toxicodependência.
*
Notifique e proceda ao depósito.”
II- Fundamentação de facto
Na decisão recorrida foram considerados provados e não provados os seguintes os factos:
“Com relevo para a decisão da causa, estão provados os seguintes factos:
1. No dia ... de ... de 2022, pelas 16 horas, à saída do Bloco ...do estabelecimento prisional de …, o arguido AA, ali recluso, detinha no bolso das calças 49 pedaços de canábis (resina), com o peso líquido de 0,546 gramas e o grau de pureza de 13 (THC), equivalentes a uma dose.
2. Logo após esta apreensão, na sequência de uma busca aos pertences pessoais do arguido na cela n.º …, situada no piso …, Bloco …, do referido estabelecimento prisional, foram encontrados:
a) Uma máquina de tatuar artesanal;
b) Agulhas e tintas;
c) Vários comprimidos;
d) Várias caixas de sumo pequenas;
e) Um recipiente de plástico preto contendo canábis (resina) com o peso líquido de 0,366 gramas e o grau de pureza de 21,2 (THC), equivalentes a duas doses.
3. O arguido bem sabia que detinha produto estupefaciente, querendo detê-lo no estabelecimento prisional onde se encontrava a cumprir a sua pena com vista a consumi-lo.
4. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, conhecendo a natureza estupefaciente dos produtos que detinha, bem sabendo que não os podia deter, adquirir, vender ou fornecer, a qualquer título, a outrem e que tais condutas eram proibidas.
5. O arguido esteve em cumprimento de pena até ... de ... de 2025.
6. Actualmente encontra-se inscrito no Centro de Desemprego.
7. Pela prática em ... de ... de 2008, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2011, transitada em julgado a ... de ... de 2011, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €5,00 (processo n.º 69/08.0...).
8. Pela prática em ... de ... de 2013, pela prática de um crime de furto simples, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2014, transitada em julgado a ... de ... de 2014, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €6,00 (processo n.º 58/13.2...).
9. Pela prática em ... de ... de 2014 de um crime de furto qualificado, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2015, transitada em julgado a ... de ... de 2015, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 9 meses (processo n.º 150/14.6...).
10. Pela prática em ... de um crime de furto qualificado, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2016, transitada em julgado a ... de ... de 2017, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 6 meses (processo cc n.º 1013/13.8...).
11. Pela prática em ... de ... de 2013 de um crime de receptação, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2015, transitada em julgado a ... de ... de 2015, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de €5,00 (processo n.º 841/13.8PBAGH).
12. Pela prática em ... de ... de 2014 de um crime de furto qualificado, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2015, transitada em julgado a ... de ... de 2015, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 9 meses (processo 150/14.6...).
13. Pela prática em ... de um crime de furto qualificado na forma tentada, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2017, transitada em julgado a ... de ... de 2018, na pena de 9 meses de prisão (processo n.º 228/14.6...).
14. Pela prática em ... de ... de 2014 de um crime de furto simples, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2018, transitada em julgado a ... de ... de 2018, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão (processo n.º 831/14.4...).
15. Pela prática em ... de um crime de furto qualificado, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2018, transitada em julgado a ... de ... de 2019, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão (processo 98/16.0...).
16. Pela prática em ... de ... de 2016 de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada agravada, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2020, transitada em julgado a ... de ... de 2020, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão (processo n.º 970/16.7...).
17. Pela prática em ... de um crime de furto qualificado, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2020, transitada em julgado a ... de ... de 2020, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão (processo n.º 369/14.0...).
18. Pela prática em ... de um crime de furto qualificado, pela prática a ... de ... de 2014 de 1 crime de furto qualificado, foi o arguido condenado por acórdão de ... de ... de 2021, transitada em julgado a ... de ... de 2021, na pena de 4 anos de prisão (processo n.º 1013/13.8...).
19. Pela prática em ... de ... de 2022 um crime de falsidade de depoimento ou declaração, foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2023, transitada em julgado a ... de ... de 2023, na pena de 1 anos e 3 meses de prisão (processo n.º 177/22.4...).
*
Nenhuns outros factos resultaram provados.
Não resultou provado, nomeadamente:
- Que o arguido destinava aquelas quantidades de estupefaciente à venda e/ou cedência a consumidores da substância, a troco de uma compensação pecuniária ou de algo que lhe pudesse interessar.”
III- Convicção da matéria de facto
O Tribunal a quo apresentou a seguinte convicção da matéria de facto:
“Para a fixação dos factos dados como provados serviu-se o tribunal do princípio da livre apreciação da prova, fixado no art.º 127º do Cód. de Processo Penal, ou seja, do conjunto dos meios de prova produzidos em julgamento, os quais, conjugados com as regras da experiência comum, formaram a livre convicção pessoal do tribunal do seguinte modo:
O arguido assumiu a posse do estupefaciente, que disse ter-lhe sido entregue por outro recluso para seu consumo como pagamento de uma tatuagem que lhe fez. A máquina de tatuar, as agulhas e tintas que foram encontradas na sua cela dão sustento a esta versão.
Acrescentou o arguido que o seu passado criminal como consumidor de longa data o levou à cadeia, nada havendo que o desdiga.
O Ministério Público fez longa e reforçada referência aos quarenta e nove pedaços de haxixe (e não panfletos ou embalagens, como erroneamente se invocou na acusação) que o arguido tinha consigo como evidência de que ele traficaria droga mas, na realidade, esses pedaços (que na realidade são pedacitos) não somam mais do que meio grama e são equivalentes a tão-somente uma dose.
Com efeito, é o que o exame pericial de fls. 65 revela, atestando a natureza estupefaciente do produto apreendido, o peso líquido e o número de doses a que equivale.
Os guardas-prisionais inquiridos apenas procederam às apreensões e revistas ao arguido (sendo certo que ele havia já assumido a posse do estupefaciente), não aportando nenhuma informação que pudesse levar a concluir destinar o produto à venda a terceiros.
Quanto às condições sócio-económicas do arguido, valorou o tribunal as suas declarações em sede de audiência de julgamento, as quais se mostraram credíveis e não foram postas em causa por qualquer outro meio de prova.
Em relação aos antecedentes criminais, o tribunal tomou em consideração o CRC do arguido junto a fls. 188 e seguintes.
IV- Recurso
O Ministério Público apresentou recurso, extraindo-se da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. Nestes autos, acusado e submetido julgamento pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, o arguido AA foi absolvido da prática desse crime, que lhe vinha imputado na acusação contra ele formulada.
2. A sentença é nula, por omissão de pronuncia quanto ao facto 3 da acusação, não cumprindo o disposto no artigo 374.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, verificando-se a nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 379.º n.º 1 c) do Código de Processo Penal.
3. O facto 3 constante da acusação – “o arguido bem sabia que transportava consigo o produto estupefaciente em questão, querendo e conseguindo introduzir o mesmo no estabelecimento prisional, onde se encontrava a cumprir a sua pena” é relevante para a discussão da causa, pois em caso de condenação é relevante para determinar a medida da pena e é ainda relevante para o preenchimento do tipo de ilícito imputado ao arguido, pois reveste importância compreender a motivação do arguido e o que o levou a praticar os elementos objetivos do tipo de crime, não tendo tal facto ficado consagrado na matéria de facto provada ou não provada.
4. A sentença não contém na enumeração dos factos provados e não provados o referido facto 3, sendo que da sentença consta apenas uma formulação genérica “Nenhuns outros factos resultaram provados”, p. 4 da sentença recorrida.
5. Esta formulação é ineficaz “(…) porque não dão a indispensável garantia de que todos os factos relevantes alegados, que não surgem descriminados na decisão sobre a matéria de facto, foram considerados nos termos legais. (…) A questão da exigência de enumeração dos factos provados e não provados não pode ser vista como uma mera formalidade. De facto, trata-se de uma garantia, designadamente para os sujeitos processuais, de que o tribunal, num processo equitativo, teve em atenção de igual modo, os factos, as provas e os argumentos da acusação e da defesa, e indagou e apreciou todos os factos - da acusação e da defesa - que podia e devia (…)”, in acórdão do Tribunal de Coimbra, datado de 08-02-2012, Relator: Alberto Mira, proc. n.º 38/10.0TAFIG.C1.
6. Assim, entende-se que deve ser determinada a prolação de nova decisão, com vista a expurgar o vício, formulando nova sentença que colmate a omissão detetada, não podendo o tribunal recorrido deixar de ter em conta, na estrutura global da nova motivação de facto este facto 3, devendo o mesmo ser dado como provado, atenta a prova produzida e a importância que o mesmo tem em todo o contexto factual, retirando-se a devida consequência jurídico-penal.
7. Por outro lado, o tribunal singular deu como provado, relativamente à matéria fáctica constante da acusação, e em súmula, todos os factos constantes da acusação, com exceção do facto 4 - “que o arguido destinava aquelas quantidades de estupefaciente à venda e/ou cedência a consumidores da substância, a troco de uma compensação pecuniária ou de algo que lhe pudesse interessar”, dado como não provado.
8. Dando também como provado que o arguido bem sabia que detinha produto estupefaciente, querendo detê-lo no estabelecimento prisional onde se encontrava a cumprir a sua pena com vista a consumi-lo. – facto 3 dos factos dados como provados na sentença recorrida.
9. É entendimento do Ministério Público que, ao dar como não provado, que o arguido destinava aquelas quantidades de estupefaciente à venda e/ou cedência a consumidores da substância, a troco de uma compensação pecuniária ou de algo que lhe pudesse interessar – facto 4 -, o tribunal recorrido incorreu num erro notório na apreciação da prova.
10. Ora ,os pontos de facto dados como provados impunham como sua decorrência lógica que se tivesse dado também como provado, e não como não provado, que o arguido, ao atuar da forma descrita na sentença – destinava aquelas quantidades de estupefaciente à venda e/ou cedência a consumidores da substância, a troco de uma compensação pecuniária ou de algo que lhe pudesse interessar – praticou um crime de tráfico de estupefacientes.
11. Isto porque, tal facto (dado como não provado) decorre dos elementos circunstancias do caso, conjugados com as regras da lógica e da experiência. Com efeito, importa ter em conta que:
11.1 Não podemos olvidar o espaço em que os factos ocorreram, concretamente no Estabelecimento prisional de …, sendo lógico que num local onde se encontram recluídas pessoas, estando estas sobre fortes medidas de segurança e vigilância que, quem trafique produto estupefaciente num local como este, não tenha na sua posse, numa única ocasião, grandes de produto estupefaciente, sendo imprescindível a adoção de especiais cautelas na dissimulação e passagem de produto estupefaciente. Assim, a pequena quantidade de produto estupefaciente tem unicamente que ver com a dificuldade em manter a droga escondida no Estabelecimento Prisional e transacioná-la no seu interior.
11.2 Não podemos olvidar o facto de o produto estupefaciente estar dividido em 49 pedaços, sendo lógico que caso se tratasse de um consumidor, aferindo a situação em função de um padrão de homem médio colocado nas condições do agente, que este não traria consigo 49 pedaços de droga, mas um único pedaço, aquele que pretendia consumir, pois é evidente que é muito mais fácil esconder um único pedaço para consumo, do que 49 pedaços.
11.3 Por último, não podemos olvidar que o arguido, além de ter consigo, 49 pedaços de cannabis resina, tinha ainda na sua cela 0,366 gramas desta substância, o que aliado à sua explicação para tal, não se vislumbra de que modo a sua narrativa faça o mínimo sentido à luz das regras da experiência e assim, como foi possível que o tribunal recorrido tivesse credibilizado as suas declarações, neste sentido o arguido declarou o seguinte, gravado em media studio 20250214143449_12342152_2870245, desde o minuto 02:50 até ao minuto 03:17:
Perguntado o motivo pelo qual o arguido consumia produto estupefaciente no E.P. e, agora em liberdade e com acesso a todo o tipo de droga, já não consumia, o arguido não foi capaz de explicar tal facto. Desde o minuto 03:21 até ao minuto 03:24:
Perguntado ao arguido como tinha na sua posse o produto estupefaciente, o arguido disse que um rapaz da ..., a quem fez uma tatuagem, pagou-lhe em produto estupefaciente
Desde o minuto 03:24 até ao minuto 03:40:
Perguntado em que data esse rapaz lhe pagou em produto estupefaciente, o arguido disse dois dias ou três antes de ser apanhado.
Desde o minuto 03:40 até 04:11 ao minuto 04:33:
Perguntado porque motivo andava com a droga no bolso, uma vez que a mesma lhe havia sido dada há cerca de dois ou três dias antes de ser apanhado, o arguido disse que a droga estava sempre com ele.
Motivo pelo qual lhe foi perguntado, porque também tinha, então, produto estupefaciente na cela, sendo que o arguido respondeu que tinha um moço na sua cela e era para este não ficasse a saber que tinha produto estupefaciente.
Ante esta explicação, foi dito ao arguido que não fazia sentido o seu esclarecimento, pois se não queria ser apanhado pelo colega de cela, então, porque razão havia deixado quase tanta quantidade de produto estupefaciente na cela, como aquela que tinha consigo, não apresentou qualquer justificação.
Desde o minuto 04:34 até ao minuto 04:52:
Perguntado porque tinha o produto estupefaciente dividido, se este era para o seu consumo, o arguido disse que já lhe havia sido dado daquela maneira.
12. Na fundamentação da sentença, concretamente na p. 6, o tribunal recorrido afirmou que o arguido era consumidor de produto estupefaciente de longa data, concluindo que não há nada que o desdiga, porém, é certo que também não há absolutamente nada que o confirme, v.g. elementos clínicos e/ou participações policiais ou de autoridades administrativas.
13. No caso concreto, entendemos que, atento ao local dos factos, um Estabelecimento Prisional, à forma de acondicionamento do produto estupefaciente detido pelo arguido, bem como a circunstância deste estar dividido em 49 pedaços e ainda à versão apresentada pelo mesmo que é contraditória em si mesma, que este realmente não destinava exclusivamente o produto estupefaciente apreendido para consumo próprio.
14. Ora, perante tudo o que foi exposto, é manifesto que o tribunal singular, ao dar como não provado o aludido facto, deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido, o que fez de uma forma ilógica, arbitrária e notoriamente violadora das regras da experiência comum.
15. O tribunal recorrido deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido, pois um recluso, que se assume como consumidor de produto estupefaciente e que consumia dentro do Estabelecimento Prisional, não iria circular no seu interior com 49 pedaços de produto estupefaciente, pois assumiria um risco demasiado elevado para a suposta conduta de mero consumo.
16. É, por demais lógico, que um verdadeiro consumidor basta-se com um único pedaço e que não ia consumir, num único momento, 49 pedaços de produto estupefaciente.
17. É ainda, por demais lógico, que a narrativa apresentada pelo arguido não é coerente, pois quem afirma que tem na sua posse 49 pedaços de produto estupefaciente, porque não quer que o seu colega de cela saiba que tem tal produto estupefaciente e por isso decide circular com esse produto, não guarda, ao mesmo tempo, na cela, produto estupefaciente em quase igual quantidade.
18. A prova documental recolhida, não olvidando a explicação ilógica do arguido, conjugado com as regras da experiência e o senso comum, embora não prove diretamente a prática do crime em apreço, indicam factos individualizados que confirmam a veracidade global deste pedaço de vida, ajudando a estabelecer o raciocínio lógico necessário para se concluir que o arguido cometeu um crime de tráfico de produto estupefaciente.
19. Deste modo, o tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova, vício enunciado no n.º 2, al. c), do art.º 410.º do Código de Processo Penal, que sempre poderá ser ultrapassado com recurso ao próprio texto da decisão recorrida e às regras da experiência, sem necessidade de reenvio do processo para novo julgamento (art.ºs 426.º, n.º 1 e 431.º, al. b) do Código de Processo Penal).
20. Entendemos, pois, que a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida deve ser alterada de forma a ser dada como provada a matéria de facto que aí se deu como não provada dos factos não provados.
21. Caso colha êxito a nossa pretensão de que se dê como provado que o arguido incorreu na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, deverá o mesmo ser punido na pena 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
22. O Tribunal recorrido violou o artigo 374.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal e o 21º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.
O arguido não respondeu ao recurso.
Nesta instância, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em concordância com o recurso interposto, pugnando pela sua procedência.
V- Questões a decidir
Resulta do art.º 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal (e do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995) que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sequência da respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir o conhecimento das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo, das questões de conhecimento oficioso, que eventualmente existam.
São as seguintes as questões colocadas pelo recorrente:
- se a decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia;
- consoante se responda à questão anterior, avaliar se a decisão recorrida padece de erro notório na apreciação da prova relativamente ao facto não provado;
- se se responder à questão anterior e consoante o seu sentido, cumpre avaliar se deve o arguido ser condenado pelo crime pelo qual estava acusado e qual a pena.
VI- Fundamentos de direito
Comecemos pela análise da primeira das questões a decidir.
É a seguinte a redacção do n.º 2 do art. 374.º do CPP:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
“I- A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289). II - A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32). III - A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo. IV - Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do n.º 2 do art. 374.º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 59/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. V - O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova. VI - O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01). VII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. VIII - No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 374.°, n.° 2, do CPP –, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n.° 2, do CPP; o n.° 2 do art. 374.° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cf., nesta perspectiva, o Ac. do TC de 02-12-1998). IX - A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. X - Não existe insuficiência da fundamentação se na decisão estão enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram à convicção do tribunal, permitindo, no contexto ambiental, de espaço e de tempo, compreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.” (cfr. Ac. STJ de 21/03/2007, processo 07P024, in 1www.dgsi.pt2).
Feito este breve enquadramento legal e jurisprudencial, cumpre tratar da questão a decidir enunciada.
O facto que se mostrava descrito na acusação e que o recorrente afirma não ter sido transposto na sua íntegra para a matéria de facto da decisão recorrida (seja nos factos provados, seja nos não provados) tem a seguinte redacção:
3. O arguido bem sabia que transportava consigo o produto estupefaciente em questão, querendo e conseguindo introduzir o mesmo no estabelecimento prisional, onde se encontrava a cumprir a sua pena.
O facto provado n.º 3 da decisão recorrida tem a seguinte redacção:
O arguido bem sabia que detinha produto estupefaciente, querendo detê-lo no estabelecimento prisional onde se encontrava a cumprir a sua pena com vista a consumi-lo.
O facto não provado da decisão recorrida tem a seguinte redacção:
Que o arguido destinava aquelas quantidades de estupefaciente à venda e/ou cedência a consumidores da substância, a troco de uma compensação pecuniária ou de algo que lhe pudesse interessar.
Recordemos, a convicção da matéria de facto relevante quanto à factualidade provada e ao facto não provado, a respeito da questão a decidir enunciada, tem o seguinte teor:
O arguido assumiu a posse do estupefaciente, que disse ter-lhe sido entregue por outro recluso para seu consumo como pagamento de uma tatuagem que lhe fez. A máquina de tatuar, as agulhas e tintas que foram encontradas na sua cela dão sustento a esta versão.
[…]
O Ministério Público fez longa e reforçada referência aos quarenta e nove pedaços de haxixe (e não panfletos ou embalagens, como erroneamente se invocou na acusação) que o arguido tinha consigo como evidência de que ele traficaria droga mas, na realidade, esses pedaços (que na realidade são pedacitos) não somam mais do que meio grama e são equivalentes a tão-somente uma dose
Compaginando o teor da redacção dos factos em causa, constata-se que, efectivamente, na acusação pública resultava factualmente descrita uma conduta do arguido relativa ao transporte e introdução, por si, do produto estupefaciente no estabelecimento prisional, não tendo ficado consagrada tal vertente factual nos factos provados ou não provados.
Lida a convicção da matéria de facto “depreende-se” que o tribunal aceitou como credível a versão do arguido segundo a qual o produto estupefaciente lhe foi entregue por outro recluso (presume-se que dentro do estabelecimento prisional, considerando que o material necessário para as tatuagens estava na cela, mas podia ter sido fora do estabelecimento na hipótese de ambos os reclusos terem usufruído, por exemplo, de medidas de flexibilização no cumprimento da pena, o que de todo não resulta explicado na decisão recorrida); o certo é que o tribunal a quo não reflectiu a sua posição factual na matéria de facto a tal respeito, fosse a provada, fosse a não provada, o que deverá concretizar.
Entendemos assim que assiste razão ao recorrente, padecendo a decisão recorrida, por tal motivo, da nulidade que é invocada, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.
Em face da resposta a esta questão a decidir fica prejudicado o conhecimento das demais supra enunciadas.
VII. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, declarar nula a decisão recorrida, devendo ser proferida nova decisão, se necessário reabrindo a audiência de discussão e julgamento, que tome posição relativamente ao facto 3.º, na sua íntegra, descrito na acusação pública.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Texto processado e revisto integralmente pelo relator – art- 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Mário Pedro M.A.S. Meireles
Carlos Alexandre
Rosa Vasconcelos
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