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PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENORES
ACOLHIMENTO EM INSTITUIÇÃO
ADOPÇÃO
Sumário
Sumário (da responsabilidade da relatora nos termos do artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil): I. A medida de promoção e proteção de acolhimento institucional com vista a futura adoção assenta na inexistência ou no comprometimento sério dos vínculos afetivos próprios da filiação. II. Esse comprometimento sério ocorre quando os progenitores: - desvalorizam a exposição da criança a um ambiente de violência, com discussões e agressões recíprocas recorrentes, que ocorrem mesmo durante as visitas na instituição onde se encontra acolhida; - não percebem que as suas fragilidades na prestação de cuidados foram determinantes de atrasos de desenvolvimento do filho, só recuperados após a sua retirada do ambiente familiar; - são impermeáveis às tentativas de intervenção dos técnicos para a consciencialização do impacto negativo na pessoa do filho dos conflitos e da ausência de uma interação estimulante e proativa na identificação das necessidades.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
O Ministério Público intentou processo de promoção e proteção em benefício de GAED, nascido a 5 de Julho de 2019, filho de MMEM e NMSD, alegando que a criança fora sinalizada num contexto de violência doméstica, vivia, então, com a Mãe numa casa abrigo da APAV, da qual a esta pretendia sair para se reunir ao progenitor, residente numa tenda num descampado; acrescentava que os Pais não tinham juízo crítico sobre a falta de condições elementares nem sobre os efeitos que as agressões mútuas tinham na criança e havia negligência na prestação de cuidados.
Em 3 de Maio de 2022 foi proferida decisão provisória aplicando a medida cautelar de apoio junto da mãe, se e enquanto esta se mantivesse em casa abrigo com a criança, na medida em que existia supervisão e era garantida a prestação de cuidados básicos e, subsidiariamente, para o caso de saída da mãe, a medida cautelar de acolhimento residencial em CAT, a executar em cama de emergência; concretizada a saída da Mãe, foi aplicada a medida subsidiária no dia seguinte, com a criança a ser acolhida inicialmente na ...” em Rebordosa a 5 de Maio e, a partir de 12 de Julho seguinte, na ...” em Carcavelos, para estar próxima do domicílio dos progenitores e permitir convívio supervisionado.
Durante a fase de instrução resultaram goradas as hipóteses de aplicação de medidas Encerrada a fase de instrução, o Ministério Público promoveu a realização de debate judicial na sequência do qual, produzida a prova, foi proferido Acórdão que decidiu:
“- Aplicar à criança a medida de promoção e protecção de acolhimento institucional com vista a futura adopção, a executar na instituição onde o mesmo se encontra;
- Nomear a Diretora do Centro de Acolhimento temporário ..., como curadora provisória do menor;
- Inibir os progenitores do exercício das responsabilidades parentais;
- Inibir desde já as visitas ou quaisquer contactos telefónicos ao menor, por parte de qualquer familiar.”
Inconformado, o Pai interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:
I) Vem o presente recurso interposto da douta Sentença que decidiu aplicar ao menor G a medida de acolhimento institucional com vista a futura adoção, inibindo ambos os progenitores do exercício das responsabilidades parentais relativas à criança e proibindo as visitas por parte da família biológica;
II) O Recorrente não concorda com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual é ilegal e de manifesta injustiça, porquanto ao aplicar ao Menor a medida de acolhimento institucional com vista a futura adoção, inibindo o Progenitor do exercício das responsabilidades parentais relativas ao Menor G e proibindo-o de o visitar, violou a interpretação e aplicação das normas jurídicas e princípios aplicáveis ao caso constantes dos arts 1978°, 1978°-A, 1915°, todos do Código Civil e artigos 4°, 34°, 35°e 38°-A, todos da LPCJP, atenta a relevância jurídica da questão.
III) A sentença é ainda violadora de lei porquanto fere diversos princípios e direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, os direitos à identidade pessoal, à proteção legal contra qualquer forma de discriminação, direito dos filhos nascidos fora do casamento não poderem ser objeto de qualquer discriminação, direito à família (não podendo os filhos serem separados dos pais exceto se não cumprirem deveres fundamentais para com eles), e direito à paternidade, conforme previstos nos arts 1°, 13°, 18°, 26°, 36°, 67° e 68° da CRP.
IV) A decisão encerra também violação de lei por desrespeitar os princípios orientadores da intervenção, designadamente os princípios do superior interesse da criança, proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família, vertidos do artigo 4° da LPCJP.
V) Ao decidir pela aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento institucional com vista a futura adoção, em detrimento de outra, que permitiria a receção da criança junto do seu pai, o Tribunal recorrido interpretou e aplicou incorretamente as disposições legais aplicáveis, incorrendo na sua violação.
IX) O processo de promoção e proteção no seguimento das prioridades estabelecidas pela Convenção Europeia dos Direitos e Liberdades Fundamentais, visa a proteção e a manutenção da família biológica, devendo a intervenção ser orientada de modo a que os pais assumam os seus deveres para com a criança devendo-se sempre, em primeira linha, dar prevalência à família biológica, neste caso ao pai, através de medidas que integrem as crianças e jovens na sua família biológica.
X) A adoção só pode surgir depois de esgotadas as possibilidades de integração na família biológica, o que não sucedeu.
XI) A possibilidade de uma criança poder ser acolhida junto de uma família com maior capacidade financeira e numa eventual situação mais propícia à sua manutenção e educação, não justifica, só por si, que esta seja retirada aos seus pais biológicos e confiada para futura adoção.
XII) O pai já solicitou habitação camarária junto da Câmara Municipal de Cascais.
XIII) O progenitor manifestou vontade em constituir-se como resposta.
XIV) Nos presentes autos não foram esgotados todos os recursos e apoios que a lei prevê, nomeadamente no Decreto-Lei n° 12/2008, de 17 de Janeiro.
XV) A aplicação da medida de acolhimento institucional com vista a futura adoção, provoca o afastamento da criança do seu pai e é o último recurso, apenas possível se outra medida suscetível de ser aplicada não se revelar adequada e suficiente.
XVI) A decisão proferida nos autos não respeita o superior interesse da criança, que a deixa entregue a uma instituição para posterior entrega a pessoas que ainda não foram determinadas concretamente e com quem o Menor não mantém nenhuma relação afetiva.
XVII) Não há motivos para promoção de outra medida senão a de melhorar a condição e recursos do progenitor, com vista a receber o Menor.
XVIII) A possibilidade de uma criança poder ser acolhida junto de uma família com maior capacidade financeira e numa eventual situação mais propícia à sua manutenção e educação, não justifica, só por si, que esta seja retirada aos seus pais biológicos e confiada para futura adoção.
XIX) A decisão de inibição do exercício das responsabilidades parentais do progenitor pode ser aplicada quando se verifique objetivamente alguma das situações previstas no art.º 1915.° do CC;
XX) A decisão recorrida não especifica, de forma clara, concreta, e fundamentada, quais as razões e argumentos de facto e de direito que justificam a decisão de inibição do exercício das suas responsabilidades parentais e de que forma se encontram preenchidos os requisitos do art.°1915.° do CC.
XXI) A sentença é violadora de lei, encontrando-se ferida de ilegalidade já que não resulta provado que o Progenitor tenha violado culposamente os deveres para com o seu filho ou não se mostre em condições de cumprir esses deveres, não existindo razões para o Tribunal decretar a inibição do exercício do poder paternal ou excluir quaisquer visitas.
XXII) Deve a douta Sentença ser substituída per outra em que se decida nos moldes apontados e em que se aplique, acima de tudo, medida de promoção e proteção em consonância com os princípios do superior interesse da criança, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família, com o que se fará oportuna e, acima de tudo, equitativa Justiça.
XXXVII) Os arts.° 1.°, 13.°, 18.°, n.° 2 e 3, 26.°, n.°s 1 e 3, 36.°, n.°s, 1, 4, 5 e 6, 67.°, 68.°, todos da Constituição da República Portuguesa, os arts.º 9.° e 20.° da Convenção sobre os Direitos da Criança, os arts.° 1915.°, 1978.°, 1978.°-A, todos do Código Civil e os arts.° 4.°, 34.°, 35.° e 38.°-A da LPCJP, normas que constituem fundamento jurídico da decisão, deviam ter sido interpretadas aplicando ao Menor G a medida de apoio junto do Progenitor, sem qualquer limitação ao exercício das suas responsabilidades parentais.
XXXVIII) A medida aplicada pelo Tribunal a quo deverá ser revogada optando por uma medida de Apoio junto do Progenitor, ora Recorrente, ainda que a título provisório, e mediante regime de prova, ao abrigo do art.º 39.° da LPCJP.
Igualmente discordante e pugnando pela revogação da decisão do Tribunal a quo e a prolação de outra que que aplique uma medida de apoio junto da mãe, com possibilidade de esta beneficiar de um programa de formação, visando o melhor exercício das funções parentais, a progenitora interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:
1.ª O menor G desde que nasceu e até à idade de três anos – altura em que foi institucionalizado – esteve sempre aos cuidados da mãe.
2.ª Durante tal período, mostrava-se cuidado e acompanhado em saúde infantil e com a vacinação em dia.
3.ª Encontrava-se inscrito na creche Pirilampo, sendo assíduo, mostrando-se cuidado, e onde, a progenitora era qualificada como cordata, cumpridora e responsável.
4.ª Não ressaltando qualquer facto palpável que leve a afirmar que a entrega do menor a esta mãe possa fundar uma situação de perigo para o menor.
5.ª Tratando-se de uma mãe que sempre cuidou dele, sem mácula, como emerge do relatório, nomeadamente, do estabelecimento de ensino, e, numa fase em que a criança necessita de mais e maiores cuidados pessoais e médicos.
6.ª Além disso, após a institucionalização a mãe sempre compareceu na instituição em que o menor se encontra, visitando-o no regime de visitas que lhe foi fixado, com periodicidade semanal.
7.ª Salvo o devido respeito que é muito, não se podem considerar provados factos conclusivos, patentes nos pontos 25, 26, 32, 185 e 188 dos factos provados, nem os factos patentes nos pontos 67 e 192 dos factos provados, por total ausência de factualidade que permita concluir do modo como o fez o Tribunal e por qualquer ausência de prova de tais factos.
8.ª Para decretar a medida, decretada nos autos sub judice impõe-se ao Tribunal especiais cautelas, quer na obtenção da prova e produção da prova, não podendo bastar-se com o que ouve dizer das técnicas que acompanham o menor e os progenitores, e que na descrição do menor, a propósito do menor, o descrevem como um menino lindíssimo, com uns caracóis e olhos grandes, que atendendo ao percentil será certamente na adultice, alto, muito meigo – descrição que não deixou de nos causar estranheza – porque de facto as características físicas de uma criança devem ser de somenos importância num processo como o presente.
9.ª Em lugar da institucionalização, é de privilegiar o ambiente de conforto e carinho familiar como resulta desde logo da Constituição da República e da própria CJLPC.
10.ª Um dos princípios orientadores elencados no artigo 4º da LPCJP é “o interesse superior da criança”, como critério basilar que deve nortear qualquer decisão relativa às crianças ou jovens.
11.ª Outro critério orientador patente no artigo 4º da LPCJP é a proporcionalidade da medida.
12.ª O Tribunal a quo violou o princípio do interesse superior da criança e do jovem, consagrado na alínea a) do artigo 4.º da LPCJP; o princípio da proporcionalidade, consagrado na alínea e) do artigo 4.º da LPCJP; o princípio da prevalência da família, consagrado na alínea h) do artigo 4.º da LPCJP; o princípio da adopção como ultima ratio de todas as medidas consagradas no artigo 35.º da LPCJP.
13.ª A aplicação da medida, prevista no artigo 35.º n° 1, al g) da Lei 147/99 de 01 de novembro, é desproporcional, desnecessária e desadequada ao caso em apreço, pois pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva das situações que enuncia.
14.ª O que não se verifica no caso concreto, e muito menos no que tange à progenitora.
15.ª No caso vertente é adequada e proporcional a aplicação de medida de apoio junto da mãe com participação alargada da testemunha FN, prevista no artigo 35º.5 n.s 1 alínea a) da L.P.C.J.P., com possibilidade da mãe beneficiar de um programa de formação, visando o melhor exercício das funções parentais, nos termos do disposto no artigo 41ºs da L.P.CJ.P., podendo a referida medida de apoio abranger o apoio técnico, julgando-se que esta solução é a que melhor defende o superior interesse do G - o primado da família biológica.
O Digno Magistrado do Ministério Público contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido e invocou o incumprimento pela recorrente do ónus de identificação das passagens do depoimento.
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II. Delimitação do objeto do recurso:
Perante as conclusões dos recursos importa:
I - determinar se a Recorrente cumpriu os ónus necessários à impugnação do julgamento da matéria de facto e, nessa hipótese, se existiu erro na valoração dos meios de prova pelo Tribunal a quo;
II - passando à análise dos fundamentos substantivos invocados por ambos os Recorrentes:
i) aferir a situação de perigo a que G foi exposto e em que medida persiste;
ii) determinar se estão preenchidos os requisitos da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção;
iii) em caso de resposta negativa à anterior questão, apreciar se cabe a este Tribunal adotar a medida de promoção e proteção indicada por cada recorrente.
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III. Fundamentação de facto
A) Na sequência da realização de debate judicial, a decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. GAED nasceu a 5 de Julho de 2019.
2. G é filho de MMEM, nascida a 6 de Março de 1976 e NMSD, nascido a 25 de Março de 1975.
3. No dia 25 de Julho de 2021, pelas 20h30, na Av. Engenheiro AAC, nº, Porta, onde então a criança residia com os pais, as vizinhas chamaram a PSP, por considerarem que estava a ocorrer uma situação de violência doméstica.
4. Nessa sequência e, após a chegada da PSP, a progenitora denunciou que o progenitor, após uma discussão entre ambos, desferiu-lhe vários socos na cara e na zona dorso-lombar, e acto contínuo, agarrou-a pelos cabelos e arrastou-a pelo chão.
5. Nesse mesmo dia, e com a intervenção da PSP, a progenitora saiu de casa com a criança e foi receber assistência médica no hospital, tendo integrado uma Casa Abrigo no dia 26 de Julho de 2021, mas saiu no dia 28 de Julho, regressando para a casa de morada de família.
6. A situação da criança foi sinalizada à CPCJ de Cascais, em virtude da violência doméstica entre os progenitores, que deu origem ao inquérito nº 587/21.4PBSCS, que correu termos na 1ª Secção do DIAP de Cascais.
7. Em 17 de Fevereiro de 2022, os progenitores foram despejados da casa das Fontaínhas, e o progenitor passou a viver na condição de sem-abrigo, numa tenda.
8. Em momento anterior ao despejo, e durante o período em que o menor residiu com os pais na habitação das Fontaínhas, frequentou o colégio “Pirilampo”, beneficiando de uma bolsa social, sendo que a mãe pagou atempadamente as mensalidades do colégio.
9. Do relatório do colégio Pirilampo resultava que a criança era assídua e pontual e quando faltava a mãe justificava as faltas, apresentava-se bem cuidado e com roupa limpa e adequada e que a progenitora era muito preocupada com a saúde e cuidados do filho. Contudo, aí identificavam que a criança careceria de terapia da fala.
10. Tal relatório do Pirilampo causou estranheza na Casa de Acolhimento que o G veio a integrar, porquanto o G, com cerca de 2 anos, não estava ainda familiarizado com a ingestão de sólidos, apresentava um comportamento que denotava fraca estimulação e tinha a linguagem ainda pouco desenvolvida para a faixa etária.
11. Após o despejo, ou seja, em 17 de Fevereiro de 2022, a progenitora foi residir temporariamente para Castro Verde, para a casa da tia materna do G, PCSD, tendo levado este consigo.
12. Foi a Câmara Municipal de Cascais quem assegurou o transporte dos bens do casal para Castro Verde e ainda lhes deu € 700 para que pagassem uma renda em Castro Verde.
13. O G deixou assim de frequentar a creche o Pirilampo, sem qualquer aviso para aquela instituição, que deixou de receber a criança de um dia para o outro e sem saberem o que tinha ocorrido.
14. No dia 9 de Março de 2022, a CPCJ de Castro Verde recebeu uma denúncia anónima, dando conta que o menor estava a residir com a progenitora na casa de uma tia paterna, mas que o mesmo encontrava-se negligenciado, porquanto a mãe passava muito tempo no café com a criança, gritava muito com este quando ele começava a fazer birras e deixava-o sair sozinho para o exterior, aproximando-se este da estrada.
15. De acordo com a tia paterna, PD, a progenitora dirigia-se regularmente à criança, proferindo expressões como “Vai para o caralho! Vai-te foder! Dorme senão levas nos cornos!”.
16. Ainda segundo a mesma tia, a mãe não cuidava de forma adequada da higiene e alimentação da criança, dando-lhe banho uma vez por semana e alimentando-a somente a papas e a leite.
17. Entre 1 e 6 de Abril de 2022, a progenitora saiu de Castro Verde e regressou a Cascais com o G, a fim de se juntar ao progenitor, que se encontrava residir numa tenda e aí ficaram os três a residir, sendo que negavam à CPCJ a informação sobre onde é que em concreto se encontravam a residir, negando sempre a darem a localização.
18. Não foi possível obter o consentimento dos progenitores para a intervenção da CPCJ de Cascais, porquanto os progenitores ou não apareciam os dois, ou apareciam e depois não davam seguimento, nem prestavam as informações solicitadas, nem atendiam o telefone, sendo que não prestaram os dois o consentimento para a intervenção.
19. Pelo que o processo foi remetido à Procuradoria da República do Juízo de Família e Menores de Cascais.
20. No dia 15 de Abril de 2022, na via pública, de noite, os progenitores envolveram-se em discussão, no âmbito da qual o progenitor proferiu expressões tais como “És uma puta! Precisas é de um caralho grande de um preto!” e de seguida agrediram-se mutuamente, sendo que o progenitor desferiu uma pancada com uma lanterna no queixo da progenitora.
21. Chamada a intervir, a PSP prestou assistência à vítima e observou que G evidenciava falta de cuidados, nomeadamente de higiene.
22. Foi elaborado um novo auto de violência doméstica, que deu origem ao inquérito nº 264/22.9PGCSC e ao abrigo do qual a progenitora e a criança foram para uma nova Casa-Abrigo.
23. No dia 27 de Abril de 2022, a progenitora ingressou na casa abrigo “...” para vítimas de violência doméstica, levando consigo o menor.
24. No âmbito da avaliação técnica efetuada por parte da Casa Abrigo concluiu-se o seguinte: Existiu, por parte da mãe, uma intenção desde o primeiro momento de regressar para junto do progenitor, mantendo com este contacto regular, tendo inclusivamente tentado facultar a localização da casa abrigo.
25. O menor encontrava-se numa situação de perigo devido à falta de condições de habitabilidade (agregado sem habitação, viviam numa tenda);
26. Existia negligência parental por parte da progenitora porquanto não conseguia acautelar as necessidades básicas da criança (alimentação, higiene e saúde).
27. A progenitora sabia que não podia divulgar ao progenitor a morada da casa abrigo e que não podia abandonar a mesma, levando consigo o filho, para junto do companheiro e agressor.
28. Contudo, a progenitora manteve-se em contactos diários com o pai do G, tendo mesmo dar-lhe a morada da casa, para que este a fosse buscar a ela e à criança.
29. A mãe chegou a evadir-se para o exterior da casa-abrigo, com o G, ficando à espera que o pai do mesmo os fosse buscar.
30. A evasão só não foi bem sucedida, porquanto, por um lado, foi detetada pelas técnicas da Casa Abrigo e, por outro, porquanto a mãe não conseguir transmitir corretamente a morada da casa ao seu companheiro.
31. Nessa sequência, no dia 3 de Maio de 2022, o Tribunal aplicou uma medida cautelar de apoio junto da mãe, enquanto esta se mantivesse na casa abrigo com a criança, na medida em que exista supervisão e era garantida a prestação à criança de cuidados básicos.
32. Mas subsidiariamente, caso a progenitora decidisse sair da casa abrigo, não lhe seria permitido que a mesma levasse consigo o G, pelo que, ficou desde logo previsto nesse mesmo despacho, que caso a mãe saísse , a criança ficaria imediatamente sujeita à medida cautelar de acolhimento residencial em CAT, a executar em cama de emergência, uma vez que a progenitora mantinha relação com o progenitor, com o qual pretendia voltar a residir na condição de sem abrigo, não reunindo condições para ter consigo e criança e prestar-lhe os mais elementares cuidados de higiene, alimentação, habitação, estabilidade e segurança.
33. No dia 4 de Maio de 2022, a progenitora tomou a decisão de sair da casa abrigo, para regressar para junto do progenitor, seu agressor.
34. Nesse mesmo dia, a casa abrigou enviou um email ao Tribunal informando sobre a intenção da progenitora de sair da casa abrigo, bem como, da pretensão da progenitora de levar o seu filho consigo.
35. Perante tal circunstancialismo, também nesse mesmo dia – 4 de Maio de 2022 – o tribunal aplicou a medida cautelar de acolhimento residencial em CAT, a executar em cama de emergência, o que sucedeu.
36. Em 5 de Maio de 2022, o menor integrou a ...”.
37. No momento da integração o menor chorou muito e chamou muito pela mãe.
38. O G apresentou dificuldade na regulação emocional, manifestando, durante a primeira semana, sofrimento constante e pedindo colo durante o dia e noite, chorando e entrando, por vezes, em estado de desespero.
39. No relacionamento interpessoal, o G apresentava muitas dificuldades de relacionamento com os pares, sendo que inicialmente reagia mal e dizia “sai… sai!” preferindo o contacto com um adulto que lhe fosse familiar.
40. O G é uma criança amorosa e após ganhar confiança com as técnicas e auxiliares da ..., aceitou facilmente as orientações, mas em momentos de maior tensão, procurava o conforto da chupeta.
41. Na sua integração, o G recusava toda a comida sólida, comendo apenas fruta, iogurtes e leite. Tendo a introdução alimentar sido feita de forma lenta e gradual, rejeitando o G, na totalidade, a carne e a maioria dos peixes.
42. Contudo, o sono do G era tranquilo e reparador, adormecendo com facilidade e sozinho.
43. Desde a data da sua integração na ...” os progenitores contactaram através do telefone e faziam videochamadas diariamente para a casa de acolhimento, solicitando informações sobre o estado do mesmo (por ex.º, se dormiu bem e se comeu).
44. O G realizou a consulta dos 2 anos, no ..., tendo o médico mencionado a existência de necessidade de incentivar a linguagem, a fala e de fazer jogos com amigos para o seu desenvolvimento.
45. Com as videochamadas por parte dos progenitores para o menor, este inicialmente chorava, mas com o passar do tempo deixou de fazê-lo.
46. O G foi uma criança que acabou por se integrar muito bem na casa de acolhimento Âncora”, com contentamento e felicidade, mantendo um relacionamento positivo, com bastante afeição para com os pares e adultos.
47. Solicitados os progenitores a indicarem se havia algum familiar que pudesse acolher e cuidar do G, os progenitores indicaram, como alternativa ao acolhimento do G, uma pessoa que iria ser a madrinha do mesmo, a Sr.ª AA, tendo a mesma sido objeto de avaliação pela EMAT.
48. Contudo, o pai ao indicar a pessoa em questão, nem sequer sabia muito bem o nome da mesma, tendo identificado a pessoa em causa como BB e não AA.
49. Também a Sr.ª AA, quando contactou a Casa de acolhimento, não sabia o nome correto do G.
50. Resultou da avaliação à Sr.ª AA, que a mesma não tinha quaisquer laços afetivos com o G, pois só o tinha visto aquando do nascimento do mesmo e numa outra ocasião, sendo que não estava com o mesmo há cerca de um ano.
51. Além disso, com exceção do seu filho mais novo, todos os seus outros quatro filhos - CC, DD, EE e FF – beneficiaram de processo de promoção e proteção não tendo a mãe os filhos ao seu cuidado, dado que 3 deles estavam mesmo institucionalizados.
52. Por outro lado, a Sr.ª D. AA tinha uma situação económica precária que se agudizaria com a presença do G.
53. Acresce que, não existia uma relação com o G, não sendo uma figura de referência para a criança.
54. Evidenciou também a Sr.ª AA que não conseguiria impor limites aos progenitores e, logo garantir a proteção de G do comportamento dos seus pais.
55. Apurou-se que a disponibilidade da Sr.ª AA prendia-se apenas e tão só com o pretender evitar a todo custo que a criança permanecesse em acolhimento, por se identificar com a história de vida dos seus próprios filhos.
56. Os progenitores indicaram ainda outro familiar como alternativa ao acolhimento do G, a Sr.ª GG, tia paterna da criança.
57. Foi a tia paterna avaliada por parte do EMAT de Beja, resultando em síntese que: a tia GG vivenciava uma situação de enorme fragilidade socioeconómica, sem que conseguisse fazer face às suas despesas, em virtude de dívidas contraídas e que tinha de pagar, tendo até tido de mudar de casa, para uma habitação que não reunia as condições para aí acolher o sobrinho.
58. Não mantinha com o sobrinho qualquer relação de afeto e, só manteve contacto com o mesmo durante os cerca de dois meses, quando, contra a sua vontade, a cunhada se instalou na sua casa com a criança;
59. Não mantinha qualquer relação com o irmão ou com a cunhada;
60. Tinha hábitos de consumo abusivo de bebidas alcoólicas, ainda que estivesse nesse momento abstémia, mas contando com recaídas e com momentos de falta de adesão ao tratamento;
61. A sua própria filha beneficiava de acolhimento residencial, aplicado no âmbito de um processo de promoção e protecção, noa dia 25 de Novembro de 2020, em virtude do contexto disfuncional da progenitora, sem qualquer retaguarda familiar.
62. A progenitora do G quando permaneceu na casa da tia, era tida na comunidade como uma mãe que não prestava os cuidados ao filho, pelo que, a situação foi comunicada à data a CPCJ de Castro Verde;
63. A presença da progenitora e da criança na casa da tia contribuiu para a destabilização desta;
64. Pese embora os esforços desenvolvidos pela tia quanto à sua filha, resultou que não reunia as condições para ter a seu cargo uma criança com a idade de G, pelos cuidados que o mesmo necessitava.
65. A tia não tinha estrutura emocional, bem como socioeconómica para acolher o sobrinho, o que constituiria uma situação de grave perigo para o mesmo, em função do quadro desta.
66. A referida tia carecia de intervenção com vista a reforçar, orientar e consolidar as suas competências e a capacita-la no exercício da parentalidade quanto à própria filha, carecendo de se focar na prestação de cuidados à filha e na capacitação para esse efeito, logo, não poderia ajudar o seu sobrinho G.
67. Dado que a ... era no norte do país, o que dificultava que os pais pudessem visitar G, o Tribunal determinou que a criança fosse transferida para uma Casa de Acolhimento mais perto, que permitisse aos pais visitá-lo, e que os mesmos fossem avaliados e trabalhados, para que a reunificação familiar se pudesse concretizar.
68. Nessa sequência, no dia 12 de Julho de 2022, o menor G integrou a ..., neste concelho de Cascais.
69. A data da integração na casa de acolhimento, o G aparentava ser um menino calmo, simpático, interagindo bem com outras crianças, iniciando a introdução de comida sólida, sopa e fruta.
70. Nessa altura, G ainda usava fraldas e chucha.
71. Foram estipulados horários de visitas e dos telefonemas entre os progenitores e a casa de acolhimento, bem como se procederiam as rotinas do menor, segundo as regras da casa de acolhimento, a fim de não se prejudicar as dinâmicas da casa.
72. No dia 13 de Julho de 202211, os progenitores contactaram telefonicamente a ..., ficando agendada uma visita da mãe ao G, a ocorrer no dia 22, uma vez que o pai se encontrava a trabalhar.
73. Ficou ainda agendada, a primeira visita de ambos e consequente entrevista para o dia 29 desse mês, a qual os pais compareceram.
74. Desde o dia 13, até ao dia 29 de Julho de 202222, os contactos telefónicos eram vários durante o dia, por vezes entre 7 a 10 telefonemas diários, em diferentes horas.
75. Esses contactos eram realizados na sua maioria pelo pai, muitos deles indelicados e sempre numa atitude de controlo do filho e de questionamento “(...) o que ele fez? O que está a fazer? (...) o que ele comeu? (...) quais as vossas condições? (...)” (sic).
76. O progenitor contactava a casa de acolhimento e passados menos de minutos, ligava a progenitora, colocando as mesmas questões e confrontando os diferentes educadores.
77. No dia 22 de Julho de 202233 deu-se a primeira visita presencial, apenas com a mãe. Porém, este contacto teve de ser interrompido uma vez que a mãe começou a ficar exaltada, ao falar com o pai ao telefone, na presença do G.
78. Na despedida foi difícil conter a zanga do G, pois não entendeu o que se passou.
79. No dia 29 de Julho de 202244, os progenitores foram à ..., para uma entrevista, reunião e ainda, uma visita ao menor seu filho.
80. Durante a entrevista aos progenitores, estes revelaram ter dificuldades de relacionamento, designadamente, o progenitor controlou a dinâmica da reunião, mandando calar a progenitora, tendo inclusivamente retirado o telefone à progenitora, sendo que esta acatou tal atitude.
81. No âmbito dessa entrevista à progenitora, foi possível apurar, de acordo com o seu próprio relato, o seguinte:
a) tinha, à data, 46 anos e tem, para além do G, uma filha, que a data teria 19 anos, que vive com a avó e um filho que teria 12 anos e que reside com o pai;
b) nasceu em Cascais, tem vários irmãos germanos, com quem estabelece uma relação quotidiana;
c) o seu pai tem uma nova relação e a sua mãe também, sendo que chama de pai ao padrasto;
d) não tem boa relação com a mãe;
e) estudou até ao 6º ano no Liceu de São João do Estoril e sempre trabalhou nas limpezas.
82. No âmbito da entrevista realizada por parte da casa da ... ao progenitor, foi possível apurar o seguinte:
a) tinha, à data, 47 anos, não tem outros filhos e os seus pais já faleceram (contudo, de acordo com o que teria dito à CPCJ, tem outro filho de nome HH, com mais de 20 anos);
b) sempre viveu em Cascais, na zona se Alvide e Carcavelos.
c) tem 5 irmãos que seguiram as suas vidas e não serão ajuda para o casal.
d) estudou até ao 4º ano na escola de Carcavelos e tem desenvolvido a sua atividade laboral na área da jardinagem.
e) segundo o pai, estão juntos há 6 anos e viviam num apartamento nas Fontainhas do qual tiveram de sair, pelo facto de a proprietárias precisar da casa. Desde então, vivem numa tenda perto do Minipreço de Birre.
f) o G é o único filho em comum de ambos. Nasceu no hospital de Cascais e a mãe teve diabetes durante a gravidez. São ambos acompanhados no Centro de Saúde de Alcabideche
g) no que diz respeito ao filho, diz que G é brincalhão e que dorme a noite toda;
h) mamou até aos três meses e a partir dos 6 meses iniciou a sopa. Gosta de batatas fritas, melão, mirtilos e framboesas e o G dizia “Em casa comia massinhas, mas o que ele mais gosta é de batatas fritas” (sic).
83. Os progenitores informaram a casa de acolhimento que, nesse momento, não tinham qualquer família de retaguarda ou pessoa idónea para poder ficar com o G a seu cargo.
84. A casa de acolhimento estabeleceu os convívios dos progenitores com o menor G, a ocorrerem nos seguintes moldes:
85. Convívios às 3ª. Feiras, das 15h às 16h, de acordo com o horário do trabalho do pai;
86. Telefonemas: 1 por dia, entre as 12:30 e as 14h;
87. Durante as visitas deveriam manter uma relação cordial entre ambos;
88. Caso um dos progenitores não pudesse ir à visita, não deviam estar constantemente a telefonar um ao outro, no decorrer da mesma.
89. No dia 22 de Junho de 2023, ocorreu uma nova reunião na casa de acolhimento com a técnica da EMAT, tendo novamente o progenitor evidenciado um comportamento controlador sobre a progenitora. Os progenitores conversaram sobre o processo de violência doméstica, sempre desvalorizando a situação, designadamente, o pai afirmou: “Ó senhora, eu chegava a casa e não tinha nada feito e pronto passava-me. (…) ela andava com outros homens e eu tinha ciúmes (…) ela teve hepatite porque é curta e comprida (…)” (Sic).
90. Perante tal discurso do seu companheiro, a mãe, consentiu.
91. Os progenitores revelaram que não compreendiam as razões do acolhimento do seu filho, imputando tal situação à falta de habitação.
92. Os progenitores encontram-se actualmente inseridos profissionalmente, sendo que a progenitora encontra-se a trabalhar num refeitório na escola básica na Aldeia de Juso e o progenitor numa empresa particular de jardinagem.
93. A progenitora é assídua na Casa de Acolhimento, e tem cumprido com o horário das visitas do G e nas suas ausências justifica sempre as mesmas, por razões laborais.
94. O pai falta muitas vezes, invocando razões de trabalho, mas também por existir um cão na Casa de Acolhimento, bem como por haver formigas no jardim.
95. O pai esteve de baixa médica, e durante esse período não visitou o G.
96. Confrontado com esse facto, e perguntado porque não havia visitado o filho, durante esse período de tempo, respondeu: “arrependimentos!”.
97. Os progenitores demonstraram preocupação com o G, questionando a casa de acolhimento sobre as condições de salubridade da casa, designadamente, a existência de formigas no jardim, a aparência do filho, mais concretamente as borbulhas e feridas nos pés e pernas, decorrentes de picadas de melga.
98. Numa das visitas, o progenitor contactou a PSP para ir à casa de acolhimento, porquanto estava descontente com as técnicas, que o impediram de dar um doce Noggat ao filho, mesmo sabendo que o G estava com diarreia, devido a uma gastroenterite.
99. Nesse dia, o progenitor exaltou-se com as técnicas perante o filho, gritando e pedindo que se chamasse a PSP, pois “(…) um pai tem o direito de dar ao seu filho os miminhos que entender, e é só uma diarreia, (…) olhe, façam é o teste de Covid (…)”.
100. Quando a progenitora visita o menor, ao sair da visita, informa o progenitor do que ocorreu na visita, mas, por vezes, deturpa a informação, razão pela qual, passados alguns minutos, o progenitor contacta a casa de acolhimento, pretendendo obter satisfações do sucedido (por ex.º, a mãe foi à visita e próximo do final da mesma pediu para mudar a fralda do filho, que, entretanto, havia feito cocó. Após a visita, o pai ligou para questionar a casa de acolhimento porque é que o filho tinha ido para junto da mãe com a fralda suja).
101. No início do mês de Novembro de 202255, os pais informaram a Casa de Acolhimento que as visitas passariam a ser sempre com a progenitora, e que o pai deixaria de ir, devido ao processo de violência doméstica, porque a sua advogada o tinha informado de que ele iria preso.
102. Desde a integração do G na casa de acolhimento, que se verificou um grande processo evolutivo da criança, que não comia sólidos, que não conseguia estabelecer relações com os seus pares, que recorria constantemente à agressividade e em que fazia muitas birras, em que se enrolava sobre si próprio.
103. Presentemente, o G gosta muito de brincar com carrinhos e camiões, mas também adora brincar no parque, andar de bicicleta e de trotinete.
104. O G adora andar descalço na casa ou no espaço exterior da Casa.
105. O G mantém uma boa relação com os seus pares, no entanto, quando se sente injustiçado pede a atenção do adulto e “zanga-se” com os seus amigos, além disso, quando é contrariado faz a sua birra, a qual não demora a interromper, ingressando nas atividades que estejam a decorrer.
106. O G já estabeleceu relações preferenciais na Casa, tanto com os adultos como com os pares.
107. O G é uma criança afetiva e bem aceite pelos outros, que já permite ser abraçado e ter uma interacção mais próxima com todos, tendendo também ele a abraçar os amigos, especialmente quando os vê tristes.
108. O G está cada vez mais autónomo no que diz respeito à alimentação, higiene, a vestir-se ou a despir-se, já come sozinho, ajuda a tirar a roupa, gosta de ser ele a pôr o creme no corpo, pede para ir à casa de banho, já não usando actualmente fralda e adormecendo bem à noite.
109. O G apresenta boa destreza motora e tem feito progressos na aquisição da linguagem, usando frases completas e complexas. É uma criança ávida de brincadeira e de descoberta.
110. O G está inscrito no Centro de Saúde da Parede e tem o Plano de Vacinação em dia, já foi observado em pediatria, fez análises de rotina, uma consulta de otorrinolaringologia e ouve bem, e de cardiologia pediátrica, sem questões de relevância clínica.
111. O G é acompanhado na Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso, fazendo as consultas de rotina, tendo o seu plano de vacinação em dia.
112. O G é uma criança saudável, não lhe tendo sido diagnosticado qualquer problema de saúde.
113. No entanto, o G é acompanhado em consultas de psicologia, de que necessita.
114. O G está a frequentar a Cooperativa de Ensino “A Praceta” em Nova Oeiras.
115. O G teve uma boa adaptação ao jardim-de-infância, encontrando-se completamente integrado, conhecendo as regras e as rotinas.
116. O G gosta muito da escola e este ano está na sala dos 5 anos, faz algumas “birras”, denotando dificuldade em lidar com a frustração.
117. O G corre para o adulto e chama constantemente pela sua atenção, em grande parte para validar o que consegue fazer.
118. O G tem capacidade de vinculação a novas figuras afetivas significativas, à medida que demonstra conseguir estabelecer relações preferenciais na ....
119. Mas, o G é uma criança insegura, com alguns medos e ansiedades, encontrando-se numa fase de desenvolvimento de grande necessidade de afecto e de atenção individualizada.
120. Por vezes, o G pede ajuda para comer, faz “birras” quando é contrariado, apelando à atenção do adulto.
121. O G é uma criança que está permanentemente em situação de “alerta”, sendo que tal é algo que se verifica com alguma frequência em crianças que estiveram ou presenciaram contextos de violência doméstica.
122. No dia 05.12.2022, o tribunal procedeu à revisão da medida cautelar de acolhimento, mantendo a mesma.
123. No dia 09.01.2023 foi, com os pais, acordada a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial a favor do G, no qual foram assumidos os seguintes compromissos:
a) Os progenitores comprometem-se a submeterem-se a perícias psiquiátricas;
b) Os progenitores comprometem-se a juntarem aos autos os contratos de trabalho;
c) Os progenitores comprometem-se a juntarem a documentação comprovativa em como andam à procura de alojamento;
d) Os progenitores comprometem-se a serem adequados, com as técnicas, nas visitas ao G;
e) Os progenitores comprometem-se a cumprirem com o horário dos telefonemas ao filho;
f) Os progenitores comprometem-se a absterem-se no relacionamento entre ambos, de qualquer comportamento violento ou agressivo;
g) Os progenitores comprometem-se a seguir as orientações da EMAT e da Casa de Acolhimento.
124. Nesse mesmo dia, o progenitor solicitou visitas ao seu filho, inclusivamente aos fins-de-semana, uma vez que se encontrava de baixa médica.
125. Perante tal solicitação, a casa de acolhimento informou o progenitor que poderia ir visitar o seu filho no dia seguinte ou em outra data, tendo o progenitor rejeitado essa possibilidade, dizendo que “entraria em contacto com a casa de acolhimento, quando lhe fosse possível”.
126. O pai foi ver o G, no 10 de Janeiro de 2023, não tendo realizado mais visitas entre os meses de Maio e Junho, justificando que existiam formigas no jardim.
127. A progenitora foi visitar o G e informou que retomou a relação com o progenitor, tendo efectuado uma vídeochamada ao progenitor, no momento da visita.
128. A progenitora, a convite da casa de acolhimento, acompanhou o G, por duas vezes, a uma consulta de pediatria no Centro de Saúde Nossa Senhora do Bom Sucesso, tendo-lhe sido dada liberdade para falar do seu filho ao médico sobre o seu desenvolvimento e saúde, mas a mãe não colocou qualquer questão ao médico sob o estado de saúde do menor.
129. No entanto, perguntada que foi, não conseguiu responder às perguntas que lhe foram feitas, nem apresentou dúvidas sobre o desenvolvimento do seu filho.
130. No dia 17 de Março de 2023, existiu uma festa na creche do G, alusiva ao Dia do Pai, tendo sido convidado o progenitor, que não compareceu.
131. No dia 21 de Março de 2023, o progenitor solicitou a presença da PSP na ..., por a criança ter sido levada para a creche no dia da visita dos progenitores ao menor.
132. Nessa ocasião, a educadora foi, de imediato buscar o G à creche, para que este pudesse ter a visita do pai.
133. Contudo, à chegada do G, o progenitor não se aproximou do menor, tendo sido este quem o chamou para entrar, o que o pai recusou, por não ter sido escrupulosamente cumprido o horário da visita.
134. Os progenitores deram entrada de um pedido de uma casa habitacional na Câmara Municipal de Oeiras, encontrando-se em 27.º lugar para a sua atribuição, à data da elaboração das alegações do Ministério Público.
135. Foi dada a possibilidade aos progenitores de se integrarem no Centro de Recursos da Adroana, como possibilidade de alojamento, mas estes não aceitaram, alegando que não tinham onde guardar os seus electrodomésticos, preferindo continuar a residir na tenda junto do local de trabalho do pai.
136. A progenitora quando ficou desempregada, não beneficiou de subsídio de desemprego.
137. Já depois de agendado o presente debate instrutório, a mãe juntou um contrato de trabalho a termo certo, com duração de 6 meses.
138. O progenitor trabalha na Empresa “Sograma”, na área da jardinagem e aufere mensalmente o valor do ordenado mínimo nacional.
139. O pai refere-se à mãe, definindo-a com expressões como: “Ela é uma porca” (sic), afirmando que as discussões existentes são por culpa da sua companheira, que é muito desorganizada.
140. O pai do G nega que mantenha consumos regulares de bebidas alcoólicas, “Estou calmo” (sic) “Não me passa maluquices pela cabeça” (sic).
141. Contudo, na sessão de audiência de discussão e julgamento de dia 7 de Março, afirmou que já não bebia álcool: “Desde há 2 dias!”, porque o patrão o tinha avisado que “se ele não parasse de beber, ia para o olho da rua”.
142. A progenitora mostrou algumas vezes nos autos, arrependimento por ter saído da casa abrigo, contudo, sempre que presta declarações, refere que a sua vontade é viver com o seu companheiro e com o filho de ambos.
143. Desde que o menor se encontra acolhido até à presente data ocorreram as seguintes visitas:
a) Julho de 2022 – 2 visitas mãe, 1 visita pai, chamadas telefónicas pai (16), (8) mãe;
b) Agosto de 2022 – visitas (3) mãe, (1) pai, contactos telefónicos pai (10) e (4) mãe;
c) Novembro de 2022 – visitas (4) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (8) pai, (5) mãe;
d) Dezembro de 2022 - visitas (1) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (17) pai, (4) mãe;
e) Janeiro de 2023- visitas (4) mãe, (3) pai, chamadas telefónicas (5) pai, (11) mãe;
f) Fevereiro de 2023- visitas (3) mãe, (2) pai, chamadas telefónicas (3) pai, (2) mãe;
g) Março de 2023- visitas (4) mãe, (2) pai, chamadas telefónicas (4) pai, (7) mãe;
h) Abril de 2023 – visitas (4) mãe, (3) pai, chamadas telefónicas (7) pai, (4) mãe;
i) Maio de 2023 – visitas (5) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (8) pai, (1) mãe;
j) Junho de 2023 – visitas (3) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (6) pai, (2) mãe;
k) Julho de 2023- visitas (3) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (9) pai, (2) mãe;
l) Agosto de 2023 – visitas (5) mãe, (1) pai, chamadas telefónicas (10) pai, (0) mãe;
m) Setembro de 2023 – visitas (1) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (4) pai, (0) mãe;
n) Outubro de 2023 – visitas (4) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (12) pai, (0) mãe;
o) Novembro de 2023 visitas (4) mãe, (1) pai, chamadas telefónicas (11) pai, (0) mãe;
p) Dezembro de 2023 visitas (3) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (13) pai, (3) mãe;
q) Janeiro de 2024 – sem informação.
r) Fevereiro de 2024 visitas (3) mãe, (0) pai, chamadas telefónicas (7) pai, (0) mãe;
s) Março de 2024 visitas (3) mãe, (1) pai, chamadas telefónicas (10) pai, (3) mãe;
t) Abril de 2024 sem informação;
u) Maio de 2024 visitas (4) mãe, (2) pai, chamadas telefónicas (8) pai, (1) mãe;
v) Junho de 2024 visitas (4) mãe, (1) pai, chamadas telefónicas (10) pai, (6) mãe;
w) Julho de 2024 visitas (4) mãe, (2) pai, chamadas telefónicas (11) pai, (2) mãe;
x) Agosto de 2024 visitas (4) mãe, (2) pai, chamadas telefónicas (13) pai, (1) mãe;
y) Setembro de 2024 visitas (4) mãe, (2) pai, chamadas telefónicas (11) pai, (1) mãe;
z) Totalizando 81 visitas da mãe, 27 visitas do pai, 67 chamadas telefónicas da mãe e 208 chamadas telefónicas do pai.
144. Ao longo do tempo, as visitas tiveram diversas dinâmicas e foram agendadas de acordo com os horários dos pais.
145. As visitas por parte da progenitora são mais prolongadas, ao contrário das visitas do progenitor, que pede para terminar as mesmas, antes do final do tempo de que dispõe para a visita.
146. O progenitor justifica as suas ausências às visitas ao menor referindo “(…) então o importante é a mãe ir, eu não posso, trabalho e não quero ficar sem trabalho, já não estou à experiência e depois há o cão da casa, muitos pêlos, formigas e folhas, a casa não tem condições, eu não me sinto seguro, já disse que só posso ir de fim-de-semana, não posso faltar ao trabalho (…)” (sic).
147. Quando está bom tempo, as visitas decorrem em espaço exterior, no jardim da casa de acolhimento, onde o G brinca, corre, anda de triciclo e quando está mau tempo, ocorrem no interior da casa, fazendo jogos lúdicos com os progenitores.
148. Contudo, as visitas são sempre comandadas pelo G, assumindo os pais uma postura passiva, não estimulando a criança.
149. Por vezes, o G “sai” da visita, indo ter com outros adultos da casa, ou com outras crianças.
150. O G sempre que é visitado pelos progenitores, corre para os seus braços, sendo correspondido.
151. O momento da despedida, já foi vivido de forma tensa por toda a família, sendo que o casal tendia a enfatizar este momento da visita, prolongando-o, o que espoletava, por vezes, no G, explosões de choro e a verbalização de querer continuar na atividade que estava a desenvolver com os pais.
152. Actualmente, a visita termina sem sobressaltos.
153. A progenitora, por vezes, na despedida, dirige-se ao filho dizendo (…) “ó filho não chores, a mãe está quase a ter casa, só falta casa para ires viver com a mãe (…) está na hora de me ir embora, vá, fica com as doutoras” (sic), sendo que era após estas verbalizações que, por vezes, o G chorava.
154. Quando as referidas verbalizações não acontecem ou são de imediato cortadas pelo adulto, o G despede-se da mãe e retoma uma brincadeira com os amigos.
155. O G reconhece os pais e fica contente quando está com eles.
156. No entanto, o G não questiona pelos pais, quando eles não estão presentes.
157. O G não sabe os seus nomes, apenas os trata por “papá, pai, mamã e mãe”.
158. O G já tem plena consciência de que o pai não quer ou não pode ir visitá-lo, verbalizando “(…) o pai não vem porque há formigas (…) e porque está a trabalhar” (sic).
159. Os progenitores denotam dificuldade na colocação de limites e na identificação das necessidades do G.
160. Todas as interacções do G com os seus pais, são conduzidas por este, que vai saltando de brincadeira em brincadeira até se cansar da mesma, procurando sair do espaço de visita para explorar outros lugares, sendo que os pais vão acompanhando, sem introduzirem novas sugestões.
161. Os progenitores não colaboraram com as entidades intervenientes para organizarem a sua vida para trabalharem a reintegração familiar e não compreenderam a importância das suas visitas ao G.
162. O progenitor esteve de férias e nesse período apenas visitou o seu filho duas vezes, não tendo existindo qualquer entrave por parte da casa de acolhimento, caso o mesmo pretendesse alargar essas visitas.
163. O progenitor esteve de baixa médica entre Julho e Agosto do ano de 2024 e não foi visitar o seu filho.
164. Num dos dias de aniversário do G, o progenitor contactou telefonicamente a casa de acolhimento dizendo que estava “(…) chateado e zangado com a minha esposa, quando chego à tenda, não tenho nada preparado e está tudo desorganizado, já não dá mais (…) a minha esposa não faz nada e eu é que venho cansado do trabalho (…)”.
165. Os progenitores foram visitar o menor à casa de acolhimento no seu dia de aniversário, mas o pai ficou pouco tempo por estar zangado com a progenitora.
166. No aniversário, o G partilhou com os vários educadores que os pais estavam zangados um com o outro e que ficava triste quando isso acontecia.
167. Dos elementos clínicos constantes dos autos, consta que a progenitora foi vítima de agressão por parte do progenitor, situação essa que motivou a sua deslocação às urgências do Hospital de Cascais (dia 25.07.2021 e 14.04.2022), no qual foi observada e pelos médicos foi visualizada «lesões no braço e ombro e escoriações na face».
168. No hospital, a mãe referiu que tinha sido agredida pelo pai do G.
169. Na audiência de discussão e julgamento, a mãe tem verbalizado que não foi o pai, que ele já não lhe bate há muito tempo e que as vezes que foi ao hospital, foi porque se tinha magoado a cair no chão, uma das vezes, porque terá tropeçado numa pedra.
170. Confrontada que foi, com o que tinha verbalizado no hospital, bem como perante a PSP, não soube explicar-se, dizendo que tinha dito aquilo na altura, porque estava muito preocupada por ter caído em cima do G.
171. Dos elementos clínicos do progenitor, resultantes das idas do mesmo às urgências do Hospital de Cascais (dias 31.07.2021, 28.04.2022, 22.10.2022 e 01.11.2022), o mesmo apresentou-se em estado de inconsciência/síncope, tendo-lhe sido detectado abuso de álcool sem dependência, mas abuso contínuo.
172. A progenitora tem acompanhamento psicológico no Hospital de Cascais, do qual resulta que a mesma: «tem indicação para acompanhamento especializado em adição (…), psicoeducação, episódio depressivo major-perturbação de álcool, (…)».
173. Foi realizada uma perícia psicológica médico-legal à progenitora, cujo teor aqui se reproduz na íntegra para todos os efeitos legais, a qual concluiu o seguinte, relativamente à progenitora: «6.1. A examinanda estabelece um contacto globalmente adequado, mostrando-se colaborante face à situação de exame, ainda que ansiosa. Está vígil e orientada quer no tempo, quer no espaço. A atenção é fixável. A memória a curto e a longo prazo indicia estar mantida. A linguagem é fluente, sem verbigerações ou neologismos. O pensamento é confuso e o discurso desorganizado. Nesta data, não se apuram ideias delirantes ou alterações de humor. O comportamento psicomotor da examinanda é normal sem ecopraxias, automatismos ou obstruções que indiciem patologia grave psicótica em atividade. A perceção encontra-se conservada, não se identificando alucinações atuais. O juízo crítico indicia estar condicionado.
a. 6.2. Nas entrevistas clínico-forenses foi possível perceber uma história de desenvolvimento marcada por práticas parentais abusivas e negligência da parte da mãe, indicando a avó como a principal figura afetiva de referência na infância. Estas vivências sugerem terem tido grande influência no seu desenvolvimento cognitivo, psicoafetivo e na organização da sua personalidade. A examinanda conta sobre se ter refugiado no álcool e em relações amorosas conflituosas e sobre ter tido dois filhos que não foram criados por si por se encontrar emocionalmente instável e a mudar várias vezes de parceiro. A relação com o pai da criança em questão, segundo peças processuais, é também pautada pelo conflito e situações de violência, ainda que em contexto de entrevista a examinanda o negue. Vive na rua há mais de um ano, numa tenda, sem rede de apoio familiar.
b. 6.3. No que diz respeito à avaliação instrumental cognitiva, o resultado obtido pela examinanda indicia deficiência intelectual, que é compatível com a informação que foi possível recolher em contexto de entrevista clínico-forense, onde se apura desajustamento académico, laboral e social e se evidencia julgamento/análise social condicionada.
c. 6.4. A avaliação instrumental de personalidade aponta para uma forma de pensamento confuso, com crenças, expectativas e auto descrições improváveis e contraditórias, o que pode condicionar o perfil traçado. Não obstante, as pontuações elevadas em 5 das 8 escalas clínicas indicam psicopatologia e associam-se a indivíduos com perturbações ao nível do insight, muito suscetíveis e hostis, facilmente ressentidos, que funcionam com base em dados, inexistentes e/ou insuficientes, pressupõem rejeições e críticas das quais se pretendem preservar. Sendo que podem projetar a culpa ou internalizá-la, voltando a hostilidade contra si próprios, dando azo a ideação suicida ou tentativa de suicídio. Por um lado, possuem traços de insensibilidade face aos outros, e por outro, apresentam uma elevada tendência para sentir culpa e remorso face às suas condutas, alternando, deste modo, entre períodos de passagem ao ato (onde poderão surgir condutas como a promiscuidade e alcoolismo), com períodos de sentimentos de culpa. Os indicadores recolhidos nas entrevistas clínicas são compatíveis com as características apuradas na avaliação instrumental.
d. 6.5. No que concerne à autoavaliação de desajustamento emocional a examinanda reporta ausência de sintomatologia, não obstante, da análise clínica recolhem-se indicadores de ideação paranoide, que se traduz principalmente ao nível do pensamento projetivo e confuso, egocentrismo, hostilidade e ressentimento, rigidez cognitiva e isolamento, ansiedade, sensibilidade interpessoal e padrões de dependência nas relações amorosas. A examinanda refere ter tido problemas de consumo do álcool no passado, mas que não consome atualmente.
e. 6.6. No que concerne à avaliação instrumental da parentalidade, a examinanda reporta um baixo nível de stresse associado e conceções de práticas educativas adequadas, não obstante, refere concordar totalmente com a afirmação «Cuidar do meu filho por vezes exige mais tempo e energia do que aquele que tenho para dar», sendo que a criança está acolhida há cerca de um ano e não está aos seus cuidados diários, mas apesar de só visitar a criança uma vez por semana, indicia sentir stresse associado aos cuidados à criança.
f. 6.7. Ainda no que diz respeito à parentalidade a examinanda refere que nos primeiros anos de vida da criança, quando estava aos seus cuidados, o filho estaria a ter um desenvolvimento normativo, ainda que conte que as educadoras da criança lhe teriam referido que o filho estaria com atraso na linguagem e que só adquiriu rotinas alimentares na Casa de Acolhimento, uma vez que esta só não lhe dava sólidos, o que indica a sua incapacidade em reconhecer e corresponder às as necessidades da criança. Também o facto de ter deixado o seu filho aos cuidados da instituição onde estavam ambos acolhidos para regressar para junto do companheiro, indicam pouca ligação afetiva à criança e incapacidade em identificar e priorizar as suas necessidades.
g. 6.8. A análise integrada da informação recolhida sugere défices cognitivos, que terão impacto na capacidade da examinanda em lidar com problemas quotidianos e complexos, e um funcionamento da personalidade perturbado, instável, dependente, impulsivo, insensível, egocêntrico, errático e com falta de insight sobre as suas responsabilidades. Estas características de funcionamento cognitivo e psicológico afiguram-se como fatores de alto risco à parentalidade, sendo disso exemplos: as crenças distorcidas sobre o que é um ambiente familiar saudável, a desvalorização e normalização de situações de violência, o negar problemas de alcoolismo do companheiro, a instabilidade laboral, a relação de dependência com o companheiro, a resistência em aceitar ajuda ou orientações dos serviços, a incapacidade em centrar-se nas necessidades psicoafectivas do filho».
174. Foi realizada uma perícia Psicológica ao progenitor cujo teor aqui se reproduz na integra para todos os efeitos legais, tendo-se concluído o seguinte: «6.1. O examinando estabelece um contacto globalmente adequado, mostrando-se colaborante face à situação de exame, ainda que ansioso. Está vígil e orientado quer no tempo, quer no espaço, não obstante tem dificuldade em manter coerência e sequência temporal na história de vida e situações que conta. A atenção é fixável. A linguagem é fluente, sem verbigerações ou neologismos. O pensamento é confuso e o discurso desorganizado. Nesta data, não se apuram ideias delirantes ou alterações de humor. O comportamento psicomotor do examinando é normal sem ecopraxias, automatismos ou obstruções que indiciem patologia grave psicótica em atividade. A perceção encontra-se conservada, não se identificando alucinações atuais. O juízo crítico indicia estar condicionado.
6.2. O examinando reporta uma história de desenvolvimento marcada por alcoolismo dos pais, violência familiar, maus-tratos e negligência. Estas vivências sugerem ter tido influência no seu desenvolvimento cognitivo, psicoafetivo e na organização da sua personalidade. Em idade adulta conta sobre uma relação amorosa fortuita e sobre a existência de um filho fruto dessa relação, que não conhece, sobre ter sido preso por reiteradamente conduzir sem carta e sem seguro do carro, sobre dois internamentos por abuso de álcool, sobre instabilidade laboral, um relacionamento conjugal com a mãe da criança em questão, com pelo menos um episódio de violência e sobre viver na rua há dois, numa tenda, sem rede de apoio familiar.
6.3. No que diz respeito à avaliação instrumental cognitiva, o resultado obtido pelo examinando indicia deficiência intelectual, que é compatível com a informação que foi possível recolher em contexto de entrevista clínico-forense, onde se apura desajustamento académico, laboral e social e se evidencia julgamento/análise social condicionada
6.4. No que concerne a sintomatologia, da análise clínica recolhem-se indicadores de ideação paranoide e depressão. O examinando evidencia um modo perturbado de pensamento, que se traduz principalmente ao nível do pensamento projetivo, egocentrismo, hostilidade e ressentimento, rigidez cognitiva, isolamento e indicia alcoolismo.
6.5. A análise integrada da informação recolhida sugere défices cognitivos, que terão impacto na capacidade do examinando em lidar com problemas quotidianos e complexos, e um funcionamento da personalidade perturbado, instável, desconfiado, dependente, impulsivo, inconformista, imprevisível, egocêntrico, errático e com falta de insight sobre as suas responsabilidades. Estas características de funcionamento cognitivo e psicológico afiguram-se como fatores de alto risco à parentalidade, sendo disso exemplos: as crenças distorcidas sobre o que é um ambiente familiar saudável, a desvalorização e normalização de situações de violência, a indiferença face à existência de um filho que não conhece, o negar problemas de alcoolismo, a instabilidade laboral, a necessidade de controlo da companheira, a postura conflituosa nos momentos de visita ao filho, a incapacidade em reconhecer qualquer parte de responsabilidade relativamente à situação de acolhimento do filho, a incapacidade em reconhecer as suas limitações, a resistência em aceitar ajuda ou orientações dos serviços, a incapacidade em centrar-se nas necessidades psicoafectivas do filho.»
175. Foi realizada uma perícia psiquiátrica ao progenitor cujo teor aqui se reproduz na integra para todos os efeitos legais, onde se concluiu o seguinte: «(…) O examinado é possuidor do diagnóstico de Atraso Mental Sem Outra Especificação, a que corresponde o código F79 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10). Aparenta sérias dificuldades do ponto de vista cognitivo, nomeadamente é capaz de realizar cálculo mental de somas simples, contudo é incapaz de realizar subtrações simples, multiplicações e divisões simples. Apresenta grande dificuldade na interpretação de textos. Apresenta contacto pueril. Tais sintomas psíquicos implicam prejuízo concreto na sua capacidade parental. Nega consumos de bebidas alcoólicas em excesso ou consumo de substâncias ilícitas (…)».
176. Foi realizada uma perícia psiquiátrica à progenitora cujo teor aqui se reproduz na íntegra para todos os efeitos legais, em que se concluiu o seguinte: “(…) A examinada é possuidora do diagnóstico de Perturbação Depressiva Recorrente, a que corresponde o código F33 da Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10). Apresenta quadro de tristeza, apatia, anedonia, ansiedade, insónia. Nega ideação suicida. Aparenta algumas dificuldades do ponto de vista cognitivo, nomeadamente é capaz de realizar cálculo mental de somas simples, contudo é incapaz de realizar subtrações simples, multiplicações e divisões simples. Apresenta grande dificuldade na interpretação de textos. Apresenta contacto pueril. Tais sintomas psíquicos implicam prejuízo concreto na sua capacidade parental (…)».
177. No dia 18.03.2024 os progenitores foram ouvidos por parte do Tribunal e não consentiram que o seu filho G fosse encaminhado para adopção.
178. No âmbito da realização dessa diligência, pelas entidades intervenientes no processo foi dito o seguinte: “desde a última data em que estiveram no tribunal não houve melhoria na situação vivencial dos pais”;
179. Pelas técnicas que lidam directamente com o G, foi referido que o G tem uma relação com a mãe e com o pai, mas não é uma relação securizante;
180. Os progenitores não cumprem os compromissos assumidos, a progenitora mantém-se a fazer videochamadas ao progenitor quando realiza visitas e não fizeram uma procura activa de habitação, ficando a aguardar uma casa da Câmara;
181. Os pais rejeitaram ajuda na intervenção, designadamente, a integração no Centro de Acolhimento da Adroana;
182. Neste momento, não existem familiares ou rede de suporte que possibilitem ao G integrar a sua família biológica, para ajudá-lo a crescer, pese embora, todo o trabalho feito pelas entidades (Casa de Acolhimento e EMAT), uma vez que os progenitores se mostram impermeáveis à intervenção.
183. Os progenitores desde o acolhimento do filho, não reconhecem o real motivo de acolhimento, centrando-se na ideia de que tal aconteceu porque não têm casa, mantendo a responsabilidade nos Serviços que, no seu entender, os tinham de ajudar.
184. Os progenitores mostram revolta, acusando inércia e falta de apoio das entidades, reagindo de forma agressiva para com as pessoas envolvidas no processo do G, sendo que inclusivamente apresentaram queixas na PSP contra técnicos.
185. Ao longo do acolhimento, identificaram-se vários fatores de risco/perigo, que não são reconhecidos pelos progenitores, que, pelo contrário, encaram os mesmos como normalidade.
186. O relacionamento entre os progenitores é pautado por violência doméstica, exercida entre ambos os progenitores, ainda que com predomínio do pai e com desvalorização da mesma por parte da mãe, com a exposição da criança a tal contexto, até à data em que esta residia com os mesmos.
187. A progenitora, arranjou trabalho na cantina de uma escola, trabalhando a tempo parcial, mas mantém-se em situação de especial debilidade socioeconómica, sendo dependente financeiramente do progenitor.
188. Os progenitores não prestavam os mais elementares cuidados à criança, pondo em perigo a sua saúde, segurança e desenvolvimento até à data do acolhimento do menor.
189. Presentemente, não dispõem de habitação, nem revelam juízo crítico sobre a falta das mais elementares condições para terem a criança consigo, nem sobre os cuidados que teriam de lhe prestar.
190. Contudo, o pai admite que a mãe não tem capacidade para cuidar da criança, dizendo que a mesma não consegue, porque é desorganizada.
191. Quando o pai verbalizou tal afirmação, levantou a mão, abanando-a junto à cabeça, num gesto que é comummente conotado com “falta de juízo”.
192. Os progenitores no momento em que a criança vivia consigo não lhe davam banho diariamente (apenas uma vez por semana), não a alimentavam de forma adequada à sua idade (só comia papas, iogurtes e leite, não comendo sólidos), não asseguravam o seu acompanhamento clínico, nem o estimulavam, fazendo com que a criança se encontrasse num estádio de desenvolvimento atrasado para a sua idade quando foi acolhido.
193. A relação entre os progenitores pauta-se por diversas situações de violência doméstica, na qual, estes se agrediram mutuamente, pondo em causa o ambiente familiar e expuseram o seu filho G a essas situações, sendo que mesmo na Casa de Acolhimento, discutem à frente do G, ou através de chamadas telefónicas, que a criança presencia.
194. A progenitora minimiza a violência doméstica, normalizando-a e submetendo o filho ao contexto disfuncional que carateriza a relação parental.
195. Os progenitores não têm retaguarda familiar, tanto mais que a irmã do progenitor não se dá com o irmão e a mesma não logrou proteger o sobrinho quando este permaneceu em sua casa.
196. A progenitora tem dois outros filhos, sendo que um está com o progenitor e a outro está com a avó materna.
197. O progenitor tem um filho, de nome HH, com mais de vinte anos de idade, com quem não tem qualquer relação e que nem sequer conhece.
198. Os progenitores evidenciam fragilidades graves ao nível das competências parentais, sem que consigam exercer as responsabilidades parentais de forma adequada a garantir a saúde e a segurança da criança, nem proporcionar-lhe um ambiente familiar estável e equilibrado, porquanto não têm as condições endógenas para tal, fruto das suas características e debilidades pessoais.
199. Apesar dos esforços levados a cabo pela EMAT e pela Casa de Acolhimento, não foi possível trabalhar estes pais, porquanto estes nem sequer entendem a verdadeira razão pela qual a criança lhes foi retirada, sendo que a resposta que dão sempre, é a de que tal aconteceu porque não têm uma casa.
200. Quando são perguntados sobre o que é deve ser o futuro do filho, respondem sempre: “Toda a gente merece uma segunda oportunidade!”.
201. Os pais verbalizaram junto das técnicas, que “a comida é que tem prazo de validade”, pelo que, o G poderá manter-se na Casa de Acolhimento, até eles terem uma casa.
202. Apesar de todas as explicações que já lhes foram dadas, os pais repetem sempre, que não têm o G com eles, porque não têm uma casa.
203. Os pais apresentam um discurso vitimizador.
204. O melhor amigo do G, o II, já saiu da Casa de Acolhimento, tendo ido viver para casa de uma tia, em França, saída que muito perturbou o G, que ficou muito triste.
205. O G está a ultrapassar uma fase em que carece de uma resposta que a Casa de Acolhimento já não lhe pode dar, começando a, por vezes, rebelar-se, dada a duração do acolhimento e a ficar mais triste e mais baralhado, porquanto o acolhimento é seguro, mas não respeita a individualidade de cada criança.
206. O G precisa de tal forma de adultos securizantes, que, por vezes, “cola-se” a qualquer adulto que compareça na casa, seja educador, voluntário, familiares das outras crianças, etc.
207. O G tem uma relação de afectividade com os pais, mas não há uma relação boa de vínculo, porquanto não é uma relação securizante, na medida em que estes pais não são adultos responsivos.
208. Não é uma relação que permita ao G organizar-se, não é gratificante.
209. Na Casa de Acolhimento, o G pergunta sempre qual é o educador/a, que vai estar com ele no dia seguinte, dada a necessidade de previsibilidade na sua vida e de adultos securizantes na vida dele.
210. O G nunca pergunta quando é que vai a casa dos pais.
211. Os pais referem-se à Casa de Acolhimento, como se o G estivesse a frequentar um Colégio.
212. Os técnicos não conseguiram trabalhar estes pais, porquanto estes nunca conseguiram identificar e reconhecer o motivo do acolhimento.
213. O G necessita rapidamente de uma resposta familiar que lhe transmita segurança, estabilidade, limites, amor e afetividade fundamentais para um bom desenvolvimento.
214. Esta criança encontra-se numa fase primordial do desenvolvimento e precisa de ser integrado no seio de uma família que o proteja, da qual receba afecto e atenção de forma individualizada, em ambiente seguro e contentor, a fim de estabelecer relações seguras e de vinculação consistentes e permanentes.
215. Esta situação do acolhimento duradoura, a manter-se, compromete o seu desenvolvimento e não salvaguarda o superior interesse da criança.
216. O G é uma criança muito meiga e empática, com grande facilidade em estabelecer relações com adultos.
B) da consulta do processo, extraíram-se os seguintes factos, com relevo para a apreciação do recurso:
1. Em 4 de Julho de 2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Determino a EMAT, com a maior brevidade possível, diligencie junto da equipa de gestão de vagas pelo acolhimento de G em Casa de Acolhimento, junto/perto da área de residência dos pais, a fim de que possam efectivar-se os convívios supervisionadas com a criança e possam ser avaliadas - por intermédio de uma equipa especializada para o efeito, como um CAFAP - as competências parentais dos progenitores e a capacidade dos mesmos para o exercício de uma parentalidade responsável e positiva.”
2. No relatório do EMAT de 11 de Novembro de 2022 ficou a constar «Ao longo do acolhimento, identificamos, vários fatores de risco/perigo, que não são vistos pelos pais como tal, antes pelo contrário, existe uma certa noção de naturalidade dos mesmos. Tais como: violência doméstica – “(…) foi só uma vez que lhe bati (…) agora vou preso é triste (…), eu até tirei a queixa mas já lhe expliquei que é um crime publico (…)” a negligência ao nível de saúde do G – “(…) então mas agora um pai não pode dar um mimo ao filho por causa de uma diarreia, chame a PSP (…)” – a necessidade de controlar, por parte do Sr. N, as movimentações da D. M e do filho, sem que se encontre um propósito de cuidado - “(…) então já está almoçar (…) está a almoçar bem (…) o que é que ele comeu (…) a que horas foi dormir, a minha mulher está quase a chegar (…) a minha mulher já chegou (…) a minha mulher está aí na visita e há formigas no jardim (…), relação conflituosa vivida entre ambos: ciúmes (…)” sabe eu tenho medo de um homem, que mora lá ao pé de mim, na rua e o meu marido fica logo com ciúmes e discute com ele (…) ela mete-se com todos (…)”; desconfiança e mentira (…) então mas a minha mulher vai à ... e mandam-na embora e ela não fica o tempo todo com o menino (…) então o menino está com a fralda suja e ninguém limpa (…) então mas tiram-lhe o menino dos braços no final da visita (…) eu vou para comunicação social isto assim não dá (…) a mãe quando confrontada (…) desculpe não sei o que me passou pela cabeça e menti era para ver se ele se calava e agora estou com medo, pois ele disse que o juiz vai entregar o menino para a adoção (…)” e mais recentemente a separação de ambos “(…) separei-me de vez da M, a advogada diz que vou preso (…) ela foi-se embora e eu fiquei na tenda (…) ele já comprou uma tenda e eu fiquei na mesma”».
***
III. Fundamentação de direito:
Começando pela questão processual: os artigos 639º e 640º do Código de Processo Civil ocupam-se de ónus que impendem sobre o recorrente.
A primeira norma refere-se, no seu nº 1, ao ónus de apresentar alegações e terminá-las com conclusões sintéticas que contenham a indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão; no nº 2, elenca os aspetos que essas conclusões devem focar quando o recurso verse sobre matéria de direito, a saber: (a) a indicação das normas jurídicas violadas, (b) o sentido com que, no seu entender, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas e (c) no caso de invocar erro na determinação da norma aplicável, apontar a norma jurídica que, segundo o seu entendimento, devia ter sido aplicada.
O segundo preceito, por sua vez, diz respeito ao conteúdo obrigatório que tem de ser plasmado no recurso quando o litigante pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o que passa por especificar:
(a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
(b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, com as seguintes especificidades quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação tenham sido gravados: recorrente e recorrido estão incumbidos, no primeiro caso, de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes e, no segundo, de designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente, indicando com exatidão as passagens da gravação dos depoimentos em que se funda, com possibilidade de transcrever os excertos que considere importantes, isto, independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal;
(c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A sanção para o incumprimento dos ónus alusivos à impugnação da matéria de facto consiste na rejeição do recurso nessa parte, sem possibilidade de prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, contrariamente ao que sucede para a omissão das especificações previstas no artigo 639º nº 2 ou para a deficiência, obscuridade e complexidade das conclusões alusivas à matéria de direito, como o legislador deixou claro no artigo 640º nº 2 ao empregar a expressão “sob pena de imediata rejeição”.
O duplo grau de jurisdição em sede de valoração da prova produzida, permitido pela gravação integral da audiência final, encontra-se vertido no artigo 662º que estipula, no nº 1, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que se traduz num novo julgamento que consiste no exame e análise crítica das provas produzidas, identificadas pelo recorrente relativamente à matéria de facto pelo mesmo impugnada, permitindo ao Tribunal ad quem a formação da sua própria convicção.
Essa delimitação precisa dos concretos pontos da decisão que a parte pretende questionar, com tomada de posição quanto à decisão a proferir sobre as questões de facto impugnadas, estribada em concretos meios de prova, corresponde a uma opção legislativa que afasta a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente e introduz um critério de rigor associado ao princípio da auto-responsabilidade das partes6, tendo a dupla função de delimitação do âmbito do recurso e conferir efetividade ao exercício do contraditório pela parte contrária.
Essa opção tem como efeito a exclusão da repetição do julgamento realizado na primeira instância e a consagração, tão só, da possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas as divergências dos recorrentes7, 8.
Quanto ao modo como a divergência deve ser fundamentada, defende-se que ao recorrente cabe “rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinja o patamar da probabilidade prevalecente” devendo “aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente”9.
Sobre o cumprimento prático do ónus impugnatório, a jurisprudência10 tem tomado posição no sentido de distinguir a especificação dos concretos pontos de facto impugnados, que deve constar das conclusões, relativamente à especificação dos meios de prova e à indicação das passagens das gravações, defendendo, quanto a estas, que basta que figurem do corpo das alegações por constituírem elementos de apoio à argumentação probatória.
No recurso que interpôs, a progenitora insurge-se contra a inclusão na decisão da matéria de facto dos pontos 25, 26, 32, 185 e 188 dos factos provados por se tratar de juízos conclusivos e pôs em causa os pontos 67 e 192 dos factos provados, “por total ausência de factualidade que permita concluir do modo como o fez o Tribunal e por qualquer ausência de prova de tais factos”.
Para a confrontação com os ónus plasmados no artigo 640º nº 2 do Código de Processo Civil, necessitamos de abordar de forma distinta o primeiro conjunto de factos impugnados, dado que a sua particularidade exigir um tratamento jurídico distinto.
O artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil dispõe “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Apesar das grandes transformações introduzidas em 2013, no que diz respeito ao modo como a matéria controvertida deve ser processualmente apresentada para ser submetida à fase de instrução, discussão e julgamento, dada a substituição da tradicionalmente seguida, referida à seleção de factos concretos, objeto de questionário/base instrutória, em função das soluções plausíveis de direito, por um conceito distinto de “temas de prova”, o legislador entendeu que, na sentença, tem de continuar a constar um elenco de factos provados e não provados em resultado da análise crítica da prova produzida e da livre convicção formada pelo Juiz da causa.
As modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito afirmam que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, justificando que apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos, à semelhança do que sucede com ciências como a física ou a biologia para as quais só existem factos físicos ou biológicos, e concluem que o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto11. Nesse contexto, defende-se que a “proibição dos factos conclusivos” não faz sentido.
Afigura-se, no entanto, que permanece atual o entendimento segundo o qual o conceito de “factos conclusivos” corresponde àqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa12, 13.
Também importa considerar o conteúdo do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 202514 que passamos a transcrever: “afastada a rigidez na seleção estrita das questões de facto nos quesitos, não pode, o Juiz no novo modelo processual, ignorar a demarcação técnica entre questões de facto e de direito”, como tem sido sustentado pela jurisprudência, são de afastar − na sentença − expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.
Embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes”.
O Supremo Tribunal de Justiça, colocado perante a questão de saber se um determinado facto julgado provado pelo Tribunal da Relação contém matéria conclusiva e deve, por tal razão, ser eliminado do elenco dos factos provados, admite o recurso de revista por estar em causa uma questão de direito15.
Neste contexto, a questão de saber se os pontos 25, 26, 32, 185 e 188 dos factos provados correspondem a factos conclusivos pode ser apreciada independentemente do cumprimento dos ónus expressos pelo nº 2 do artigo 640º.
Cumpre desde já esclarecer que não assiste razão à recorrente no que diz respeito ao ponto 32: este corresponde ao conteúdo do segundo segmento da decisão proferida em 3 de Maio de 2022, o que é perfeitamente percetível não apenas em conjugação com o ponto 31, mas também pela expressa referência ao mesmo despacho, o que a própria recorrente reconhece na alegação nº 19.
Escreveu-se na sentença:
“25. O menor encontrava-se numa situação de perigo, devido à falta de condições de habitabilidade (agregado sem habitação, viviam numa tenda);
26. Existia negligência parental por parte da progenitora, porquanto não conseguia acautelar as necessidades básicas da criança (alimentação, higiene e saúde).”
(…)
185. Ao longo do acolhimento, identificaram-se vários fatores de risco/perigo, que não são reconhecidos pelos progenitores, que, pelo contrário, encaram os mesmos como normalidade.
188. Os progenitores não prestavam os mais elementares cuidados à criança, pondo em perigo a sua saúde, segurança e desenvolvimento até à data do acolhimento do menor.”
Apesar do acolhimento das expressões normativas “situação de perigo” e “negligência parental” ocorre uma explicitação das mesmas associando a primeira à privação de uma habitação, com necessidade de residência numa tenda e a segunda ao não cumprimento de necessidades básicas da criança a nível de alimentação, higiene e saúde.
Em verdadeiro rigor, os pontos 25 e 26 da matéria de facto são redundantes:
- resulta do ponto 17 que “entre 1 e 6 de Abril de 2022, a progenitora saiu de Castro Verde e regressou a Cascais com o G, a fim de se juntar ao progenitor, que se encontrava a residir numa tenda e aí ficaram os 3 a residir”;
- extrai-se dos pontos 82 e) e 135 que, desde que tiveram de entregar a casa à senhoria – a 17 de Fevereiro de 2022 –, vivem numa tenda perto do Minipreço de Birre, junto do local de trabalho do pai, o que nos remete para falta de condições de higiene que poderiam ser proporcionadas se, por exemplo, estivessem inseridos num parque de campismo equipado com balneários;
- nos pontos 16 e 21 consignou-se que, quando ouvida, a tia do menor afirmou que a mãe só dava banho à criança uma vez por semana e que a alimentava somente a papas e a leite e que a PSP, ao socorrer a mãe na sequência do episódio de violência doméstica de Abril de 2022, observou que G evidenciava falta de cuidados de higiene, o que reforça a afirmação contida no anterior parágrafo.
Em relação à alegada falta de cuidados de saúde durante o período de vida da criança junto dos pais não existe qualquer concretização: seria necessário solicitar registos clínicos, boletim de vacinas e, em função das informações que viessem a ser prestadas, mormente, no sentido de não frequência de consultas, não cumprimento do plano nacional de vacinação, existência de patologias sem acompanhamento clínico ou tratamento e especificar os factos correspondentes.
Trata-se, pois, de juízos conclusivos que nada acrescentam em termos fácticos, dado o conteúdo de outros pontos que efetivamente discriminam realidades que em momento próprio serão subsumidas nas normas que contêm o regime jurídico invocado na sentença a fim de aferir se, como defendem os recorrentes, houve erro de julgamento e a situação de facto exigia outro tipo de enquadramento. Tal justifica a sua eliminação do elenco da matéria de facto.
Os fatores de risco/perigo aludidos genericamente no ponto 185 podem corresponder à matéria discriminada nos pontos 77, 78, 80, 89, 90, 91, 97, 98, 99, 100, 128, 129, 133, 139, 140, 141, 148, 159, 160, 164, 165, 166, 168, 169, 170, 183, 184 dos factos provados, não existindo naquele qualquer substrato fáctico.
De uma forma mais precisa, temos o relatório do EMAT de 11 de Novembro de 2022, referido no ponto B. 2. da fundamentação de facto do presente acórdão do qual consta que “ao longo do acolhimento, identificamos, vários fatores de risco/perigo, que não são vistos pelos pais como tal, antes pelo contrário, existe uma certa noção de naturalidade dos mesmos. Tais como: violência doméstica – “(…) foi só uma vez que lhe bati (…) agora vou preso é triste (…), eu até tirei a queixa mas já lhe expliquei que é um crime publico (…)” a negligência ao nível de saúde do G – “(…) então mas agora um pai não pode dar um mimo ao filho por causa de uma diarreia, chame a PSP (…)” – a necessidade de controlar, por parte do Sr. N, as movimentações da D. M e do filho, sem que se encontre um propósito de cuidado - “(…) então já está almoçar (…) está a almoçar bem (…) o que é que ele comeu (…) a que horas foi dormir, a minha mulher está quase a chegar (…) a minha mulher já chegou (…) a minha mulher está aí na visita e há formigas no jardim (…), relação conflituosa vivida entre ambos: ciúmes (…)” sabe eu tenho medo de um homem, que mora lá ao pé de mim, na rua e o meu marido fica logo com ciúmes e discute com ele (…) ela mete-se com todos (…)”; desconfiança e mentira (…) então mas a minha mulher vai à ... e mandam-na embora e ela não fica o tempo todo com o menino (…) então o menino está com a fralda suja e ninguém limpa (…) então mas tiram-lhe o menino dos braços no final da visita (…) eu vou para comunicação social isto assim não dá (…) a mãe quando confrontada (…) desculpe não sei o que me passou pela cabeça e menti era para ver se ele se calava e agora estou com medo, pois ele disse que o juiz vai entregar o menino para a adoção (…)” e mais recentemente a separação de ambos “(…) separei-me de vez da M, a advogada diz que vou preso (…) ela foi-se embora e eu fiquei na tenda (…) ele já comprou uma tenda e eu fiquei na mesma”.
Os fatores de risco correspondem, assim, a realidades como a desvalorização da violência doméstica, a falta de juízo crítico sobre cuidados a ter com a criança quando se encontra doente, o controlo das atividades da companheira e do filho pelo progenitor, ciúmes, mentiras, deturpação, discriminadas em pontos concretos dos factos provados.
A afirmação genérica acolhida no ponto 185 corresponde a um juízo conclusivo que se prende diretamente com conceitos centrais do enquadramento jurídico, pelo que deve ser eliminado.
Também o ponto 188 se encontra esvaziado de conteúdo fáctico mais não sendo que um remate conclusivo que poderia validamente corresponder a um juízo valorativo no âmbito da fundamentação de direito, mas impróprio para constar do elenco dos factos provados.
Em suma, justifica-se a eliminação dos pontos 25, 26, 185 e 188 do elenco dos factos provados.
Passando à segunda parte da impugnação da matéria de facto, importa considerar que se escreveu na sentença:
“67. Dado que a ..., era no Norte do país, o que dificultava que os pais pudessem visitar G, o Tribunal determinou que a criança fosse transferida para uma Casa de Acolhimento mais perto, que permitisse aos pais visitá-lo, e que os mesmos fossem avaliados e trabalhados, para que a reunificação familiar se pudesse concretizar.
(…)
192. Os progenitores no momento em que a criança vivia consigo não lhe davam banho diariamente (apenas uma vez por semana), não a alimentavam de forma adequada à sua idade (só comia papas, iogurtes e leite, não comendo sólidos), não asseguravam o seu acompanhamento clínico, nem o estimulavam, fazendo com que a criança se encontrasse num estádio de desenvolvimento atrasado para a sua idade quando foi acolhido.”
Embora nada alegue nas conclusões para além do que ficou consignado supra, nas alegações a recorrente afirma:
“25. Não obstante o tribunal tenha determinado que os pais deveriam ser trabalhados para que a reunificação familiar se pudesse concretizar, dúvidas não restam - do depoimento da testemunha EG da EMAT - no sentido de que tal nunca ocorreu.
26. Ouvida na primeira sessão de julgamento dia 31/01/2025 a testemunha referiu «A reunificação familiar não estava de início como proposta… aliás o projeto de vida da criança não estava definido quando ele integrou a casa da encosta. /…/ Ministério Publico: não havia um plano de intervenção? Não vi a capacidade de se levar a cabo um plano de intervenção com os pais porque não havia capacidade dos mesmos acompanharem. /…/Da minha parte não houve nenhum plano de intervenção».
27. Assim, salvo o devido respeito, que é muito, não se pode dar como provado o facto patente na parte final do ponto 67 dos factos provados.
(…)
32. O tribunal baseou a sua decisão em informação desactualizada referente aos anos 2021 a 2023, fazendo tábua rasa não só da informação existente relativamente à altura em que o G residia com os progenitores (desde o nascimento – 05/07/2019 até 05/05/2022), designadamente do colégio Pirilampo que o menor frequentava, assiduamente, sendo certo que neste colégio os professores, auxiliares educativos e demais pais de outros alunos, conviviam diariamente com o G, sem que se tivessem apercebido ou suspeitado de qualquer perigo em que o menor se encontrasse.
33. Aliás, pelo contrário, a informação que verteram num relatório solicitado foi precisamente no sentido positivo de que durante aquele período de dois anos a criança era assídua e pontual, que quando faltava a mãe justificava as faltas, apresentava-se bem cuidado e com roupa limpa e adequada, que a progenitora era muito preocupada com a saúde e os cuidados ao filho, tudo conforme ponto 9 dos factos provados.
34. Isso mesmo resulta do depoimento da testemunha APV, ouvida na primeira sessão do debate judicial 31/01/2025 quando refere «a informação que tínhamos é que a criança tinha estado dois anos na creche da ..., e todas as informações eram muito positivas (minuto 27) a criança ia sempre bem cuidada, os pais eram presentes, portanto as indicações, havia mais contacto com a mãe, mas efetivamente as referências são muito positivas.»
(…)
41. É totalmente falso, inexistindo matéria factual que o comprove, o que consta do ponto 192 dos factos provados, uma vez que, o contradiz, também o relatório da creche Pirilampo, devendo, por isso em consequência considerar-se não provado.” Quanto à impugnação da decisão vertida no ponto 67 dos factos provados resulta claro, confrontando com os ónus especificados no artigo 640 nº 1 alínea b) e nº 2 alínea a) do Código de Processo civil, que a recorrente omitiu a indicação exata das passagens da gravação onde poderiam ouvir-se os segmentos que transcreveu.
Perante a letra do segundo preceito seríamos levados à rejeição do recurso da matéria de facto em causa por incumprimento do ónus plasmado na alínea a) do nº 2 do preceito citado no anterior parágrafo.
Contudo, a jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de aquele “rigor deve ser filtrado pelos princípios da proporcionalidade16 e da razoabilidade, a fim de não ser denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontrem sustentação clara na letra e no espírito do legislador, dando prevalência aos aspectos de ordem material”17.
Ponderando que o objetivo do artigo 640º do diploma em referência consiste, em primeiro lugar, na delimitação e fundamentação do recurso e, em segundo lugar, em permitir ao tribunal de recurso encontrar sem dificuldade os pontos dos elementos de prova que o recorrente tem por mal apreciados no suporte técnico que contém a gravação da audiência, vê aqui um ónus secundário, que deverá ser avaliado com muito maior cautela: a expressão “indicação exata das passagens da gravação” é equívoca, pressupondo a necessidade de distinguir entre a insuficiente mera indicação e a indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados, na medida em que o princípio da proporcionalidade aponta para a inexistência de justificação de uma imediata e liminar rejeição do recurso nos casos em que não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado18.
Formulou-se um princípio geral segundo o qual a rejeição do recurso por inobservância do ónus secundário de facilitação do acesso aos meios de prova gravados deve restringir-se aos casos em que a inobservância do ónus secundário dificulta gravemente a atuação ou exercício do contraditório pelo recorrido ou a decisão do recurso pelo tribunal
O recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro 202419 sustentou que o objetivo da alínea a) do nº 2 do preceito em referência tem em vista “evitar um desmesurado esforço de indagação ao recorrido e ao tribunal, o qual é incompatível com curtas extensões de depoimentos, como acontece em depoimentos com duração média de 30 a 40 minutos onde se integra já a identificação e informação sobre as ligações entre a testemunha e as partes, bem como o juramento legal”20.
De uma forma geral o ónus em causa considera-se cumprido sempre que os concretos meios de prova sejam indicados, com fornecimento de elementos que permitam a sua localização na gravação, com transcrição de parte dos depoimentos.
No presente recurso, a recorrente indicou a data do depoimento da testemunha EG da EMAT - 31 de Janeiro último - e transcreveu uma parte do interrogatório do Ministério Público e respetivas respostas.
Confrontando a ata da sessão verificamos que a testemunha MERG depôs em quarto lugar, tendo o seu depoimento durado 1h07m10s; temos, pois, por minimamente cumprido o ónus de que nos ocupámos.
Ouvida a gravação, resultou que a testemunha, como gestora do processo até final de Setembro de 2023, elaborou um relatório em 29 de Julho de 2022, num momento em que estava agendada uma reunião para avaliação e definição de plano de visitas e, novamente em Janeiro de 2023, desta feita, fazendo o ponto da situação e solicitando a realização de perícias com vista a permitir delinear um projeto de vida para o G, tendo participado, a 9 de Janeiro desse ano, na diligência em Tribunal que culminou no acordo de promoção e proteção celebrado nessa data; se afirmou, como consta do segmento transcrito pela recorrente, que não trabalharam na reunificação familiar, explicou que reuniu inúmeras vezes com os progenitores, pois deslocavam-se com muita frequência à Segurança Social, constatando um discurso circular e vitimizador, que imputava a responsabilidade às instituições, ocultavam informações (sobre os outros dois filhos da progenitora e o outro filho do progenitor), não tinham capacidade crítica relativamente ao G, acusavam-se mutuamente imputando responsabilidade um ao outro pela situação do filho e havia um relacionamento tóxico com agressões verbais (o progenitor chamava a progenitora de “porca” e puta”, acusava-a de ser má mãe), havendo, por vezes, movimentações isoladas da mãe que chegou a questionar sobre se o filho iria viver com ela se arranjasse um quarto numa pensão e algumas comunicações de separação; referiu que o projeto de vida do G não estava criado quando integrou a instituição e que a intervenção não avançava pois as visitas não tinham qualidade (o pai telefonava constantemente quando a mãe fazia a visita sozinha; não conseguiam ter um comportamento cordial do princípio ao fim durante as visitas e o pai ofendia os técnicos), havia imensas questões sobre o comportamento dos pais, que não demonstravam capacidade intelectual nem um estado de saúde mental para acompanhamento de uma intervenção, o que impedia o avanço desta (ingestão de álcool pelo pai com hospitalização em estado quase comatoso; a dada altura houve a notícia que ia ser preso por violência doméstica na sequência de queixa da companheira); relatou que, numa ocasião, após ter passado horas a explicar-lhes o que tinham de fazer para o filho poder viver com eles, no fim da entrevista, o pai anunciou que iam ao supermercado comprar cervejas para irem bebe-las na praia; asseverou que os fez cientes que enquanto não alterassem a situação habitacional não havia condições para o regresso do filho, mas teve a perceção que estavam centrados na relação entre ambos, o filho não era uma prioridade, manifestando quanto a ele sentimento de posse, sem consistência para a prestação de cuidados.
Referiu, também, que o acordo de promoção e proteção refletiu a intenção de dar uma oportunidade aos pais para se organizarem.
Está, pois, espelhado neste depoimento que a intervenção junto dos pais se gorou devido às suspeitas de patologias do foro mental.
Importa notar que o ponto 67 dos factos provados corresponde à intenção subjacente ao despacho proferido em 4 de Julho de 2022, ou seja, acolher a criança numa instituição mais próxima do domicílio dos progenitores para permitir a retoma da convivência presencial, designadamente, através de visitas supervisionadas, o que foi concretizado a partir desse mês, bem como o propósito anunciado pelo Tribunal de avaliar as competências e capacidades dos progenitores para o exercício dos poderes parentais de modo responsável e positivo, o que é claramente distinto do objetivo pretendido com a impugnação, que se prende com a alegada ausência de qualquer plano de intervenção para uma reaproximação familiar.
Acresce que a referida avaliação das competências e capacidades foi realizada através de perícias psicológicas e psiquiátricas, sendo também recolhidos elementos probatórios relativos à personalidade dos progenitores através da interação com os técnicos durantes as visitas e telefonemas.
Não existe fundamento para alterar o ponto 67 dos factos provados.
A impugnação do ponto 192 dos factos provados é realizada pela recorrente através do conteúdo do relatório elaborado pela ...” que G frequentou até ao despejo que determinou a mudança para Castro Verde e o depoimento da testemunha APV, relativamente ao qual cumpriu os ónus anteriormente identificados.
Ficou a constar dos pontos 9 e 10 dos factos provados da sentença recorrida:
“9. Do relatório do ... resultava que a criança era assídua e pontual e que quando faltava a mãe justificava as faltas, apresentava-se bem cuidado e com roupa limpa e adequada, e que a progenitora era muito preocupada com a saúde e cuidados do filho. Contudo, já aí identificavam que a criança careceria de terapia da fala.
10. Tal relatório do Pirilampo causou estranheza na Casa de Acolhimento que o G veio a integrar, porquanto o G, com cerca de 2 anos, não estava ainda familiarizado com a ingestão de sólidos, apresentava comportamento em que denotava fraca estimulação e tinha a linguagem ainda muito pouco desenvolvida para a faixa etária.”
Importa referir que a testemunha APV não tinha conhecimento direto dos factos, porquanto, não sendo funcionária da creche, desconhecia o modo como G se apresentava e os indícios colhidos sobre as preocupações da mãe por não ter tido, então, contactos com a mesma; apenas obteve informações na sequência das diligências que, na qualidade de educadora social ao serviço da CPCJ, estabeleceu com o ..., cujo relatório o Tribunal teve o cuidado de solicitar e do qual extraiu os factos que ficaram a constar dos pontos 9 e 10 já referidos.
Se considerarmos que, muito pouco tempo após a cessação da frequência da creche por G, a sua tia paterna criticou a atitude da recorrente por esta apenas dar banho ao filho uma vez por semana e alimenta-lo com papas e leite, como decorre do ponto 16 dos factos provados da sentença, é seguro afirmar que um tal comportamento estaria arreigado na progenitora, já que não vemos razão para uma alteração nos hábitos de alimentação e higiene apenas porque ocorreu uma mudança de casa21.
O referido tipo de alimentação já indica fraca estimulação da criança no que diz respeito à necessidade de adaptação progressiva do aparelho digestivo e desenvolvimento dos órgãos de mastigação, além das limitações no aporte nutritivo, mormente, no que às proteínas diz respeito.
Por outro lado, a identificação, pela creche, da necessidade de acompanhamento com terapia da fala corresponde a uma preocupação relacionada com o pouco desenvolvimento da linguagem, o qual, em abstrato, tanto poderia estar relacionado com dificuldades endógenas da criança, como com condições ambientais deficientes, ou seja, relacionadas com pais sem preocupações em criar estímulos para a criança se expressar. Ponderando o conteúdo do ponto 109 quanto à aquisição de linguagem, cujo nível já permite ao G usar frases completas e complexas, podemos concluir que a hipótese correta será a segunda.
A circunstância de nada ter sido providenciado pelos progenitores no que concerne à terapia da fala, apesar do alerta, consubstancia um não acompanhamento clínico no âmbito dessa especialidade.
Na sequência do que referimos quando procedemos à análise do ponto 26, afigura-se ser necessário incluir uma precisão sobre a omissão de acompanhamento clínico explicitando a respetiva área.
O ponto 192 dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
Os progenitores, no momento em que a criança vivia consigo, não lhe davam banho diariamente (apenas uma vez por semana), não a alimentavam de forma adequada à sua idade (só comia papas, iogurtes e leite, não comendo sólidos), não asseguravam o seu acompanhamento clínico na especialidade de terapia da fala, nem a estimulavam, fazendo com que a criança se encontrasse num estádio de desenvolvimento atrasado para a sua idade quando foi acolhido.
Passemos à análise da questão substantiva.
O direito e dever dos pais relativamente à educação e manutenção dos filhos têm consagração constitucional no artigo 36º nº 5 da Lei Fundamental, como direito, liberdade e garantia, o mesmo sucedendo com o princípio segundo o qual os filhos não podem ser separados dos pais, a não ser quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial22, bem como com a previsão da adoção, regulada e protegida nos termos da lei, e o estabelecimento de formas céleres para a respetiva tramitação23.
No plano dos direitos e deveres sociais constam dos artigos 67º, 68º e 69º da Constituição normas programáticas que consagram direitos à proteção do Estado e da sociedade:
- titulados pela família, reconhecida como elemento fundamental da sociedade, para “efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”, o que passa, designadamente, pela cooperação do Estado/sociedade com os pais na educação dos filhos e pela organização de estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes;
- titulados por pais e mães, destinados à “realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país”;
- para as crianças, visando o “seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”, com especial enfoque nas crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.
Na vertente internacional, que integra o ordenamento jurídico nacional por via do disposto no artigo 8º nºs 1 e 2 da Constituição, encontramos a Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90 de 12 de Setembro e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90 de 12 de Setembro, que salienta compromissos dos Estados contratantes com os seguintes objetivos:
- todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança24:
- garantir à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e tomar todas as medidas legislativas e administrativas adequadas25;
- respeitar as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da comunidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo, de assegurar à criança, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades, a orientação e os conselhos adequados ao exercício dos direitos que a Convenção lhe reconhece26, 27;
- garantir que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança, a decidir por se mostrar necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada28, dando aos pais a oportunidade de participar nas deliberações e dar a conhecer os seus pontos de vista29;
- respeitar o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança30;
- diligenciar de forma a assegurar o reconhecimento do princípio segundo o qual ambos os pais têm uma responsabilidade comum na educação e no desenvolvimento da criança, reconhecendo que a responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso disso, aos representantes legais, enfatizando que o interesse superior da criança deve constituir a sua preocupação fundamental31;
- assegurar uma assistência adequada aos pais e representantes legais da criança no exercício da responsabilidade que lhes cabe de educar a criança e garantir o estabelecimento de instituições, instalações e serviços de assistência à infância32.
Entre os direitos que elenca33, esta Convenção reconhece expressamente que assiste à criança conhecer os seus pais e de ser educada por eles34, preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares35 e, quando separada, temporária ou definitivamente privada do seu ambiente familiar, ou ainda, quando, no seu interesse superior, não possa ser deixada em tal ambiente, beneficiar de proteção e assistência especiais do Estado36.
Também a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia37, além das disposições onde afirma os direitos de todas as pessoas, consagrou, no seu artigo 24º, específicos direitos das crianças: à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar; de exprimir livremente a sua opinião, a tomar em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade; de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses. Acolheu, igualmente, o princípio segundo o qual todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.
Refletindo as orientações constitucionais e internacionais, o Código Civil estabelece o seguinte regime:
- artigo 1.878º nº 1: compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens;
- artigo 1.882º: os pais não podem renunciar às responsabilidades parentais nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere, sem prejuízo das disposições acerca da adoção;
- artigo 1.885º nº 1: cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos;
- artigo 1.915º nºs 1 e 2: o Tribunal pode decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres, sendo que essa inibição pode: ser total ou limitar-se à representação e administração dos bens dos filhos; abranger ambos os progenitores ou apenas um deles; referir-se a todos os filhos ou apenas a algum ou alguns;
- artigo 1918º: quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontre em perigo e não seja caso de inibição do exercício das responsabilidades parentais, o Tribunal pode decretar as providências adequadas, designadamente, confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência.
Partindo da constatação que a/o criança/jovem é titular de direitos e liberdades, com especial vulnerabilidade a circunstâncias que podem comprometer ou condicionar o seu processo de desenvolvimento, a Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo38, aprovada pela Lei nº 147/99 de 1 de Setembro39, estabeleceu que a intervenção para esse efeito tem lugar “quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”40.
Além dessa cláusula geral acolhida no nº 1 do artigo 3º, o legislador concretizou no nº 2, de forma não taxativa, que se considera que a criança ou o jovem se encontra em perigo quando:
(a) está abandonada/o ou vive entregue a si própria/o;
(b) sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
(c) não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
(d) está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
(e) é obrigada/o a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
(f) está sujeita/o, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
(g) assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação;
(h) tem nacionalidade estrangeira e está acolhida/o em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.
É preciso notar, antes de mais, que as medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo visam (a) afastar o perigo em que se encontram, (b) proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, (c) garantir a recuperação física e psicológica quando sejam vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso41.
Traçando um conjunto de princípios que devem guiar sempre a atuação das entidades com competência em matéria de infância e juventude, das Comissões de Proteção e dos Tribunais, o artigo 4º da LPPCJP estabeleceu que:
(a) a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto – princípio do interesse superior da criança e do jovem;
(b) a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada – princípio da privacidade;
(c) a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida – princípio da intervenção precoce;
(d) a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo – princípio da intervenção mínima;
(e) a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade – princípio da proporcionalidade e atualidade;
(f) a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem – princípio da responsabilidade parental;
(g) a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante – princípio do primado da continuidade das relações psicológicas profundas;
(h) na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável – princípio da prevalência da família;
(i) a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa – princípio da obrigatoriedade da informação;
(j) a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção – princípio da audição obrigatória e participação;
(k) a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais – princípio da subsidiariedade.
Como podemos constatar da anterior exposição, encontramos de forma recorrente a expressão “superior interesse da/o criança/jovem”, conceito jurídico indeterminado de densificação casuística em função das concretas circunstâncias, que tem subjacente o objetivo de “assegurar a solução mais adequada no sentido de promover o desenvolvimento harmonioso físico, psíquico, intelectual e moral, especialmente em meio familiar”42. Pode ser definido como “o direito da criança ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”43, a definir através de uma perspetiva sistémica e interdisciplinar, sem esquecer nem “deixar de ponderar o grau de desenvolvimento sócio psicológico do menor, já que o processo de desenvolvimento é uma sucessão de estádios, com características e necessidades próprias”44.
Percorrendo as medidas de promoção dos direitos e de proteção, encontramos dois tipos, a saber, medidas no meio natural de vida e medidas de colocação.
Na primeira modalidade temos (a) apoio junto dos pais, (b) apoio junto de outro familiar com quem a/o criança/jovem resida ou a quem seja entregue, (c) confiança a pessoa idónea que, não pertencendo à sua família, com eles tenha estabelecido relação de afetividade recíproca, (d) apoio para a autonomia de vida.
Todas estas medidas visam proporcionar apoio de natureza psicopedagógica e social à criança ou ao jovem e, quando necessário, ajuda económica45, bem como permitir a formação dos progenitores, familiar, pessoa idónea à guarda de quem se encontre, ou mesmo do agregado familiar46, através da frequência de programas de educação parental com vista a melhorar o exercício das funções parentais47.
A medida identificada em quarto lugar tem a particularidade de se dirigir a jovem com idade superior a 15 anos, mas também a mães com idade inferior a 15 anos se a situação o aconselhar, visando proporcionar-lhes condições que os habilitem e lhes permitam viver por si só e adquirir progressivamente autonomia de vida, o que se alcança através de apoio económico e acompanhamento psicopedagógico e social diretos, mormente através do acesso a programas de formação48.
A distinção desse apoio direto, no confronto com as três anteriores medidas, assenta, quanto a estas, na circunstância de ser proporcionado através de adulto no exercício das responsabilidades parentais ou de terceiro a quem a guarda é confiada.
Na segunda modalidade existem o acolhimento familiar, o acolhimento residencial e a confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção.
A primeira consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, proporcionando a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral, tendo lugar quando seja previsível a posterior integração da criança ou jovem numa família ou, não sendo possível, para a sua preparação para a autonomia de vida49.
Esta medida tem prevalência sobre o acolhimento residencial50, considerado uma medida excecional e a exigir especial fundamentação, a aplicar, tão só, quando a excecional e específica situação da/o criança/jovem o imponha ou se constate impossibilidade de facto do acolhimento familiar.
A segunda medida corresponde à colocação da criança/jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados, tendo como como finalidade “contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral”.
Importa notar que estas seis medidas podem ser aplicadas transitoriamente a título cautelar pelo Tribunal, em situações de perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou da guarda de facto ou, em caso de obtenção de consentimento, pelas Comissões de Proteção, durante um período máximo de seis meses, com vista ao diagnóstico da situação da/o criança/jovem e à definição do seu encaminhamento subsequente, a implicar revisão trimestral.
Finalmente, a aplicação da medida de confiança para a adoção circunscreve-se às situações previstas no artigo 1978º do Código Civil, consistindo na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social ou sob a guarda de família de acolhimento ou de instituição com vista a futura adoção51.
A norma citada no anterior parágrafo estatui que, no âmbito de um processo de promoção e proteção, o Tribunal pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
a) se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) se tiver havido consentimento prévio para a adoção;
c) se os pais tiverem abandonado a criança;
d) se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança”.
O legislador deixa claro que na verificação das referidas situações o Tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança e, reforçando o seu carácter ultima ratio52, estabelece que a confiança com fundamento nas circunstâncias supra identificadas sob as alíneas a), c), d) e e) não pode ser decidida se a criança se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao terceiro grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou o tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou se o Tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o seu interesse.
Concretiza também que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças, ou seja, remete para o artigo 3º da LPPCJP.
O artigo 1978º-A do Código Civil, introduzido pela Lei nº 31/2003 de 28 de Agosto, alterado pela Lei nº 143/2015 de 8 de Setembro, prevê um efeito automático do trânsito em julgado da decisão que decretou a medida de promoção e proteção de confiança com vista à futura adoção, estabelecendo uma causa de inibição do exercício das responsabilidades parentais de pleno direito53 que constitui uma consequência da constatação do sério comprometimento do vínculo próprio da filiação.
Essa inibição diz respeito à totalidade dos poderes-deveres de natureza pessoal54 que integram o conteúdo das responsabilidades parentais, ou seja, guarda, vigilância, educação, proteção da saúde e da segurança e visitas55.
A medida de promoção e proteção em causa tem como primeira finalidade a defesa da criança, evitando o protelamento da indefinição da sua condição perante os pais biológicos, na medida em que dispensa o consentimento destes e permite um mais sereno e menos incerto processo de integração numa nova família56. Enraíza na consciencialização que, desde o nascimento e especialmente na primeira infância, a criança necessita de uma relação minimamente equilibrada com ambos os pais, competindo à sociedade, na falta de tal relação e na ausência de familiares próximos que a possam suprir, tomar com urgência as medidas adequadas a proporcionar-lhe uma relação substitutiva, para obviar ao risco em que se encontra em risco57.
Outra norma relevante para o tratamento da questão substantiva que nos ocupa é o artigo 1.974 nº 1 do Código Civil segundo o qual a adoção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando (a) apresente reais vantagens para o adotando, (b) se funde em motivos legítimos, (c) não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adotante e (d) seja razoável supor que entre o adotante e o adotando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação.
Neste contexto, o conceito de interesse superior da criança reflete o artigo 69º da Constituição: a adoção constitui uma medida destinada à concretização da proteção do Estado e da sociedade contra formas de abandono, de discriminação, de opressão e de exercício abusivo da autoridade na família, para assegurar seu desenvolvimento integral, particularmente por se encontrar privada de um ambiente familiar normal, tendo subjacente, pois, a existência de uma situação de perigo grave que não pode ser removida pelo apoio económico-social à família biológica58.
Revertendo para o caso em apreciação, não temos dúvida em afirmar que o G foi colocado numa situação de perigo, em primeiro lugar, pelos dois conhecidos episódios de violência ocorridos a 25 de Julho de 2021 e 15 de Abril de 2022, que vitimaram sua progenitora, levando-a a receber assistência hospitalar e a ser recebida em Casas Abrigos por curtos períodos.
Aliás, o relacionamento disfuncional dos progenitores, que protagonizam agressões mútuas, embora com prevalência do elemento masculino, a manifesta ascendência do progenitor sobre a progenitora e a debilidade desta, sobretudo, a sua incapacidade de manter distância em relação àquele e de permanecer num meio seguro com o filho, constituem o núcleo dos comportamentos que mais contendem com o harmonioso desenvolvimento emocional do G.
Em segundo lugar, a negligência nos cuidados prestados: com quase três anos, o G subsistia com um regime alimentar à base de leite, papas, iogurte e fruta, só beneficiando da introdução gradual de sólidos a partir de Maio de 2022 quando foi acolhido na ...”, recusando-os numa fase inicial, o que foi ultrapassando, embora mantivesse resistência à ingestão de carne e da maioria dos peixes; aos três anos de idade ainda usava fralda e chupeta e necessitava de terapia da fala, o que já fora detetado e comunicado pela creche que frequentava quando vivia com os pais, sem que tivesse sido implementada qualquer ação, daí resultando um atraso na linguagem comparativamente aos parâmetros de desenvolvimento correspondentes à sua faixa etária; denotava, também, convívios centrados na interação com adultos, o que criou dificuldades nas relações com os seus pares, cuja proximidade recusava, buscando refúgio junto de adultos com quem estabelecera familiaridade mais rapidamente.
O despejo do agregado familiar da casa arrendada onde moravam, ocorrida em Fevereiro de 2022 e a ausência de solução habitacional imediata, levou à separação transitória do casal, recebendo MC apoio logístico e monetário da Câmara Municipal para se deslocar com o filho para Castro Verde, onde se alojou, sem pré-aviso, na casa de uma irmã do companheiro e se manteve durante cerca de dois meses, decidindo, então, regressar, o que implicou o seu ingresso, com G, na tenda onde ND passara a habitar, localizada nas proximidades do seu local de trabalho.
Embora a situação habitacional seja claramente desfavorável, desde logo, por falta de condições mínimas de conforto e de salubridade, dificultando a confeção de refeições, os banhos, a limpeza das roupas, o enfoque tem de ser colocado nos comportamentos.
Com efeito, no período de permanência em Castro Verde foram registados aspetos negativos no comportamento da progenitora porquanto a mesma, segundo a tia do menino, não tinha cuidado com a sua alimentação – que era limitada a leite e papas –, higiene, mormente, pela pouca frequência do banho, e uso de linguagem imprópria, agressiva e insultuosa, quando se dirigia ao filho. Em denúncia anónima à CPCJ de Castro Verde, foi comunicada a frequência de um estabelecimento de café durante longos períodos deixando G à deriva, designadamente, permitindo saídas para o exterior e a reação desajustada às birras gritando com ele.
Por outro lado, não conseguindo manter-se longe do companheiro, mesmo depois de este a agredir física e verbalmente em Abril de 2022, MC manteve contacto telefónico diário e infringiu as regras da Casa Abrigo divulgando a sua localização para que fosse buscar ambos e, sabendo, depois de tentativa de evasão, que o Tribunal decidira que, caso decidisse sair, não poderia fazer-se acompanhar do filho, foi essa a opção que tomou.
A situação do G subsume-se nas alíneas c) e f) do nº 2 do artigo 3º da LPPCJP.
Quanto à atualidade do perigo e o comportamento dos progenitores na pendência do processo de promoção e proteção, em particular na fase de instrução, há que destacar atitudes que revelam a sua incapacidade em se focar nas necessidades do filho e em criar condições para o exercício pleno das responsabilidades parentais:
- existe uma completa desvalorização dos episódios de violência doméstica, justificados pelo progenitor com a desorganização da companheira, por chegar a casa e nada estar feito, assim como devido a ciúmes, sentidos devido a alegado comportamento promíscuo da mesma, acusando-a de andar com outros homens e até ter contraído hepatite em resultado dessas relações (pontos 89, 139, 164 dos factos provados); da parte da progenitora existe subjugação/dependência do companheiro, que a leva a não conseguir distanciar-se (pontos 5, 23, 24, 28, 29 dos factos provados), assim como a mentir, inventando, a posteriori, que as lesões sofridas na sequência dos episódios que levaram à intervenção da autoridade policial e a assistência hospitalar tinham ficado a dever-se, afinal, a quedas espontâneas (pontos 169, 170 dos factos provados) e a negar o consumo de bebidas alcoólicas por aquele, apesar de diversas assistências hospitalares motivadas por síncopes/perdas de consciência; evidencia, também, passividade ao manter-se em silêncio quando o companheiro lhe imputa comportamentos impróprios ou controla a dinâmica das conversas com terceiros (pontos 80, 90, 139 dos factos provados);
- manifestaram total desorganização e uma tendência para o conflito com terceiros: telefonavam para a Casa de Acolhimento várias vezes ao dia, repetindo um os temas de conversa já abordados pelo outro (pontos 74 a 76 dos factos provados) e, estando a progenitora com o filho, durante as visitas, na ausência do progenitor, em vez de focar a sua atenção no menino, mantinha-se ao telefone com o companheiro, que faltara com a justificação de estar a trabalhar (pontos 77, 127, 180 dos factos provados), exaltando-se numa das ocasiões e desestabilizando a criança a ponto de esta ter ficado zangada, sem perceber o que tinha acontecido (ponto 78 dos factos provados);
- ocorre a ausência de figuras de referência para um comportamento normativo e falta de sentido crítico relativamente a pessoas com problemas semelhantes, o que ficou particularmente patente com a indicação alternativa de AA e JJ, respetivamente, amiga do casal e irmã do progenitor, como pessoas a cuja guarda o G podia ser confiado para uma eventual opção pela medida de apoio junto de pessoa idónea, as quais, além das deficientes condições de vida que haviam determinado a retirada dos filhos, não tinham qualquer vínculo afetivo com a criança (pontos 47 a 61, 63 a 66 dos factos provados);
- a completa falta de perceção da gravidade da situação associada:
-- aos atrasos de desenvolvimento do G e, comparativamente, as diferenças positivas alcançadas após a sua institucionalização, que revelam os resultados da falta de estímulos nos primeiros anos de vida e da sua existência a partir da medida de promoção e proteção, o que deveria constituir um alerta para iniciarem um período de aprendizagem destinado a adquirir competências;
-- ao impacto negativo do clima de conflito entre o casal no bem-estar do filho devido à sua exposição a agressões físicas recíprocas e verbais, que é o aspeto central da situação de perigo que justificou a institucionalização, focando-se, ao invés, na falta de habitação (pontos 91, 183, 199, 202 dos factos provados) e na esperança de uma solução camarária, não obstante encontrarem-se em 27º lugar da lista para a eventual atribuição e terem recusado a alternativa imediata de integrar o Centro de Acolhimento da Adroana (pontos 134, 135, 153, 180 dos factos provados), onde lhes seria proporcionado alojamento, alimentação, cuidados de saúde, cuidados de higiene apoio psicossocial, qualificação escolar, formativa e profissional e poderiam beneficiar de valências de intervenção individualizadas e atividades que potenciadoras de bem-estar individual e comunitário59;
-- ao tempo de institucionalização já decorrido e ausência de progressos da sua parte, como se o filho pudesse esperar indefinidamente que terceiros lhes deem condições habitacionais, que julgam ser a única causa da medida (pontos 200, 201, 202 dos factos provados);
- verifica-se incapacidade de reconhecimento da sua responsabilidade na criação da situação de perigo, assumindo-se como vítimas, com revolta e agressividade, imputando inércia e falta de apoio aos Serviços e aos técnicos que conduziram o processo (pontos 183, 184 dos factos provados);
- o progenitor deu provas de imensa imaturidade, verbalizando motivos fúteis para justificar ausência de visitas, designadamente, em períodos de férias e de baixa médica, associados à existência de um cão, formigas e folhas no jardim da Casa de Acolhimento onde o G se encontra (apesar de as visitas decorrerem no interior em períodos de mau tempo, a falta de comparência nas visitas também se verificou no Inverno), que identifica como falta de condições de salubridade, apesar de ser jardineiro (pontos 94, 95, 124, 125, 126, 146, 162, 163 dos factos provados), recusa do convívio com o filho após o regresso da creche, invocando o incumprimento do horário da visita pela Casa de Acolhimento e resistindo a pedido expresso do descendente para entrar (pontos 131 a 133 dos factos provados), denúncia dessa situação à PSP e, noutra ocasião, por não ter permissão das técnicas para dar Noggat ao menino num momento em que este padecia de gastroenterite e diarreia (pontos 98, 99, 131 dos factos provados); revela incapacidade em focar-se no filho, não participando num evento de festejo do dia do Pai para o qual foi convidado e encurtou a visita no dia do aniversário do menino por se encontrar zangado com a companheira, o que foi subsequentemente comentado pela criança com os educadores verbalizando tristeza com esse comportamento (pontos 130, 161, 162 dos factos provados); no período entre Julho de 2022 e Setembro de 2024 realizou um total de 27 visitas, pedindo para terminar antes de decorrido o tempo estipulado (pontos 143, 145 dos factos provados);
- a progenitora manteve com o filho visitas regulares ao longo do período decorrido entre Julho de 2022 e Setembro de 2024, no total de 81, teve a preocupação de justificar as suas ausências (pontos 93, 143, 145 dos factos provados), no entanto, deturpava os acontecimentos quando relatava ao companheiro os convívios mantidos na sua ausência, espoletando reações negativas de confronto com a instituição (ponto 100 dos factos provados);
- as preocupações manifestadas com o filho quedaram-se a um nível muito básico e de controlo, limitando-se a questões sobre o tipo de refeições, se dormira bem, o que estava a fazer, o tipo de condições da Casa de Acolhimento (pontos 43, 75, 76 dos factos provados); perante a oportunidade de acompanhar o filho a consultas de pediatria com liberdade para falar sobre o seu desenvolvimento e saúde, a mãe não colocou questões ao Clínico nem foi capaz de responder às perguntas que lhe foram feitas (ponto 128 dos factos provados);
- apresentam níveis insatisfatórios de interação com o G, caracterizada por passividade, limitando-se a aderir às escolhas de brincadeiras por aquele, sem qualquer sugestão, ocorrendo, em determinados momentos, o abandono da companhia dos pais para interagir com outras crianças ou adultos (pontos 148, 149, 160 dos factos provados); o momento de despedida das visitas era enfatizado e prolongado, espoletando explosões de choro na criança e verbalização de querer continuar com a atividade que desenvolvia com os progenitores e a mãe chegou a dizer-lhe que só faltava uma casa para poder ir viver com ela, mas por hora tinha de ir com as técnicas, provocando o choro, o que contrasta com a reação quando a despedida não tem esse tipo de verbalização ou esta é interrompida, caso em que G se despede e retoma a brincadeira com os amigos (pontos 151, 153, 154 dos factos provados).
Vejamos agora a evolução do G.
No momento inicial da integração na ...”, chorou muito e chamou muito pela mãe e, durante a primeira semana, apresentou dificuldade de regulação emocional, pedia colo dia e noite, chorava e, por vezes, manifestava desespero (pontos 37, 38 dos factos provados); se num primeiro momento apresentava dificuldade de relacionamento com as outras crianças da instituição, preferindo o contacto com um adulto que lhe fosse familiar, depois de ganhar confiança com as técnicas e auxiliares, aceitava facilmente as orientações e acabou por se integrar bem, relacionando-se positivamente e com afeição com adultos e pares, embora se socorresse da chupeta em momentos de maior tensão (pontos 39, 40 dos factos provados); sempre adormeceu facilmente e sozinho, tendo sono tranquilo e reparador (pontos 42 dos factos provados); nos contactos por videochamada com os pais, inicialmente chorava, deixando de o fazer com o passar do tempo (ponto 45 dos factos provados).
Quando, em 12 de Julho de 2022, foi acolhido na “...”, G mostrava ser um menino calmo, simpático, interagia bem com as outras crianças, embora também recorresse à agressividade e fizesse birras, sobretudo quando se sentia injustiçado ou contrariado, refugiando-se nos adultos, no entanto, passou a conseguir interromper esses momentos regressando às atividades em curso (pontos 69, 102, 105 dos factos provados); encontrava-se ainda na fase de introdução de comida sólida, sopa e fruta, usava fralda e chupeta (pontos 41, 70 dos factos provados); revelou-se capaz de estabelecer relações preferenciais com adultos e pares, é afetuoso e bem aceite, consente abraços e interação próxima, tomando a iniciativa de abraçar os amigos quando os vê tristes (pontos 106, 107, 118 dos factos provados); demonstra autonomia, conseguindo alimentar-se sozinho, ajuda a tirar a roupa, gosta de colocar o creme corporal, deixou o uso da fralda passando a pedir para ir à casa de banho (ponto 108 dos factos provados); apresenta boa destreza motora, gosta de brincar com carrinhos e camiões e no parque, andar de bicicleta, trotineta e descalço em casa e no espaço exterior, mostra-se ávido de brincadeira e descoberta (pontos 103, 104, 108 dos factos provados).
Assinalou progressos no desenvolvimento da linguagem, usando frases completas e complexas, frequenta o jardim de infância, ao qual se adaptou bem, conhece as regras e rotinas, embora faça algumas birras por ter dificuldade em ligar com a frustração e procura validação do que consegue fazer junto do adulto (pontos 114, 115, 116, 117 dos factos provados); é saudável, mas vem sendo acompanhado por psicologia (pontos 111, 112, 113 dos factos provados).
Apesar da evolução positiva e de mostrar capacidade de vinculação afetiva a novas figuras, G é uma criança insegura, com medos e ansiedades, revela grande necessidade de afeto e atenção individualizada, designadamente, pede ajuda para comer e faz birras quando contrariado, o que revela regressão, apelando à atenção de adultos, sejam educadores, voluntários, familiares das outras crianças (pontos 119, 120, 206 dos factos provados); encontra-se permanentemente em situação de alerta, condição que é associada ao ambiente de conflito que viveu nos primeiros anos de vida (ponto 121 dos factos provados); quando visitado pelos pais, reconhece-os, corre para os seus braços, sendo correspondido, fica contente quando estão juntos, despedindo-se sem sobressaltos quando os progenitores não fomentam o prolongamento das visitas ou a mãe não enfatiza a circunstância de não viverem juntos, mas não pergunta por eles nas suas ausências, nem quando irá a casa, não sabendo os seus nomes próprios (pontos 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 210 dos factos provados); racionaliza as ausências do pai atribuindo-as ao trabalho e à existência de formigas (ponto 158 dos factos provados).
Na atual fase regista perturbação em virtude de o seu melhor amigo ter ido viver com uma tia em França, tendo ficado triste, manifesta necessidade de estabilidade e previsibilidade, perguntando na véspera quem será o educador que vai estar consigo (pontos 204, 209 dos factos provados).
É um dado científico indesmentível que as crianças que, não sendo embora o alvo direto da violência perpetrada no seu contexto doméstico, observam os conflitos entre os pais, seja por presenciarem diretamente as agressões, seja por verem as marcas dos atos agressivos no corpo da vítima, ficam elas próprias expostas à violência, podendo exibir níveis elevados de reatividade emocional, ameaça e culpa pela sua ocorrência60.
Nesse contexto, entende-se que essa exposição constitui uma forma de mau trato à criança.
Com efeito, contrariamente à crença social, que ainda subsiste, segundo a qual a violência interparental é uma questão entre adultos e que crianças muito novas não sofrem qualquer impacto, por não compreenderem o que se passa, está provado cientificamente que, ainda que não compreendam o conteúdo de discussões e agressões verbais, a sensibilidade às emoções está desperta e, usando as suas capacidades sensoriomotoras, experimentam stress que pode manifestar-se através de queixas somáticas, reações de medo, distúrbios de sono ou alimentares e comportamentos regressivos61.
Apesar de as reações variarem em função das características individuais de cada criança, as quais são suscetíveis de aumentar ou diminuir o risco inerente à exposição, o menor desenvolvimento na primeira infância implica menor capacidade de regulação das emoções e dos processos cognitivos, de avaliação da informação ambiental e maior dependência de pistas dos pais para perceber os significados dos acontecimentos. Não tendo ainda capacidade simbólica de representação, a criança ressente-se desse ambiente desestruturado, vivenciando-o como falta de atenção, de carinho ou disponibilidade por parte dos seus principais cuidadores62.
Por outras palavras, a criança tende inicialmente a interpretar pistas específicas que a alertam para a existência de um evento desagradável e originam, desde logo, respostas afetivas e apreciações cognitivas, sendo, por vezes, afetadas na perceção que têm de si mesmas, dos seus relacionamentos, objetivos e estratégias de sobrevivência. Em suma, a exposição à violência altera a forma como a criança vê o mundo e pode mudar o valor que ela própria atribui à vida63.
Com frequência, a exposição à violência na infância externaliza-se através de agressividade como reação a contrariedades, frustrações ou desajustamento das emoções, perdurando na vida adulta.
Como revelam as perícias, os pais do G sofrem de défices cognitivos e ideação paranoide – diagnóstico de atraso mental e depressão do elemento masculino e de perturbação depressiva recorrente com indicação de acompanhamento em adição do elemento feminino – com impacto negativo na capacidade em lidar com problemas quotidianos e complexos e funcionamento de personalidade perturbado, instável, dependente, impulsivo, egocêntrico, errático e com falta de insight sobre as suas responsabilidades, acrescendo, quanto à mãe, personalidade insensível e, quanto ao pai, personalidade inconformista e imprevisível.
São ambos vítimas de ambientes familiares pautados por negligência e práticas abusivas, que impediram o desenvolvimento de vínculos afetivos gratificantes com os respetivos progenitores e tiveram impacto no seu estilo de vida: MC admitiu que se refugiou no álcool e em relações amorosas conflituosas, acabando por ter uma filha e um filho, atualmente com 19 e 12 anos, criados pela avó materna e pelo pai, respetivamente, por se encontrar emocionalmente instável e a mudar várias vezes de parceiro; ND, por sua vez, foi pai pela primeira vez há 21 anos no contexto de uma relação fortuita, não estabeleceu qualquer contacto com o filho, a quem nem sequer conhece, revelando indiferença por essas circunstâncias, consome bebidas alcoólicas em excesso, o que não admite expressamente, não obstante haver registo de diversa assistência hospitalar por síncope/perda de consciência e se descair confessando problemas com a entidade patronal motivada por esse facto, tendo sido preso por reiterada condução de veículos por falta de habilitação legal.
Esses antecedentes familiares e limitações cognitivas condicionaram a ligação afetiva ao G, não só por falta de exemplos de priorização das necessidades do filho, sobretudo a nível psicoafectivo, mas também por terem interiorizado crenças distorcidas sobre um ambiente familiar saudável, com destaque para a desvalorização e normalização de situações de violência.
Estamos perante duas pessoas enredadas em comportamentos disfuncionais, sem maturidade e estrutura cognitiva e emocional para assumir o papel que o exercício das responsabilidades parentais pressupõe, desde logo e acima de tudo, serem capazes de pôr as necessidades do filho à frente das suas e se esforçarem para se transformar a fim de lhe proporcionarem boas condições de vida.
Acresce que não têm uma rede de suporte – apesar de, nas conclusões do seu recurso, a progenitora aludir à possibilidade de participação alargada da testemunha FN numa medida de apoio junto da mãe, na motivação da sentença em recurso, refere-se que este não se mostrou disponível para o apadrinhamento da criança e que o contacto que teve se reduziu ao período de um mês em que MC substituiu a empregada de limpeza durante o período de férias, relevando conhecimento limitado da situação – suscetível de servir de referência competente e de proporcionar a colmatação das suas lacunas.
No período em que esteve aos cuidados dos pais, G foi vítima de negligência nos cuidados respeitantes a alimentação, higiene e condições de desenvolvimento, onde avultam particularmente, as faltas de estímulos, de interações serenas e amorosas, omissões que conduziram a atrasos de desenvolvimento, os quais, apesar de algumas superações pela inserção em meio de acolhimento residencial, deixaram marcas, como seja, no modo de se expressar através de birras por dificuldades em lidar com as frustrações e contrariedades, no refúgio junto de adultos em busca de validação e segurança e na necessidade de acompanhamento psicológico.
Os recorrentes verbalizam falta de apoios e de investimento na sua formação como pais, no entanto, recusaram a integração no Centro de Acolhimento da Adroana, onde poderiam ter, além de alojamento e de melhores condições de salubridade e conforto, apoio psicológico e formativo; tão pouco interiorizaram as chamadas de atenção dos técnicos sobre as razões da institucionalização do filho – episódios de violência doméstica e relação conflituosa – e a exortação a manterem uma relação cordial entre si, pois, mesmo depois de terem assumido em Tribunal o compromisso de se absterem, no seu relacionamento, de qualquer comportamento agressivo, foram vários os episódios de discussões durante as visitas ao G, quer quando estavam todos juntos, quer através de chamadas telefónicas, além de diversas situações de conflito com os técnicos, até com pedidos de intervenção da autoridade policial por motivos pueris.
Importa referir que o DL nº 12/2008 de 17 de Janeiro não é aplicável à realidade que nos ocupa, porquanto esse diploma regulamenta o regime de execução das medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e jovens em perigo, previstas nos artigos 39º, 40º, 43º, 45º da LPPJCP: recordemos que, a 3 de Maio de 2022, foi proferida decisão que aplicou a medida cautelar de apoio junto da mãe, enquanto esta se mantivesse na ..., no pressuposto da supervisão e da garantia de prestação de cuidados básicos que essa integração proporcionava, mas, logo no dia seguinte, a mesma abandonou essa casa de acolhimento para se reunir ao companheiro, apesar de se encontrar perfeitamente ciente que o filho não poderia acompanhá-la, razão pela qual a medida passou a ser de acolhimento residencial.
É certo que a Lei nº 164/2019 de 25 de Outubro, que estabelece o regime de execução do acolhimento residencial, prevê que, no âmbito do projeto de promoção e proteção, a elaborar pela equipa técnica da casa de acolhimento em articulação com o técnico gestor do processo, para subsequente definição do plano de intervenção individual, que contém os objetivos a atingir e as ações a desenvolver de acordo com o diagnóstico da situação da criança64, deve ter lugar a participação da família de origem, a qual, nos termos do artigo 23º nº 2, tem direito a beneficiar “de uma intervenção orientada para a capacitação familiar mediante a aquisição e o fortalecimento de competências parentais nas diversas dimensões da vida familiar, integrando níveis diferenciados de intervenção de cariz pedagógico e psicossocial, a realizar por entidades e serviços com competência em intervenção social e comunitária e apoio familiar”.
Embora não encontremos no processo qualquer referência específica a um plano de intervenção individual e concretas medidas destinadas à capacitação familiar, ficou claro, desde o primeiro momento que MC e ND imputaram a retirada do filho à falta de habitação, não conseguindo compreender as fragilidades na prestação de cuidados – resultando em atrasos na linguagem e na introdução de alimentos sólidos, no uso de fralda e chupeta, para além da falta de paciência e o uso de linguagem obscena dirigida ao menino – e as dificuldades no seu relacionamento, conduta que persistiu ao longo do processo, levando a que se concluísse que eram impermeáveis à intervenção (ponto 182 dos factos provados).
Podemos concluir que o atraso cognitivo dos progenitores destacado pelas perícias foi um entrave à perceção dos problemas no modo como exercem as responsabilidades parentais e, por isso, um obstáculo à aprendizagem de novas maneiras de agir, que estavam dependentes de capacidade de reflexão e de juízo crítico, inexistentes.
O impacto negativo dos conflitos entre os progenitores no G ficou bem patente na reação deste, de zanga, quando, na primeira visita na ... ao fim de um período de dois meses sem convívio presencial, a progenitora se exaltou ao falar ao telefone com o progenitor, assim como a tristeza que manifestou em dia de aniversário quando o pai foi embora mais cedo por estar zangado com a mãe ou o sentimento de rejeição que terá sentido quando o pai se recusou a entrar na ..., apesar do seu pedido, após o seu regresso da creche especificamente para a concretização do convívio.
Estamos perante progenitores que não têm noção do sofrimento que causam ao filho e das perspetivas negativas de evolução do seu futuro se fosse cogitado o regresso do G ao seu ambiente familiar natural.
Os pontos nucleares do perigo associado ao comportamento de MC e ND, que radicam na violência ao nível do seu relacionamento e na ausência de interação estimulante com o filho, não foram, sequer, por eles apreendidos. Naturalmente, a falta de compreensão do mal que fazem e do que lhes falta, impede-os de empreender as mudanças necessárias ao estabelecimento de um verdadeiro vínculo paterno-filial, não se vislumbrando, por isso, qualquer expetativa de reversão dos comportamentos que assumiram.
Todas estas circunstâncias conduzem ao sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, derivando de ações e omissões, por manifesta incapacidade devida a razões de atraso cognitivo e emocional, geradoras de reiterada colocação em grave perigo da segurança, da saúde e do desenvolvimento do G.
Este, apesar das reações positivas às visitas dos pais, interrompe/abandona as brincadeiras com estes para abordar outros adultos ou crianças, o que revela um vínculo afetivo superficial em relação àqueles e a busca de alternativas, conclusão que também pode extrair-se do esquecimento dos progenitores durante as suas ausências, visto que não pergunta por eles.
Afigura-se que os encara como companheiros transitórios de atividades de lazer, figuras que conhece pelos nomes de pai/papá e mãe/mamã, mas que troca por outras pessoas, por não lhe darem o que precisa, designadamente, segurança, afeto, estabilidade, estímulo, serenidade.
O G festejou recentemente o sexto aniversário e os três anos de institucionalização constituem uma viagem cujo destino não passa pelo regresso à família biológica, dados os graves perigos inerentes aos conflitos interparentais e à incapacidade dos progenitores de identificar as lacunas de que padecem e a aprendizagem de que carecem para atingirem um nível mínimo de competência na prestação de cuidados ao descendente.
As necessidades do G no que tange a atenção individualizada, estabilidade nos afetos, ambiente que permita estabelecer relações seguras de vinculação consistente e permanente, que respondam à sua capacidade de estabelecer relacionamentos preferenciais, são prementes e indicam que qualquer compasso de espera redundará no adiamento da concretização de um projeto de vida a alcançar através de uma nova família.
Na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 57/IX, que veio a culminar na aprovação da Lei nº 31/2003, o legislador afirmou “a adopção constitui o instituto que visa proporcionar às crianças desprovidas de meio familiar o desenvolvimento pleno e harmonioso da sua personalidade num ambiente de amor e compreensão, através da sua integração numa nova família.
Quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e securizante com a criança, impõe a Constituição que se salvaguarde o superior interesse da criança, particularmente através da adopção.
(…) Trata-se, por outro lado, de uma intervenção que se reclama urgente, porquanto a personalidade da criança se constrói nos primeiros tempos de vida, revelando-se imprescindível para que a criança seja feliz e saudável que quem exerce as funções parentais lhe preste os adequados cuidados e afecto.
E se, atento o primado da família biológica, há efectivamente que apoiar as famílias disfuncionais, quando se vislumbra a possibilidade destas reencontrarem o equilíbrio, situações há em que tal não é viável, ou pelo menos não o é em tempo útil para a criança65, devendo em tais situações encetar-se firme e atempadamente o caminho da adopção”.
Essa é, precisamente, a situação de G: a irreversível disfuncionalidade dos seus progenitores implica que esteja desprovido de um meio familiar que lhe permita crescer e desenvolver-se a nível físico, psíquico, emocional e social, aprendendo a respeitar e a ser respeitado, a beneficiar de atenção e estímulos personalizados, a sentir-se seguro e amado.
Perante a inexistência de condições para o sucesso de um projeto de vida junto da sua família de origem, o direito do G à proteção do Estado, proteção essa funcionalmente orientada para o seu desenvolvimento integral e imposta pela dignidade da sua pessoa, concretiza-se através de uma solução alternativa a decretar e executar tempestivamente em função do seu estádio de evolução66.
O princípio da dignidade da pessoa humana densifica-se através da ponderação do superior interesse do G que consiste na oportunidade de estabelecimento de relações de afeto de qualidade e significativas com um casal ou pessoa singular com aptidão para o exercício das responsabilidades parentais em moldes semelhantes à filiação; a medida de confiança a instituição com vista à adoção constitui a única que salvaguarda a possibilidade de definir um projeto de vida consentâneo com os direitos da criança67, o que determina a improcedência dos recursos.
***
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
- parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, procedendo à eliminação dos pontos 25, 26, 185 e 188 dos factos provados e à alteração da redação do ponto 192 que passa a ser a seguinte:
Os progenitores, no momento em que a criança vivia consigo, não lhe davam banho diariamente (apenas uma vez por semana), não a alimentavam de forma adequada à sua idade (só comia papas, iogurtes e leite, não comendo sólidos), não asseguravam o seu acompanhamento clínico na especialidade de terapia da fala, nem a estimulavam, fazendo com que a criança se encontrasse num estádio de desenvolvimento atrasado para a sua idade quando foi acolhida.
- improcedentes os fundamentos substantivos de ambos os recursos, mantendo a decisão recorrida.
Custas das apelações pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
Lisboa, 10 de Julho de 2025
Ana Cristina Clemente
Rute Sobral
Paulo Fernandes da Silva
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1. Na sentença ficou a constar 2023, o que constitui um lapso evidenciado pela tramitação do processo e mesmo do ponto 143 que elenca o número de visitas mensais com início em Julho de 2022. Tratando-se de lapso de escrita foi corrigido no texto ao abrigo dos artigos 613º e 614º do Código de Processo Civil.
2. Corrigido com os fundamentos que constam da nota 1.
3. Corrigido com os fundamentos que constam da nota 1.
4. Corrigido com os fundamentos que constam da nota 1.
5. Na sentença ficou a constar 2023, o que constitui um lapso evidenciado pela tramitação do processo e mesmo do ponto 143 que indica terem sido “0” as visitas do progenitor nos meses de Novembro, Dezembro de 2022, Maio a Julho, Setembro, Outubro, Dezembro de 2023. Tratando-se de lapso de escrita foi corrigido no texto ao abrigo dos artigos 613º e 614º do Código de Processo Civil.
6. No mesmo sentido, Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3ª edição, 2016, pg. 155, 156.
7. No mesmo sentido, Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes in op. cit., pg. 124.
8. No mesmo sentido, vide Ac. STJ de 9.07.2015 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 405/09.1TMCBR.C1.S1; Ac. STJ de 1.10.2015 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 6626/09.0TVLSB.L1. S1; Ac. STJ de 9.02.2017 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 471/10. T1 CSSC.L1. S1.
9. Nesse sentido, vide Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pg. 770.
10. Nesse sentido, vide, por todos, Ac. STJ de 19.02.2015 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1.
11. Vide, nesse sentido, Miguel Teixeira de Sousa in Blog IPPC no artigo Anotação ao Acórdão do STJ de 28/9/2017, processo nº 809/10.7TBLMG.C1.S.1..
12. Helena Cabrita (in A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, 2015, pg. 106-107) concretiza que assim sucede se, considerando provados ou não provados esses factos, a ação ficasse resolvida.
13. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 14.07.2021 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 19035/17.8T8PRT.P1.S1.
14. In https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 2315/23.0T8PTM.E1.S1.
15. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 28. 09.2017 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 659/12.6TVLSB.L1.S1; Ac. STJ de 14.07.2021 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 19035/17.8T8PRT.P1.S1.
16. O Tribunal Constitucional tem defendido que “os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva” – vide decisão sumária nº 256/2021 de 12 de Abril de 2021 acessível in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20210256.html citando Acórdãos nesse sentido.
17. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 9.01.2021 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 10300/18.8T8SNT.L1.S1.
18. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 17.04.2024 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 1324/21.9T8FNC.L1.S1.
19. In https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 1007/17.4T8VCT.G1.S1.
20. Na situação apreciada por esse aresto, a recorrente indicara o início e o fim dos depoimentos de quatro testemunhas.
21. Nas casas antigas não havia água quente canalizada e as pessoas com fracos recursos económicos não tinham banheira, no entanto, o banho dos bebés era assegurado através do aquecimento da água em panelas, subsequentemente colocada numa bacia e deixada arrefecer ou era misturada com água fria até chegar à temperatura ideal.
22. Cfr. nº 6.
23. Cfr. nº 7.
24. Cfr. artigo 3º nº 1.
25. Cfr. artigo 3º nº 1.
26. Cfr. artigo 5º.
27. Vide infra nota 12.
28. Cfr. artigo 9º nº 1.
29. Cfr. artigo 9º nº 2.
30. Cfr. artigo 9º nº 3.
31. Cfr. artigo 18º nº 1.
32. Cfr. artigo 18º nº 2.
33. Entre outros, direito:
- inerente à vida
- a um nome,
- a adquirir uma nacionalidade;
- de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem quando tenha capacidade de discernimento;
- de serem tomadas em consideração as suas opiniões, de acordo com a sua idade e maturidade,
- à liberdade de expressão, mormente, liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à sua escolha da criança;
à liberdade de pensamento, de consciência e de religião;
- à liberdade de associação e à liberdade de reunião pacífica.
34. Cfr. artigo 7º nº 1.
35. Cfr. artigo 8º nº 1.
36. Cfr. artigo 20º nº 1.
37. Publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 7 de Junho de 2016.
38. Doravante designada por LPPCJP.
39. Alterada pelas Leis nº 31/2003 de 22 de Agosto, nº 142/2015 de 8 de Setembro, nº 23/2017 de 23 de Maio, nº 26/2018 de 5 de Julho e nº 23/2023 de 25 de Maio.
40. Cfr. nº 1.
41. Cfr. artigo 34º da LPPCJP.
42. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 27.01.2022 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 19384/16.2T8LSB-A.L1.S1.
43. Nesse sentido, vide Ac. RC de 8.05.2019 in https://www.dgsi.pt/jtrc processo nº 148/19. 8T8CNT-A.C1.
44. Nesse sentido, vide Ac. Ac. RP de 5.06.2023 in https://www.dgsi.pt/jtrp processo nº 2702/15.8T8VNG-C.P1, citando Almiro Rodrigues.
45. Cfr. artigos 39º, 40º, 43º da LPPCJP.
46. Cfr. artigo 42º da LPPCJP.
47. Cfr. artigo 41º da LPPCJP.
48. Cfr. artigo 45º da LPPCJP.
49. Cfr. artigo 46º nºs 1 e 3 da LPPCJP.
50. Cfr. artigo 46º nºs 4 e 5 da LPPCJP.
51. Cfr. artigo 38º-A da LPPCJP.
52. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 3.10.2024 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 3862/21.4T6VCT.G1.S1.
53. À semelhança do que sucede com as situações previstas no artigo 1913º do Código Civil, dispensa a apreciação dos requisitos previstos no artigo 1.915 do mesmo diploma, porquanto existe uma decisão prévia de condenação pela prática de um crime com esse efeito, de decretamento de acompanhamento de maior com essa componente, de verificação de ausência e nomeação de curador provisório, assim como em decorrência da menoridade sem emancipação e, no caso, a aplicação da referida medida no âmbito de um processo de promoção e proteção, fundada nas circunstâncias previstas no artigo 1.978º do Código Civil e na ponderação dos princípios subjacentes à promoção e proteção de jovens e crianças em perigo.
54. A nível patrimonial temos o comando do artigo 1.917º do Código Civil.
55. A estas se refere expressamente o artigo 62º-A nº 6 da LPPJCP. Relativamente ao corte com a família biológica, a exceção admitida pelo nº 7 refere-se ao convívio com os irmãos, que não é generalizada e apenas deve ser autorizada quando a defesa do superior interesse da/o criança/jovem assim o exija.
56. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 30.03.2023 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 112/16.9T8RDD.E2.S1.
57. Nesse sentido, vide Ac. STJ de 9.05.2023 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 327/22.0T8OBR.P1.S1.
58. Nesse sentido, vide Exmª Juiz Conselheira Maria Clara Sottomayor in Código Civil Anotado, Livro IV Direito da Família, Almedina, 2ª edição, pg. 1008.
59. Vide https://cascais24horas.pt/cascais-na-alianca-metropolitana-no-apoio-aos-sem-abrigo/.
60. Nesse sentido, vide Ana Isabel Sani e Diana Cardoso in “A exposição da criança à violência interparental: uma violência que não é crime” artigo publicado na revista Julgar online de 2013, pg. 3.
61. Nesse sentido, Ana Sani in “A violência interparental na vida das crianças” acessível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/, pg. 34.
62. Nesse sentido, Ana Sani na obra citada na nota 49, pg. 34..
63. Nesse sentido, Ana Sani na obra citada na nota 49, pg. 42/43.
64. Cfr. artigos 9º, 10º, 15º, 16º, 23º nº 1 alíneas b) e d).
65. Negrito nosso.
66. Cfr. artigo 69º nºs 1 e 2 e 35º nºs 6 e 7 da Constituição.
67. Para recensão da jurisprudência, vide Ac. RL de 10.09.2020 in https://www.dgsi.pt/jtrl processo nº 562/07.1TMFUN-E.L1-2.