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PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
FINS DA PENA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário
Sumário: I – O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, não liberta o julgador das provas que se produziram nos autos, ou da sua falta, sendo com base nelas que terá de decidir, circunscrevendo-se a sua liberdade à livre apreciação dessas mesmas provas dentro dos parâmetros legais, não podendo estender essa liberdade até ao ponto de cair no puro arbítrio. II – Em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena. III - A finalidade das penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo o nº 1 que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E determinando o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. IV - As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano. (elaborado pela CIJ)
Texto Integral
Acordam os Juízes que constituem a Conferência nesta 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
O arguido AA recorreu da sentença proferido pelo Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6, que decidiu:
- condenar o arguido AA pela prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2., alínea a) do Código Penal, na pessoa da vítima BB, na pena de dois anos e dois meses de prisão e na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica;
- condenar ainda o arguido pela prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e e) e n.º 2., alínea a) do Código Penal, na pessoa da vítima CC, na pena de dois anos e quatro meses de prisão e na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica;
- em cúmulo jurídico, aplicar ao arguido a pena única de três anos e três meses de prisão, suspensa na execução por idêntico período com regime de prova e com a imposição do dever de o arguido pagar, durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, o valor da indemnização de 1.000€ (mil euros) à assistente e de 1.500€ (mil e quinhentos euros) ao ofendido CC, e ainda a pena acessória da obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão;
- condenar também o arguido, nos termos do artigo 82.º A do Código de Processo Penal, a pagar à assistente o valor de 1.000€ (mil euros) e ao ofendido CC o valor de 1.500€ (mil e quinhentos euros).
O arguido apresentou motivação, formulando as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo lavrou em erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto dada como provada.
2. Com efeito, entende o Recorrente que, em face da prova produzida na audiência de discussão de julgamento e por se mostrar de especial importância para a boa decisão da causa, deveria ser acrescentada a seguinte factualidade à matéria de facto provada:
- Em data não concretamente apurada, mas entre ... e ... de 2020, a Assistente e a filha DD decidiram, sem consentimento do Recorrente, realizar em sua casa a festa de aniversário do namorado desta última, a qual decorreu, pelo menos, até às 23:30h.
- A referida festa decorreu na sala da residência do Recorrente, local onde este dormia num sofá.
- Para além do aniversariante, da Assistente e respectivos filhos, estiveram ainda presentes familiares e amigos daquele.
- Durante o tempo em que decorreu a referida festa, o Recorrente foi enviando mensagens à Assistente, a fim de que a mesma terminasse, pois queria ir descansar, uma vez que tinha que se levantar às 06:00h para ir trabalhar.
- O namorado da DD que se refere no ponto 8., de nome EE, já havia tido uma relação amorosa com a Assistente.
3. Por outro lado, a matéria de facto dada como provada sob os pontos 9., 13.,14., 15., 16., 17. e 18. da decisão recorrida deverá ser considerada como não provada, uma vez que inexiste prova suficiente que a sustente.
4. O Recorrente não desconhece que o Tribunal deve decidir de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e que a simples discordância da valoração de um determinado meio de prova não é fundamento para alteração da matéria de facto considerada provada.
5. No entanto, quando ocorrem casos excepcionais legalmente previstos, nomeadamente, quando não existe qualquer meio de prova que sustente um determinado facto ou quando estamos perante situações em que, segundo as regras da experiência de um homem médio, da prova produzida não seja possível extrair a prova de um facto dado como assente, então estará o Tribunal de recurso em condições de alterar a matéria de facto.
6. Por outro lado, entende o Recorrente que, numa análise global dos factos dados como provados, o tipo de ilícito previsto no art.° 152.° do Código Penal não se encontra preenchido nos seus elementos objectivos e subjectivos.
7. Com efeito, da referida matéria de facto provada, quando analisada na sua globalidade, não se pode extrair que as alegadas vítimas alguma vez correram sérios riscos para a sua integridade física e/ou psíquica, tal como tem vindo a ser entendido pela generalidade da jurisprudência.
8. Assim e com os fundamentos supra expostos, deveria o Recorrente ser absolvido nos presentes autos
9. Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto no art.° 32.°, n.°s 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, art.° 127.° do Código de Processo Penal e art.° 152.° do Código Penal.
O Ministério Público apresentou a resposta, formulando as seguintes conclusões:
1. Não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, als.a) e c), e 2, al. a), do CP, na pessoa da vítima/Assistente BB, na pena de dois anos e dois meses de prisão, e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, als. d) e e), e 2, al. a), do CP, na pessoa da vítima CC, na pena de dois anos e quatro meses, e, em cúmulo jurídico, na pena única de três anos e três meses de prisão, suspensa na execução por igual período, com regime de prova, e com a imposição do dever de pagamento de valores arbitrados a favor dos Ofendidos, e ainda a pena acessória da obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, veio o Arguido interpor o presente recurso alegando, em síntese, que se lavrou em “erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto dada como provada” e que, consequentemente, o tipo de ilícito em causa “não se encontra preenchido nos seus elementos objectivos e subjectivos”, pelo que deveria ter sido absolvido (cfr. conclusões nº 1, 6 e 8 das alegações de recurso).
2. Não obstante os argumentos aduzidos pelo Arguido, concorda-se com o elenco dos factos considerados provados e não provados na sentença recorrida, bem como com a fundamentação de facto e de direito expendida pelo Tribunal a quo, uma vez que se procedeu a um exame crítico da prova, respeitando, quer o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 127º do CPP, quer o princípio da fundamentação das decisões judiciais, previsto no art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
3. Assim, tal como referido na sentença recorrida, entendemos que, “analisada a factualidade provada, conclui-se que o arguido praticou vários actos que se integram no conceito de maus tratos psíquicos da assistente”, sendo que “igualmente não subsistem dúvidas sobre o preenchimento da circunstância agravante prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 152.º, uma vez que, frequentemente, os comportamentos humilhantes descritos tiveram lugar no domicílio comum: local onde é expectável que as pessoas se sintam especialmente protegidas e tranquilas” (cfr. pág. 12 da sentença recorrida).
4. No que diz respeito ao Ofendido CC, bem salientou o Tribunal a quo que “não podia ignorar o arguido que, ao expor seu filho menor (…) a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem o menor tinha profunda vinculação pessoal e afectiva (a mãe), lhe causava sofrimento e angústia, maltratando-o e perturbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade, e, ainda assim, não se coibiu de proceder da forma descrita” (cfr. pág. 17 da sentença recorrida).
5. Desta maneira, verifica-se que os argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo quanto à fundamentação de facto e de direito tiveram por base toda a prova testemunhal e documental produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não se verificando, igualmente, nenhum dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, que são de conhecimento oficioso.
6. Relativamente às penas aplicadas e às respectivas medidas, assim como à pena única principal aplicada, seguindo os critérios resultantes da conjugação dos arts. 40º, 70º e 71º do CP, ponderadas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime em apreço, abonam ou desfavorecem o Arguido, o MP entende que as mesmas são adequadas e proporcionais ao caso sub judicie, sendo que há que ponderar a favor do Arguido “a ausência de antecedentes criminais e a integração social, nomeadamente laboral” (cfr. pág. 15 da sentença recorrida).
O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de Lisboa, emitiu parecer em 28/03/2025, corroborando a posição expressa em primeira instância.
Os autos foram a vistos e à conferência.
Do âmbito do recurso e da decisão recorrida:
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo Recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem, apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º n.º 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º nº 1 e 412º nºs 1 e 2, ambos do CPP.
Em face da motivação, são as seguintes as questões a considerar:
- Ocorreu violação do artigo 410º, nº 2 do CPP?
- Ocorreu violação do artigo 127º do CPP?
- Ocorreu violação do artigo 152º do CP?
- Ocorreu violação dos artigos 40º, 70º e 71º do CP?
A decisão condenatória sob recurso fixou os factos, nos seguintes termos (transcrição parcial):
1.1. Factos provados
Consideram-se demonstrados, com relevo para a decisão da causa, os factos seguintes:
1. AA e BB casaram entre si em .../.../2003, tendo fixado a residência na ....
2. São progenitores comuns de FF, nascida em .../.../2003, e de CC, nascido em .../.../2009, que sempre coabitaram com seus pais, até à altura em que o arguido mudou de residência, em .../.../2023.
3. Apesar do divórcio ter ocorrido por força de sentença proferida em .../.../2021 e transitada em julgado em .../.../2021, AA e BB continuaram a coabitar na mesma residência, mesmo sem manter relacionamento amoroso, sendo que, desde essa altura até .../.../2023, o arguido pernoitava, em média, três vezes por semana no domicílio comum.
Porém, desde data compreendida entre ... e ... de 2019, o arguido e a assistente cessaram o relacionamento afectivo, tendo o arguido passado a dormir no sofá da sala.
Não obstante, em data posterior à cessação do relacionamento afectivo, o arguido ainda tomou refeições com a esposa e os filhos e chegou a passar férias com os mesmos.
4. Em virtude da situação de saúde pública determinada pela SARS-CoV-2, a entidade patronal do arguido acordou com o mesmo a resolução do contrato de trabalho, tendo o mesmo recebido, em consequência, uma indemnização.
O valor recebido foi utilizado para fazer obras na residência do agregado familiar, que duraram cerca de dois meses e abrangeram o mês de ...de 2020.
5. Em data não posterior a ... de 2020, a filha do arguido, DD, passou a pernoitar no quarto que, anteriormente, era ocupado pelos pais, tendo a mãe, BB, passado a dormir no quarto ocupado pelo filho CC.
6. Passados alguns dias, o namorado da filha do arguido e da assistente, de nome GG, passou a viver na casa ocupada pelo arguido e respectivo agregado familiar, pernoitando no quarto que passara a ser ocupado pela namorada, situação que se manteve durante dois a três meses.
7. O arguido manifestou a sua oposição à situação referida em 6., mas tal oposição não obstou a que o namorado da filha passasse a fazer a sua vida na residência do arguido e do agregado familiar.
8. Tal situação repetiu-se com outro namorado subsequente, que, a partir de ...de 2020, passou a pernoitar no quarto ocupado pela filha do arguido e da assistente, fixando naquela casa a sua residência, com oposição do arguido.
9. Ao longo do período compreendido entre ... de 2020 e pelo menos ... de ... de 2022, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, com frequência variável, mas pelo menos mensal, sendo que, em alguns períodos, era quase diária, por vezes na presença do filho comum CC, o arguido dirigiu a BB expressões como “puta, prostituta”, acusando-a de se relacionar sexualmente com outros homens, mais lhe dizendo que desejava que ela tivesse um cancro, como a mãe dela. Tais comportamentos tinham lugar, frequentemente, no domicílio comum e, sobretudo, na sequência de discussões muitas vezes motivadas por ciúmes do arguido.
10. Em data não apurada de ... de 2020, o arguido colocou uma câmara de videovigilância na garagem, direccionada para o lugar de garagem em que se encontrava estacionado o veículo que utilizava, abarcando também outro lugar de garagem, cujo utilizador manifestou junto do arguido, por interpelação do mesmo, a sua não oposição a tal colocação.
Tal ocorreu depois de o veículo utilizado pelo arguido ter sido vandalizado, pretendendo o arguido evitar que tal voltasse a acontecer.
Tal colocação não foi precedida de autorização, nomeadamente da assistente, apesar de a garagem ter vários lugares em espaço de acesso comum, partilhado por vários moradores, nem foi colocado qualquer aviso de captação de imagens.
11. Sobretudo desde a altura e atitude referida em 7., a filha do arguido, DD, por várias vezes, dirigiu nomes ofensivos ao arguido, nomeadamente “mongolóide, filho da puta, otário, estúpido”, dizendo-lhe para “ir para o caralho”.
12. A filha do arguido, DD, com a concordância da mãe, em data indeterminada depois da separação afectiva dos pais e enquanto o pai partilhava a residência com a mesma, retirou os botões do esquentador, para evitar que o pai pudesse usufruir de banhos demorados com água quente e retirou a gaveta do detergente da máquina de lavar, impedindo o pai de utilizar tal electrodoméstico.
Tais actuações ficaram a dever-se à convicção, que BB e DD partilhavam, de que o arguido deveria contribuir mais para as despesas domésticas comuns.
Igualmente aconteceu, no período de tempo referido em 6., que a assistente insistisse com o arguido que o mesmo não regressasse a casa até terminar uma festa, em que a presença do arguido não era desejada.
13. Depois do divórcio, o filho do arguido, CC, interveio em defesa da mãe, no âmbito de discussões ocorridas entre a mesma e o arguido.
Insatisfeito com tal atitude, o arguido chamou-lhe “paneleiro” e “cabrão”, o que aconteceu mais do que uma vez.
14. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de humilhar e maltratar BB, a qual ele bem sabia ser sua esposa e, depois do divórcio, sua ex-mulher, bem como mãe de seus filhos DD e CC, não se coibindo de assim proceder no domicílio comum.
15. Ao agir da forma descrita contra BB, bem sabia e não podia ignorar o arguido que assim procedia na presença de CC, seu filho menor.
16. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao expor seu filho menor CC a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem o menor tinha profunda vinculação pessoal e afectiva, lhe causava sofrimento e angústia, maltratando-o e perturbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade, e, ainda assim, não se coibiu de proceder da forma descrita.
17. Ao dirigir a CC, seu filho menor, as expressões ofensivas descritas, no domicílio comum, o arguido bem sabia que lhe dirigia de forma reiterada maus-tratos psíquicos, o que quis e conseguiu, não ignorando que, por força da sua tenra idade, CC não tinha qualquer capacidade séria de oferecer resistência à actuação do arguido, circunstância de que este se prevaleceu para prosseguir a sua actuação criminosa.
18. Mais sabia o arguido serem as suas descritas condutas proibidas e punidas por lei penal.
19. Os factos referidos de 6. a 8., 11. e 12. provocaram, no arguido, inquietação, mal-estar psicológico e perturbação do seu quotidiano.
20. Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.
O arguido é motorista de TVDE, auferindo um rendimento mensal correspondente à retribuição mínima mensal garantida.
Partilha uma casa arrendada, pagando parte da renda, no valor mensal de €390.
Paga pensão de alimentos devida aos filhos DD e CC, incluindo medicamentos e propinas, tendo, ao longo do tempo, procedido regularmente a tais pagamentos.
1.2. Não se provou, com relevância para a decisão:
- que os episódios em que o arguido cuspiu na ofendida tenham ocorrido em data não anterior a .../.../2020;
- que, ao longo do período compreendido entre ... de 2020 e ... de ... de 2021, o arguido tenha utilizado a câmara de videovigilância, descrita na factualidade assente, para monitorizar as deslocações de BB no aludido espaço de garagem, vigiando as suas rotinas;
- outros episódios em que o arguido tenha dirigido aos ofendidos BB e CC expressões ofensivas ou vexatórias ou intimidadoras ou que tenha demonstrado agressividade contra os mesmos;
- outras expressões ofensivas dirigidas a BB ou CC, além do que foi dado como assente;
- que o arguido, durante o período de coabitação, sempre tenha colocado todo o dinheiro que ganhava ao dispor da economia comum da família;
- o exacto valor da indemnização recebida pelo arguido e referida na factualidade assente;
- que a assistente tenha agredido o arguido, com arranhões no pescoço ou que lhe chamasse nomes ofensivos, quando o mesmo reclamava quanto a restrições de utilizar a casa e electrodomésticos;
- que, desde a altura em que foi apresentada queixa-crime contra o arguido, BB e a filha DD ameaçassem, sempre que o arguido manifestava discordância em relação às suas decisões quanto à gestão da casa, que iriam chamar a polícia, reiterando a mesma ameaça quando o arguido se queixava quanto ao barulho que as mesmas faziam, por vezes, durante a noite;
- que o arguido tenha vivido com temor e medo, em consequência do comportamento de BB e da filha DD.
Consigna-se que foram excluídos, do elenco dos factos provados e não provados, os factos não relevantes para o objecto do processo e, do elenco dos factos não provados, os factos cuja classificação como não provados resulta naturalisticamente da prova de factos contrários ou com eles incompatíveis.
1.3. Motivação
O Tribunal baseou-se, para concluir pelo juízo de provado associado aos factos dados como assentes, nas declarações da assistente BB, que descreveu o relacionamento existente entre o arguido e a própria, bem como entre o mesmo e os seus filhos, de forma circunstanciada e vivenciada.
De tal relato apenas foram considerados os factos imputados ao arguido que, inequivocamente, se situavam no âmbito temporal abarcado pelo objecto do presente processo.
Tal depoimento foi credibilizado pelas declarações para memória futura prestadas pelo ofendido CC e pelo depoimento da filha do arguido DD, que também depôs com objectividade, reconhecendo ter tratado o pai de forma ofensiva e ter tomado as iniciativas referidas em 12. da factualidade assente.
Quanto à forma de tratamento ofensiva que DD utilizava frequentemente em relação ao pai, também foi importante, além das declarações do arguido, da assistente e da própria DD, o depoimento de GG, ex-namorado de DD que viveu na casa de morada de família, nos termos descritos na factualidade assente.
Relevou o depoimento de HH, quanto aos acontecimentos que envolveram a insistência da assistente em manter o arguido fora de casa, durante o período de ocorrência de festa em que a presença do mesmo era indesejada, e quanto ao sofrimento do arguido por a sua opinião ser desconsiderada quanto aos factos referidos em 6. e 8. da factualidade assente.
O arguido negou os factos incriminadores, mas explicou os contornos da cessação da relação de casal entre o mesmo e a assistente, bem como as alterações e restrições de utilização da casa comum.
Foi ainda importante o depoimento do agente da PSP II, que depôs sobre a apreensão da câmara de videovigilância, documentada a fls. 20.
Uma vez que o arguido asseverou que a colocação da câmara de videovigilância teve, como motivação, evitar novos actos de vandalismo sobre a viatura que utilizava, após um incidente ocorrido – incidente que a filha confirmou – e não foi produzida prova segura sobre a abrangência espacial da captação de imagens operada – sendo certo que não foi feito o exame do conteúdo do cartão de memória respectivo – pelas razões plasmadas a fls. 315 e 333 – não foi dada como assente a utilização de tal objecto como forma de controlar as deslocações da assistente.
A este propósito, foi ainda ouvido JJ, vizinho a quem o arguido pediu autorização para colocar a câmara, por a mesma captar imagens do lugar de garagem utilizado pelo mesmo.
Foi também importante a análise do P 844/20.7SDLSB, para delimitação do objecto do presente processo.
Relevaram ainda os assentos de nascimento juntos aos autos, nomeadamente do arguido e do filho CC, bem como os documentos de fls. 625 a 674, que demonstram que o arguido contribuía para o sustento dos seus filhos, contactando arguido e assistente sobre esses aspectos.
Relativamente à intencionalidade do arguido e restantes elementos subjectivos referidos na factualidade assente, o Tribunal baseou-se em presunção natural extraída do comportamento objectivo do arguido, apurado nos termos supra, conjugada com a circunstância de o mesmo se mostrar imputável.
Relativamente à situação sócio-económica do arguido, foram valoradas as suas declarações prestadas em audiência de julgamento.
Foi ainda analisado o certificado de registo criminal do arguido.
Quanto aos factos não provados ainda não especificamente analisados, o juízo de não prova baseou-se na ausência de prova positiva segura aos mesmos atinente.
Vejamos então:
A formulação de um pedido de impugnação da matéria de facto depende do cumprimento de requisitos de forma e de substância, nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP.
É ónus do recorrente:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada
ocorrência ou, mais ainda, de todos os factos considerados provados;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe.
Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação - as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artigo 412º do CPP.
Por força do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2012, publicado no DR-1ª, de 18/04/2012, estabeleceu-se que:
“Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.”.
Apreciados os termos do recurso, verifica-se que o arguido se limita a invocar que houve erro de julgamento da matéria de facto, por o Tribunal ter errado ao dar como provados, os factos constantes dos pontos 9, 13, 14 a 18 dos factos provados.
Na apreciação e valoração da prova produzida, vigora o princípio da livre apreciação da prova.
Para ocorrer erro na apreciação da prova terá o mesmo de resultar do texto da decisão recorrida, “é uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» - Ac. do STJ de 20.11.2014, entre outros, in http://www.dgsi.pt.
A existência de tal erro, pressupõe que, do texto da decisão sob recurso, por si só, ou conjugado com o senso comum, se conclua, de imediato e facilmente, de forma a que a factualidade dada como provada se apresenta como contrária às regras da experiência comum e da lógica da normalidade do acontecer.
«Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º).
O que se evidencia desde logo é que o recorrente apenas discorda da forma como o tribunal apreciou a prova, qualificou os factos e acabou por punir o autor dos mesmos.
Neste particular, o Tribunal de Recurso acolhe-se ao entendimento sufragado, no Tribunal da Relação do Porto em 19/04/2023, no âmbito do Processo16/21.3GAAVR.P1, em que foi Relator o Desembargador Nuno Pires Salpico, designadamente, quando profere:
“I - O artigo 127.º do Código de Processo Penal não fixa as regras da experiência como limite à discricionariedade, antes define essas máximas da experiência como fundamento da apreciação da prova, num ambiente de liberdade de aferição.
II – O conceito de liberdade na convicção probatória significa que o julgador não está vinculado a conceções políticas ou ideológicas predefinidas ou a prova tarifada, podendo ajuizar as probabilidades das máximas da experiência necessárias à prova indireta, exigindo-lhe que se liberte dos seus processos psicológicos e da sua moral pessoal, e se coloque numa posição imparcial.
III - A livre convicção probatória nada tem de discricionário, constituindo uma atividade profundamente vinculada ao cumprimento dos princípios e regras do direito probatório, às normas da experiência comum pertinentes e da lógica, sendo alvo de um denso escrutínio pelos sujeitos processuais.
IV - A convicção do julgador não poderá ser íntima, nem ter segmento algum indecifrável, mas antes, transmissível e partilhável com as partes (num esforço de convencimento e esclarecimento) e com o Tribunal superior, havendo recurso.
V - Se o juiz não souber explicar de forma racional a sua convicção, então tem de reconhecer que a mesma não é juridicamente válida, encontrando-se fora dos domínios do artigo127.º do Código de Processo Penal.”
…
O artigo 127º do Código de Processo Penal dispõe que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Mas isto implica, como acentua Frederico Marques, que se impõe no julgador que, nos seus juízos, proceda com bom senso e sentido de responsabilidade, pois o livre convencimento “não se confunde com o julgamento por convicção íntima, uma vez que o livre convencimento lógico e motivado é o único aceite pelo moderno processo penal”.
Segundo Cavaleiro de Ferreira, as “…regras da experiência…” “São definições os juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerça, mas para além dos quais tem validade”.
Também segundo Cavaleiro de Ferreira, a livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade”. Nesse sentido, Teresa Beleza afirma que “O valor dos meios de prova (...) não está legalmente preestabelecido. Pelo menos tendencialmente, todas as provas valem o mesmo”.
Corresponde isto a dizer que, a livre apreciação da prova terá sempre subjacente uma motivação ou fundamentação - o substrato racional da convicção que dela emerge. Ou, como escreve Marques Ferreira, “Tal princípio assenta nas regras da experiência e em critérios lógicos, de modo que a convicção da entidade que aprecia livremente a prova se mostre racional, nada arbitrária ou meramente impressionista”. Ou, como refere o Prof. Figueiredo Dias, o julgador ao apreciar livremente a prova exerce uma “liberdade de acordo com dever”, ou seja, “o dever de perseguir a chamada verdade material de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo”.
Assim, importante, parece-nos, é realçar que o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, não liberta o julgador das provas que se produziram nos autos, ou da sua falta, sendo com base nelas que terá de decidir, circunscrevendo-se a sua liberdade à livre apreciação dessas mesmas provas dentro dos parâmetros legais, não podendo estender essa liberdade até ao ponto de cair no puro arbítrio.” – fim de citação.
O arguido coloca, ainda, em causa, que a globalidade dos factos, dados como provados, preencha o tipo de ilícito previsto no artigo 152º do CP, por não se encontrarem, designadamente, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo.
Este Tribunal de Recurso, analisada aquela factualidade, não vê qualquer motivo de censura à decisão do Tribunal a quo, pois, o conjunto de factos/actos que o arguido praticou sequencialmente constituíram maus tratos psíquicos à assistente e, no que diz respeito ao ofendido CC, filho de ambos, o arguido bem sabia que, praticando as referidas ofensas à assistente, na presença do filho, causava sofrimento e angustia a este, maltratando-o, perturbando o seu processo de desenvolvimento e formação da sua personalidade e sabia que, tal constitui ilícito penal punível; não obstante praticou tais actos, até no domicílio comum, onde viviam o arguido, a assistente e o ofendido, habitualmente, e aonde o próprio arguido chegou a ficar, mesmo após a cessação do relacionamento afectivo entre si a assistente.
Praticou estes actos voluntaria e conscientemente, tendo tal factualidade sido dada por assente com base na análise conjugada e crítica da prova testemunhal e documental, produzida em audiência.
Neste particular, este Tribunal de Recurso, segue a jurisprudência apontada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, designadamente, no acórdão proferido em 2/07/2024, no âmbito do Processo 757/21.5GAMTA.L1-5, em que foi Relatora a Desembargadora Maria José Machado:
“I - O tipo legal de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, sanciona a violência no seio da família, correspondendo à crescente consciencialização de que os comportamentos nele descritos assumem gravidade significativa, a exigir a intervenção do direito penal e visa a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
II- Porém, uma vez que as condutas típicas que integram o crime de violência doméstica podem elas próprias integrar diversos tipos legais, nomeadamente ofensas à integridade física simples, ameaças, coacção, injúrias, etc., sendo aquele punido de forma mais grave que tais ilícitos e sendo distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora então, para a densificação do conceito de maus tratos, sejam eles físicos ou psicológicos, não pode servir toda e qualquer ofensa.
III - É determinante para a caracterização do crime de violência doméstica e para o distinguir de outros tipos legais, com os quais tem uma relação de especialidade, que os factos, isolados ou reiterados, praticados no âmbito de uma relação conjugal ou de vida em comum, têm de ser de tal forma graves que coloquem a vítima numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal.
IV – A conduta provada do arguido, no seu conjunto, ainda que não consubstanciada em maus tratos físicos, mas traduzida antes em expressões ou actos de desprezo, pejorativos, humilhantes e intimidatórios ao longo da coabitação, pôs seriamente em causa a dignidade da ofendida como mulher e mãe dos seus filhos, revelando um forte desprezo pela sua dignidade enquanto pessoa e uma especial danosidade social, em clara violação dos bens jurídicos protegidos pelo tipo incriminador em causa.” – consultável em www.dgsi.pt
Perante tais elementos, forçoso se torna concluir que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do artigo 152º do CP, pois tais actos vão muito para além de simples injúrias e agressões ou ofensas à integridade física, atingindo os bens jurídicos protegidos pelo inciso legal.
Improcede, pois, o recurso nesta dimensão.
O arguido coloca, ainda, em questão a escolha e determinação da medida concreta da pena.
Para o efeito, atentamos na jurisprudência definida, designadamente, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 3/12/20, pela 5ª Secção, no âmbito do Processo 565/19.3PBTMR.E1.S1, em que foi relatora Margarida Blasco, consultável em www.dgsi.pt:
“I - Nos termos do art. 40.º, do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no art. 71.º, do mesmo diploma.
Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no art. 18.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (art. 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos, – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.
A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (arts. 40.º, e n.º 1, do 71.º, do CP).
A medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o art. 71.º, n.º 2, do CP considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na al. a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na al. b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os factores a que se referem a al. c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a al. a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na al. d) (condições pessoais e situação económica do agente), na al. e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na al. f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [al. e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [al. f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das als. e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial
II - O objecto do presente recurso – tal como definido pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação e que delimitam o objecto do recurso - cinge-se, unicamente, à apreciação da medida da pena aplicada que o recorrente considera excessiva, desproporcional e desajustada às finalidades da punição, tendo o Tribunal “a quo” violado o disposto nos arts. 40.º e 71.º, ambos do CP, pugnando pela sua redução…”
Ainda a respeito da medida da pena atente-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 25/05/16, pela 3ª Secção, no âmbito do Processo 101/14.8GBALD.C1.S1, em que foi relator Pires da Graça, consultável em www.dgsi.pt:
“I - O art. 71.º, do CP estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
II - A decisão recorrida descreve os factos necessários à decisão da acusa, incluindo, factos sobre a personalidade do arguido e a sua vida pregressa, sendo que a decisão recorrida pronunciou-se sobre os factores alegados pelo recorrente. Ou seja, o recorrente não indica qualquer outra circunstância a que o tribunal devesse ter atendido. Mais, as penas parcelares aplicadas (4 anos de prisão pela prática de 1 crime de roubo qualificado, 3 meses de prisão pela prática de 1 crime de violação de domicílio, 2 anos e 6 meses de prisão pela prática de 1 crime de roubo e 1 ano e 6 meses de prisão pela prática de 1 crime de roubo na forma tentada) não se revelam desadequadas, nem desproporcionais, atentas as fortes exigências de prevenção geral e especial e a intensidade da culpa.
III - É o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. A determinação da pena do cúmulo exige, pois, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, de molde a poder valorar-se o ilícito global perpetrado.
IV - Valorando o ilícito global, na ponderação conjunta dos factos e personalidade do arguido, como determina o art. 77.º, n.º 1, do CP, tendo em conta a natureza e gravidade dos ilícitos, as fortes exigências de prevenção geral na defesa e restabelecimento das normas violadas, sendo forte a intensidade do dolo e da culpa, bem como as exigências de socialização, em que os factos praticados face à vida pregressa do arguido revelam tendência criminosa, não se revela desadequada a pena única de 5 anos e 10 meses de prisão aplicada pela 1.ª instância.” – fim de citação.
Escrevia CESARE BECARIA – Dos delitos e das Penas, tradução de JOSÉ DE FARIA COSTA, Serviço de Educação, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 38, sobre a necessidade da pena que “Toda a pena que não deriva da absoluta necessidade – diz o grande Montesquieu – é tirânica.” (II); - embora as penas produzam um bem, elas nem sempre são justas, porque, para isso, devem ser necessárias, e uma injustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que quer fechar todas as portas à vigilante tirania...” (XXV)
Mas, como ensinava EDUARDO CORREIA, Para Uma Nova Justiça Penal, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Livraria Almedina, Coimbra, p. 16, “Ao contrário do que pretendia Beccaria, uma violação ou perigo de violação de bens jurídicos não pode desprender-se das duas formas de imputação subjectiva, da responsabilidade, culpa ou censura, que lhe correspondem.
E neste domínio tem-se verificado uma evolução que seguramente não nos cabe aqui, nem é possível, desenvolver.
Essa solução está, de resto, ligada ao quadro que se vem tendo do homem, às necessidades da sociedade que o integra, aos fins das penas a que se adira e à solidariedade que se deve a todos, ainda que criminosos.”
Na lição de Figueiredo Dias (Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):
“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”
Em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena.
As penas como instrumentos de prevenção geral são “instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução”, surgindo então a prevenção geral positiva ou de integração “como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar (idem, ibidem, p. 84)
A finalidade das penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo o nº 1 que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade
E determinando o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.
A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, ibidem, p. 117)
O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.
Ensina o mesmo Ilustre Professor, As Consequências Jurídicas do Crime, §55, que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’.
Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”
Ou, em síntese: A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.
É no âmbito do exposto, que o Supremo Tribunal de Justiça vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.
O artigo 71º do CP estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Por sua vez, o n º 2 do mesmo artigo do CP, estabelece que:
Na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência:
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
As circunstâncias e critérios do artigo 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.
Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. (Figueiredo Dias, Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo, Proc. n.º 2555/06- 3ª).
Tendo presente o quadro factual, dado como provado na sentença recorrida, a matéria de facto supra descrita, considerando a amplitude da moldura penal abstracta, entende este Tribunal de Recurso que, a conduta do arguido é fortemente censurável, foi perpetrada em diferentes momentos temporais, sequenciais, com maus tratos psíquicos, quer à assistente, quer aos filhos, pelo que não merece qualquer censura a este Tribunal, quer a escolha da sanção penal adoptada, quer a sua dosimetria, o mesmo se passando com os montantes arbitrados a título de indemnização.
Improcede, assim, o recurso, em qualquer uma das suas dimensões.
Dispositivo:
Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar totalmente não provido o recurso e, consequentemente, mantem-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Acórdão elaborado pelo Primeiro signatário em processador de texto que reviu integralmente, sendo assinado pelo próprio e pelos Desembargadores Adjuntos.
Lisboa, 10 de Julho de 2025
Carlos Alexandre
Alfredo Costa
Hermengarda Valle-Frias