DECISÃO
LICENÇA DE SAÍDA JURISDICIONAL
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Sumário

Sumário:
I-O Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade não qualifica de sentença a decisão de concessão ou não de licença de saída jurisdicional e, por isso, a decisão recorrida não exige os mesmos requisitos de fundamentação previstos no artigo 374º nº2 do Código de Processo Penal.
II- Todavia, o dever de fundamentação não é exclusivo de sentenças e está em causa uma decisão judicial sendo que a fundamentação das decisões judiciais tem consagração nos artigos 6º nº1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa e o Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade consagra no seu artigo 146º nº1 que: «Os actos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
III- As decisões judiciais devem ser autónomas e, assim, a fundamentação deve constar do seu teor, de molde a que os destinatários alcancem de modo claro e inequívoco o que em concreto se decidiu, bem como as razões de facto e de direito que lhe subjazem e a omissão de tal prejudica ou impede a sua compreensão não só pelo visado mas também pela comunidade em geral e belisca o direito de defesa do visado.
IV-Ademais e estando em causa, neste caso, um ato decisório recorrível a omissão de fundamentação impede que o Tribunal de Recurso exerça a sua função de controlo e pode inviabilizar o conhecimento das questões suscitadas no recurso.
V- Está em causa irregularidade que afeta o valor do ato praticado nos termos previstos no artigo 123º nº2 do Código de Processo Penal aplicável ex vi do artigo 154º do Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade cujo conhecimento é oficioso e tempestivo e cuja reparação não só pode como deve ser ordenada por este Tribunal da Relação.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1-RELATÓRIO:
Nos autos de processo de licença de saída jurisdicional com o nº 389/23.3TXLSB-J que correm os seus termos no Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, Juiz 1 foi proferida decisão cujo dispositivo é ao que nos interessa:
Assim, considerando o parecer do conselho técnico, os elementos dos autos, os esclarecimentos prestados e os requisitos e critérios legais (arts. 78.º e 79.º do CEPMPL), decide-se:
Não conceder a requerida licença de saída jurisdicional, atendendo:
a) À situação jurídica indefinida do recluso;
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Inconformado com tal decisão dela recorreu o recluso AA extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
1.Em consonância com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente a decisão sumária n.°248/2025 e o Acórdão n.°598/2024, é admissível o recurso da decisão de não concessão da licença de saída jurisdicional, de modo a salvaguardar o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.° da CRP.
2.A decisão de não concessão da saída precária violou o disposto no artigo 19° do CEPMPL, incorrendo em erro de facto e de direito. O Recorrente preenche todos os requisitos legais para a concessão da saída precária, conforme demonstrado na motivação.
3.O Tribunal a quo desconsiderou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que declarou extinta a pena suspensa, incorrendo em erro de facto ao basear a sua decisão numa premissa falsa.
4.O Tribunal a quo incorreu em erro de direito ao aplicar a alínea c) do artigo 19° do CEPMPL, fundamentando o indeferimento na alegada indefinição da situação jurídica do Recorrente, quando esta já se encontrava definida com a anulação da decisão de revogação da suspensão da pena.
5.A existência de outro processo pendente não impede a concessão da saída precária, uma vez que não existe prisão preventiva decretada ou sequer ponderada nesse processo, não preenchendo os requisitos negativos da alínea c) do artigo 19° do CEPMPL.
6.A decisão de não concessão da saída precária viola os direitos do Recorrente à tutela jurisdicional efetiva, ao contraditório e à defesa.
7.A privação da saída precária impede o Recorrente de exercer o seu direito à reinserção social, à manutenção dos laços familiares e à preparação para a liberdade condicional.
8.A restrição ao direito de saída precária é desproporcional perante os objetivos de segurança e ordem públicas e reinserção social, pois não existe qualquer risco concreto de fuga ou de prática de novos crimes.
9.A ausência de saídas precárias não reflete uma falta de mérito ou de preparação para a reinserção social por parte do Recorrente, mas sim o reiterado indeferimento dos seus pedidos, não dependendo da sua vontade.
Termina pugnando pela revogação da decisão recorrida e consequente concessão da licença de saída jurisdicional.
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Admitido o recurso o Ministério Público do tribunal a quo apresentou resposta extraindo-se da mesma as seguintes conclusões:
1-A decisão recorrida não padece de qualquer vício que cumpra avaliar e reparar.
2-Por causa da situação jurídica indefinida por força da pendência do processo 265/23.OJFLSB do recluso, foi indeferido o gozo de tal licença; tal circunstância foi apenas conhecida após a instrução dos elementos necessários à apreciação da saída jurisdicional e deve ser apreciada aquando da tomada de decisão.
3-Bem andou o Mmo Juiz "a quo" em decidir desde logo pelo indeferimento da saída juridiscional, porquanto desconhece-se quanto tempo demorarão estes autos a ter uma informação consolidada do processo 265/23.OJFLSB e se se suspendesse a apreciação do pedido de licença, o recluso não poderia fazer uso do disposto no 79º, n.º 4 do CEPMPL, a gozar de quatro em quatro meses, o que manifestamente o prejudicaria.
4-O argumento de que no processo 265/23.OJFLSB o recluso apenas foi sujeito a TIR, e sem outra medida de coacção, deve-se única e exclusivamente à circunstância de o mesmo estar em reclusão, caso contrário ser-lhe-ia aplicável medida de coacção mais gravosa, em face dos factos pelos quais está indiciado nesses autos, podendo ser desavisado restitui-lo à liberdade ainda que por escassos dias.
5-Assim sendo, bem andou também o Mmo Juiz ao proferir decisão recorrida, irrepreensível aliás.
Termina pugnando pelo não provimento do recurso interposto pelo arguido e consequente manutenção da decisão recorrida.
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Remetido o processo a este Tribunal da Relação, foi emitido parecer sufragando os argumentos constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público do tribunal recorrido.
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Uma vez que o parecer não aduz novos argumentos não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso interposto pelo arguido cumprindo, assim, apreciar e decidir.
2-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim à luz do que o recorrente arguido invoca a questão a dirimir é a verificação dos pressupostos para a concessão da licença de saída jurisdicional ao recorrente.
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2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
Exara a decisão recorrida vertida em ata com relevo para a apreciação do presente recurso o que a seguir se transcreve:
Processo n.º 389/23.3TXLSB-J
Requerente: AA
***
- O recluso supra identificado requereu a concessão de uma licença de saída jurisdicional, nos termos do artigo 189.º n.ºs 1 e 2 do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade, de ora em diante designado CEPMPL.
O requerimento foi instruído com os elementos previstos no n.º 3 do referido preceito e dos mesmos não resulta a não verificação dos requisitos previstos no art. 79.º do citado diploma.
Designou-se dia e hora para a reunião do conselho técnico e o despacho foi notificado ao Ministério Público e comunicado ao estabelecimento prisional e aos serviços de reinserção social (art. 190.º do CEPMPL).
Realizou-se hoje a reunião do conselho técnico, onde foram prestados os esclarecimentos indispensáveis à apreciação do pedido.
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II O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e mostra-se isento de nulidades, exceções ou quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento do pedido formulado pelo requerente.
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III- Discutido o pedido no conselho técnico hoje realizado, foi por este emitido parecer:
Desfavorável, por Unanimidade.
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IV- Assim, considerando o parecer do conselho técnico, os elementos dos autos, os esclarecimentos prestados e os requisitos e critérios legais (arts. 78.º e 79.º do CEPMPL), decide-se:
Não conceder a requerida licença de saída jurisdicional, atendendo:
a) À situação jurídica indefinida do recluso;
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Notifique a presente decisão ao Ministério Público e ao recluso.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
Aqui chegados impõe proceder à concreta apreciação da pretensão do recorrente lembrando que este se insurge relativamente à decisão proferida no Tribunal de Execução das Penas que lhe indeferiu uma licença de saída jurisdicional.
Ora, lida a decisão recorrida não se constata, desde logo, qualquer densidade factual porquanto a mesma omite a descrição dos factos concretos em que assenta, além do mais, a indicada situação jurídica indefinida do recluso.
Por outro lado, refere-se a elementos dos autos, aos esclarecimentos prestados e aos requisitos e critérios legais cuja enunciação e análise omite.
Não se olvida que o Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade não qualifica de sentença a decisão em causa e, por isso, a decisão recorrida não exige os mesmos requisitos de fundamentação previstos no artigo 374º nº2 do Código de Processo Penal.
Todavia, o dever de fundamentação não é exclusivo de sentenças e está em causa uma decisão judicial sendo que a fundamentação das decisões judiciais tem consagração no artigo 6º nº1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem4 e o artigo 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa estipula o seguinte: «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.»
Ademais o próprio Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade consagra no seu artigo 146º nº1 que: «Os actos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão»
Destarte e estando em causa uma decisão judicial o dever de fundamentação impõe-se, nos termos sobreditos, às decisões proferidas no Tribunal de Execução das Penas, mormente, à decisão recorrida.
Como afirma José Tomé de Carvalho5: O dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito Democrático, pois permite o controlo da legalidade do ato e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça.
E, ainda, Oliveira Mendes6 a fundamentação «visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, nº1, da Constituição da República».
As decisões judiciais devem ser autónomas e, assim, a fundamentação deve constar do seu teor, de molde a que os destinatários alcancem de modo claro e inequívoco o que em concreto se decidiu, bem como as razões de facto e de direito que lhe subjazem e a omissão de tal prejudica ou impede a sua compreensão não só pelo visado mas também pela comunidade em geral e belisca o direito de defesa do visado.
Ademais e estando em causa, neste caso, um ato decisório recorrível a omissão de fundamentação impede que o Tribunal de Recurso exerça a sua função de controlo e pode inviabilizar o conhecimento das questões suscitadas no recurso.
Com efeito, perante a exiguidade da decisão proferida não se tem acesso às razões concretas de facto e de direito que a sustentam o que inviabiliza o escrutínio da mesma por este Tribunal, mormente, a apreciação da verificação dos pressupostos para a concessão da licença de saída jurisdicional ao recorrente.
A decisão padece, assim, de irregularidade nos termos previstos no artigo 123º do Código de Processo Penal aplicável por via do artigo 154º do Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade.
Consagra o nº2 do citado artigo 123º do Código de Processo Penal que: «Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado».
Ora, é este o caso posto, que nos termos sobreditos, está em causa, também, a possibilidade deste Tribunal de Recurso exercer a sua função de controlo da decisão recorrida, função essa inviabilizada pela omissão de fundamentação das razões de facto e de direito porque o tribunal recorrido entende que a licença de saída jurisdicional do recluso e ora recorrente não pode ser concedida e, consequente impossibilidade de aferir da verificação dos pressupostos necessários à concessão de tal licença, como pretendido pelo recorrente.
Destarte, impõe-se concluir que a decisão recorrida não observa o dever de fundamentação que está consagrado no artigo 6º nº1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 146º nº1 do Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade, estando a mesma ferida de irregularidade, cujo conhecimento é oficioso e tempestivo (porque a todo o tempo) e cuja reparação não só pode como deve ser ordenada por este Tribunal da Relação uma vez que está em causa irregularidade que afeta o valor do ato praticado nos termos previstos no artigo 123º nº2 do Código de Processo Penal aplicável ex vi do artigo 154º do Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade.
Em face do exposto fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada pelo recorrente neste recurso.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em declarar ferida de irregularidade nos termos sobreditos a decisão recorrida por falta de fundamentação e em determinar que seja proferida pelo Tribunal recorrido nova decisão que observe o dever de fundamentação legalmente previsto.
Sem custas.
Notifique sendo o recorrente, ainda, do teor do parecer emitido neste Tribunal da Relação.
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Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 10 de julho de 2025
Ana Rita Loja
Cristina Isabel Henriques
Rui Miguel Teixeira
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1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Onde se exara nomeadamente que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.».
5. Breves Palavras sobre a Fundamentação da Matéria de Facto no âmbito da Decisão Final Penal no Ordenamento Jurídico Português- JULGAR nº21-2013
6. Código de Processo Penal Comentado, 5ª edição, pág. 1168