INJUNÇÃO
FATURA
CAUSA DE PEDIR
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PREÇO
OBRIGAÇÃO COMERCIAL
ADMISSIBILIDADE
Sumário


I. No procedimento de injunção comercial, a causa de pedir é o contrato oneroso celebrado entre a requerente e a requerida, e não as faturas que titulam o preço.
II. Em ação declarativa de condenação emergente de procedimento de injunção, na qual a autora pede a condenação da ré no pagamento de uma quantia global titulada em seis faturas, alegando para o efeito ter prestado à ré ““serviços de consultoria em sistemas de informação”, concluindo o Tribunal que uma das referidas faturas diz respeito a relação contratual distinta da alegada pela requerente/autora no requerimento inicial e portanto alheia à causa de pedir invocada, terá que considerar não provado que esta fatura diga respeito aos serviços prestados pela requerente/autora à requerida/ré e, consequentemente, concluir pela improcedência parcial da ação, no que respeita à quantia titulada por esta fatura.

Texto Integral

Sumário1:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

1. LCG Analytics, Consultoria, Lda. intentou procedimento de injunção que veio a dar origem à presente acção declarativa de condenação sob a forma comum contra Brighten, S.A., alegando ter prestado à requerida “serviços de consultoria em sistemas de informação”, cujo preço foi titulado por seis faturas que lhe apresentou, mas esta não pagou, concluindo que “é a Requerida devedora à Requerente do montante global de € 149.458,01 (…), valor que corresponde à soma do capital em dívida (€ 99.658,55) e dos juros de mora vencidos (€ 49.799,46), a que acrescem os juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.”

2. Notificada, a ré apresentou oposição, impugnando a factualidade invocada no requerimento inicial (sustentando nomeadamente que uma das faturas referidas no requerimento inicial não diz respeito a qualquer prestação de serviços, mas antes se reporta a relação contratual diversa), invocando as exceções de pagamento (total quanto à fatura respeitante à referida relação contratual diversa da prestação de serviços invocada, e parcial quanto às demais), e compensação de créditos, e, a título subsidiário, deduzindo reconvenção, para reconhecimento dos créditos que pretende ver compensados com os eventuais créditos da autora.

3. Face à oposição deduzida, os autos foram distribuídos sob a forma de processo comum de declaração, no âmbito do qual veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto, decide-se:

Na procedência, por provada, da acção que Lcg Analytics - Consultoria, Lda., instaurou contra Brighten, S.A., decide-se condenar a ré a pagar à autora a quantia de 99.658,55€ (noventa e nove mil seiscentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos acrescida de juros de mora contados desde a data de vencimento de cada uma das faturas até integral pagamento.

Na procedência, por provado, do pedido reconvencional deduzido pela Brighten, S.A., contra a Lcg Analytics - Consultoria, Lda., decide-se condenar a reconvinda a pagar à reconvinte, a quantia de 18.622,38€ (dezoito mil seiscentos e vinte e dois euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros vencidos desde a data de vencimento de cada uma das faturas, absolvendo-a dos juros vencidos para além dos últimos cinco anos.

Custas da acção pela ré e da reconvenção pela autora, na proporção dos respetivos decaimentos.”

4. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação.

5. O Tribunal da Relação identificou as seguintes questões na apelação:

-A nulidade da sentença – conclusão CC

-A impugnação da decisão sobre matéria de facto – conclusões D a Y.

-Aferir se a decisão apelada deve ser alterada no tocante à apreciação do mérito da acção – Conclusões Z a BB.

6. E veio a proferir acórdão que culmina assim:

Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação parcialmente procedente e em consequência:

a. Julgar a ação parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de € 42.372,63 acrescida de juros de mora contados desde a data de vencimento de cada uma das faturas identificadas como f1 a f5 do ponto 2.7. dos factos provados, calculados à taxa supletiva de juros moratórios de que são credoras as empresas comerciais, desde as datas em que tais faturas se consideram vencidas, até integral pagamento, devendo considerar-se, no cálculo de tais juros, que o pagamento parcial referido no ponto 2.8 dos factos provados deve ser imputado à liquidação parcial do valor global das faturas f1 a f3 referidas no ponto 2.7.;

b. Julgar a reconvenção procedente e, em consequência, condenar a autora a pagar à ré a quantia de € 18.622,38, acrescida de juros de mora calculados à taxa supletiva de juros moratórios de que são credoras as empresas comerciais, sobre o valor de cada uma das faturas referidas no ponto 2.9 dos factos provados, desde as datas dos respetivos vencimentos até integral pagamento.

Custas por apelante e apelada, na proporção dos respetivos decaimentos.”

7. Não se conformando com o acórdão a A. apresentou recurso de revista, onde formula as seguintes conclusões:

1). A causa de pedir enunciada pela Autora em sede do procedimento injuntivo (a relação contratual invocada) não se confina nem reduz a um único contrato oneroso celebrado entre si e a Ré (de “serviços de consultoria em sistemas de informação), mas antes a um complexo (múltiplo) de transacções comerciais;

2). Neste conspecto, não pode afirmar-se que a factura concreta objecto do decidido seja “alheia à causa de pedir invocada”.

3). Uma maior concretização ou particularização da causa de pedir em sede de um requerimento injuntivo (serviços de consultoria em sistemas de informação) no plano do qual se enunciou uma causa de pedir de âmbito maior, isto é, estendida ou alargada em função dos factos jurídicos complexos que a compõem (os contratos e acordos que regularam as relações comerciais entre as empresas, as relações comerciais estabelecidas entre as sociedades e o relacionamento comercial interempresas), não obsta a que esta seja atendida e considerada com a amplitude enunciada.

Destarte,

4). O pedido consubstanciado no pagamento de uma factura que, porventura, não se reporte a serviços de consultoria em sistemas de informação prestados pela Autora à Ré, mas se inscreva no âmbito de uma causa de pedir alargada por si suficientemente enunciada em sede do seu requerimento injuntivo, não constitui um facto alheio à causa de pedir formulada.

Neste enfoque,

5). Inscrevendo-se uma concreta factura cujo pagamento é peticionado em requerimento injuntivo no âmbito da conceptualização estendida ou alargada de «transacção comercial», na definição que lhe é dada pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, com cabimento na enunciação feita pela Autora dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, não deve a mesma ser tomada como sendo alheia à causa de pedir invocada pela autora. Efectivamente,

6). Referindo-se a Autora, expressamente, no seu requerimento injuntivo a uma causa de pedir descrita como os contratos e acordos que regularam as relações comerciais entre as empresas, as relações comerciais estabelecidas entre as sociedades e o relacionamento comercial interempresas, procedeu à enunciação de um complexo de factos jurídicos que, sendo múltiplos, não se reduzem a uma única situação jurídica ou realidade fáctica – a prestação serviços de consultoria em sistemas de informação.

7). Deve rejeitar-se uma perspectiva minimalista, reducionista e dogmática da noção de causa de pedir, sendo antes de acolher uma noção estendida da mesma sempre que encontre, conforme é o caso, um suporte suficiente nas indicações expressamente assinaladas pela Autora no seu requerimento injuntivo.

Acresce que,

8). A aceitar-se a orientação propugnada pelo acórdão recorrido no sentido de que a factura objecto do decidido se reporta a “um acordo mediante o qual a autora cedeu à ré determinada área de negócio”, tal não se revela suficiente para a sua exclusão do âmbito da causa de pedir complexa enunciada pela Autora, nem determina, necessariamente, que aquele acordo seja alheio aos “serviços de consultoria em sistemas de informação” prestados pela Autora à Ré.

9). A noção de serviços de consultoria em sistemas de informação, traduzindo-se num conceito alargado e, comportando, por esse motivo, um grau considerável de latitude, é apta a compreender outros acordos ou realidades substantivas acessórias ou complementares que não podem categoricamente ser excluídas do seu âmbito.

Neste enfoque,

10). Ainda que se aceitasse que a factura em apreço respeita, conforme se consignou no acórdão recorrido, a um acordo mediante o qual a autora cedeu à ré determinada área de negócio, tal não justifica a conclusão de que se está diante de uma relação contratual completamente distinta conforme se assinalou, erroneamente, em sede do decidido.

11). Tendo ignorado a indicada amplitude inerente à noção de serviços de consultoria em sistemas de informação, excluindo do seu âmbito um acordo que se coaduna com a extensão que aqueles serviços assumem, o acórdão recorrido incorreu num erro de julgamento.

12). Tendo acolhido uma leitura reducionista da causa de pedir enunciada pela Autora em sede do seu requerimento injuntivo, ignorando o seu âmbito mais alargado, com amparo e sustento suficiente no seu texto, o acórdão recorrido incorreu num erro de julgamento.

13). O erro de julgamento incorrido em sede do acórdão recorrido consubstancia, fundamentalmente, um error juris, não correspondendo o decidido à realidade ontológica e normativa emergente dos autos.”

8. A Ré contra-alegou:

“A. A causa de pedir da presente ação radica numa relação contratual assente na prestação de “serviços de consultoria em sistemas de informação, porém, a fatura n.º 1 diz respeito a relação contratual distinta da alegada pela ora Recorrente/autora no requerimento inicial e, portanto, alheia à causa de pedir invocada.

B. Não pode considerar-se provado que a Recorrente prestou à Recorrida, nos termos acordados, os serviços discriminados na fatura n.º 1.

C. Termos em que o Acórdão recorrido procedeu à alteração de matéria de facto, alterando a redação do ponto 2.10 dos factos provados, aditando ao elenco de factos não provados um novo ponto 7 e suprimindo ao elenco de factos não provados o ponto 4.

D. Nos termos e para os efeitos dos artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 2, ambos do CPC não poderá este Venerando Supremo Tribunal de Justiça intervir no sentido de alterar a decisão proferida pelo Tribunal da Relação no respeitante à matéria de facto, pois que tal foi objeto de recurso por parte da Recorrente.

E. Assim, sendo matéria assente que - a fatura identificada com a referência f6 do ponto 2.7. diz respeito a serviços prestados pela autora à ré, e resultou não provado a “alegada” falta de pagamento da referida fatura, é o quanto se julga suficiente para se determinar pela improcedência do presente recurso.

F. Pois em virtude da matéria de facto fixada nunca poderá este Venerando Tribunal decidir pela condenação da Recorrida, sob pena de nulidade do mesmo.

G. Acresce que a Recorrente não requereu a alteração da causa de pedir, no sentido de alterar a causa da emissão da fatura em apreço, passando a justificá-la pela outorga do contrato invocado pela ora Recorrida na sua oposição.

H. Ademais a celebração do contrato em causa não se enquadra no âmbito definido no artigo 3º do referido DL n.º 62/2013, dado que o negócio descrito não se cinge a um fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração.

I. A transmissão do negócio designado como “Transmissão SAP BI” ao contrário do alegado pela Recorrente, foi sim negócio com um escopo único, particular e pontual, não enquadrável nos “serviços de consultoria”, tal como descritos no próprio requerimento de injunção da Recorrente.

J. Mas mais, não decorre da atividade comercial (entenda-se do seu objeto social) da própria Recorrente - a venda de negócios/ativos, cfr. facto provado 2.1.

K. Diga-se ainda, que o DL n.º 62/2013, de 10 de Maio, visa somente ações que normalmente se revestem de grande simplicidade, e o respetivo regime legal não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade como ocorre in casu num contrato de compra e venda de determinado negócio.

L. Face ao exposto, a Recorrida não pode deixar de pugnar pela manutenção do acórdão recorrido dado que este corresponde a uma decisão rigorosa e bem fundamentada quanto aos factos e ao direito.”

9. O recurso foi assim admitido no tribunal recorrido:

“Por estar em tempo, incidir sobre decisão recorrível, e assistir legitimidade à recorrente, admite-se o presente recurso, que é de revista, a subir nos autos, e com efeito meramente devolutivo (arts. 627º, 629º, nº 1, 631º, 638º, nº 1, 671º, nº 1, 674º, 675º, nº 1, e 676º, nº 1, todos do CPC).

Notifique.

Oportunamente, subam os autos, com as cautelas usuais ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação
De Facto
10. Factos provados

1. A requerente é uma sociedade que tem por objecto a consultoria e desenvolvimento de projetos e cedência de recursos especializados em negócios, gestão e programação informática nas áreas de business intelligence, performance management e mobilidade, pertencente ao grupo de empresas denominado “Grupo LCG”, grupo esse que tem como sociedade mãe a sociedade LCG – Consultoria, SA.

2. A sociedade LCG – Consultoria, SA. foi detentora de 79% da requerida, então designada “Procensus – Consultores em Sistemas de Informação, S.A.”, sendo que, por esse motivo, a Requerida, agora denominada “Brighten, S.A.”, integrou o grupo de empresas no qual se insere a Requerente, o “Grupo LCG”.

3. A LGC – CONSULTORIA, SA cedeu as ações que detinha na PROCENSUS – CONSULTORES EM SISTEMAS DE INFORMAÇÃO, SA, tendo deixado de participar no capital da R. em 26.10.2015.

4. Por força da integração da requerida no “Grupo LCG” e no plano dos contratos e acordos que regularam as relações comerciais entre as empresas que o compunham, as sociedades pertencentes ao indicado grupo prestaram serviços entre si de forma recíproca.

5. No âmbito das relações comerciais estabelecidas entre as sociedades integrantes do referido “Grupo LCG”, a Requerente e a Requerida acordaram que a primeira lhe prestaria serviços de consultoria em sistemas de informação.

6. No âmbito do acordo acima indicado, obrigou-se a Requerente a prestar à Requerida os já referidos serviços de consultoria em sistemas de informação, obrigando-se a Requerida a pagar-lhe, nos termos acordados, o correspetivo preço.

7. A Requerente emitiu as faturas a seguir discriminadas:

1. A fatura com o número 2, datada de 30/04/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 9.526,68;

2. A fatura com o número 3, datada de 30/04/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 22.390,70;

3. A fatura com o número 4, datada de 30/04/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 4.779,36;

4. A fatura com o número 5, datada de 26/05/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 2.263,63;

5. A fatura com o número 6, datada de 31/07/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 5.348,18;

6. A fatura com o número 1, datada de 28/04/2015 e com vencimento na mesma data € 55.350,00.

8. Em 29 de Abril de 2015, pelos serviços prestados pela autora a ré efectuou ainda o pagamento da quantia correspondente a € 1.971,92 (mil novecentos e setenta e um euros e noventa e dois cêntimos).

9. No âmbito da prestação recíproca de serviços entre a autora e ré, a ré emitiu, por serviços prestados a clientes, pagos por estes, e serviços pagos à própria autora a:

• Fatura n.º 7, emitida em 01-09-2015 e vencida em 31-10-2015, no valor de € 546,74 (quinhentos e quarenta e seis euros e setenta e quatro cêntimos).

• Fatura n.º 8, emitida em 30-04-2015 e vencida na mesma data, no valor de € 10.864,69 (dez mil, oitocentos e sessenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos).

• Fatura n.º 9, emitida em 29-05-2015 e vencida em 28-07-2015, no valor de € 492,96 (quatrocentos e noventa e dois euros e noventa e seis cêntimos).

• Fatura n.º 10, emitida em 30-06-2015 e vencida em 29-08-2015, no valor de € 1.038,17 (mil e trinta e oito euros e dezassete cêntimos).

• Fatura n.º 11, emitida em 29-05-2015 e vencida em 28-07-2015, no valor de € 2.194,91 (dois mil, cento e noventa e quatro euros e noventa e um cêntimos).

• Fatura n.º 12, emitida em 27-04-2015 e vencida em 26-06-2015, no valor de € 2.464,81 (dois mil, quatrocentos e sessenta e quatro euros e oitenta e um cêntimos).

• Fatura n.º 13, emitida em 30-07-2015 e vencida a 28-09-2015, no valor de € 1.020,10 (mil e vinte euros e dez cêntimos), num total de 18.622,38 €.

10. A autora prestou à ré, nos termos acordados, os serviços discriminados nas faturas identificadas com as referências f1 a f5 do ponto 2.7., pelo preço e remuneração delas constantes

11. As faturas em f. foram remetidas à ré, através de correio eletrónico, sempre com conhecimento dos seus administradores, os Senhores AA e BB.

11. Factos não provados

4. 2

5. Em 27 de Fevereiro de 2015, pelos serviços prestados pela autora à ré, esta efetuou o pagamento da quantia de 4.070,82€.

6. A autora, para regularizar os valores indicados em h., entregou à ré a quantia de 16.066,40€.

7. A fatura identificada com a referência f6 do ponto 2.7. diz respeito a serviços prestados pela autora à ré.

De Direito

12. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

De acordo com as conclusões do recurso a questão única é a de saber se a decisão recorrida errou ao excluir da causa de pedir uma fatura, relativa a um negócio de compra e venda de um negócio.

13. Entrando na análise da questão suscitada no recurso.

Eis a posição do Tribunal da Relação de Lisboa: (transcrição)

“Sobre tal matéria expendeu o Tribunal a quo o seguinte:

Pretende a autora obter o pagamento da quantia a que se arroga como contrapartida dos serviços prestados à ré.

Como é sabido a existência de tipos contratuais legais, de catálogos de modelos contratuais consignados na lei e aí regulamentados de modo tendencialmente completo, ou pelo menos suficiente, suscita a questão da qualificação dos contratos que são celebrados na vida de uma relação estabelecida entre duas ou mais partes. A qualificação de um contrato como deste ou daquele tipo tem consequências determinantes no que respeita à vigência da disciplina que constituiu o modelo regulativo do tipo.

Feitas estas considerações cumpre qualificar o contrato celebrado entre autora e ré como sendo de prestação de serviço - art.º 1154º do Código Civil.

Segundo a definição legal contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição, não divergindo, aliás, as partes acerca deste ponto.

Nos termos do disposto no artigo 406°, n° 1 do Cód. Civil, "O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei ".

Incidindo sobre o contraente faltoso a presunção de culpa, terá que ser ele a demonstrar que o não cumprimento não depende de culpa sua – art.º 798º do CCivil.

Perante a prova de que a autora prestou os serviços discriminados nas facturas elencadas sob o ponto 2.7. do elenco dos factos provados, não tendo a ré logrado infirmar aquela presunção, já que julgar procedente por provada a pretensão da autora.

A quantia devida pela ré à autora, nos termos do disposto nos art.ºs 804º e 805º/1/2/a), ambos do CCivil e 102º § 3º do CComercial, vence juros de mora, à taxa devida às sociedades comerciais, contados da interpelação ocorrida na data de vencimento constante de cada uma das facturas.

No tocante ao pedido reconvencional, não tendo a autora posto em crise terem sido prestados os serviços enunciados nas facturas indicadas em 2.9. e face à ausência de prova de que a autora entregou à ré a quantia peticionada, contra a reconvinda há-de ser julgada o pedido reconvencional, sendo devida pela autora a importância peticionada de 18.622,38€.

Todavia, considerando que a ré apenas reclamou na oposição (06.09.2022) as facturas (2.9.) vencidas nos dias 30.04.2015, 26.06.2015, 28.07.2015, 29.08.2015, 28.09.2015 e 31.10.2015, de acordo com o previsto no art.º 310º/d) do Código Civil, consideram-se prescritos os juros vencidos para além dos últimos cinco anos.”

Como bem aponta o Tribunal a quo, da factualidade provada resulta que autora e ré prestaram uma à outra serviços, mediante contrapartida em dinheiro, o que justifica plenamente o enquadramento jurídico constante do trecho supratranscrito.

Não obstante, em consequência da alteração da decisão sobre matéria de facto, o valor global dos créditos que a autora detém sobre a ré, relativos ao preço dos serviços que lhe prestou, e que corresponde à soma dos montantes inscritos das faturas f1 a f5 referidas no ponto 2.7 dos factos provados é de € 44.344,55, acrescendo juros de mora, nos termos determinados na sentença apelada.

Com efeito, conforme se expôs no ponto 3.2.2., a fatura f6 referida no ponto 2.7 dos factos provados diz respeito a uma relação contratual que nada tem que ver com prestação de serviços, sendo por isso alheia à causa de pedir da presente ação.

Nesta conformidade, embora por motivos algo diversos dos alegados pela apelante, assiste razão à apelante quando sustenta não dever ser condenada (no âmbito da presente ação) a pagar à apelada a quantia titulada pela mencionada fatura.

Não obstante, ao valor global de € 44.344,55 importa deduzir o pagamento parcial a que se reporta o ponto 2.8 dos factos provados, no valor de € 1.971,92, efetuado em 29-04-2015.

Como é sabido, nos termos do disposto no art. 785º do CC, os pagamentos parciais devem ser imputados em primeiro lugar nos juros de mora só depois no capital.

Porém, no caso vertente as faturas que titulam a quantia de € 44.344,55 ou seja, as faturas f1 a f5 referidas no ponto 2.7 foram todas emitidas em data posterior àquela em que ocorreu o pagamento parcial supramencionado3.

Assim, e porque este pagamento parcial foi efetuado antes de a ré incorrer em mora, nos termos do disposto no art. 784º, nº 2 do CC deve o mesmo ser totalmente imputado no capital relativo às faturas mais antigas, isto é, ao valor global das faturas referidas f1 a f3, emitidas em 30-04-2015.

Deve pois a ré ser condenada a pagar à autora a quantia de € 42.372,63 acrescida de juros de mora, nos termos determinados na sentença apelada, mas devendo imputar-se o pagamento parcial efetuado pela ré na liquidação parcial do valor global das faturas mais antigas, ou seja as identificadas como f1 a f3 do ponto 2.7 dos factos provados.

A finalizar, cumpre ressalvar que muito embora a ré tenha deduzido reconvenção apenas para o caso de a exceção de compensação não proceder, o certo é que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a referida exceção, nem operou a compensação de créditos como consequência da reconvenção.

Contudo, a ré não recorreu da sentença, conformando-se com a preterição desta questão, e a autora também não suscitou a mesma questão, nem sequer abrangeu no seu recurso a matéria da reconvenção, assim limitando o objeto da presente apelação.

Daí que não haja que apreciar nesta sede a questão da compensação de créditos, seja enquanto exceção perentória, seja no âmbito da reconvenção.

Conclui-se, assim, pela parcial procedência da presente apelação.”

(fim da transcrição)

A questão suscitada pela A./recorrente prende-se com um erro de julgamento relativo à identificação da causa de pedir na injunção. Em sua opinião, todas as facturas que emitiu e enviou à Ré eram enquadráveis no regime jurídico da injunção – e no regime das transacções comerciais entre empresas, por serem prestações de serviços realizados pela A. em favor da Ré, e que esta não pagou, nos prazos devidos.

A ré, por seu turno, pugnou sempre pela separação entre os serviços prestados pela A. a si e a realização de um outro negócio distinto, que estaria na origem da fatura f6 referida no ponto 2.7 dos factos provados, por entender que a mesma diz respeito a uma relação contratual que nada tem que ver com prestação de serviços, sendo por isso alheia à causa de pedir da presente acção.

Na sentença o tribunal não acolheu a retensão da Ré, mas no Tribunal da Relação, juntamente com a impugnação da matéria de facto, a questão foi apreciada e o tribunal concluiu que, na verdade, a referida fatura f6 não devia ser tida em consideração no âmbito da injunção, por não respeitar à mesma causa de pedir, e por não ter havido ampliação da mesma.

A situação está devidamente explicitada, nos contornos fácticos e jurídicos, no acórdão recorrido, conforme houve oportunidade de transcrever já.

Este tribunal concorda com a posição assumida pelo Tribunal recorrido, pelos motivos aí indicados e que aqui se repetem:

“tendo a autora, no requerimento inicial, estruturado a causa de pedir da ação na prestação de serviços à ré, e tendo esta sustentado que a fatura suprarreferida não dizia respeito a serviços prestados pela autora à ré, mas a um negócio diverso, não requereu a alteração da causa de pedir, no sentido de alterar a causa da emissão da fatura em apreço, passando a justificá-la pela outorga do contrato invocado pela ré na oposição. Nessa medida, o alegado pagamento da mesma fatura constitui um facto alheio à causa de pedir da ação, não tendo interesse para a decisão da causa.

Por essa razão, a factualidade constante do ponto 4. dos factos não provados não tem qualquer utilidade para a apreciação do mérito da causa e da apelação, razão pela qual se determina a sua supressão.”

Assim, não se indica que a fatura em causa não pudesse ser sujeita ao regime das transacções comerciais, mas apenas que, atenta a causa de pedir indicada pelo A., não o foi, tendo sido integrada numa prestação de serviços, que não corresponde, claramente, ao negócio em causa.

As normas legais aplicáveis, confirmam o entendimento indicado.

São elas:

DL n.º 269/98, de 01 de Setembro - Injunção

Artigo 7.º - Noção

Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.

Artigo 10.º - Forma e conteúdo do requerimento

1 - O modelo de requerimento de injunção é aprovado por portaria do Ministro da Justiça.

2 - No requerimento, deve o requerente:

a) Identificar a secretaria do tribunal a que se dirige;

b) Identificar as partes;

c) Indicar o lugar onde deve ser feita a notificação, devendo mencionar se se trata de domicílio convencionado, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º do diploma preambular;

d) Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão;

e) Formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas;

f) Indicar a taxa de justiça paga;

g) Indicar, quando for caso disso, que se trata de transação comercial abrangida pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, na sua redação atual, ou pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio;

h) Indicar o seu domicílio;

i) Indicar o endereço de correio electrónico, se o requerente pretender receber comunicações ou ser notificado por este meio;

j) Indicar se pretende que o processo seja apresentado à distribuição, no caso de se frustrar a notificação;

l) Indicar o tribunal competente para apreciação dos autos se forem apresentados à distribuição;

m) Indicar se pretende a notificação por solicitador de execução ou mandatário judicial e, em caso afirmativo, indicar o seu nome e o respectivo domicílio profissional;

n) Indicar, tratando-se de contrato celebrado com consumidor, se o mesmo comporta cláusulas contratuais gerais, sob pena de ser considerado litigante de má-fé;

o) Assinar o requerimento.

DL n.º 62/2013, de 10 de Maio

Artigo 3.º - Definições

Para efeitos do presente diploma, entende-se por:
a) «Atraso de pagamento»

b) «Transação comercial», uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração;

….

Artigo 10.º - Procedimentos especiais

1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.
2 - Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
4 - As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.
O requerimento de injunção da A. que consta dos autos indica (sublinhado nosso):

1. A Requerente é uma sociedade que tem por objecto a consultoria e desenvolvimento de projectos e cedência de recursos especializados em negócios, gestão e programação informática nas áreas de business intelligence, performance management e mobilidade.

2. A Requerente é uma sociedade pertencente ao grupo de empresas denominado “Grupo LCG”, grupo esse que tem como sociedade mãe a sociedade LCG – Consultoria, SA.

3. A sociedade LCG – Consultoria, SA. foi detentora de 79% da Requerida, então designada de “Procensus – Consultores em Sistemas de Informação, S.A.”, sendo que, por esse motivo, a Requerida, agora denominada “Brighten, S.A.”, integrou o grupo de empresas no qual se insere a Requerente, o “Grupo LCG”.

4. Por força da integração da Requerida no “Grupo LCG” e no plano dos contratos e acordos que regularam as relações comerciais entre as empresas que o compunham, as sociedades pertencentes ao indicado grupo prestaram serviços entre si de forma recíproca.

5. Nos termos do quanto antecede, e no âmbito das relações comerciais estabelecidas entre as sociedades integrantes do referido “Grupo LCG”, a Requerente e a Requerida acordaram que a primeira lhe prestaria serviços de consultoria em sistemas de informação.

6. Efectivamente, no âmbito do acordo acima indicado, obrigou-se a Requerente a prestar à Requerida os já referidos serviços de consultoria em sistemas de informação, obrigando-se a Requerida a pagar-lhe, nos termos acordados, o correspectivo preço.

7. No plano do acima descrito relacionamento comercial interempresas, a Requerente prestou à Requerida, nos termos acordados, os indicados serviços, tendo, consequentemente, a título de preço e de remuneração dos mesmos, emitido e remetido à Requerida as suas facturas a seguir discriminadas:

7.1. A factura com o número 1, datada de 28/04/2015 e com vencimento na mesma data € 55.350,00;

7.2. A factura com o número 2, datada de 30/04/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 9.526,68;

7.3. A factura com o número 3, datada de 30/04/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 22.390,70;

7.4. A factura com o número 4, datada de 30/04/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 4.779,36;

7.5. A factura com o número 5, datada de 26/05/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 2.263,63;

7.6. A factura com o número 6, datada de 31/07/2015 e com vencimento na mesma data, no montante de € 5.348,18;

8. As acima referidas facturas foram remetidas à Requerida, mediante correio electrónico, sempre com conhecimento dos seus administradores, os Senhores AA e BB.

9. Sucede, porém, que a Requerida, apesar de ter beneficiado dos serviços que lhe foram prestados pela Requerente e de não ter deduzido qualquer oposição, reparo ou reclamação relativamente às facturas emitidas pela Requerente, não lhe pagou, nem data do seu vencimento, nem posteriormente, nenhum dos acima indicados montantes.

10. Pelo indicado motivo, continua nesta data a Requerida a ser devedora à Requerente da contrapartida económica ajustada para os serviços que lhe foram prestados e que totaliza o montante de € 99.658,55, valor correspondente à soma do valor expresso nas acima indicadas facturas.

11. A prestação de serviços acordada entre a Requerente e a Requerida traduz-se num contrato de prestação de serviços de consultoria em sistemas de informação, sendo que os serviços prestados pela Requerente à Requerida consubstanciam uma “transação entre empresas destinada à prestação de serviços contra remuneração”, constituindo assim, nos termos do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio, uma “transação comercial”.

12. Nos termos do acima referenciado diploma legal constitui “atraso de pagamento” qualquer falta de pagamento do montante devido no prazo fixado.

13. Determina o artigo 4.º do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio que os juros aplicáveis aos atrasos de pagamentos das “transações comerciais” entre empresas são os estabelecidos no Código Comercial, sendo que em caso de atraso de pagamento, o credor tem direito a juros de mora, sem necessidade de interpelação, a contar do dia subsequente à data de vencimento.

14. Nos termos do quanto antecede, ao montante acima indicado de € 99.658,55 acrescem juros de mora vencidos, calculados à taxa supletiva legal prevista para os juros comerciais, desde a data do vencimento de cada uma das acima identificadas facturas até à presente data, totalizando o montante de € 49.799,46.

15. Em resultado do quanto antecede, é a Requerida devedora à Requerente do montante global de € 149.458,01 (cento e quarenta e nove mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e um cêntimo), valor que corresponde à soma do capital em dívida (€ 99.658,55) e dos juros de mora vencidos (€ 49.799,46), a que acrescem os juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.”

E na oposição da Ré:

36.º Analisando em especial o valor peticionado na fatura n.º 1 (€ 55 350,00), apesar da parca descrição realizada pela A., foi possível apurar que tal fatura, peticionada pela A., encontra-se totalmente paga, pois corresponde ao pagamento do preço pelo contrato de compra e venda, que se junta como Doc. 7, e respetivo comprovativo de pagamento que se junta Doc. 8, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

37.º A A. era detentora da área de competência SAP BI no Grupo “LCG”, tendo celebrado com a R. em abril de 2015, o referido contrato de compra e venda no qual cedeu essa sua área de competência à R.

38.º Tal como descrito na primeira cláusula do citado contrato o mesmo teve por objeto “a transmissão da área de competência associada à tecnologia Business Intelligence/Reporting em produtos/Tecnologias chancela SAP da Vendedora”.

39.º Ficando ainda estabelecido que pela compra de tais serviços, a R. pagaria à A. o preço de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), cujo valor com IVA totaliza o valor da fatura n.º 1, no valor de € 55.350,00.

40.º Serviço que a R. pagou à A. no dia 12 de maio de 2015 – cfr. Doc. 8.”

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Julho de 2025

Relatora: Fátima Gomes

1º adjunto: Nuno Pinto Oliveira

2º adjunto: Arlindo Oliveira

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1. Mantendo o do acórdão recorrido, na parte que releva.↩︎

2. Suprimido. Mantém-se aqui a referência, para manter a coerência da numeração que resulta da sentença e do acórdão do TRL.↩︎

3. com efeito, a mais antiga das mencionadas faturas foi emitida em 30-04-2015.↩︎