ENERGIA ELÉTRICA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PARTES
MODIFICAÇÃO
NOVAÇÃO
REQUISITOS
FIM CONTRATUAL
OBJETO NEGOCIAL
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
PRESTAÇÃO
EXTINÇÃO DO CONTRATO
CADUCIDADE
LEI ESPECIAL
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
ALTERAÇÃO
Sumário


I – Quer a reestruturação, por imperativo legal, da EDP, quer as sucessivas alterações legislativas introduzidas no DL 198/88, quer as decorrentes do DL 29/2006 e do DL 172/2006, não produziram qualquer efeito extintivo/constitutivo – qualquer efeito novatório – no designado “contrato de compra de energia elétrica” celebrado em 02/12/1992, no âmbito do DL 198/88: foram-lhe provocando modificações, designadamente ao nível da respetiva titularidade – passando a posição contratual de compradora da EDP SA para a EDP Distribuição e, depois, para a EDP Serviço Universal, S.A. (agora denominada SU Eletricidade) – mas tal relação contratual manteve-se continuamente vigente.
II – A circunstância de a EDP Serviço Universal, SA exercer apenas as atividades associadas ao seu estatuto de CUR (Comercializador de Último Recurso) não produziu, em 01/01/2007 (data da entrada em vigor do DL 29/2006 e do início da sua atividade como CUR), a extinção do referido contrato e a constituição de um novo contrato de compra de energia tendo como contraparte a aqui R..
III – O facto de a EDP Serviço Universal, SA, como CUR, exercer funções diversas da exercida pela primitiva parte da A. não constitui fator indiciário de novação: havia sido no âmbito da atividade de comercialização da energia, prevista no DL 189/88 desde que foi admitida a produção independente de energia, que também havia sido celebrado o contrato de 02/12/1992.
IV – Embora o dever legal de negociação (comprar energia elétrica a preços bonificados aos produtores independentes por parte da EDP Serviço Universal), passasse a decorrer, a partir de 01/01/2007, do DL 29/2006, a causa da obrigação de aquisição de energia já vinha do contrato celebrado em 02/12/1992, o qual passou a integrar a esfera jurídica da nova sociedade, criada por força da reestruturação do setor elétrico.
V – A separação das várias atividades que compõem o setor elétrico (presente em vários preceitos do DL 29/2006), garantida através da autonomia jurídica (e patrimonial) dos sujeitos em causa, não permite concluir no sentido de um efeito novatório das obrigações e/ou afirmar que à separação de atividades presidiu um intuito extintivo e constitutivo ex novo: a compra de energia a produtores independentes em regime especial era uma atividade que existia desde o DL 189/88 e que se manteve, sem qualquer rutura ou descontinuidade do vínculo obrigacional, com o DL 29/2006.
VI – Tendo a vendedora, a partir de 09/02/2018, deixado de ter direito a tal regime especial (ao direito a que a EDP Serviço Universal lhe adquirisse energia mediante uma remuneração bonificada), passando para o “regime de mercado”, não se retira que o objeto do contrato tenha deixado de existir: o “quid” sobre que incidem os efeitos do negócio é a eletricidade, que constitui por isso o seu objeto, o qual não deixou de existir.
VII – Mas estando a EDP Serviço Universal, como CUR, sujeita a um regime que não lhe permite adquirir eletricidade “livremente” – designadamente, a partir da prorrogação ou da renegociação dos contratos com produtores que hajam saído do regime especial – mas apenas nos termos regulados nos arts 49.º/2 DL 29/2006 e 52.º/2 do DL 172/2006, tal significa e configura, quanto ao seu impacto jurídico no contrato iniciado em 02/12/1992, uma impossibilidade superveniente da prestação/obrigação da EDP Serviço Universal (art. 790.º/1 do C. Civil).
VIII – Efetivamente, se a EDP Serviço Universal, como CUR, em razão das regras/condições estabelecidas pelos arts. 49.º/2 do DL 29/2006 e 52.º/2 do DL 172/2006, deixou de poder adquirir eletricidade por mera “negociação particular”, ficou impossibilitada pela lei – isto é, por razão que não lhe é imputável – de cumprir a sua prestação que, no contrato em causa, se traduzia justamente na aquisição e pagamento do preço da eletricidade.
IX – E se, num contrato sinalagmático, uma das partes não pode realizar a sua prestação, fica a contraparte desobrigada da prestação (cfr. art. 795.º/1 do C. Civil), extinguindo-se o contrato por caducidade, na medida em que a cessação do contrato decorre de um facto jurídico não dependente de uma declaração de vontade, ou seja, o vínculo contratual não cessa por força de uma vontade emitida com essa finalidade, mas ipso facto.

Texto Integral


Processo nº 26690/21.2.T8LSB.L1.S1

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Exploração Agro-Pecuária Pinto Triunfante de Vale Cambra, Ld.ª intentou ação declarativa com processo comum contra SU Eletricidade, S.A., pedindo que a R. seja condenada a:

a) Indemnizar a Autora pelo incumprimento do contrato e a pagar-lhe a quantia de € 132.631,02, acrescida dos juros vincendos calculados desde a citação até integral pagamento; ou, caso assim não se entenda,

b) A título subsidiário, pelo enriquecimento sem causa, condenada a pagar à Autora a quantia de € 132.631,02, e dos juros vincendos calculados desde a citação até integral pagamento.

Alegou para tal, em síntese, que:

Construiu e obteve a licença de exploração de uma Central Hidroelétrica, tendo em 02/12/1992, no âmbito do DL 189/88, celebrado com a então EDP – Eletricidade de Portugal, S.A. um contrato de compra de eletricidade, nos termos do qual a A. ficou obrigada a injetar na rede pública toda a eletricidade produzida na sua Central Hidroelétrica, enquanto a EDP ficou obrigada a comprar toda a eletricidade ali produzida, mediante o pagamento de uma tarifa garantida (enunciada no referido do D.L. 189/88).

A execução de tal contrato de compra e venda de eletricidade desenvolveu-se ao longo dos anos sem quaisquer anomalias (tendo a tarifa/remuneração da A. sofrido alterações decorrentes de alterações legislativas e tendo a R. sucedido à EDP-Eletricidade de Portugal como contraparte da A.), até que, na sequência das alterações legislativas operadas pelo DL 35/2013, foi a A. notificada pela DGEG, em julho de 2017, que a Central Hidroelétrica da A. passava para “regime de mercado” a partir do dia 9/2/2018.

Sucede que a produção da Central Hidroelétrica da A. não tem expressão significativa para ser remunerada em regime de mercado, o que inviabilizou que qualquer empresa tivesse interesse na aquisição da eletricidade que produzia, razão pela qual a A., em 16/2/2018, informou a DGEG que continuava a injetar eletricidade na rede e solicitou que fosse ordenada a remuneração dessa mesma eletricidade.

Sendo o pagamento desta eletricidade injetada na rede – no período compreendido entre 09/02/2018 e 24/04/2019, no valor total de 2.305.023 KWh – que a A. vem exigir da R..

A R. contestou.

Confirmou o contrato de 02/12/1992 e a obrigação de comprar toda a eletricidade produzida pela A. segundo um regime garantido de preço bonificado; invocando que, fruto de alterações legislativas ocorridas em 2006 e 2013 e da consequente passagem da A., a partir do dia 9/2/2018, para “regime de mercado”, a relação contratual existente entre as partes cessou, dado que a R. ficou legalmente impedida de adquirir “em regime de mercado” a eletricidade produzida pela A. (uma vez que a R. apenas podia atuar no mercado regulado).

Mais alegou que nunca deu qualquer indicação à A. de que iria adquirir a eletricidade produzida após 9/2/2028 e/ou que a A. deveria continuar a injetar na rede a eletricidade que produzisse, eletricidade essa, injetada na rede pela A., que não foi comercializada pela R., que com a mesma não teve qualquer enriquecimento (até porque não aufere qualquer rendimento da compra e venda de eletricidade).

E, concluindo, “pediu”.

a) Deverá ser julgado improcedente o pedido formulado afinal da petição inicial sob a alínea a); e

b) Deverá ser julgada procedente a exceção de prescrição do direito de restituição fundado em enriquecimento sem causa, ou caso assim não se entenda, deverá ser julgado improcedente o pedido formulado a final da petição inicial sob a alínea b);

A A. exerceu o contraditório quanto à matéria de exceção constante da contestação.

Foi designada audiência prévia e no âmbito desta foi proferido despacho saneador – que declarou a instância regular, estado em que se mantém – identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Foi realizada a audiência final, após o que foi proferida sentença onde a ação foi julgada totalmente improcedente, sendo a R. absolvida dos pedidos formulados pela A..

Inconformada com tal decisão, dela interpôs a A. recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação de Lisboa de 13/02/2025, foi julgado procedente e, em consequência, revogando-se a sentença proferida,condenou‑se a R. a pagar à A. a quantia de € 123.157,38 (cento e vinte e três mil cento e cinquenta e sete euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal supletiva, contados desde a citação e até integral pagamento”.

Agora inconformada a R., visando a revogação de tal Acórdão da Relação e a repristinação do decidido pela 1.ª Instância, interpõe a presente revista.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1.ª Nos termos do artigo 671.º, n.º 1 e n.º 3 a contrario, do CPC, é admissível recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão Recorrido, ao que acresce que estão verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso previstos no artigo 629.º, n.º 1, do CPC (o valor da causa – 132.631,02 € – é superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação e o Acórdão Recorrido condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 123.157,38, pelo que é desfavorável à Recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal da Relação), pelo que o presente Recurso deve ser admitido como revista comum, nos termos dos artigos 629.º, n.º 1, e 671.º, n.º 1 e n.º 3 a contrario, do CPC.

2.ª A obrigação da Recorrente de adquirir enquanto CUR a energia produzida e injetada na rede pela Recorrida encontrava a sua fonte no Decreto-Lei n.º 29/2006 (designadamente, no artigo 44.º, n.º 2, alínea a)).

3.ª Sendo certo que a Recorrida já antes vendia a sua energia no quadro de um regime especial, tendo celebrado em 1992 um contrato com a EDP – Eletricidade de Portugal, S.A. para esse efeito, certo é também que a citada obrigação legal resultante do Decreto-Lei n.º 29/2006 tinha uma identidade distinta da obrigação que vigorava anteriormente.

4.ª Por um lado, mudou o sujeito comprador: além de mudar a pessoa do comprador, a Recorrente passou a adquirir a energia, não enquanto entidade responsável pela rede pública (qualidade por referência à qual o Decreto-Lei n.º 189/88 identificava o comprador e que a Recorrida não possui), mas enquanto CUR no quadro de um setor elétrico profundamente reformado.

5.ª Por outro lado, a obrigação de compra do CUR encontrava a sua fonte no Decreto-Lei n.º 29/2006, que é obviamente uma fonte distinta da que sustentava a obrigação de compra a que se referia o citado contrato de 1992.

6.ª Por último, milita no mesmo sentido uma das linhas fundamentais subjacente à reforma legislativa de 2006 (na qual se inscreveu o citado diploma), que consistiu na separação jurídica das atividades, incluindo a separação da atividade de comercialização de último recurso (que incluía a compra da energia à Recorrida) de quaisquer outras atividades.

7.ª Assim, a nova obrigação criada pelo Decreto-Lei n.º 29/2006 implicou a substituição do vínculo constituído através do citado contrato de 1992 por um novo vínculo, verificando-se, pois, por força dos citados diplomas legais, um efeito novatório (uma novação legal).

8.ª Não se assistiu a uma simples extinção da obrigação de compra a que respeitava o contrato celebrado em 1992 (no sentido de uma extinção que não fosse acompanhada de uma nova obrigação em substituição da primeira), conducente a uma cessação fáctica da venda de energia em termos bonificados pela Recorrente; houve antes lugar a uma novação legal que, envolvendo tecnicamente a extinção da obrigação anterior, implicou também a substituição dessa obrigação por uma obrigação nova, cuja identidade não se confunde com a da primeira(cf.artigos857.º a 862.º do Código Civil).

9.ª Tendo a obrigação de compra do CUR uma fonte legal, e tendo o Decreto-Lei n.º 35/2013 determinado a extinção dessa fonte com o decurso de certos prazos (cf. artigo 3.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2), a obrigação da Recorrente de adquirir a energia produzida e injetada na rede pela Recorrida cessou em 08.02.2018, dia em que, no caso da Recorrida, terminou o referido prazo.

10.ª Tendo cessado a fonte da obrigação legal de compra da energia e de remuneração da mesma pela Recorrente, cessou naturalmente também a referida obrigação desta.

11.ª Neste quadro, apenas seria concebível a hipótese do nascimento de uma nova relação obrigacional se porventura tivesse havido lugar à emissão de declarações de vontade nesse sentido, o que, conforme resulta da matéria de facto dada como provada no Acórdão recorrido, não aconteceu.

12.ª Não havendo novo negócio de compra e venda, jamais poderia haver lugar a qualquer obrigação de pagamento do preço por parte da Recorrente, pelo que, ao considerar que a relação de compra e venda existente entre a Recorrente e a Recorrida se manteve apesar da transição legal da Recorrida para o regime de mercado, condenando a final a Recorrente no pagamento de um determinado valor a título de remuneração, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.

13.ª Por uma questão de cautela, importa acrescentar que, mesmo se se considerasse que não haveria ocorrido a referida novação da obrigação em virtude do Decreto-Lei n.º 29/2006, e que a obrigação de compra do CUR seria idêntica à que vigorava no contexto do contrato de 1992, e independentemente do entendimento que se adotasse a respeito da fonte desta obrigação, sempre se manteria a conclusão de que a obrigação se extinguiu em 08.02.2018 por força do decurso do prazo previsto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 35/2013.

14.ª Em primeiro lugar, resultava da lei que a obrigação de compra pelo CUR apenas vigorava enquanto os produtores em regime especial beneficiassem de uma remuneração garantida (cf., designadamente, artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 29/2006), o que no caso da Recorrida, por força do disposto na citada norma do Decreto-Lei n.º 35/2013, deixou de ser o caso a partir de 09.02.2018.

15.ª Em segundo lugar, o próprio Decreto-Lei n.º 35/2013 também confirma esta circunstância, determinando que, uma vez findo o citado prazo, a eletricidade produzida pelas centrais passa a ter de ser vendida «em regime de mercado», ou seja, vendida a um comercializador de mercado, em livre concorrência (artigo 3.º, n.º 2).

16.ª Nos termos da lei, o CUR apenas pode exercer atividades específicas que a lei associa a esse estatuto (prestação do serviço universal, operacionalização do regime da PRE bonificada), estando expressamente impedido, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 29/2006 (na redação em vigor à data da transição), de exercer quaisquer outras atividades, incluindo «outras formas de comercialização» como a comercialização em regime de mercado.

17.ª Esta exigência de exclusividade é reafirmada no enunciado da própria licença atribuída à Recorrente, constante dos presentes autos, na qual se pode ler que«[e]sta licença pressupõe o exercício em exclusivo, pelo sue titular, da atividade de comercialização de último recurso».

18.ª Além disso, verifica-se que o próprio conceito de “regime de mercado” é utilizado pelo legislador justamente em contraposição com a atividade do CUR: do n.º 4 do artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 29/2006 (na redação vigente à data da transição), p. ex., resulta claro que o CUR se distingue dos “comercializadores em regime de mercado” tendo justamente por função atuar quando estes não estejam presentes ou se encontrem impedidos.

19.ª Em terceiro lugar, a circunstância de a obrigação de compra do CUR se extinguir por força da lei, independentemente da identidade e fonte que se lhe reconheça, foi também novamente confirmada pelo legislador ao consagrar a figura legal do facilitador de mercado (através do Decreto-Lei n.º 215-A/2012), figura que é obrigada a comprar da energia oriunda da produção em regime especial com remuneração de mercado, que é justamente a situação daqueles produtores, como a Recorrida, que durante um certo período beneficiaram de uma obrigação legal de compra bonificada pelo CUR e que viram esse regime legal cessar.

20.ª Resulta claro, designadamente do texto preambular do Decreto-Lei n.º 215-A/2012, que as finalidades prosseguidas pelo legislador com a consagração desta compra obrigatória compreendiam a intenção de acautelar a situação dos produtores que, em virtude da cessação dos regimes de venda bonificada ao CUR, passariam a ter de vender a sua energia em regime de mercado – conforme, aliás, também se refere nas comunicações que a DGEG e o Gabinete do SEE dirigiu à Recorrida e que se encontram transcritas da decisão recorrida.

21.ª Uma vez que a norma legal que veio atribuir esta função provisoriamente ao CUR apenas entrou em vigor em julho de 2019, momento em que a Recorrida já teria logrado celebrar um contrato com um operador de mercado, a Recorrida já não pôde beneficiar desta solução legal.

22.ª No entanto, o que importa assinalar é que a citada inovação legislativa volta a confirmar que as relações estabelecidas entre o CUR e os produtores com remuneração garantida, como era o caso da Recorrente, se extinguiam por força da lei,comodecursodosprazosprevistosnoDecreto-Lein.º35/2013,pois, caso assim não fosse, não haveria necessidade de acautelar a situação dos produtores em causa, já que estes simplesmente manteriam a sua relação com o CUR, ainda que agora em termos não bonificados.

23.ª O que leva, aliás, a questionar: o CUR ficaria potencialmente vinculado a comprar em regime de mercado a energia ao elevadíssimo número de produtores que no passado já beneficiaram de regimes especiais bonificados ou que ainda vão transitar para o regime de mercado no futuro? Uma resposta afirmativa a esta questão conduziria evidentemente a um resultado insólito.

24.ª Em quarto lugar, importa assinalar também que a existência de uma relação jurídica bilateral em mercado entre a Recorrente e a Recorrida, após a cessação do regime legal de aquisição bonificada, sempre enfrentaria uma impossibilidade jurídica.

25.ª Uma vez que, segundo o sistema legalmente desenhado (nomeadamente, nos termos do Regulamento Tarifário), os sobrecustos associados à prestação do serviço universal são repercutidos nos consumidores através das tarifas reguladas pela ERSE, é natural que o legislador apenas tenha admitido a possibilidade de o CUR neste contexto recorrer à contratação bilateral – tipo de contratação em que, de um modo geral, a fixação do preço é deixado à autonomia das partes – mediante a verificação de pressupostos que visam garantir uma aquisição «ao menor custo possível» (cf. n.º 3 do artigo 55.º do Decreto-Lei n.º 172/2006).

26.ª Mais concretamente, a lei apenas admite a existência de um contrato bilateral se a sua celebração tenha sido precedida de um concurso (cf. alínea b) do n.º 2 do artigo 49.º do Decreto-Lei n.º 29/2006) e tenha sido previamente obtida uma autorização da ERSE (cf. alínea c) do n.º 1 do artigo 55.º do Decreto-Lei n.º 172/2006).

27.ª Assim, mesmo que se considerasse que a transição para o regime de mercado não ditou a extinção da obrigação do CUR – no que não se concede –, sempre seria necessário reconhecer que essa obrigação se teria tornado supervenientemente impossível do ponto de vista jurídico, extinguindo-se, por conseguinte, nos termos do artigo 790.º, n.º 1 do Código Civil.

28.ª Além disso, contrariam a lei os próprios moldes em que o Tribunal recorrido considerou que a relação subsistiria, na medida em que, perante a coordenada legal de contratação ao mais baixo preço possível, o vazio deixado pela cessação de um preço legal jamais poderia ser preenchido por via da convocação de referências como “preços normalmente praticados” ou “de mercado ou de bolsa” referidos no artigo 883.º do Código Civil, norma em que o Acórdão nem refere apoiar-se.

29.ª O comportamento da própria Recorrida, refletido da matéria provada, revela também um nítido reconhecimento de que a obrigação de compra do CUR se extinguiu a partir da referida data: tanto a manifestação expressa de uma vontade de contratar com a Recorrente, como a celebração de um contrato em regime de mercado, pressupõem a prévia extinção do vínculo que a unia à Recorrente.

30.ª Conclui-se, pois, que, ao considerar que a relação jurídica entre a Recorrente e a Recorrida subsistiu depois da transição desta para o regime de mercado (ou seja, a partir de 09.02.2018), o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento.

31.ª Extinguindo-se a relação jurídica de compra, é evidente que, desde logo por essa razão, não operavamos efeitos previstos no artigo 879.º do Código Civil, não houve lugar a qualquer situação de mora do credor nos termos do artigo 813.º do Código Civil (nem os seus efeitos, como o previsto no n.º 2 do artigo 815.º), não operava o princípio da pontualidade previsto no artigo 406.º nem quaisquer outras consequências que pressupusessem erradamente a subsistência da obrigação da Recorrida e que pudessem conduzir à conclusão de que a Recorrente teria de remunerar a Recorrida pela energia injetada na rede após a transição para o regime de mercado.

32.ª A visão adotada pelo Tribunal a quo sobre o quadro regulatório que envolve a atividade do CUR assenta no pressuposto errado de que a compra de energia junto dos produtores em PRE com remuneração garantida serviria para o fornecimento dos beneficiários do serviço universal.

33.ª Estamos perante duas atividades legalmente autónomas (respeitantes, aliás, políticas públicas distintas) e que, nos termos legais, têm de ser exercidas de forma separada: por um lado, o CUR adquire nos termos legal e regulamentarmente previstos a energia destinada ao fornecimento dos clientes do serviço universal; paralelamente, e em separado, adquire a energia aos produtores em regime de PRE bonificada e volta a vender essa energia (sem utilizá-la para efeitos de fornecimento aos clientes do serviço universal) – cf., designadamente, os artigos 79.º, n.ºs 2 a 4 e 7 do RRC 2014.

34.ª É também incorreto o entendimento do Tribunal a quo de que a subsistência da relação assentaria na autonomia privada e na liberdade contratual inerente ao formato jurídico-privado da pessoa do CUR: na verdade, a Recorrente apenas pode desempenhar as funções inerentes ao seu estatuto legal de CUR e encontra-se legalmente impedida de exercer comercialização em regime de mercado (cf. designadamente, artigo 47.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 29/2006).

35.ª Por outro lado, no contexto da sua atividade de CUR, a lei apenas admite a sua participação num contrato bilateral mediante a verificação dos citados pressupostos legais da prévia adoção de um concurso e da obtenção de uma aprovação prévia da ERSE, além de pressupor naturalmente a vontade do CUR nesse sentido e que essa forma de aquisição seja a mais económica possível.

36.ª O Tribunal recorrido incorreu ainda em erro de julgamento ao considerar que, caso se entendesse que com a transição para o regime de mercado a lei teria passado a impedir o CUR de remunerar a Recorrida, sempre haveria lugar a uma alteração de circunstâncias potencialmente conducente a uma renegociação dos termos da relação: na verdade, como vimos, o Decreto-Lei n.º 35/2013 determinou a cessação da relação jurídica entre a Recorrente e a Recorrida a partir de 09.02.2018, não podendo haver lugar, por conseguinte, a qualquer modificação dessa relação (ademais, a exigência legal de uma aprovação da ERSE nem sequer seria ultrapassável por via de uma renegociação entre as partes).

37.ª Pela mesma razão, mostra-se também errado o entendimento do Tribunal recorrido de que a circunstância de a energia injetada pela Recorrida na rede após a transição para o mercado não ter sido recebida e transacionada pela Recorrida (a energia em causa não foi entregue à Recorrente – cf. pontos 21, 22, 24 a 33 e 75 a 77 da matéria de facto dada como provada) configuraria uma situação de mora do credor e, por conseguinte, nos termos do n.º 2 do artigo 815.º do Código Civil, não desobrigaria a Recorrente de realizar uma contraprestação: na verdade, estando a obrigação extinta nos termos acima expostos, não houve naturalmente lugar a qualquer situação de mora nem é concebível qualquer dever de realizar uma contraprestação.

38.ª Ainda que não se mostre inteiramente claro o sentido das considerações do Tribunal a quo em torno de um suposto «competente reconhecimento» pela DGEG da obrigação de pagamento, importa salientar que: (i) a Recorrente se limitou a enviar à DGEG a informação que esta lhe solicitava, sem alguma vez reconhecer ou assumir qualquer obrigação de pagamento e que (ii) a Recorrente não recebeu qualquer indicação da DGEG no sentido de fazer qualquer pagamento à Recorrida.

39.ª Em qualquer caso, refira-se que, por força do princípio da legalidade (artigo 266.º, n.º 1, da CRP e artigo 3.º, n.º 1, do CPA), a DGEG, enquanto serviço da Administração Pública, apenas pode atuar nos termos em que a lei a habilite para tanto, inexistindo qualquer norma legal que lhe permita ordenar pagamentos desta natureza. Qualquer pronúncia da DGEG no sentido da existência de um dever de pagar, com a pretensão de possuir relevância jurídica perante a Recorrente – pronúncia que, como resulta dos autos, não existiu –, sempre seria nula (designadamente, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPA) e, por conseguinte, juridicamente improdutiva (artigo 162.º, n.º 2, do CPA) ou, no limite, ineficaz e inoponível à Recorrente nos termos do artigo 160.º do CPA.

40.ª Também não tem qualquer relevância neste contexto a referência contida na licença do CUR a uma eventual contratação prevista em despacho do Diretor-Geral da Energia e Geologia: por um lado, esta previsão apenas se refere a eventuais casos em que a lei preveja uma intervenção do Diretor-Geral nestes termos (de acordo com o princípio da legalidade, as competências administrativas são concedidas pela lei, e não podem ser criadas por ato administrativo), sendo que a lei não atribuiu à DGEG ou ao seu Diretor-Geral qualquer competência para fazer um arbitramento como o que a Recorrida pretende com esta ação.

41.ª Por outro lado, mesmo que assim não fosse, certo é que a matéria dada como provada não inclui qualquer Despacho do Diretor-Geral sobre esta matéria, demonstrando antes que a Recorrente nunca recebeu qualquer indicação nesse sentido (o que, no limite, sempre tornaria qualquer eventual despacho nesse sentido ineficaz e inoponível à Recorrente nos termos do artigo 160.º do CPA).

42.ª Finalmente, a decisão recorrida erra também quanto à escolha do valor considerado na liquidação da condenação da Recorrente, apoiando-se, sem qualquer fundamentação, nos «preços médios da energia eléctrica no mercado diário OMIE».

43.ª Com efeito, sempre seria desacertado apelar-se a valores de mercado ou de bolsa na procura de um preço para preencher um negócio jurídico cuja existência a lei apenas consente mediante garantias de que o seu preço seja particularmente baixo (a adoção de um concurso na formação do contrato conduz à contratação, não por um valor “médio” ou por um valor de bolsa, mas pelo mais baixo preço oferecido).

(…)

A A. respondeu, sustentando que o acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva e que o mesmo deve ser mantido nos seus precisos termos e a revista julgada improcedente.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

I. O douto acórdão recorrido expressa um justo e rigoroso entendimento de direito, considerando os factos dados como provados e que não mereceram qualquer oposição por parte da Ré, ora Recorrente SU Eletricidade.

II. A questão da invocada extinção do contrato celebrado em 02/12/1992, por via de uma pretensa novação legal, constitui matéria nova que não foi precedentemente resolvida quer pelo tribunal a quo, quer pela primeira instância.

III. Os recursos visam modificar decisões do tribunal a quo e não criar decisões sobre matéria que não tenha sido objeto de decisão impugnada (artigo 676, nº1 do CPC).

IV. O recurso não visa apreciar questões novas, mas tão-só reexaminar questões de facto e/ou de direito já anteriormente suscitadas pelas partes e/ou apreciadas pelo Tribunal recorrido, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso suscetíveis de apreciação pelo Tribunal da Relação. -Cfr. nesse sentido os acórdãos do STJ, de 21/1/1993, CJSTJ, ano I, tomo I, de 08/10/2020 (em que foi Relator o Juiz Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins) e ainda na doutrina Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, página 31) e Francisco Lucas Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, volume II, edição de 2019, página 463).

V. Conforme destacam, em parecer ora junto aos juntos com as presentes contra-alegações, da autoria dos Professores Doutores DIOGO COSTA GONÇALVES e FRANCISCO MENDES CORREIA, o contrato celebrado em 1992 não resultou de qualquer imposição ou obrigação legal, “antes foi celebrado enquanto instrumento de autorregulação de interesses, e os efeitos jurídico-obrigacionais constituíram-se porque e na medida em que as Partes assim os desejaram.”

VI. Nos exatos termos que foram negociados e acordados entre as partes, por um lado a Recorrente Pinto Triunfante obrigou-se a entregar a totalidade da energia elétrica produzida na central da … na rede recetora, sob determinada forma e potência (descrita na Cláusula 3.ª/1).

VII. Por outro, a EDP- Electricidade de Portugal ficou obrigada a pagar o preço da eletricidade fornecida, segundo as medições realizadas nos termos das Cláusulas 10.ª a 13.ª, e faturado nos termos da Cláusula 14.ª do Contrato.

VIII. Nem a Recorrida Pinto Triunfante estava obrigada a celebrar um contrato de compra e venda de energia elétrica com a então EDP-Electricidade de Portugal, uma vez que como produtora independente de energia, podia proceder à sua distribuição autónoma, caso estivessem verificadas as condições do artigo 26.º do DL 189/88 de 27 de Maio, e podia optar por consumir a energia produzida, no âmbito das restantes atividades económicas por si desenvolvidas.

IX. Nem à EDP-Electricidade de Portugal podia ser imposta essa vinculação contratual, uma vez que previamente existiam pontos nucleares dessa relação contratual que tinham de ser negociados entre as partes, designadamente elementos que deveriam resultar de negociação prévia e consenso entre as partes: (a) o acordo quanto às características do ramal de ligação com a rede recetora, a construir pelo produtor de energia; (b) o acordo quanto ao ponto da rede recetora onde se ligaria a extremidade do ramal construído a expensas do produtor(designado por “ponto de interligação”); (c) o acordo quanto ao equipamento de produção e respetiva potência e finalmente (d) o acordo quanto ao regime do neutro.

X. O contrato celebrado em 1992 corresponde ainda ao exercício do princípio da liberdade contratual e que à data o legislador não dispensou, nem prescindiu da negociação prévia e do consenso das partes, quanto aos pontos em aberto, e do contrato, enquanto instrumento jurídico de constituição das obrigações típicas da relação de fornecimento.

XI. Mesmo no que se refere à liberdade de estipulação, ou de conformação do conteúdo contratual, conforme assinala o parecer ora junto, muito embora a liberdade de celebração e de estipulação estivessem comprimidas, elas subsistiam dado que existiam inúmeras áreas que as partes podiam preencher livremente e para as quais impunha-se um consenso por forma a ser alcançado um acordo.

XII. Com relação ao modo de determinação do preço dessa energia entregue na rede, podemos igualmente considerar como assente que “a quantificação do preço pela eletricidade fornecida em cada período relevante far-se-ia pela aplicação de uma fórmula estabelecida por lei, e acolhida contratualmente (Cláusula 14.ª), sendo certo que, ao aceitar a fórmula legal como critério de determinação do preço, as Partes aceitaram também a sujeição a eventuais alterações que, pela mesma via legislativa, viessem a ocorrer, no futuro.” - Cfr. pág. 26 do Parecer

XIII. E embora corresponda à realidade que o preço a pagar, em cada momento, foi sendo determinado por um conjunto de regras que variou, ao longo do tempo, a verdade é que o dever de prestar constituiu-se em virtude do Contrato e subsistiu intacto até 24 de abril de 2019.

XIV. Conforme emerge dos pontos 8 e 9 da matéria provada, por cartas remetidas em 18/01/2007 (documentos 10 e 11 junto com a contestação) a EDP Distribuição e a EDP Serviço Universal comunicaram, cada uma delas, à Recorrida Pinto Triunfante a cessão da posição contratual nos termos que constam das mesmas.

XV. A EDP Distribuição na comunicação que expediu sob a refª 9/2007/CA expressamente ressalvou que “Nestes termos, o contrato celebrado com a EDP Distribuição mantém-se em vigor relativamente a esta empresa, com as devidas alterações, transmitindo-se para a EDP Serviço Universal os direitos e as obrigações relativos à aquisição de energia eléctrica, correspondente facturação e pagamento.” - Doc. nº 10 com a contestação (sublinhado nosso)

XVI. A Recorrente SU Eletricidade desconsiderou por completo um facto essencial: O regime jurídico (DL nº 29/2006 de 15 de fev.) que a Recorrente SU Eletricidade invoca agora ter determinado a extinção contrato assinado em 1992, por via de uma pretensa novação legal, já estava em vigor à data em que foi comunicada a cessão da posição contratual (18/02/2007)

XVII. Ou seja, a Recorrente SU Eletricidade remeteu uma comunicação escrita à Recorrida Pinto Triunfante a informar de ter operado a cessão da posição contratual que anteriormente pertencia à EDP - Eletricidade de Portugal e manter-se a adquirir energia a abrigo desse contrato (ambos factos provados), quando, de acordo com a argumentação ora apresentada, nessa mesma data (janeiro de 2007) tal contrato já estava extinto.

XVIII. A argumentação base da Recorrente está pois alicerçada sobre uma extraordinária contradição.

XIX. Não corresponde à realidade que a aquisição da energia que passou a operar-se a partir de 2006 pela circunstância da Recorrente SU Eletricidade ter passado a deter a qualidade de CUR.

XX. A obrigação de aquisição – e consequente pagamento–da energia elétrica produzida pela central da …, tem origem exclusiva no contrato de compra e venda de energia celebrado em 1992 entre a Recorrida Pinto Triunfante e a EDP - Electricidade de Portugal.

XXI. Se a aquisição decorria de uma imposição legal (o que não se reconhece, mas por mera cautela de patrocínio se concdede), então a Recorrente SU Eletricidade não estava obrigada a operar qualquer transmissão da posição contratual, porque teria sido suficiente invocar que, nos termos da legislação em vigor - e com efeitos contados de 01/01/2007 (data dos efeitos da concessão da licença e Comercializador de Último Recurso) - toda a energia produzida pela Recorrida Pinto Triunfante passaria para a sua esfera, uma vez que se tratava de energia gerada por produtor em regime especial, com tarifa garantida.

XXII. Em nenhuma das sucessivas alterações legislativas que ocorreram após a entrada em vigor do DL 189/88 de 27 de Maio (diploma que sustentou a celebração em 1992 do contrato de compra e venda de energia) - conforme assinalam em parecer ora junto aos juntos com as presentes contra-alegações, da autoria dos Professores Doutores DIOGO COSTA GONÇALVES e FRANCISCO MENDES CORREIA -, é feita qualquer referência aos contratos celebrados no contexto do DL 189/88 de 27 de Maio.

XXIII. Os vários diplomas que sucederam e alteraram o DL 189/88 de 27 de Maio apenas e tão só se alteraram o regime especial remuneratório da energia produzida nos termos desse regime jurídico, quer quanto ao prazo da sua aplicação, quer quanto ao modo de determinação do preço.

XXIV. As referências legais que constam do teor dos pontos 70. e 71. das alegações produzidas é da manutenção do direito do PER e da cessação da obrigação do CUR, apenas são aplicáveis quer aos casos em que os produtores não intervieram em qualquer contrato de compra e venda de energia, quer aos produtores cujos contratos já haviam cessado ou então que iniciaram a sua atividade após 2006.

XXV. No caso em apreço o que está em discussão é a manutenção de direitos e obrigações decorrentes de um contrato que as partes celebraram em 1992 e que por decisão da Recorrente SU Eletricidade, comunicada à Recorrida em 2007, foi expressamente mantido em vigor.

XXVI. A circunstância do CUR deixar de estar legalmente obrigado a continuar a adquirir a energia produzida por determinado operador a partir do momento em que o mesmo deixa de beneficiar do regime da tarifa ou remuneração garantida, não significa que cessam automaticamente de vigorar igualmente as obrigações que emergem dos contratos que foram celebrados(por esse mesmo CUR) e que se mantém em vigor, conforme sucede no caso em apreço.

XXVII. Conforme assinalam os Professores DIOGO COSTA GONÇALVES e FRANCISCO MENDES CORREIA no parecer jurídico elaborado e ora junto, “o artigo 55.º/1, alínea b) DL 172/2006 não se pode estar a referir à aquisição de eletricidade produzida por produtores em regime especial. Refere-se, antes à possibilidade de adquirir eletricidade a produtores que já não beneficiassem desse regime, porque só em relação a esses se poderia colocar uma opção e, nessa medida, uma preferência.

XXVIII. Se em relação a esses produtores, os contratos ainda se mantinham, como fonte de produção de efeitos, então conclui-se que nem o DL 29/2006, nem o DL 172/2006, tiveram efeitos diretos e automáticos sobre os contratos, no sentido da sua caducidade, extinção ou novação das obrigações emergentes.

XXIX. Uma coisa são as obrigações legais, outra completamente distinta são as obrigações contratuais e se os contratos que suportam estas últimas não cessaram de vigorar, então é imperativo concluir que essas mesmas obrigações se mantêm válidas e contratualmente vinculativas para as partes que os outorgaram.

XXX. E por essa razão é que o próprio regime jurídico do CUR prevê situações em que esta entidade deve (artigo 49.º/2, alínea a) DL 29/2006) e outras em que pode (artigo 49.º/2, alínea b) DL 29/2006) adquirir eletricidade.

XXXI. Conforme bem salienta o parecer ora junto, “numa leitura superficial e apressada, poderia sugerir-se que quanto o legislador estabeleceu um termo para a vigência do regime remuneratório especial, quis implicitamente estabelecer a caducidade dos contratos celebrados ao abrigo do DL 189/88.”

XXXII. “E, numa mesma leitura superficial e apressada, poder-se-ia sugerir que, quando o legislador se refere à venda da eletricidade produzida ao abrigo do DL 189/88, após o termo do regime remuneratório especial, “em regime de mercado”, estar-se-ia a referir, indiretamente, à cessação dos contratos celebrados e à necessidade de celebração de novos contratos.”

XXXIII. Contudo, conforme destacam os autores do parecer, “as regras hermenêuticas que constam do CC servem, precisamente, para evitar resultados interpretativos superficiais e apressados. O intérprete-aplicador, como é sabido, não pode considerar um pensamento legislativo “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (artigo 9.º/2 CC).”

XXXIV. Quando o artigo 3.º/2 do Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro estabelece que a eletricidade produzida pelas PCH é vendida em regime de mercado, apenas se refere ao termo da vigência do regime remuneratório especial e ao direito dele emergente, dos produtores independentes venderem àquele preço, pelo que a única coisa que cessou foi a vigência do conjunto especial de regras de determinação do preço.

XXXV. Restava então às Partes o mecanismo contratualmente estabelecido, e que representa uma opção inequívoca do legislador: o Contrato mantinha-se em vigor, cabendo às partes promover a sua renegociação.

XXXVI. Enquanto essa renegociação não ocorria, e na falta de determinação do preço, valiam os critérios supletivos do artigo 883.º/1 CC: sem preço fixado por entidade pública, na ausência de critério contratual (já que cessara o regime remuneratório especial, escolhido pelas Partes), e na falta de preço normalmente praticado na data da conclusão do contrato (porque o fornecedor apenas vendera a eletricidade à EDP, ao abrigo do regime especial), valia o preço de mercado, no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir.

XXXVII. Se o título aquisitivo da eletricidade produzida por produtores independentes tivesse sido alterado pelo DL 26/2006, com a atribuição do estatuto jurídico de CUR à SU ELETRICIDADE, seria de esperar, no mínimo, que o mesmo diploma determinasse o restante conteúdo da relação obrigacional, assim imposta porlei, e que passaria a vincularas partes dos contratos putativamente extintos, mas não se encontram quaisquer indícios da fixação do demais conteúdo.” - Cfr. pág. 44 do Parecer

XXXVIII. Nenhum impedimento legal existia para que a Recorrente SU Eletricidade pudesse continuar a adquirir a sua energia à Recorrida Pinto Triunfante, nos termos do contrato que existia, o que não poderia acontecer era pagar essa energia de acordo com uma tarifa fixada administrativamente.

XXXIX. O contrato que vinculava ambas as entidades ora em causa só previa o seu termo na data em que cessasse a licença de utilização das águas da Central e tal licença manteve-se em vigor e não foi minimamente beliscado pela passagem da Pinto Triunfante para o regime de mercado.

XL. A Recorrente SU Eletricidade SU ELETRICIDADE vem ainda sustentar que a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 29/2006, a 01 de janeiro de 2007, determinou a extinção do Contrato e a sua substituição por um novo vínculo obrigacional, de fonte legal (pontos 45 a 57 das Alegações de Recurso) por via de uma novação legal.

XLI. Conforme conclui o parecer ora junto, “Não assiste razão à Recorrente SU Eletricidade.”

XLII. Mais assinalam os autores desse parecer, “Numa orientação quase unânime, a vontade de novar deve resultar expressa e inequivocamente das estipulações novatórias…. Afasta-se, portanto, qualquer presunção de novatio e rejeita-se, ainda, a possibilidade de novação tácita, resultante de facta concludentia…. Na tese da SU ELETRICIDADE, se a bem a lemos, a novação legal seria aquela em que a extinção de uma obrigação e a constituição, em seu lugar, de uma nova obrigação decorreria ope legis, independente da vontade das partes: «a nova obrigação criada pelo Decreto-Lei n.º 29/2006 implicou a substituição do vínculo constituído através do citado contrato de 1992 por um novo vínculo», afirma no ponto 45 das suas Alegações de Recurso. E conclui: «verificou-se, assim, por força dos citados diplomas legais, um efeito novatório (uma novação legal)»…. Estaríamos, assim, perante um efeito novatório titulado já não por negócio jurídico, mas por um ato legislativo. Uma tal novação ex lege obteria o efeito substitutivo das obrigações apesar da vontade das partes ou mesmo contra a vontade das partes….. Sucede, porém, que a novação legal, tal como enunciada pela Recorrente SU Eletricidade, não existe. Existem, outrossim, hipóteses de novação necessária; podem existir, ainda, casos de novação unilateral. Mas não existe novação ope legis, tal como configurada pela SU ELETRICIDADE.”

XLIII. As reservas quanto à possibilidade de novação legal são, na verdade, bastante ponderosas. Se a lei é, por natureza, geral e abstrata, a novação legal parece confundir-se com a modificação do regime legal do contrato e com a sua aplicação no tempo.

XLIV. Não é concebível, com efeito, um ato normativo cuja eficácia seja a substituição de uma obrigação por outra numa concreta e singular relação obrigacional... a existir, estamos longe da identidade dogmática da novação.

XLV. Mas é igualmente imperativo assinalar o seguinte ponto que é destacado no parecer ora junto:“À inexistência de qualquer indício ou fundamento de novação, acresce ainda o facto de tal efeito ser expressamente vedado por lei, no caso sub judice…. Resulta dos factos provados na decisão da primeira instância que «em 19.12.2006, a E- REDES – Distribuição de Eletricidade, S.A. (na altura, denominada EDP Distribuição – Energia, S.A.) constituiu a Ré SU Eletricidade, S.A. (na altura, denominada EDP Serviço Universal, S.A.), por via de uma cisão-fusão, com destaque da parte do seu património relativa à compra e à venda de energia elétrica regulada (cf. AP 79/20071128 da certidão permanente online da E-Redes)» (facto provado 28, sublinhado nosso).

XLVI. Temos, portanto, que a criação da nova entidade que passou adquirir a energia elétrica – a SU ELETRICIDADE – resultou de uma operação de cisão que envolveu o destaque da parte do património da sociedade cindida (ao tempo, a EDP DISTRIBUIÇÃO).

XLVII. Como observa DIOGO COSTA GONÇALVES, «ainda que não existisse o 121.º, a exclusão da novação é evidente. Ao processo de desconcentração empresarial inerente à cisão é absolutamente alheio qualquer animus novandi. Contudo, para que não quedem dúvidas, o 121.º proíbe expressamente a novação».

XLVIII. Não só não resulta qualquer indício de novação da reestruturação do sector energético titulada pelos diplomas supra identificados – em especial, pelo DL 29/2006 e pelo DL 172/2006, de 23 de

Agosto – como a operação jurídica que está na origem criação da nova entidade obrigada à aquisição da energia elétrica exclui – pela sua própria natureza e por proibição legal expressa – qualquer hipótese de novação.

XLIX. A operação societária que está na origem da SU ELETRICIDADE (cisão-fusão, por destaque) é juridicamente incompatível com a novação, nos termos do art. 121.º do CSC.

L. No caso sub judice a Recorrente SU Eletricidade não cumpriu com a sua obrigação de adquirir a energia à Recorrida Pinto Triunfante quando podia e, nos termos do contrato, devia continuar a fazê-lo, uma vez que tinha o dever contratual de renegociar os termos da remuneração devida pela aquisição de energia.

LI. A Recorrente SU Eletricidade não só não renegociou com a Recorrida Pinto Triunfante os termos da remuneração pela aquisição de energia, como atuou como se o contrato tivesse cessado, sem que de alguma forma o tivesse resolvido ou denunciado.

LII. Foi a Recorrente SU Eletricidade quem de motu proprio informou a E-REDES que a Recorrida Pinto Triunfante deveria deixar de estar integrada na sua relação de fornecedores de energia, para efeitos de facturação.

LIII. Com relação à forma de cumprimento das obrigações que recaíam sobre a Recorrida Pinto Triunfante deve ter-se em consideração que nos termos da Cláusula 3.ª/1 do Contrato: “A energia será entregue na rede receptora sob a forma de corrente alternada (...)”.

LIV. Considere-se também a Cláusula 10.º/1: “A energia eléctrica recebida na rede receptora será medida através de aparelhos adequados, designadamente contadores, indicadores de potência e acessórios, os quais são fornecidos e instalados pelo produtor e devem ser análogos aos usados na rede pública de distribuição e estarem devidamente calibrados e selados”.

LV. O resultado prestatório que impendia sobre a Recorrida Pinto Triunfante correspondia pois à entrega da eletricidade na rede recetora, como decorre das cláusulas 3.ª/1, 10.ª/1 e 14.ª/1 do Contrato

LVI. O que a Recorrida Pinto Triunfante, enquanto devedor da prestação de fornecimento, se obrigou a provocar foi, apenas e tão só, o da entrega da eletricidade na rede

LVII. Por seu turno - e conforme corretamente decidiu o acórdão ora em crise -, foi a Recorrente SU Eletricidade quem deixou de cumprir a obrigação de pagamento do preço pela eletricidade fornecida, a partir de 9 de fevereiro de 2018, sem qualquer motivo que o justificasse.

LVIII. Por último e quanto à questão do valor a liquidar à Recorrida Pinto Triunfante a título de pagamento da energia entregue, importa, uma vez mais, acompanhar o que foi escrito em sede do parecer ora junto: Assim, a partir do dia 9 de fevereiro de 2018, deixando de aplicar-se o critério de determinação do preço acordado pelas Partes – que ao recorrerem a um critério legalmente estabelecido, aceitaram implicitamente sujeitar-se às respetivas alterações e vicissitudes –, haveria que aplicar o critério supletivo, estabelecido no artigo 883.º/1 CC, enquanto as Partes não renegociassem o Contrato, nos termos da Cláusula 23.ª.

(…)”

Ambas as partes juntaram, com as respetivas alegações, Pareceres de jurisconsultos.

Após o que a R. SU Eletricidade, S.A., tendo sido notificada da contra-alegação de recurso de revista e do parecer jurídico apresentado pela A. Pinto Triunfante de Vale de Cambra, Lda., veio, segundo disse, “ao abrigo do princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”, responder, segundo também disse, à questão nova invocada pela A. (e consistente em a A. nas sua contra-alegação haver invocado que ela/R havia suscitado uma questão nova na sua alegação de revista) e ao parecer jurídico apresentado pela A.

Tendo-se a A. oposto à admissibilidade de tal “resposta”, foi proferido o seguinte despacho:

“ (…)

Tem a A. razão na oposição apresentada.

Em caso algum a lei prevê ou admite respostas a pareceres (juntos com as alegações, nos termos dos arts. 651.º e 680.º do CPC), ou seja, a “resposta” a um parecer é uma “criatividade processual” inadmissível.

O objeto de um recurso é delimitado pela respetiva alegação (mais exatamente, pelas suas conclusões, cfr. art. 635.º/4), pelo que é a partir de tal peça – apenas de tal peça – que se pode colocar a questão da admissibilidade da resposta a uma contra-alegação (cfr. art. 638.º/8 do CPC), designe-se a mesma como resposta à contra-alegação ou de outro qualquer modo (como é o caso da aqui designada “resposta”, ao longo de 43 páginas, da R. ao parecer jurídico da A.).

Invocar que a contraparte suscitou uma questão nova na sua alegação recursiva é suscitar uma questão processual que, só “em caso de manifesta necessidade”, mobiliza o princípio do contraditório invocado.

Aliás, a R., mais do que debruçar-se sobre a questão processual – de saber o que é uma questão nova – repisa (“aperfeiçoa”, diz a A.) a argumentação jurídica que a A. reputa como sendo uma questão nova.

Em conclusão, não se admite e não se considera o requerimento apresentado pela Ré, SU Electricidade S.A., sob a Ref.ª …60. (…)”

Despacho de que a R. SU Eletricidade, S.A. reclama para a Conferência.

Assim, apreciando a reclamação, mantém-se o despacho reclamado e não se considera o requerimento apresentado pela R. sob a Ref.ª …60.

Um parecer de um jurisconsulto apresentado na fase de recurso e junto com a contra alegação não tem a virtualidade de permitir o que o art. 638.º/8 do CPC impede, ou seja, não tem a virtualidade de, contornando o disposto em tal 638.º/8 do CPC (que só admite a resposta à contra alegação em caso de ampliação do objeto do recuso), permitir, em substância, a resposta à contra alegação.

Uma parecer de um jurisconsulto (junto com a alegação de recurso da parte) é sobre a solução de direito que os factos (dados como provados) convocam e sobre isto – sobre a solução de direito que os factos convocam – já a parte que quer responder disse (ou podia ter dito) tudo o que era juridicamente pertinente (no caso, até havia também junto um parecer subscrito por um jurisconsulto), pelo que, convocar o princípio do contraditório, para responder, em substância, à contra alegação, não parece apropriado (a parte que quer responder já teve oportunidade de se pronunciar sobre a apreciação/solução jurídica que os factos provocam).

E quanto à questão consistente em a A. na sua contra-alegação haver invocado que a R./Recorrente havia suscitado uma questão nova na sua alegação de revista também não é apropriado mobilizar a invocação do princípio do contraditório e “repisar (“aperfeiçoar”, diz a A.) a argumentação jurídica que a A. reputa como sendo uma questão nova”; aliás, como a seguir se verá, o caso/questão – a invocação de que a R./Recorrente suscitou uma questão nova – é mesmo de “manifesta simplicidade/desnecessidade”, com o que a R./Recorrente apenas não concordará para se poder pronunciar, mais uma vez, sobre a vertente substantiva da questão.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

II – A – As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. A A. construiu e obteve licença de exploração da Central Hidroeléctrica de …, sita em …, ….

2. Desde 1992, que a A. explora a Central Hidroeléctrica de ….

3. Em 02.12.1992 a A. celebrou com a EDP - Electricidade de Portugal, S.A. um contrato de compra de energia eléctrica produzida naquela central.

4. De acordo com a cláusula 1.ª de tal contrato a EDP obrigou-se a adquirir à A. a totalidade da energia eléctrica disponível gerada na Central Hidroeléctrica de ..., sita no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ....

5 De acordo com a cláusula 25.ª do referido contrato, o mesmo terá o seu termo quando por qualquer motivo cessar a licença de utilização das águas na central do aproveitamento a que se refere a cláusula 1.ª.

6. A A. obteve ainda uma licença de exploração relativamente à Central Hidroeléctrica de ...com data de 09.02.1993.

7. Em 19.12.2006, a E-REDES – Distribuição de Electricidade, S.A. (na altura, denominada EDP Distribuição – Energia, S.A.) constituiu a R. (na altura, denominada EDP Serviço Universal, S.A.), por via de uma cisão-fusão, com destaque da parte do seu património relativa à compra e à venda de energia eléctrica regulada.

8. Por carta de 18-01-2007 (documento 11 junto com a contestação) a EDP Serviço Universal comunicou à A. a cessão da posição contratual nos termos que consta da dita carta, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. Por carta de 18-01-2007 (documento 10 junto com a contestação) a EDP Distribuição comunicou à A. a cessão da posição contratual nos termos que consta da dita carta, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10. Conforme previsto na lei, por despacho do Sr. Director Geral da Energia e Geologia de 18.02.2008 foi então atribuída à R., com efeitos reportados a 01.01.2007, a licença de comercializador de último recurso (CUR).

11. A R. adquiria a energia eléctrica produzida na Central de ... ao abrigo do citado contrato de compra de energia eléctrica.

12. A R. apenas exerce no sector energético as actividades associadas ao seu estatuto de CUR, que são as actividades para as quais se encontra juridicamente habilitada.

13. Por despacho da DGEG de 25-11-2015 foi autorizada a alteração à licença de exploração nos termos do documento 5 junto com a P.I. e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

14. A DGEG veio informar a A. “que a data da passagem para o regime de mercado desta Central será a partir de 9 de Fevereiro de 2018, conforme Licença de Exploração anexa e não a partir de 16 de Dezembro de 2017, como indicado no ofício n.º 10373, de 12 de Julho de 2017” em termos e condições que consta do documento 8 junto com a P.I. e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. A A. transitou para o regime de mercado no dia 09.02.2018.

16. A A. havia aderido ao denominado sistema de autofacturação que a R. coloca à disposição dos produtores a quem adquire energia, sistema através do qual a R. faz a simulação do valor de facturação de uma determinada central num determinado mês, cabendo ao produtor aprovar a simulação efectuada para a posterior emissão da factura.

17. Em 05.03.2018, a A. recebeu a simulação do mês de Fevereiro de 2018 que apenas considerava a energia produzida até ao respectivo dia 8.

18. A referida simulação foi aprovada pela A. às 18h10 do mesmo dia 05.03.2018.

19. Em 06.03.2018, foi emitida a autofactura que apenas considerava a produção de energia até ao dia 08.02.2018.

20 A factura da energia do mês de Fevereiro de 2018 apenas compreendeu a energia injectada pela A. até ao dia 8 desse mês.

21 A A. continuou, até Abril de 2019, a produzir e a fornecer a energia produzida na sua central mini-hídrica para a rede pública.

22. A rede não é operada pela R.

23. A R. nunca deu à A. qualquer indicação no sentido de esta continuar a injetar energia na rede, tal como nunca referiu que iria (ou sequer poderia) adquirir a energia oriunda da Central de ... após a transição para o regime de mercado.

24 Não tendo a seu cargo a operação da rede, a R. recebe regularmente a informação do operador de rede (E-REDES) sobre o volume de energia injetado pelos produtores da PRE com remuneração garantida, a quem a R. legalmente adquire a energia produzida.

25. Uma vez que a R. vende a energia adquirida nestes termos no mercado grossista (designadamente, no mercado diário), o operador da rede comunica-lhe diariamente o volume de energia injectado pelos produtores da PRE com remuneração garantida.

26. Pelas 10.49 h. de 9/2/2018, a R. enviou à E-REDES uma mensagem de correio electrónico, com o seguinte teor:

Fazemos referência ao PRE nº 40 – EXPLOR. AGRO PECUÁRIA PINTO TRIUNFANTE DE VALE CAMBRA, LDA (…/…)

Conforme a digitalização que se anexa do Ofício nº 10828 da DGEG, o referido PRE transitou para o regime de mercado a partir de 9 de Fevereiro de 2018.

A potência instalada da central é de 625 kVA, tendo o produtor aderido à autofacturação electrónica.

Agradecia que considerasse o disposto no referido Ofício e que desse conhecimento à equipa da Direcção de Gestão de Energia.

Vimos solicitar-lhe a introdução na Aplicação GPCE da energia produzida de 1 de Fevereiro até às 0h do dia 9 de Fevereiro.

Com os melhores cumprimentos”.

27. A informação recebida pela R. a este respeito deixou de fazer qualquer referência à energia produzida pela A. pelo que, a partir da referida data, a energia vendida pela R. no mercado grossista diário deixou de incluir os volumes de energia que a A. terá continuado a injectar na rede.

28. Para efeitos de facturação, a R. recebe mensalmente da E-REDES a informação sobre o volume total mensal da energia injectada na rede por cada um dos produtores em PRE com remuneração garantida.

29. Informação que também deixou de incluir qualquer energia injectada pela A. a partir de 09.02.2018.

30. Do mesmo modo, a cessação da aquisição da energia da A. pela R. manifestou-se ainda no plano das tarifas devidas pelo facto de a energia adquirida à PRE transitar na rede de transporte (uso da rede de transporte).

31. Com efeito, verifica-se que, a partir de 09.02.2018, o Operador da Rede de Transporte (a REN – Rede Eléctrica Nacional, S.A) deixou de considerar a energia oriunda da Central de ... para efeitos de cobrança da tarifa de uso da rede de transporte, enquanto a lista relativa a Fevereiro ainda mencionava a A., a lista referente a Março deixou de mencionar a A. (a lista já não faz referência ao código do ponto de entrega (CPE) referente à Central de ..., ou seja, já não contém a referência “PT...”).

32. O mesmo sucede com a informação que a R. envia mensalmente à DGEG, identificando os produtores em PRE e o volume da energia produzida.

33. Informação essa que, a partir de Março de 2018, também deixou de incluir qualquer referência à A., nos documentos de Energias e Valores que são enviados mensalmente à DGEG, exibindo apenas a informação relativa às centrais hídricas e a informação necessária para verificar a ausência do CPE da A. na lista de Março enquanto o mês de Fevereiro, associando a central em questão ao CPE PT...).

34. Por carta de 16 de Fevereiro de 2018, enviada à DGEG, a A. refere: “(…) continuamos a injectar energia na rede através do contador da EDP SU, energia essa que solicitamos ao Exmo. Sr. Director que ordene a sua remuneração”.

35. Por carta de 22 de Outubro 2018, enviada à DGEG, a A. informa que continuava a injectar a energia na rede, através do “nosso contador da EDP SU sem termos recebido até à data os KW injectados (…) informem qual o ponto da situação, referente à nossa carta de 16/2/2018”.

36. A DGEG, em 22 de Outubro de 2018, enviou carta à A. onde refere estar “ciente das dificuldades desta central, bem como de todas as pequenas centrais que passaram ou irão passar para regime de mercado e uma vez que ainda não foi criada a figura do facilitador/agregador de mercado, tem desenvolvido esforços no sentido de resolver esta situação” estando a “analisar o assunto com o objetivo de providenciar uma proposta para submissão à Tutela, esperando poder brevemente ter uma solução que seja razoável e não impeditiva da continuidade de laboração”.

37. Em 12.02.2019, a A. apelou ao Secretário de Estado da Energia para uma solução da sua situação.

38. Em 25.03.2019, a A. recebeu um email do gabinete do Secretário de Estado da Energia do qual consta: “no âmbito das alterações legislativas atualmente em curso, está a ser equacionada uma solução passível de resolver, situações do tipo da que apresentou” e “que existem vários comercializadores em regime livre capacitados para apresentar propostas comerciais para a colocação da energia eléctrica produzida pela central hídrica”.

39. Entre a R. e a DGEG foi trocada a correspondência que constitui os documentos 15 a 17 juntos com a contestação, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

40. Em 12.09.2019 a Subdirectora Geral da DGEG informou a A. que “a EDP Serviço Universal na sequência da notificação destes Serviços para que providenciassem o pagamento do valor em dívida relativo à produção de energia proveniente da sua central hidroeléctrica, aquela entidade informou esta Direcção Geral que de acordo os dados fornecidos pelo Operador de Rede, a energia produzida no período compreendido entre 9 de Fevereiro de 2018 e 24 de Abril de 2019 foi de 2.305.023kWh, sendo o valor total de facturação de 103.726,04 (valor sem IVA), o qual será liquidado no prazo habitual”.

41. A R. enviou uma comunicação à DGEG referindo que «Na sequência do seu telefonema, junto envio a série dos valores resultantes das médias aritméticas simples dos preços de fecho do Operador do Mercado Ibérico de Energia (OMIE) para Portugal (mercado diário), relativos ao mês m, em €/MWh (definição constante na alínea c) do artigo 24º do Decreto-Lei nº 153/2014, de 20 de Outubro).

2018

FEV… 54,98 €/MWh

MAR…39,75 €/MWh

ABR… 42,66 €/MWh

MAI… 55,08 €/MWh

JUN… 58,48 €/MWh

JUL… 61,84 €/MWh

AGO… 64,29 €/MWh

SET… 71,30 €/MWh

OUT… 65,39 €/MWh

NOV… 62,01 €/MWh

DEZ… 61,87 €/MWh

2019

JAN… 62,69 €/MWh

FEV… 54,71 €/MWh

MAR… 49,2 €/MWh

ABR… 50,65 €/MWh

42. Os preços médios da energia eléctrica no mercado diário OMIE, para o período compreendido entre Fevereiro de 2018 e Abril de 2019, são os que a R. referiu na citada comunicação (e que se encontram transcritos em 44.), com uma média geral de 53,43 €/MWh.

43. A DGEG enviou à A. em 18-12-2019 (a referência a 18-02-2019 deve-se a lapso de escrita, revelado no contexto do documento respectivo) os e-mails que constam do documento 16 junto com a P.I., e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

44. A energia produzida no período compreendido entre 9 de Fevereiro de 2018 e 24 de Abril de 2019 foi de 2.305.023 kWh.

45. A R. não pagou à A. qualquer injecção de energia desde 09-02-2018.

46. A R. não foi notificada pela DGEG para proceder a qualquer pagamento respeitante à energia produzida na Central de ... relativamente a qualquer período subsequente à transição da Central de … para o regime de mercado.

47 Tão-pouco a R. comunicou à DGEG que iria proceder à liquidação de qualquer montante relativo à produção de energia da A. posterior a 08.02.2018.

48. Os contactos entre a R. e a DGEG cingiram-se à solicitação de um conjunto de informações, pedidos que a R. satisfez.

49. Até à citação para a presente ação, a R. não teve conhecimento das comunicações trocadas entre a A. e a DGEG, e entre a A. e o Secretário de Estado da Energia, constantes dos autos.

50. A dimensão da central hidroelétrica da A. é de 530 KW, pelo que a sua produção não tem expressão significativa para ser remunerada em regime de mercado.

51. Por não utilizar qualquer armazenamento de água (vulgo barragem) - antes depender do fio de água que corre continuamente e cujas oscilações em termos de caudal são totalmente imprevisíveis - não é possível estabelecer previsões de produção.

52. Estes dois fatores acabaram por inviabilizar a possibilidade de a A. interessar qualquer empresa na aquisição, em regime de mercado, da energia que continuava a ser produzida, no momento em que passou para o regime de mercado.

53. Apenas em Abril de 2019 a A. terá logrado contratar no mercado com um comercializador disposto a adquirir a sua energia.

54. Assim, em 29.03.2019, a A. (na pessoa de AA) dirigiu à R. (na pessoa do Eng.º BB) uma mensagem de correio electrónico (email), em termos que constam do documento 14 junto com a contestação, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

55. Em 26.06.2019, o Sr. AA, sócio da A., dirigiu-se pessoalmente às instalações da Direção de Compra de Energia da R., em ..., indagando novamente da disponibilidade da R. para celebrar com a A., ao abrigo do regime de mercado, um contrato para a aquisição da energia produzida na Central de ....

56. Durante esse contacto, a R. transmitiu novamente ao Sr. AA que, enquanto CUR, apenas podia adquirir a energia oriunda de PRE com regime de remuneração garantida, o que, desde 09.02.2018, já não era o caso da A.

57. Na mesma ocasião, o Sr. AA deu ainda nota de que a A. já havia contratado no âmbito do regime de mercado.

58. Mais concretamente, a A. já havia celebrado com a PH Energia um contrato de venda da energia produzida na Central de ..., contrato cujos efeitos se produziram desde 25.04.2019 e que estabelecia um período de fidelização de um ano.

59. Após este contacto pessoal, a A. não voltou a contactar a R., seja para comunicar qualquer cessação do seu contrato com a PH Energia, seja para propor a aquisição da energia pelo CUR.

60. O preço médio a que a R. adquire a energia aos produtores em regime especial (PRE) sempre foi superior ao preço de mercado, circunstância que apenas se deixou de verificar, a partir de Julho/Agosto de 2021, devido ao conhecido aumento, excecional e significativo, dos preços de energia no Mercado Ibérico de Electricidade (MIBEL).

61. Durante todo o período em que competia legalmente à R. comprar a energia da A., o preço médio a que a R. adquiria energia aos PRE – incluindo à A. – era superior ao preço médio de transação de energia no MIBEL.

62. No entanto, a energia adquirida à PRE com remuneração garantida, como era o caso da A., é vendida pela R. nos mercados organizados (diário e a prazo), a preços de mercado.

63. Esta circunstância traduzia-se num sobrecusto que representa um custo para o sistema elétrico nacional, que se refletia nas tarifas pagas pelos consumidores finais, em particular, na tarifa de uso global do sistema.

64. A posição do CUR relativamente à aquisição de energia eléctrica em PRE com remuneração garantida, como foi o caso da A. até 08.02.2018, é neutra e não tem qualquer impacto, positivo ou negativo, nos rendimentos da R., que se limita a auferir os proveitos permitidos definidos administrativamente pela ERSE.

65. A ERSE define, depois, para cada atividade regulada, o método de cálculo dos proveitos permitidos, de acordo com as fórmulas matemáticas que constam do Regulamento Tarifário.

66. De igual modo, a ERSE define também, para cada período de regulação, os parâmetros que, aplicados às fórmulas matemáticas que constam do Regulamento Tarifário – e em conjunto com as demais variáveis – permitem a determinação anual dos proveitos permitidos.

67. São, depois, estabelecidas pela ERSE as tarifas para cada ano por forma a proporcionarem os proveitos permitidos.

68. Por conseguinte, quer os proveitos permitidos quer as tarifas são estabelecidos ex ante, para cada ano, com base em certas estimativas e previsões.

69. Durante o ano, a entidade regulada aufere os proveitos definidos antecipadamente pela ERSE.

70. Uma vez que a definição ex ante das tarifas se funda em estimativas e previsões, no final do ano, existirão desvios, positivos ou negativos, entre os proveitos efectivamente auferidos ex post e os proveitos permitidos definidos pela ERSE ex ante.

71. Esses desvios são obrigatoriamente corrigidos (i.e. anulados), com dois anos de desfasamento, através de ajustamentos por forma a garantir que a entidade regulada aufere exactamente os proveitos permitidos que haviam sido fixados ex ante.

72. No caso concreto da R., estão em causa três actividades reguladas distintas, a saber: (i) compra e venda de energia eléctrica; (ii) compra e venda do acesso às redes de transporte e distribuição e (iii) comercialização.

73. Os proveitos permitidos que a R. aufere limitam-se à recuperação, através das tarifas, dos custos incorridos com as referidas atividades: a R. não aufere qualquer rendimento da compra e venda de eletricidade.

74. Os custos e as receitas da compra e venda de energia eléctrica são custos e receitas do sistema eléctrico nacional, e não da R.

75. A energia injectada pela A. na rede no período em questão (09.02.2018 a 24.04.2019) não foi contabilizada pela R. para este efeito.

76. Ou seja, o portefólio da R., relativo à energia adquirida aos produtores em PRE e disponível para venda nos referidos mercados organizados, não integrou qualquer energia injectada pela A. na rede durante aquele período.

77. O que significa, pura e simplesmente, que a R. não adquiriu nem vendeu a energia da Central de ... injectada na rede no período compreendido entre 09.02.2018 e 24.04.2019.

78. Os proveitos permitidos da R. não são influenciados por energia injectada na rede não adquirida pela R.

79. São, portanto, apenas estes proveitos permitidos definidos administrativamente pela ERSE, com exclusão de quaisquer outros, que constituem as receitas da R.

80. A A., para efeitos de executar o processo de remodelação da central em 2019, contraiu um financiamento de € 300.000,00 junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL.

***

II – B – Factos Não provados:

Na sentença recorrida considerou-se ainda que de relevo para a decisão da causa ficaram por provar os demais factos e ainda que a energia que foi produzida pela A. na central de ... foi fornecida pela A. à R. e por esta comercializada junto dos seus clientes.

*

III – Fundamentação de Direito

Está essencialmente em causa saber/dizer se o “Contrato de Compra de Energia Elétrica” celebrado, em 02/12/1992, entre a A. (Pinto Triunfante) e a EDP-Eletricidade de Portugal S.A., permaneceu (modificado, é certo, em virtude das sucessivas alterações legislativas) vigente após 09/02/2018 (e se, em função de tal vigência, a R. continuava contratualmente obrigada a pagar a energia elétrica que fosse fornecida – injetada na rede – pela A.).

E para responder a tal questão – que preenche todo o objeto dos autos e da revista – importa começar por contextualizar o contrato celebrado.

Após o 25 de abril de 1974, toda a estrutura organizativa do setor elétrico nacional foi nacionalizada, tendo sido criada por fusão uma empresa pública, a Eletricidade de Portugal (EDP), que passou a concentrar todas as funções do setor, ou seja, as diferentes funções – produção, transporte, distribuição, operação de sistema e fornecimento / comercialização – foram integradas verticalmente no monopólio de uma empresa pública, a EDP; e este monopólio do Estado no setor elétrico era ainda reforçado com a proibição do acesso da iniciativa privada às atividades de produção, transporte e distribuição de energia elétrica para consumo público.

Entretanto, após a alteração da Lei 46/77 (Lei de Delimitação dos Setores), este ciclo estatizante começou, timidamente, a inverter-se, em resultado da adesão à então Comunidade Económica Europeia, tendo passado a permitir-se, em certos termos, o acesso de privados a certas atividades do setor elétrico.

E foi assim, abreviando, que surgiu o DL 189/88, de 27-05, segundo o qual “a atividade de produção de energia elétrica pode ser exercida por pessoas singulares ou coletivas, de direito privado ou público, independentemente da forma jurídica que assumam, estando unicamente sujeitas ao cumprimento das normas técnicas e de segurança previstas neste diploma, ou por ele admitidas, desde que: a) O estabelecimento industrial de produção de energia, no seu conjunto, não ultrapasse a potência aparente instalada de 10.000 kVA; b) Sejam utilizados recursos renováveis, combustíveis nacionais ou resíduos industriais, agrícolas ou urbanos, ou se trate de instalações de co-geração, esta últimas sem limite de potência” (art. 1.º/1 do DL 198/88); tratando tal diploma, no seu articulado, dos meios, requisitos técnicas e de segurança a cumprir no exercício de tal atividade e da fixação da tarifa de venda da energia; e referindo-se, no seu art. 20.º/2, ao “contrato a celebrar entre o produtor e a entidade recetora”, preceito que terá servido como “lei habilitadora” da Portaria 416/90, de 06/06, segunda a qual o DL 198/88 “prevê a celebração de um contrato de fornecimento de energia entre o produtor independente e a entidade que explora a rede pública”, razão pela qual, se veio estabelecer (em tal Portaria) que os contratos, “no âmbito do DL 189/88, de 27 de Maio, devem obedecer às cláusulas do contrato tipo e seu anexo que se publicam junto à presente portaria e que dela fazem parte integrante”.

E foi justamente no âmbito de tal DL 189/88 e obedecendo ao clausulado de tal contrato tipo (publicado em anexo à Portaria 416/90) que foi celebrado, em 02/12/1992, o designado “Contrato de Compra de Energia Elétrica” entre a empresa que representava o monopólio vertical do Estado (a EDP-Eletricidade de Portugal S.A.) e a A. (Pinto Triunfante), ou seja, cumpridos todos os requisitos técnicos e de segurança exigidos pelo DL 198/88, a A. aderiu ao clausulado que estava pré-determinado e pré-fixado na Portaria 416/90 e celebrou com a EDP-Eletricidade de Portugal S.A. o contrato individual de compra de energia elétrica n.º 8/92 (junto aos autos como doc. 4 da PI).

Não gozaram as partes contratantes de uma irrestrita liberdade de celebração, na medida em que, preenchendo-se a situação prevista no art. 1.º de tal DL e cumprindo-se os requisitos técnicos e de segurança nele exigidos, podia o “produtor independente” vender a energia elétrica que produzisse à rede elétrica, na medida em que a EDP, como se extrai de tal DL, estava obrigada a deveres legais de negociação, isto é, a comprar tal energia elétrica; e, quanto à estipulação, ainda a liberdade seria mais restrita, na medida em que o preço da energia comprada era determinado através de uma fórmula legal (constante do art. 22.º do DL 198/88) e os restantes aspetos do conteúdo contratual estavam pré-fixados no contrato tipo imposto pela Portaria 416/90.

E não existe a menor divergência entre as partes quanto ao que foi estabelecido no momento estático inicial, assim como não há qualquer litígio entre as partes quanto à execução contratual até 08/02/2018.

O litígio – decorrente das várias alterações legislativas entretanto havidas e do seu impacto na relação contratual iniciada em 02/12/1992 – surge, como já se referiu, quanto à “possível” execução contratual após 09/02/2018 (sustentando a R. que o contrato se extinguiu em 08/02/2018 e defendendo a A. que o mesmo continuou vigente).

O setor elétrico, como é sabido, foi sendo, por imperativo legal, progressivamente liberalizado e aberto à concorrência, ou seja, foi abandonado o modelo monopolista do Estado, assente na concentração vertical integrada de todas as diferentes funções na EDP, tendo esta, por sucessivos processos de reorganização estrutural, constituído outras sociedades comerciais (desintegrando e separando em entidades jurídicas autónomas as atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade), que passaram a desenvolver atividades separadas, no setor elétrico.

O que levou a que, num primeiro momento, a sua posição contratual no contrato celebrado com a A. fosse atribuída à EDP Distribuição e, depois, à EDP Serviço Universal, S.A. (posteriormente, denominada SU Eletricidade, a aqui R.).

Mas – é o nosso ponto de vista, desde já o antecipamos – quer a reestruturação, por imperativo legal, da EDP, quer as sucessivas alterações legislativas introduzidas no DL 198/88, quer as decorrentes do DL 29/2006 e do DL 172/2006, não produziram, pelo menos até 08/02/2018, qualquer efeito extintivo/constitutivo – qualquer efeito novatório – na relação contratual iniciada em 02/12/1992: foram-lhe provocando modificações, designadamente ao nível da respetiva titularidade1, mas, pelo menos até 08/02/2018, a relação contratual iniciada em 12/12/1992 manteve-se continuamente vigente.

Em sentido divergente (e vamo-nos cingir aos aspetos em que se invoca a novação), diz agora a R. que, em 2006, foram aprovados os DL 29/2006, de 15 de fevereiro, e o DL 172/2006, de 23 de agosto – diplomas que transpuseram para o ordenamento jurídico português o chamado “segundo pacote” energético europeu, onde se destaca a Diretiva n.º 2003/54/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, que aprofundava o trajeto de abertura do sector da eletricidade à concorrência – o que teve como consequência: (a) a separação das atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade; (b) o destaque da comercialização, em relação à distribuição; (c) a consagração do livre acesso à atividade de comercialização, do lado da oferta, e da liberdade de escolha do comercializador de eletricidade, do lado da procura; sucedendo que, em virtude do destaque da atividade de comercialização, em relação à atividade de distribuição, a EDP Distribuição constituiu a EDP Serviço Universal, S.A. (depois e agora denominada SU Eletricidade), por via de uma cisão-fusão, com destaque da parte do seu património (aqui se incluindo os contratos de aquisição de energia com os produtores independentes), a quem, no seguimento da sua instituição pelo art. 46.º e ss. do DL 29/2006, foi atribuída (cfr. ponto 10 dos factos provados) a qualidade/licença do comercializador de último recurso (“CUR”), de modo a assegurar aos consumidores, nomeadamente aos mais frágeis, um serviço contínuo e de qualidade, em condições acessíveis.

E a partir daqui, passando a exercer apenas as atividades associadas ao seu estatuto de CUR (cfr. ponto 12 dos factos), sustenta a R. que, em .../.../2007 (data da entrada em vigor do DL 29/2006), ocorreu a extinção do contrato celebrado em 02/12/1992 (entre a A. e a EDP Eletricidade de Portugal) e a constituição de um novo contrato de compra de energia, tendo como contraparte a aqui R..

Efetivamente, de acordo com art. 49.º/2 do DL 29/2006 (e identicamente do art. 55.º/1 do DL 172/2006), o CUR deve adquirir a eletricidade produzida pelos produtores em regime especial nas condições estabelecidas na legislação complementar (alínea a)) e pode adquirir eletricidade para abastecer os seus clientes (i) em mercados organizados ou (ii) através de contratos bilaterais (alínea b)); acrescentando que, quando adquira eletricidade através de contratos bilaterais, o CUR deve fazê-lo mediante a realização de concursos ou através de outros procedimentos definidos em legislação complementar, estando os contratos sujeitos a aprovação prévia pela ERSE, nos termos do Regulamento de Relações Comerciais (art. 49.º/2, alínea c) DL 29/2006 e artigo 55.º/1, alínea d) DL 172/2006).

Mas de tal preceito não resulta, a nosso ver, o invocado efeito novatório, mantendo-se – com a inerente alteração subjetiva – vigente o contrato que a R. havia recebido como ativo (por destaque da EDP Distribuição).

Na data de entrada em vigor do DL 29/2006, o contrato de aquisição de eletricidade à A. estava plenamente válido e eficaz, não estando assim a R., como CUR, colocada perante a situação de dar início à aquisição de eletricidade à A.; aliás, segundo o referido 49.º/2/a) do DL 29/60, a R/CUR pode adquirir eletricidade produzida pelos produtores em regime especial nas condições estabelecidas na legislação complementar e foi justamente nessa situação que foi celebrado, segundo as regras vigentes à data da sua celebração, o contrato de compra de energia à A., podendo ainda acrescentar-se que o referido pelos citados artigos do DL 29/2006 e do DL 172/2006 só valerá em relação a factos novos, só dirá respeito aos contratos de fornecimento de energia elétrica que a própria R/CUR iria celebrar no e para o futuro (cfr. art. 12.º/2 CC).

E a operação de reorganização económica e empresarial do setor energético – com a criação da EDP, Serviço Universal, hoje, SU Eletricidade (detida integralmente pela própria EDP Distribuição) pelo processo de cisão-fusão referido – também não determinou a extinção do contrato iniciado em 02/12/1992 e a sua substituição por um novo vínculo obrigacional, de fonte legal.

Segundo a R., constituiria fator indiciário de novação a alteração da sua posição jurídica, ou seja, o facto de, como CUR, a R. exercer funções diversas da exercida pela primitiva contraparte da A.: segundo a R., “pass[ou] a adquirir a energia não enquanto entidade responsável pela rede pública (qualidade na qual o Decreto-Lei n.º 189/88 previa a compra), mas enquanto comercializador de último recurso, que corresponde a uma figura legal nova e alheia à titularidade e exploração da rede”.

Não parece, porém, que tal perspetiva seja rigorosa, na medida em que foi no âmbito da atividade de comercialização da energia, prevista no DL 189/88 desde que foi admitida a produção independente de energia, que foi celebrado com a A. o contrato de 02/12/1992, sucedendo que, com o DL 29/2006, a comercialização da energia deixou de ser desenvolvida pela EDP Distribuição (como antes o tinha sido pela EDP), passando a sê-lo por uma sociedade criada para esse efeito (sociedade essa que, nos termos do art. 73.º/1 do DL 29/2006, adquiriu a respetiva licença para a comercialização de último recurso (CUR) : “a licença prevista no n.º 2 do artigo 46.º é atribuída à sociedade, juridicamente independente das sociedades que exerçam as demais atividades previstas no presente decreto-lei, a constituir pela EDP Distribuição-Energia, S. A.”).

Ainda segundo a R., tendo em vista concluir pela novação legal, “(...) a obrigação de compra que impendeu sobre o CUR encontrava a sua fonte no Decreto-Lei n.º 29/2006, que é obviamente uma fonte distinta da que sustentava a obrigação de compra a que se referia o contrato celebrado em 1992 entre a Recorrida e a EDP – Eletricidade de Portugal, S.A.».

Mas sem razão, uma vez que uma coisa é o título causal de uma obrigação, outra, diversa, o regime legal aplicável ao mesmo; e, no caso, o DL 29/2006 não é fonte de uma qualquer obrigação concreta de aquisição de energia, a qual (assim como antes, no regime do DL 189/882), para se constituir, não dispensa a celebração de um contrato.

Dito de outro modo, a obrigação de adquirir energia produzida pelos particulares em regime especial por parte da EDP Serviço Universal (hoje, SU Eletricidade) redunda na obrigação de celebrar contratos de aquisição de energia e não constitui a obrigação propriamente dita de aquisição de energia, ou seja, a causa da obrigação de aquisição da energia é o contrato que venha a ser efetivamente celebrado.

Temos pois que o dever de aquisição de energia à A. resulta de um contrato, no caso o contrato celebrado em 02/12/19923, o qual passou a integrar a esfera jurídica da nova sociedade, criada por força da reestruturação deste setor de atividade.

Argumenta ainda a R. que “(...) milita também a favor da distinção das obrigações – isto é, no sentido de que a obrigação que a reforma legislativa de 2006 vem colocar na esfera do CUR corresponde a uma obrigação nova, substitutiva da obrigação até então vigente –, a circunstância de uma das linhas fundamentais dessa reforma ter consistido na separação jurídica das atividades, designadamente, a separação da atividade de comercialização de último recurso (que incluía a compra de energia à Recorrida) de quaisquer outras atividades, objetivo que visava um corte com a com a concentração de atividades anteriormente existentes».

Mais uma vez sem razão, uma vez que a separação das várias atividades que compõem o setor elétrico (presente em vários preceitos do DL 29/2006), garantida através da autonomia jurídica (e patrimonial) dos sujeitos em causa, não permite concluir no sentido de um efeito novatório das obrigações e/ou afirmar que à separação de atividades presidiu um intuito extintivo e constitutivo ex novo.

A compra de energia a produtores independentes em regime especial era uma atividade que existia desde o DL 189/88 e que se manteve, sem qualquer rutura ou descontinuidade do vínculo obrigacional, com o DL 29/2006.

Não será o mais relevante, mas a invocação da ocorrência de novação até apresenta, face ao que a R. alegou nos artigos 54.º e ss. da sua contestação, uma configuração jurídica nova4; efetivamente, havia alegado a R.:

54.º - Neste caso concreto, a Ré adquiria a energia elétrica produzida na Central de ... ao abrigo do citado contrato de compra de energia elétrica junto como Doc. n.º 4 da p.i.

55.º - Inicialmente celebrado, como vimos, entre a Autora e a EDP.

56.ºA circunstância de a função de aquisição de energia à PRE passar a ser desempenhada pela Ré foi comunicada à Autora através das cartas enviadas pela EDP Distribuição (agora denominada E-REDES) e pela Ré à Autora em 18.01.20075

57.º Em particular, foi transmitido à Autora que «[e]m conformidade com o disposto nos artigos 46.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro, bem como nos artigos 52.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto, a aquisição de electricidade produzida pelos produtores em regime especial é, desde o dia 1 de Janeiro de 2007, efectuada pela empresa constituída pela EDP Distribuição, a EDP Serviço Universal, S.A. […]»

Enfim, o que se diz na carta (ponto 9 dos factos) enviada pela EDP Distribuição à A. sobre o contrato celebrado se manter vigor, “com as devidas alterações, transmitindo-se para a EDP Serviço Universal os direitos e as obrigações relativos à aquisição de energia elétrica, correspondente faturação e pagamento”, espelha o que, do ponto de vista jurídico, aconteceu em 01/01/2007.

Existiu, como já se referiu, uma modificação subjetiva contratual (uma modificação da entidade jurídica que passou a adquirir a energia elétrica), modificação que nada tem de novatório, não existindo qualquer sinal que permita sustentar a extinção de uma obrigação e a constituição de outra, isto é, aconteceu apenas que a mesma atividade operacional de compra de eletricidade passou a ser exercida por outra entidade6.

Pode, em tese, questionar-se se a novação tem de resultar de vontade expressa das partes ou se o animus novandi pode ser extraído por presunções, porem, na jurisprudência7, a orientação dominante vai no sentido da vontade de novar dever resultar expressa e inequivocamente das estipulações novatórias, afastando-se qualquer presunção de novatio e rejeitando-se a possibilidade de novação tácita, resultante de facta concludentia. E, na doutrina, Antunes Varela, a partir do confronto entre a redação dos trabalhos preparatórios e a redação do art. 859.º CC – em que se diz que “a vontade de contrair nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada” – afasta a possibilidade de uma novação tácita8; assim como Menezes Cordeiro, que sustenta que «a potencial gravidade da novação requer, mesmo, uma vontade expressa, por oposição à tácita»9; e, embora em sentido não coincidente, Paulo Mota Pinto refere que a ratio do art. 859.º CC «consiste na necessidade de deixar claro que as partes quiseram a extinção da anterior obrigação e a sua substituição por uma nova», acrescentando que «o decisivo, parece ser, portanto, a certeza ou clareza do ato praticado pelas partes (...) e não tanto a noção de declaração tácita do art. 217.º, n.º 1»10.

E quanto à novação legal invocada – segundo a R., a entrada em vigor do DL 29/2006 teria operado uma novação legal: a extinção da obrigação decorrente do contrato iniciado em 02/12/1992 e a constituição ope legis, em seu lugar, de uma nova obrigação criada pelo Decreto-Lei n.º 29/2006 – trata-se de figura sem previsão legal e sem acolhimento, no plano do direito privado, na doutrina e jurisprudência portuguesas.

Em conclusão e como antecipámos, as diversas alterações legislativas ocorridas no Sistema Elétrico Nacional (SEN), designadamente em 2006, não tiveram qualquer efeito novatório sobre a relação contratual iniciada em 02/12/1992: tais alterações legislativas não revelam expressamente um qualquer animus novandi e da sua interpretação também não é possível retirar que o legislador pretendeu extinguir a obrigação de aquisição de energia elétrica titulada pelo contrato celebrado em 02/12/1992 e, em seu lugar, criar uma vinculação para a R. de igual natureza.

Como também antecipámos, a relação contratual iniciada em 02/12/1992 sofreu modificações, designadamente ao nível da respetiva titularidade, mas, pelo menos até 08/02/2018, manteve-se continuamente vigente.

E – é a questão que seguidamente se coloca – a partir de 09/02/2018, continuou e manteve-se identicamente vigente tal relação contratual (como sustenta a A.)?

Vejamos:

Em 28/02/2013, foi publicado o DL 35/2013, em cujo preâmbulo se afirmou:

“(…) Com o objetivo de, pela primeira vez, adequar a estratégia de promoção da produção de energia elétrica a partir de fontes de energia renováveis à necessidade de reduzir os custos com a sua prossecução, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro, que atualizou a remuneração da energia elétrica renovável produzida pelas novas instalações e estabeleceu, tanto para estas como para as instalações existentes, a aplicabilidade da remuneração garantida durante um prazo considerado suficiente para a recuperação dos investimentos realizados e para a obtenção de um retorno económico mínimo.

O Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro, veio igualmente prever que, a partir do termo dos referidos períodos de remuneração garantida, a eletricidade produzida e entregue à rede passa a ser remunerada pelos preços de mercado e pelas receitas obtidas pela venda de certificados verdes (…)

Complementarmente, o presente decreto-lei vem, pela primeira vez, estabelecer um prazo para a manutenção, quanto às PCH, das condições remuneratórias aplicáveis à data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro (prazo de 25 anos após a atribuição da respetiva licença de exploração), sem prejuízo do limite naturalmente imposto pela duração dos correspondentes títulos de utilização do domínio hídrico. A este respeito, tomou-se em consideração, seja na definição do referido limite temporal, seja na consagração da possibilidade de respetiva prorrogação, as exigências de tempo necessárias à recuperação e garantia de adequado retorno económico dos investimentos, à semelhança do que já tinha sido estabelecido no próprio Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro, relativamente às restantes tecnologias. (…)

Dispondo tal DL 35/2013, quanto ao seu objeto, logo no seu art. 1.º/2 que “o presente decreto-lei estabelece também um prazo para a manutenção, pelas pequenas centrais hídricas (PCH) submetidas ao regime remuneratório da eletricidade previsto no anexo II do Decreto-Lei n.º 189/88, de 27 de maio, na redação aplicável antes da data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro, das condições remuneratórias resultantes desse regime.”

E dispondo, em conformidade, no seu:

Art. 3.º

1 - Os centros eletroprodutores com regime anterior ao Decreto-Lei n.º 33-A/2005, de 16 de fevereiro, beneficiam desse regime remuneratório:

a) No caso das PCH, por um prazo de 25 anos a contar da data de atribuição da respetiva licença de exploração ou até ao final da respetiva licença de utilização de água para produção de eletricidade, consoante a data que se verificar mais cedo;

(…)

2 - No final do prazo de 25 anos referido na alínea a) do número anterior e até final do prazo fixado na correspondente licença de utilização de água para produção de eletricidade, a eletricidade produzida pelas PCH é vendida em regime de mercado, sem prejuízo da possibilidade de acesso dessas centrais ao sistema de certificados verdes, que, à data e nos termos da lei, possa eventualmente existir.

(…)”

Sendo em razão do que decorre de tal art 3.º/1/a) e 2 do DL 35/2013 – que estabelece que os PCH, decorrido o prazo de 25 anos a contar da data de atribuição da respetiva licença de exploração, deixam de beneficiar de regime remuneratório e passam a vender a eletricidade produzida em regime de mercado – que se coloca a questão da extinção da relação contratual iniciada em 02/12/1992.

Efetivamente, tal prazo de 25 anos (referido na alínea a) do art. 3.º/1 do DL 35/2013) verificou-se, em relação à A., no dia 9/02/2018, motivo pelo qual, em 25/07/2027, como consta do ponto 14 dos factos provados, a Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) informou a A. “que a data da passagem para o regime de mercado [da Central da A.] será a partir de 9 de Fevereiro de 2018 (…)”.

E quanto a isto (quanto à Central da A., a partir de 09/02/2018, perder o benefício remuneratório e ingressar no chamado “regime de mercado”) não existe – até pela clareza do DL 35/2013 a tal propósito – a menor divergência entre as partes: até 09/02/2018, a energia comprada à A. era, como consta dos pontos 61 e 62 dos factos provados, remunerada a um preço garantido (que resultava do Regulamento Tarifário publicado pela ERSE), superior ao preço médio de transação de energia no MIBEL, mas a A. não pretende que lhe seja pago tal preço bonificado pela energia que comprovadamente, após 09/02/2018, continuou a injetar na rede, pretendendo apenas que a R. remunere/pague tal energia aos preços médios do MIBEL (Mercado Ibérico de Eletricidade).

A propósito da questão de saber se, após 09/02/2018, o contrato continuou vigente, observou-se na sentença da 1.ª instância que “a alteração do regime legal e a passagem da A. para o regime de mercado conduziu a que a obrigação de aquisição da totalidade da energia produzida pela A. ao preço bonificado tivesse desaparecido. Ou seja, o objeto do contrato deixou de existir. O contrato foi celebrado ao abrigo dessa legislação contemplando obrigações legais que da mesma decorriam, com vista a incentivar as energias renováveis e os pequenos produtores. Mas esse incentivo legal cessou, pelo decurso do tempo, e a A. passou a ser um produtor como qualquer outro e integrado num regime de mercado a par dos demais”; ou seja, configurou-se a alteração legislativa que determinou o termo do regime remuneratório especial como uma vicissitude que levou ao desaparecimento do objeto do contrato e considerou-se que a obrigação de aquisição de energia elétrica, estabelecida no contrato de 02/12/1992, se tinha extinto por impossibilidade, atendendo à mudança do regime legal, nos termos do artigo 790.º do Código Civil (o que, perante este enquadramento, determinou a extinção da obrigação/contraprestação da R. de pagar o preço pela energia, nos termos do artigo 795.º CC.).

O acórdão recorrido, em sentido diverso, considerou que as várias alterações legislativas – as que determinaram a alteração do quadro legal aplicável à atividade da R. e o termo do regime remuneratório especial – não tinham por efeito a extinção da relação contratual em apreço, sendo por isso devido o preço da energia injetada após 9/02/2018.

Que dizer?

A A., fora de qualquer dúvida, deixou de ter direito a que a R. lhe adquirisse energia mediante uma remuneração bonificada (como já referimos, o DL 35/2013 não dá, a tal propósito, lugar a dúvidas interpretativas e a própria A. aceita que a lei deixou de lhe conferir o direito a uma remuneração especial).

Mas daqui não se retira, a nosso ver, que o objeto do contrato tenha deixado de existir.

Refere Pedro Pais de Vasconcelos11 que “a doutrina mais antiga, principalmente a anterior ao C. Civil de 1966, adotava uma noção ampla de objeto do negócio jurídico que abrangia a de objeto propriamente dito e a do seu conteúdo. Distinguia, depois, esse género amplo de objeto em duas espécies: objeto mediato e objeto imediato. O objeto mediato referia o que hoje se entende por objeto, isto é, o quid sobre o qual incide a disciplina negocial; o objeto imediato referia a disciplina instituída pelo negócio jurídico, isto é, o seu conteúdo. Andrade é muito claro e escreve: “podemos distinguir aqui o objeto imediato ou conteúdo, isto é, os efeitos jurídicos a que o negócio tende, conforme as declarações de vontade das partes e a lei aplicável; e o objeto mediato ou objeto stricto sensu, que tem a ver com o quid sobre que recaem aqueles efeitos”. (…) Numa compra e venda, por exemplo, o objeto (objeto mediato) é a coisa que é comprada e vendida; é esta coisa que é objeto stricto sensu da compra e venda. O conteúdo (objeto imediato) dessa mesma compra e venda é a auto-regulação estipulada entre comprador e vendedor, é a disciplina jurídica instituída e posta em vigor pelo contrato”.

Identicamente, refere Carlos Mota Pinto12 que “deve distinguir-se entre: a) objeto imediato ou conteúdo – efeitos jurídicos a que o negócio tende; b) objeto mediato ou objeto stricto sensu – consiste no «quid» sobre que incidem os efeitos do negócio”.

Assim, no caso, estando-se perante um contrato de fornecimento de energia elétrica – contrato esse que se carateriza “pelo caráter contínuo da prestação não monetária (…), [em que é] frequente a qualificação doutrinária (…) como subtipo da compra e venda (…) [embora mais adequado seja] a sua qualificação como contrato-quadro, no âmbito do qual se celebram múltiplos contratos de compra e venda ou de prestação de serviço (…)”13 – o “quid” sobre que incidem os efeitos do negócio é a eletricidade14, que constitui por isso o seu objeto, o qual, como é evidente, não se pode dizer que tenha deixado de existir.

Mas, sem prejuízo do objeto contratual continuar a existir e de a A. continuar disponível e a cumprir a sua prestação/obrigação contratual (injetando energia na rede, como estava previsto no contrato), o certo é que a sua contraparte, a aqui R., como CUR, ficou sujeita, pelo DL 29/2006, a um regime que não lhe permite adquirir eletricidade “livremente”.

A R., como já se referiu, exercia a atividade de comercialização de último recurso (e, repete-se, apenas exercia as atividades associadas ao seu estatuto de CUR), atividade que é “separada juridicamente das restantes atividades, incluindo outras formas de comercialização, sendo exercida segundo critérios de independência, definidos na lei e no Regulamento das Relações Comerciais” (cfr. art. 47.º/1 do DL 29/2006); atividade que, ainda segundo o art. 42.º/4 do DL 29/2006, “deve obedecer às condições estabelecidas no presente decreto-lei, em legislação complementar, no Regulamento de Relações Comerciais e no Regulamento da Qualidade de Serviço”.

E entre tais condições/regras estabelece, repete-se, o art. 49.º/2 do DL 29/2006 (e identicamente o art. 52.º/2 do DL 172/200615) que:

a) O comercializador de último recurso deve adquirir a eletricidade produzida pelos produtores em regime especial com remuneração garantida nos termos da lei, nas condições estabelecidas na legislação complementar;

b) O comercializador de último recurso pode adquirir eletricidade para abastecer os seus clientes em mercados organizados, ou através de contratos bilaterais mediante a realização de concursos ou através de outros procedimentos definidos em legislação complementar;

c) Os contratos estabelecidos de acordo com a alínea anterior carecem de aprovação nos termos do Regulamento de Relações Comerciais.

Ou seja, à época, em 09/02/2018, a lei (o DL 29/2006 e o DL 172/2006) não permitia que o CUR, sem mais, continuasse a adquirir eletricidade à A..

A A. havia deixado de ser um produtor em regime especial com remuneração garantida, pela que a obrigação legal de negociar a aquisição de energia elétrica por parte da R. havia desaparecido; por outro lado, continuar a adquirir eletricidade à A. a preços de mercado não corresponderia ao que se refere na alínea b) do art. 49.º/2, ou seja, não corresponderia nem à aquisição de eletricidade em mercados organizados nem à aquisição de eletricidade através de contratos bilaterais mediante a realização de concursos ou através de outros procedimentos definidos em legislação complementar.

A referência feita na alínea a) do art. 49.º/2 à aquisição de eletricidade a “produtores em regime especial, nas condições estabelecidas na legislação complementar” não inclui a A., que tinha naquele data deixado de beneficiar da produção em regime especial (e a legislação complementar a que ali se alude já não seria o DL 189/88, ao abrigo do qual foi celebrado o contrato com a A.).

Ademais, a possibilidade de aquisição de eletricidade através de contratos bilaterais, como se refere na alínea b) do art. 49.º/2, estaria dependente de um procedimento concursal na formação do contrato e de uma aprovação (pela ERSE) “nos termos do Regulamento de Relações Comerciais”, o que, naturalmente, constituiria a celebração de um novo e diferente vínculo contratual em relação ao celebrado em 02/12/1992.

Mais, a venda em regime de mercado, imposta à A. pelo já citado art. 3.º/2 do DL 35/2023, corresponde a uma atividade de comercialização em que a R. (exercendo apenas as atividades de CUR e não a atividade de comercialização em regime de mercado) não atua.

Enfim, findo o prazo durante o qual a A. beneficiava de remuneração bonificada/garantida, teria a A. de procurar um comercializador de mercado que lhe comprasse a energia produzida a preços estabelecidos no âmbito de tal relação de mercado, ou seja, ao aludir-se à venda em regime de mercado, o legislador está a referir-se à venda no âmbito de um mercado livre e concorrencial e não a uma venda da energia ao CUR a preços não bonificados/garantidos.

Assim, o obstáculo – a ilegalidade, como a R. argumenta – não estaria exatamente em a R., como CUR, ter deixado de poder remunerar a A. através de uma contraprestação bonificada, estava sim em a R., tendo de obedecer à regulação constante do DL 29/2006 e do DL 172/2006, não poder adquirir eletricidade à A. nos termos por esta aqui pretendidos.

A lei (os citados arts. 49.º/2 e 52.º/2) podia ter previsto ou admitido que, após o fim da obrigação legal de negociar a aquisição (a preço bonificado), o CUR podia continuar a adquirir eletricidade (aos produtores que haviam saído do regime especial), a preços de mercado ou a um outro qualquer preço combinado/negociado pelas partes, porém, não foi o que fez, afastando, tendo em vista a aquisição de eletricidade por parte do CUR, que pudesse ser suficiente a “negociação particular” entre o CUR e o produtor que tivesse saído do regime especial (a alínea c) do art. 52.º/2 diz, muito expressivamente, que “os contratos estabelecidos de acordo com a alínea anterior carecem de aprovação nos termos do Regulamento de Relações Comerciais).

E isto – o que decorre das regras/condições estabelecidas pelo art. 49.º/2 do DL 29/2006 e pelo art. 52.º/2 do DL 172/2006 para a aquisição de eletricidade por parte do CUR – configura, quanto ao seu impacto jurídico no contrato iniciado em 02/12/1992, uma impossibilidade superveniente da prestação/obrigação da R..

Corresponde à situação prevista no art. 790.º do C. Civil que, como refere Antunes Varela, usa uma fórmula mais ampla que o Código anterior, “pois abrange o caso da impossibilidade ser imputável a terceiro ou à própria lei, que a outra não abarcava no seu texto, além de tocar diretamente as duas notas fundamentais (impossibilidade de prestação, por um lado; e não imputabilidade da causa ao devedor, por outro) justificativas da exoneração da responsabilidade do obrigado”16.

E a consequência fundamental da impossibilidade superveniente da prestação, por causa não imputável ao devedor, é a extinção da obrigação, com a consequente exoneração do obrigado.

Efetivamente, se a R., como CUR, em razão das regras/condições estabelecidas polo art. 49.º/2 do DL 29/2006 e 52.º/2 do DL 172/2006, deixou de poder adquirir eletricidade por mera “negociação particular” à A., ficou impossibilitada pela lei – isto é, por razão que não é imputável à R. – de cumprir a sua prestação que, no contrato em causa, se traduzia justamente na aquisição e pagamento do preço da eletricidade.

E se, num contrato sinalagmático, uma das partes não pode realizar a sua prestação, fica a contraparte desobrigada da prestação (cfr. art. 795.º/1 do C. Civil), podendo esta extinção recíproca das prestações ser designada por caducidade17, na medida em que a cessação do contrato decorre de um facto jurídico não dependente de uma declaração de vontade, ou seja, o vínculo contratual não cessa por força de uma vontade emitida com essa finalidade, mas ipso facto18.

Argumenta a A., com o que se concorda, que o nosso sistema legal “não se opõe à falta da indicação do preço, nem à sua indeterminação originária, para a constituição válida e eficaz da obrigação de pagamento, tampouco reage com a invalidação ou ineficácia do vínculo, quando esta falta ocorra supervenientemente”; e daqui extrai, com o que já não se concorda, que “a partir do dia 9 de fevereiro de 2018, deixando de aplicar-se o critério de determinação do preço acordado pelas partes – que ao recorrerem a um critério legalmente estabelecido, aceitaram implicitamente sujeitar-se às respetivas alterações e vicissitudes – haveria que aplicar o critério supletivo, estabelecido no artigo 883.º/1 CC, enquanto as partes não renegociassem o contrato, nos termos da Cláusula 23.ª, [pelo que] o preço da eletricidade fornecida deveria, assim, ser determinado pelo preço de mercado, nos termos do artigo 883.º/1, pela falta de preço normalmente praticado pelo vendedor”.

Mas, como se referiu, a questão não é de indeterminação do preço: como resulta do art. 49.º/2 do DL 29/2006 e 52.º/2 do DL 172/2006 a atividade da R., como CUR, está regulada na lei e não lhe permite negociar a aquisição de eletricidade a partir da prorrogação ou da renegociação dos contratos com produtores que hajam saído do regime especial.

Concorda-se que as partes, “ao aceitar a fórmula legal como critério de determinação do preço, aceitaram também a sujeição a eventuais alterações que, pela mesma via legislativa, viessem a ocorrer, no futuro”, mas tal não significa que, por via legislativa, não se pudesse, como é/foi o caso, provocar a caducidade do contrato.

Nesta linha de raciocínio, a cláusula 23.ª do contrato de 02/12/1992, em que se prevê, é certo, a renegociação do contrato e a sua manutenção em vigor “até à nova versão do contrato”, não confere um qualquer “direito” contra o que possa vir a ser determinado por via legislativa, ou seja, independentemente do exato sentido de tal cláusula 23.ª (e até utilidade, num contrato em que a liberdade de estipulação era bastante restrita e em que o preço/remuneração era fixado por uma “fórmula legal”), não podia/de haver renegociação ou manutenção do contrato contra legem (e portanto não podia tal cláusula conferir tal faculdade).

Ressoa da trajetória dos vários diplomas convocáveis, maxime dos DL 29/2006, 172/2006 e 35/2013, que o escopo inicial de incentivar a produção independente de energia elétrica, em especial com a utilização de recursos renováveis, se “extinguiu” e que a passagem de tais produtores para o chamado “regime de mercado”, significava, à luz de tais diplomas, que as PCH (Pequenas Centrais Hídricas) teriam de encontrar uma nova e diferente modalidade de contratação.

O que, resulta dos autos, não terá corrido bem, na medida em que parece não ter sido devidamente acautelada a posição de tais produtores independentes.

Como consta dos factos:

“(…)

50. A dimensão da central hidroelétrica da A. é de 530 KW, pelo que a sua produção não tem expressão significativa para ser remunerada em regime de mercado.

51. Por não utilizar qualquer armazenamento de água (vulgo barragem) - antes depender do fio de água que corre continuamente e cujas oscilações em termos de caudal são totalmente imprevisíveis - não é possível estabelecer previsões de produção.

52. Estes dois fatores acabaram por inviabilizar a possibilidade de a A. interessar qualquer empresa na aquisição, em regime de mercado, da energia que continuava a ser produzida, no momento em que passou para o regime de mercado.

36. A DGEG, em 22 de Outubro de 2018, em carta enviada ao A. refere estar “ciente das dificuldades desta central, bem como de todas as pequenas centrais que passaram ou irão passar para regime de mercado e uma vez que ainda não foi criada a figura do facilitador/agregador de mercado, tem desenvolvido esforços no sentido de resolver esta situação” estando a “analisar o assunto com o objetivo de providenciar uma proposta para submissão à Tutela, esperando poder brevemente ter uma solução que seja razoável e não impeditiva da continuidade de laboração”19.

38. O gabinete do Secretário de Estado da Energia, em mail enviado ao A. refere: “no âmbito das alterações legislativas atualmente em curso, está a ser equacionada uma solução passível de resolver, situações do tipo da que apresentou” e “que existem vários comercializadores em regime livre capacitados para apresentar propostas comerciais para a colocação da energia eléctrica produzida pela central hídrica”.

E em linha com tudo isto – em que a “tutela” do setor elétrico reconhece as “dificuldades” de Centrais como a da A. (“dificuldades” justamente decorrentes do contrato de compra de energia ter terminado) – veio o DL n.º 76/2019, de 03 de Junho, estabelecer o seguinte:

Art. 8.º

Norma transitória

1 - Enquanto não for atribuída a licença de facilitador de mercado prevista no artigo 55.º-B do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, na sua redação atual, o comercializador de último recurso (CUR), com atribuições à escala do Continente, assegura a aquisição da energia elétrica produzida ao abrigo do regime de remuneração geral pelos produtores em regime especial cuja potência autorizada de injeção na Rede Elétrica de Serviço Público (RESP) não exceda 1 MW.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o CUR celebra contrato de compra e venda da energia elétrica com o produtor que o solicitar, mediante subscrição de formulário disponibilizado nos eu sítio na Internet.

3 - Os termos e condições do contrato de compra e venda referido no número anterior são definidos pela ERSE.

4 - Nos casos referidos no n.º 1, a remuneração da energia elétrica fornecida à RESP é calculada de acordo com a seguinte expressão:

(…)

5 - A energia elétrica adquirida ao produtor referido no n.º 1 é vendida em mercado através de uma unidade de programação distinta da utilizada pelo CUR no âmbito da função de compra e venda de energia elétrica da produção em regime especial com remuneração por tarifa garantida.

6 - O membro do Governo responsável pela área da energia pode alterar, mediante despacho a publicar no Diário da República, o limite de potência de injeção previsto no n.º 1. (…)

Na sequência do que a ERSE aprovou a instrução 3/2020, respeitante à “minuta de contrato que permite aos pequenos produtores de eletricidade em regime especial – com potência até 1MW – efetuar a venda (paga ao preço médio de mercado) de energia elétrica ao CUR SU Eletricidade”;

Acrescentado a ERSE que “esta obrigação transitória de comercialização de último recurso (CUR), em assegurar a compra de energia elétrica produzida ao abrigo do regime de remuneração geral pelos produtores em regime especial, em Portugal Continental, vai vigorar até ser atribuída a licença de facilitador de mercado. O facilitador de mercado é uma atividade prevista na lei, orientada para a aquisição de energia em condições reguladas, mas que ainda não foi concretizada com a escolha da entidade que desempenha essa função. (…)

A instrução da ERSE determina ainda que os referidos contratos a serem celebrados pelo CUR e os produtores podem, se solicitado e devidamente comprovado, ter efeitos a 1 de Março de 2020, o que implica que seja paga energia no âmbito do contrato desde essa data (…)”.

Corroborando tudo isto a interpretação acima feita do art. 49.º/2 do DL 29/2006 e do art. 52.º/2 do DL 172/2006, ou seja, que a lei não permitia ao CUR adquirir eletricidade às PCH (cujo regime remuneratório especial houvesse terminado), ainda que a partir da prorrogação ou da renegociação dos contratos que haviam terminado (repare-se que a norma legal – art. 8.º do DL n.º 76/2019, de 03 de Junho – que veio atribuir esta função provisoriamente ao CUR, apenas entrou em vigor em julho de 2019, momento em que a R. já havia celebrado contrato com um operador de mercado – cfr. ponto 58 dos factos provados).

E foi sempre esta posição – do contrato de 02/12/1992 ter terminado no dia 08/02/2018 – que a R. transmitiu à A..

O que resulta, inter alia, dos seguintes factos:

Enviou-lhe, na simulação do mês de Fevereiro de 2018, a energia produzida tão só até ao respetivo dia 8, simulação que a A. aprovou (pontos 16 a 20 dos factos provados);

Nunca deu à A. “qualquer indicação no sentido de esta continuar a injetar energia na rede, tal como nunca referiu que iria (ou sequer poderia) adquirir a energia oriunda da Central de ... após a transição para o regime de mercado” (ponto 22 dos factos);

Comunicou à E-REDES (que é quem opera a rede) que, a partir do dia 09/02/2018, a energia injetada na rede pela A. transitava para o regime de mercado e que a energia vendida pela R. no mercado grossista diário deixava de incluir os volumes de energia que a A. continuasse a injetar na rede (pontos 24 a 29 dos factos).

Sendo que, a partir de 09.02.2018, o Operador da Rede de Transporte (a REN – Rede Eléctrica Nacional, S.A) também deixou de considerar a energia oriunda da Central de... para efeitos de cobrança da tarifa de uso da rede de transporte (ponto 31 dos factos).

Ou seja, não teve a R. qualquer comportamento (conquanto o mesmo até pudesse ser em desrespeito pelos referidos arts. 49.º/2 do DL 29/2006 e 52.º/2 do DL 172/2006) que possa ser interpretável como uma declaração de vontade no sentido de adquirir a energia elétrica produzida/injetada pela A. na rede após 09/02/2018, ou seja, cessado o anterior vínculo contratual ipso facto, por caducidade, também não se constituiu um novo vínculo contratual entre as partes, não podendo ser imputado à R. o incumprimento da prestação de pagamento do preço desse novo vínculo contratual e, em consequência, aqui exigido judicialmente o seu cumprimento (art. 817.º do C. Civil).

E do mesmo modo também não pode ser concedida a verba correspondente ao valor da energia injetada na rede pela A. após 09/02/2018, a título de enriquecimento sem causa e da respetiva obrigação de restituir.

Sem entrar sequer na apreciação da prescrição invocada pela R. (a ação entrou em Dez. 2021, a energia em causa diz respeito ao lapso temporal compreendido entre 09/02/2018 e Abril de 2019 e o direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve, segundo o art. 482.º do C. Civil, no prazo de 3 anos a contar do conhecimento do direito), o certo é, como resulta da globalidade da factualidade provada – e decorre da especificidade do próprio bem em causa (e do modo como o mesmo é fornecido), da estrutura organizativa do setor elétrico e da atividade regulada do CUR – que a R. não retirou qualquer vantagem/enriquecimento da energia injetada pela A. na rede após 09/02/2018, ou seja, falha logo o primeiro requisito (cfr. art. 473.º/1 do C. Civil) da obrigação de restituir: ter havido um enriquecimento da R..

É quanto basta, em face de tudo isto, para conceder a revista e para, repristinando o decidido pela 1.ª Instância, absolver a R. de todos os pedidos.

*

IV – Decisão

Nos termos expostos, concede-se provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido e, repristinando-se o decidido pela 1.ª Instância, absolve-se a R. de todos os pedidos.

Custas, nas Instâncias e neste STJ, pela A..

Lisboa, 03/07/2025

António Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Martins de Oliveira

Fátima Gomes, Vencida.

Teria confirmado o acórdão recorrido pelas seguintes razões.

Não se acompanha a fundamentação nem a decisão a partir do ponto em que aí se diz:

Mas, sem prejuízo do objeto contratual continuar a existir e de a A. continuar disponível e a cumprir a sua prestação/obrigação contratual (injetando energia na rede, como estava previsto no contrato), o certo é que a sua contraparte, a aqui R., como CUR, ficou sujeita, pelo DL 29/2006, a um regime que não lhe permite adquirir eletricidade “livremente”. (p. 35 e ss, nossa versão)

Sendo certo que com o DL 29/2006 há uma mudança na atribuições da R. em relação ao sistema anterior, por se separar a produção da comercialização e a SU ser a penas CUR, não resulta dessa mudança que a CUR não possa adquirir energia eléctrica, honrando compromissos existentes; e por isso a SU honra o acordo até 8/2/2018. Isto significa que o problema da vigência do contrato – por caducidade ou impossibilidade legal relativa à CUR – não se coloca, sem prejuízo de a mesma passar a ter de respeitar outro modo de actuação na ordem jurídica, nomeadamente respeitando regras e procedimentos administrativos – como seja celebrar contratos através de concurso ou procedimentos definidos na legislação complementar – 52.º, n.º2 do DL 172/2006.

Tratando-se de uma obrigação que impende sobre a CUR o facto de a mesma não respeitar as obrigações legais, não significa que a mesma possa invocar essa legislação para dizer que o anterior contrato celebrado com a A. deixou de gerar para si obrigações, pois, ainda que se admita essa possibilidade, não se compreende que tenha procedido como vem provado nos fp seguintes -

26. Pelas 10.49 h. de 9/2/2018, a R. enviou à E-REDES uma mensagem de correio electrónico, com o seguinte teor:

“Fazemos referência ao PRE nº 40 – EXPLOR. AGRO PECUÁRIA PINTO TRIUNFANTE DE V. CAMBRA, LDA (.../…)

Conforme a digitalização que se anexa do Ofício nº 10828 da DGEG, o referido PRE transitou para o regime de mercado a partir de 9 de Fevereiro de 2018.

A potência instalada da central é de 625 kVA, tendo o produtor aderido à autofacturação electrónica.

Agradecia que considerasse o disposto no referido Ofício e que desse conhecimento à equipa da Direcção de Gestão de Energia.

Vimos solicitar-lhe a introdução na Aplicação GPCE da energia produzida de 1 de Fevereiro até às 0h do dia 9 de Fevereiro.

Com os melhores cumprimentos”.

27. A informação recebida pela R. a este respeito deixou de fazer qualquer referência à energia produzida pela A. pelo que, a partir da referida data, a energia vendida pela R. no mercado grossista diário deixou de incluir os volumes de energia que a A. terá continuado a injectar na rede.

28. Para efeitos de facturação, a R. recebe mensalmente da E-REDES a informação sobre o volume total mensal da energia injectada na rede por cada um dos produtores em PRE com remuneração garantida.

29. Informação que também deixou de incluir qualquer energia injectada pela A. a partir de 09.02.2018.

30. Do mesmo modo, a cessação da aquisição da energia da A. pela R. manifestou-se ainda no plano das tarifas devidas pelo facto de a energia adquirida à PRE transitar na rede de transporte (uso da rede de transporte).

31. Com efeito, verifica-se que, a partir de 09.02.2018, o Operador da Rede de Transporte (a REN – Rede Eléctrica Nacional, S.A) deixou de considerar a energia oriunda da Central de … para efeitos de cobrança da tarifa de uso da rede de transporte, enquanto a lista relativa a Fevereiro ainda mencionava a A., a lista referente a Março deixou de mencionar a A. (a lista já não faz referência ao código do ponto de entrega (CPE) referente à Central de ..., ou seja, já não contém a referência “PT0002990071878617XY”),

sem ter entrado em contacto com a A. para lhe dar a conhecer a sua posição sobre o contrato de 1992 – informando-a de que o mesmo, na sua perspectiva estaria caducado.

E porque a lei não lhe veda a celebração de contratos de aquisição de energia, a manutenção da relação havida com a A. não estaria impedida.

Se a mesma devia obedecer a outros moldes é questão diversa.

Se a inobservância do novo modelo geraria a invalidade da contratação realizada sem o respeito dessas regras é outra questão.

Mas claramente, no que respeita ao relacionamento com a A., estamos em crer que o vínculo contratual se mantinha – e porque foi a R. quem activou mecanismos técnicos que impediram que beneficiasse da prestação oferecida pela A., é sua responsabilidade responder pelo incumprimento da obrigação de pagar o preço do bem “adquirido”.

Não vemos no regime do art.º 49.º e 52.º das leis citadas no projecto uma impossibilidade superveniente da prestação.

Essa mesma ideia resulta do DL 76/2019, no seu art.º 8º -

Artigo 8.º

Norma transitória

1 - Enquanto não for atribuída a licença de facilitador de mercado prevista no artigo 55.º-B do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, na sua redação atual, o comercializador de último recurso (CUR), com atribuições à escala do Continente, assegura a aquisição da energia elétrica produzida ao abrigo do regime de remuneração geral pelos produtores em regime especial cuja potência autorizada de injeção na Rede Elétrica de Serviço Público (RESP) não exceda 1 MW.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o CUR celebra contrato de compra e venda da energia elétrica com o produtor que o solicitar, mediante subscrição de formulário disponibilizado no seu sítio na Internet.

3 - Os termos e condições do contrato de compra e venda referido no número anterior são definidos pela ERSE.

4 - Nos casos referidos no n.º 1, a remuneração da energia elétrica fornecida à RESP é calculada de acordo com a seguinte expressão:

Rm(índice PREi, m) = E(índice PREi, m) x Prm(índice MIBEL-PT, m) - Enc(índice PREi, m)

sendo:

a) «Rm(índice PREi, m)» - A remuneração da energia elétrica fornecida à RESP pelo produtor i no mês «m», em (euro);

b) «E(índice PREi, m)» - A energia elétrica fornecida à RESP pelo produtor i no mês «m», em kWh;

c) «Prm(índice MIBEL-PT, m)» - A média aritmética simples dos preços horários de fecho do mercado diário, afetos à área portuguesa do Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), publicados pelo Operador do Mercado Ibérico, polo espanhol (OMIE), ajustada ao perfil de produção do produtor i, relativos ao mês «m», em (euro)/kWh;

d) «Enc(índice PREi, m)» - Os encargos, nos termos definidos pela ERSE, suportados com a representação em mercado do produtor i, nomeadamente os desvios à programação, devido à participação na área portuguesa do MIBEL, a tarifa de acesso à rede e outros encargos, relativos ao mês «m», em (euro);

e) «m» - O mês a que se refere a contagem da energia elétrica fornecida à RESP pelo produtor i.

5 - A energia elétrica adquirida ao produtor referido no n.º 1 é vendida em mercado através de uma unidade de programação distinta da utilizada pelo CUR no âmbito da função de compra e venda de energia elétrica da produção em regime especial com remuneração por tarifa garantida.

6 - O membro do Governo responsável pela área da energia pode alterar, mediante despacho a publicar no Diário da República, o limite de potência de injeção previsto no n.º 1.

Artigo 12.º

Entrada em vigor e produção de efeitos

1 - O presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o artigo 8.º do presente decreto-lei entra em vigor 45 dias após a publicação do presente decreto-lei.

3 - A revogação prevista na alínea c) do artigo 10.º produz efeitos quatro meses após a publicação do presente decreto-lei, mantendo-se em vigor, na parte aplicável às unidades de produção a partir de fontes de energia renovável até 1 MW e no que não contrarie o presente decreto-lei, o Decreto-Lei n.º 153/2014, de 20 de outubro e respetiva regulamentação.

4 - O disposto no número anterior não prejudica as unidades de pequena produção já instaladas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 153/2014, de 20 de outubro.

Deste regime decorre que o legislador mandou celebrar novos contratos pela SU, nos termos do art.º 8.º, mas não que os anteriores contratos tenham cessado ou que fossem de cumprimento impossível.

Adere-se, assim, ao acórdão recorrido quando diz:

“Do mesmo modo, constata-se que do regime legal acima explanado, e aplicável à actividade desenvolvida pela R., não emerge a proibição de a mesma figurar como compradora num contrato de compra e venda de electricidade, nem tão pouco a proibição de a R. adquirir electricidade a quem não seja PRE, nem tão pouco a proibição de pagar pela electricidade que adquire qualquer outro preço que não corresponda à referida remuneração garantida.

Ou seja, a concreta regulação a que a R. está sujeita prende-se com a realização efectiva de um serviço universal de fornecimento de electricidade. E o respectivo regime legal regulatório não estabelece qualquer proibição de a R. adquirir electricidade a quem não seja PRE (isto é, que não beneficie da referida remuneração garantida). Do mesmo modo, a finalidade dessa regulação (a referida realização efectiva do serviço universal de fornecimento de electricidade), quando aplicável à actividade da R. de aquisição de electricidade para abastecer os seus clientes, também não demanda, por si só, essa proibição, mas antes a expressa possibilidade de a R. adquirir electricidade a quem não seja PRE, designadamente através de contrato celebrado com o produtor em questão.

Pelo que se impõe a conclusão da inexistência de qualquer proibição no sentido de a R. adquirir a electricidade produzida pela A., a partir da transição desta para o regime de mercado, em 9/2/2018.”

(…)

“Do mesmo modo, não se pode afirmar que a electricidade em questão deixou de ser entregue à R.

É certo que resulta provado que a electricidade que foi injectada na rede pela A. (2.305.023 kWh, entre 9/2/2018 e 24/4/2019) deixou de ser comunicada à R. pelo operador de rede (a E-REDES), apesar de continuar a ser medida pelo mesmo (e só assim ficou apurada a referida medida total de 2.305.023 kWh).

Mas também resulta provado que tal cessação de comunicação ocorre na sequência da mensagem de correio electrónico de 9/2/2018, dirigida pela R. à E‑REDES, nos termos da qual a R. deu conhecimento à E-REDES que a A. transitou para o regime de mercado nesse mesmo dia, mais solicitando que essa informação fosse transmitida à “equipa da Direcção de Gestão de Energia”, e solicitando ainda que na “Aplicação GPCE” fosse apenas considerada a electricidade produzida pela A. até 8/2/2018 (inclusive).

Tendo presente que as medições efectuadas pela E-REDES são comunicadas à R. no exclusivo interesse desta, pois que servem para efeitos de facturação da electricidade adquirida e revendida pela R. (ponto 25.), aquilo que se apreende do teor da comunicação de 9/2/2018 é que a R. não mais pretendia conhecer a quantidade de electricidade injectada na rede pela A.

Ou seja, se é certo que as medições da quantidade de electricidade injectada pela A. na rede deixaram de ser comunicadas à R. pela E-REDES, tal só sucedeu em razão da vontade da R. nesse sentido.

E como é dessa vontade da R. (quanto ao desconhecimento da quantidade de electricidade injectada na rede pela A.) que emerge a consequente não facturação de 2.305.023 kWh, injectados entre 9/2/2018 e 24/4/2019 (ponto 75.), é forçoso concluir que a exclusão dessa quantidade de electricidade do portfolio de electricidade adquirido pela R. nesse período (ponto 75.), bem como a consideração da sua não aquisição e consequente não venda (ponto 77.), desde logo para efeitos do apuramento por parte da ERSE dos proveitos permitidos da R. (pontos 65. a 71.), apenas à R. é imputável.

Dito de forma mais simples, a consideração do não recebimento por parte da R. da electricidade produzida pela A. decorre exclusivamente da actuação da R.”

(…)

Pelo que, ainda que fosse de afirmar que esse não recebimento corresponde ao não cumprimento da obrigação contratual de entrega de electricidade por parte da A., a partir de 8/2/2018, tal não cumprimento nunca seria imputável à A., mas antes seria exclusivamente imputável à R., porque foi a mesma quem criou as condições para passar a considerar que não recebeu da A. a electricidade produzida pela mesma.

Ou seja, e como bem refere a A., a falta de cumprimento da sua prestação (a entrega da electricidade) é de imputar à actuação da R., credora dessa prestação. Nessa medida, e tendo presente o disposto no art.º 813º do Código Civil, há que afirmar a mora da R. no recebimento dessa prestação, a determinar que, ainda que a R. possa ter perdido o direito à electricidade produzida pela A. e injectada na rede (2.305.023 kWh, entre 9/2/2018 e 24/4/2019), não ficou desobrigada da contraprestação, por força do disposto no nº 2 do art.º 815º do Código Civil.

O que é o mesmo que afirmar a obrigação da R. de pagar à A. o preço dessa electricidade, cuja propriedade a A. transmitiu para a R., nos termos do contrato celebrado em 2/12/1992.

E se é certo que tal preço não mais podia ser aquele correspondente à remuneração garantida a um PRE (situação em que a A. já não se encontrava, porque havia transitado desse regime especial para o regime de mercado), também se viu já que inexistia qualquer proibição de a R. adquirir electricidade pagando outro preço (de mercado) distinto da remuneração garantida aos PRE. O que significa, desde logo, que não se pode acompanhar a fundamentação constante da sentença recorrida, no sentido de o contrato se ter por resolvido ao abrigo da sua cláusula 26ª (onde se convencionou, para além do mais, que “o presente contrato resolve-se nos casos previstos na legislação em vigor”), face à inexistência de preceito legal que determine tal resolução, no caso da transição da A. do regime especial para o regime de mercado.

Acresce que a possibilidade de a R. adquirir electricidade a preço de mercado resulta igualmente dos termos da licença de CUR identificada em 10. (o seu teor consta do documento 9 junto com a contestação), na medida em que aí se prevê expressamente o dever de a R. adquirir electricidade em cumprimento de obrigações definidas ou reconhecidas por despacho do Director Geral da DGEG.

Está demonstrado que a A. solicitou à DGEG que ordenasse à R. o pagamento da remuneração devida pela electricidade produzida e que a A. continuava a injectar na rede, após 8/2/2018. Na sequência dessa solicitação a DGEG manteve contactos com a R., no âmbito dos quais esta facultou à DGEG os elementos necessários à determinação do referido valor de mercado da electricidade produzida pela A. e injectada na rede (2.305.023 kWh, entre 9/2/2018 e 24/4/2019). Pelo que, tendo presente a comunicação da Subdirectora Geral da DGEG à A., no âmbito dos contactos em questão com a R., é de afirmar o competente reconhecimento da obrigação contratual da R. de pagar à A. o preço de mercado da electricidade produzida pela A. e injectada na rede (2.305.023 kWh, entre 9/2/2018 e 24/4/2019).

E tendo presente que por esse organismo da administração pública central foi ainda apurado que a média geral mensal dos preços no mercado ibérico de electricidade se situou em € 53,43 por MWh., entre Fevereiro de 2018 e Abril de 2019, o preço total de mercado dos referidos 2.305.023 kWh de electricidade ascende então a € 123.157,38.

O que equivale a afirmar que a obrigação da R. de remunerar a A. pela electricidade produzida por esta e injectada na rede entre 9/2/2018 e 24/4/2019 corresponde ao pagamento da referida quantia de € 123.157,38.

E, como já se referiu, inexiste qualquer impedimento legal a que a R. cumpra com essa sua obrigação contratual de pagamento desse preço devido pela electricidade produzida e entregue pela A., sendo irrelevante que, para efeitos de apuramento dos proveitos devidos à mesma, não haja sido considerada aquela quantidade de energia produzida e entregue, dado tratar-se de uma situação estranha à A. e exclusivamente imputável à R.

Por outro lado, e ainda que a conjugação da transição da A. para o regime de mercado com os deveres da R. como CUR conduzisse ao entendimento de que a R. não mais podia remunerar a A. pela electricidade produzida e injectada na rede após 8/2/2018 (designadamente se se entendesse que tal remuneração carecia de ser autorizada pela ERSE), sempre se tornava necessário atentar ao teor da cláusula 23ª do contrato. Com efeito, aí ficou convencionado que “a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar que implique alteração do clausulado contratual e a alteração da legislação em vigor à data do presente contrato constituem motivo para a renegociação deste”, devendo a parte que pretendesse usar desse direito à renegociação interpelar a outra parte por escrito, apresentando as propostas de alteração que tivesse por necessárias, e mantendo‑se em vigor o contrato na sua versão original, até à outorga da nova versão.

Ora, a R. não alegou nem provou ter dirigido qualquer interpelação à A. nesse sentido, como era seu ónus. Antes resulta demonstrado que a R. entendeu que já não havia que considerar qualquer entrega de electricidade pela A. (e a correspondente remuneração), nos termos já cima explicitados, actuando em conformidade com essa sua vontade exclusiva.

Esse comportamento da R. poderia ser válido se o contrato não estivesse sujeito ao princípio da pontualidade que emerge do art.º 406º do Código Civil (ou mesmo se a R. estivesse investida de um qualquer jus imperii que lhe permitisse essa decisão unilateral). Mas não é esse o caso, como já se viu.

Em suma, importa concluir que a R. está obrigada a pagar à A. a referida quantia de € 123.157,38, a título de remuneração pela electricidade produzida pela A. e injectada na rede entre 9/2/2018 e 24/4/2019, e a que acrescem juros de mora à taxa legal supletiva, contados desde a citação e até integral pagamento, face ao disposto nos art.º 804º a 806º do Código Civil.”

_____________________________________________

1. Assim como, conforme resulta dos factos, o sistema de medição terá evoluído: depois da operação da rede passar a ser assegurada por outra entidade – a E-REDES – esta última limitava-se a informar a SU Eletricidade “sobre o volume de energia injetado pelos produtores da PRE com remuneração garantida” (Facto Provado n.º 24).↩︎
2. Como atrás já referimos, extrai-se do DL 189/88 que a EDP estava obrigada a deveres legais de negociação, isto é, a comprar energia elétrica aos produtores independentes; e o DL 168/99 até veio dar ao art 22.º/1 do DL 189/88 a seguinte redação: “os produtores de energia elétrica abrangidos no âmbito do presente diploma gozam de uma obrigação de compra, pela rede pública, da energia produzida durante o prazo de vigência das licenças previstas no presente diploma”.↩︎
3. E na origem de tal contrato esteve uma idêntica obrigação/dever de comprar energia.↩︎
4. Uma “configuração jurídica nova” (sobre a qual a A. exerceu o devido contraditório) e não uma “questão nova”, como a A. invoca nas suas primeiras conclusões: como é sabido, o tribunal, nos termos do art. 5.º/3 do CPC, interpreta e aplica o direito que seja pertinente convocar (e, no caso, repete-se, o A. até exerceu sobre tal “configuração jurídica nova” o devido contraditório).↩︎
5. Cartas que constituem os pontos 8 e 9 dos factos provados.↩︎
6. Mais, resultando a nova entidade que passou adquirir a energia elétrica – a aqui R. – de uma operação de cisão que envolveu o destaque da parte do património da sociedade cindida, é o próprio art. 121.º do CSC que afasta a novação.↩︎
7. Cfr., v. g., Ac. STJ 28-jun.-2018: o animus novandi tem de ser exteriorizado pelas partes de forma expressa, não podendo ser presumido nem extraído, tacitamente, de outras declarações contratuais»; Ac STJ 17-mar.-2005: «a novação não se presume, nem mesmo, segundo a melhor doutrina, se admite a manifestação tácita do animus novandi»; Ac. STJ de 09-mar.-2004: «para que exista novação de uma obrigação por substituição dos devedores, prevista no art. 858º, 2ª parte, do C.Civil, é necessário (...) que a intenção novatória resulte de declaração expressa, pois nem a novação se presume nem bastam os simples facta concludentia em que as declarações tácitas se apoiam.»↩︎
8. Das obrigações em geral, II, 7.ª ed., 1997, 237-238↩︎
9. Tratado de Direito Civil, IX, 1122.↩︎
10. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, 1995, 499.↩︎
11. Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª ed., pág. 495/6↩︎
12. Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., pág. 547.↩︎
13. CC, Contratos II, pág. 142/3.↩︎
14. E não, como parece raciocinar-se na sentença, a eletricidade a um determinado preço (no caso, a preço bonificado/garantido).↩︎
15. O que se diz na alínea b) de tal art. 52.º/2 – que o CUR “deve dar preferência à aquisição da eletricidade produzida por centros electroprodutores” – diz respeito aos contratos de aquisição de energia que ainda se mantenham a produzir efeitos, ou seja, nada diz ou sinaliza sobre o momento em que tais contratos deixam ou não de produzir efeitos.↩︎
16. Das obrigações em geral, Vol. II, 3.ª ed., pág. 66.↩︎
17. É este o sentido do art. 343.º/b) do CT, que inclui entre as causas de caducidade do contrato de trabalho a impossibilidade de prestar ou de receber o trabalho.↩︎
18. Daí que não constitua qualquer obstáculo à cessação do vínculo contratual o que a A./recorrida invoca na conclusão LI, ou seja, ter a R. “atu[ado] como se o contrato tivesse cessado, sem que de alguma forma o tivesse resolvido ou denunciado”.↩︎
19. Posteriormente, em 12/09/2019, como consta do ponto 40 dos factos, a Subdirectora Geral da DGEG até informou a A. que havia notificado a EDP Serviço Universal “para que providenciassem o pagamento do valor em dívida relativo à produção de energia proveniente da sua central hidroeléctrica”, porém, deu-se como provado no ponto 46 dos factos que “a R. não foi notificada pela DGEG para proceder a qualquer pagamento respeitante à energia produzida na Central de ... relativamente a qualquer período subsequente à transição da Central de ... para o regime de mercado”, ou seja, deu-se como provado não ser exata a informação dada pela DGEG à A., em 12/09/2019 (sendo irrelevante abordar se tal pretensa “determinação” da DGEG era legal e juridicamente vinculante para a aqui R.).↩︎