CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDA
INCUMPRIMENTO PARCIAL
INDEMNIZAÇÃO
MORA
VALOR
PAGAMENTO
RESOLUÇÃO
SENHORIO
ARRENDATÁRIO
Sumário


I. O arrendatário que realiza o pagamento dos montantes das rendas que se encontram em mora (há mais de 3 meses), acrescido da indemnização referida no artigo 1041º do CC, dentro do prazo previsto no artigo 1084º, n.º 3 do CC, após o recebimento da notificação prevista no artigo 1083º, n.º 3, neutraliza, por essa via, o efeito extintivo a que se destina a invocação do direito de resolução do locador.
II. O pagamento (pelo arrendatário) da indemnização de 20%, prevista no artigo 1041.º do CC, é condição para cessar a mora (nos termos do artigo 1042.º), sendo, consequentemente, condição para que o direito de resolução do locador fique sem efeito, não tendo, por isso, de ser expressamente exigido pelo locador; e incide sobre o montante da renda que se encontra efetivamente em dívida.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

*1. BB e CC, na qualidade de locadores, apresentaram Procedimento Especial de Despejo, cumprindo as formalidades exigidas pelo artigo 15.º-B da Lei n.º 6/2006, contra “AA, Ldª”, na qualidade de arrendatária.

Alegaram que celebraram com a ré um contrato de arrendamento para fins comerciais e industriais e que, no dia 18.11.2022, comunicaram à ré que a renda referente ao ano de 2023 seria atualizada, mediante aplicação do coeficiente de atualização anual de rendas. Alegaram que, apesar de a atualização ter sido efetuada, a ré continuou a pagar o valor da renda sem acrescentar o valor da atualização. Entendem que, correspondendo a falta de pagamento da atualização à falta de pagamento da renda, haverá fundamento de resolução do contrato, o que teria ocorrido com a notificação judicial avulsa da ré, pelo que, requereram que fosse declarado validamente resolvido o contrato e, em consequência, que a ré fosse condenada no pagamento das quantias em dívida, na entrega do locado e no pagamento das rendas até à efetiva entrega do mesmo.

2. A ré deduziu oposição, e depositou caução à ordem dos autos no valor de 6.302,58€, nos termos do artigo 15.º - F da Lei n.º 6/2006.

Nessa oposição, a ré alegou que o valor da atualização que lhe foi comunicado na notificação judicial avulsa não estava correto, dado que, aplicado o coeficiente de atualização, a renda em 2023 seria de 982,26€, e não 986,26€ como entendem os autores. Alegou ainda que, após receber aquela notificação, pagou aos autores, por transferência bancária, a quantia de 230,28€, quantia esta que esclareceu (através do requerimento datado de 26.09.2024) reportar-se ao valor em dívida (atendendo ao valor de renda de 986,26€) acrescido da indemnização de 20% e deduzido o valor da retenção na fonte (25%).

Mais tarde, quando notificada pelos autores de que o valor em dívida permanecia por pagar, uma vez que, segundo aqueles, o valor da indemnização deveria ser calculado sobre o valor total da renda e não sobre o valor da atualização em falta, a ré transferiu para os autores, em janeiro e fevereiro de 2024, o valor da indemnização calculado sobre o valor total da renda, deduzido o valor da retenção na fonte.

O Procedimento Especial de Despejo passou, assim, para a sua fase judicial, nos termos do artigo 15.º-H e seguintes da Lei n.º 6/2006.

3. Veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«1- Julgo a presente ação improcedente por não provada e, em consequência absolvo a Ré de tudo o contra ela peticionado.

2- Julgo improcedente o pedido de litigância de má fé formulado pela Ré e, em consequência, absolvo os Autores de tudo o contra eles peticionado

4. Os locadores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidiu:

«(…) julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se a oposição improcedente e condenando-se a recorrida a proceder à entrega do locado no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão.»

5. Contra esse acórdão, a ré interpôs o presente recurso de revista.

Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:

«a) A Recorrente coloca em crise a decisão do Tribunal a quo no seu Acórdão, que considerou o recurso dos Recorridos procedente, cujo excerto se transcreve:

“Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se a oposição improcedente e condenando-se a recorrida a proceder à entrega do locado no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado deste Acórdão.”

b) O Acórdão do Tribunal a quo considera que os Recorridos/AA. não tinham de informar o valor da indemnização, ao contrário do decidido pelo Tribunal de Primeira Instância.

c) Apesar do Tribunal a quo ter omitido a nulidade da notificação judicial avulsa, esta foi invocada durante a fase das alegações e na missiva de resposta da Recorrente aos Recorridos datada de 07/12/2023.

d) Por esse motivo, ao ocorrer uma resolução contratual com base em factos erróneos, gerou-se a nulidade da notificação judicial avulsa, pelo que se considerou esta notificação sem efeito legal.

e) Além disso, os Recorridos vieram admitir que se enganaram no valor, o que só por si demonstra que induziram a Recorrente em erro.

f) Esta nulidade foi ignorada pelo Tribunal a quo, mas foi alegada pela Recorrente na Primeira Instância, pelo que se deverá considerar a notificação judicial avulsa nula, mantendo-se o contrato de arrendamento válido.

g) Conforme decidiu o Tribunal da Primeira Instância, os Recorrentes nunca solicitaram o pagamento da indemnização, pelo que não se aplica automaticamente a responsabilidade pelo pagamento da mesma, ora vejamos a norma prevista no artigo 1041.º do Código Civil.

h) A expressão “o locador tem o direito de exigir” é esclarecedora e evita considerações adicionais sobre este normativo.

i) Os Recorridos tinham o direito de exigir, dependendo esse direito de uma ação dos mesmos que não foi realizada.

j) Por esse motivo, a Recorrente ao pagar o valor em dívida das rendas cumpriu o solicitado na notificação judicial avulsa.

k) Pelo que se considera que a cobrança da indemnização deveria ter sido solicitada, não podendo considerar-se que era devida, devendo o Tribunal ad quem pronunciar-se sobre esta posição por considerar-se que o Tribunal a quo errou na aplicação do direito

l) Por outro lado, será necessário interpretar o art. 1041.º do CC relativamente à expressão “do que for devido”.

m) Ora, entendeu a Recorrente que a indemnização seria apenas para ser paga no valor em dívida, cujo montante parcial e mensal já se referiu.

n) Perante uma interpretação sistemática e literal, a expressão “do que for devido” é perentória e interpretativa no sentido de que a indemnização apenas aplicar-se-ia sobre o valor das rendas devidas de forma total ou parcial.

o) Assim, apenas poderá aplicar-se ao montante efetivamente devido.

p) Neste sentido teremos sempre de invocar que o principio geral da resolução dos contratos terá de ser aplicável em conformidade com o princípio da boa-fé nos termos dos arts. 802.º, n.º 2 e 762.º, n.º 2 ambos do CC.

q) Pelo que o douto Tribunal ad quem, deverá analisar e interpretar esta norma, considerando que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.

r) Considera-se ter existido violação do princípio da certeza e da segurança Jurídica, decorrente do princípio do Estado de Direito (art.º 2.º CRP) em correlação com o princípio da proteção da confiança.

s) Ora, a Recorrente considerava que o seu contrato de arrendamentomanter-se-ia pelo menos até ao final do contrato de cessão de exploração para que não fosse obrigada a indemnizar terceiros de boa-fé

t) Pelo que o prejuízo que este despejo causará na Recorrente colocará em causa postos de trabalho e desequilíbrio perante a ordem jurídica, apenas por capricho dos Recorridos.

u) Da mesma forma que causará demandas injustificadas da parte da Recorrente contra os Recorridos, devido a uma atuação abusiva da parte destes últimos.

v) Pelo que para evitar danos acrescidos, deverá o Tribunal a quo manter o contrato de arrendamento válido.

w) Princípio da Literalidade e Interpretação Restritiva: O artigo 1041.º do CC refere que a indemnização é "correspondente a 20% do que for devido".

x) O termo "do que for devido" pode ser interpretado como apenas a parte da renda que efetivamente não foi paga e não sobre o valor total da renda contratual.

y) Princípio da Proporcionalidade: A indemnização visa compensar o locador pelos danos causados pelo atraso no pagamento.

z) No entanto, se a penalização incidir sobre a totalidade da renda, independentemente do montante realmente em falta, pode haver um enriquecimento sem causa dos Recorridos, pois excederá o valor a que têm direito não sendo esse o propósito de uma indemnização.

aa) Diferença entre Mora e Incumprimento Definitivo: A indemnização do artigo 1041.º, n.º 1, aplica-se à mora (atraso no pagamento), mas não ao incumprimento definitivo (quando o contrato é resolvido por falta de pagamento).

bb) Princípio da proteção da confiança: Este princípio é de extrema importância, pois alicerça toda a expetativa jurídica que se poderá ter na justiça e todos os atos legais que a suportam

cc) Princípio da Certeza e da Segurança Jurídica: Este princípio basilar, permite que em sociedade se permita ter a confiança na estabilidade do contrato de arrendamento celebrado, e que o mesmo não possa ser resolvido unilateralmente sem consequências.

dd) Princípio da Equidade: Este princípio terá sempre aplicação ao caso sub júdice, pois nunca poderá haver dois pesos e duas medidas para a atuação da Recorrente e dos Recorridos.

ee) Pelo que incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento, deverá repor-se a decisão do Tribunal de Primeira Instância, considerando-se que o contrato é válido e que a Recorrente cumpriu as obrigações a que se encontrava adstrita.

ff) Considera a Recorrente existir uma inconstitucionalidade no art. 1041.º do CC, que deverá não ser descurada.

gg) Com base nesses fundamentos, a aplicação automática da indemnização prevista no artigo 1041.º, n.º 1 do Código Civil considera-se ser inconstitucional por:

1. Falta de proporcionalidade (art. 18.º da CRP);

2. Tratamento desigual de situações diferentes (art. 13.º da CRP);

3. Violação da justiça e da boa-fé contratual (art. 2.º da CRP).

Pelo exposto, e pelo que mais que for doutamente suprido por V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida e, em consequência, absolva a recorrente do douto Acórdão de condenação, mantendo-se a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, assim fazendo a costumada justiça

6. Os recorridos responderam, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:

«- Este recurso é da matéria de direito e porque o recorrente não concorda com a decisão do Tribunal da Relação,

2º- assim só pode incidir sobre a matéria de direito que foi colocada ao Tribunal da Relação, ou seja sobre a aplicação do disposto no artigo 1041º do Código Civil ao caso concreto,

3º- e em concreto saber se o aqui locador / recorrido, teria de pedir a indemnização de 20% prevista nesse dispositivo

4º e foi esta a única questão que impediu o Tribunal de 1ª instância de julgar o pedido de despejo procedente e foi por isso também a única que foi colocada ao Tribunal da Relação e decidida.

5º- Toda a restante matéria de facto e de direito foi julgada pelo Tribunal de 1ª instancia em sentido favorável ao pedido de despejo (transito em julgado formal).

6º- Como foi entendido pelo Tribunal da Relação, a recorrente arrendataria se quisesse por fim à mora teria de pagar não só os aumentos de renda referentes ao ano de 2023, de Janeiro até Novembro (data e que foi notificada) como uma indemnização de 20% sobre a totalidade das rendas desse mesmo período (e não só sobre as partes das rendas não pagas),

7ª- Porque é o próprio artº 1041º, 1 CC a excluir este processo da sua aplicação, pois expressamente refere “salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento,

8º E este processo vem de uma comunicação por notificação judicial avulsa dos locadores para a locatária nos termos do artº 1083º, 3 CC porque a aqui recorrente se encontrava numa situação de incumprimento superior a 3 meses no pagamento das atualizações de renda.

9º- Na notificação judicial avulsa os recorridos comunicaram expressamente á recorrente que vinham exercer o direito de resolução do contrato de arrendamento, dizendo-o expressamente e por varias vezes, com base na falta de pagamento

10ª- Sendo aplicável o disposto no artº 1083º e 1084º CC, e foi com base nestes dispositivos que foi apresentada a NJA e o pedido de despejo.

11ª Com a expressão / frase de que “a resolução fica sem efeito se a arrendatária puser fim à mora no prazo de um mês”, os locadores limitaram-se a reproduzir o que consta no artigo 1084º, 3 CC.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, e sempre com o douto suprimento de V. Exªs, requerem seja o presente recurso julgado improcedente e consequentemente seja mantido o acórdão do Tribunal da Relação, com as legais consequências

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

A segunda instância revogou a sentença em sentido desfavorável ao réu-recorrente, pelo que, encontrando-se verificados os pressupostos gerais de recorribilidade (previstos no artigo 629.º, n.º 1 do CPC) a revista é admissível, nos termos do artigo 671, n.º 1 do CPC.

O objeto da revista é o de saber se o autor tinha o direito de resolver o contrato de arrendamento, por falta de pagamento integral das rendas, ou se o exercício desse direito foi eficazmente neutralizado pelos pagamentos efetuados pelo réu.

2. A factualidade provada

As instâncias (essencialmente com base em prova documental) deram como assente a seguinte factualidade:

«1. Por documento escrito datado de 01/05/1983, denominado “contrato de arrendamento” outorgado entre DD, como primeiro outorgante, e AA Lda., como segunda outorgante, ficou consignado:

2.º - Que pelo presente contrato o primeiro outorgante dá de arrendamento à segunda outorgante o referido imóvel que se regerá pelas cláusulas seguintes:

3.º - o arrendamento tem o seu início hoje, é celebrado pelo período de seis meses prorrogável por períodos de mês.

4.º - A renda é de 7.500$00 (sete mil e quinhentos escudos) a pagar no primeiro dia útil do mês a que disser respeito em casa da senhoria ou do seu procurador, em Faro.

Único: esta renda é válida pelo período de cinco anos, em caso algum podendo ser alterada.

5.º - O local arrendado destina-se à locatária nele exercer qualquer actividade comercial ou industrial, com excepção de agência funerária.

2. Por documento escrito datado de 01/02/1998, denominado “modificação e alteração do contrato de arrendamento celebrado em 01/05/83” outorgado entre DD, como primeiro outorgante, e AA Lda., como segunda outorgante, ficou consignado que:

PRIMEIRO - A senhoria dá de arrendamento parte do rés do chão o prédio inscrito na matriz sob o artigo 3330-A, da freguesia de S. Pedro (…).

SEGUNDO - A presente alteração e modificação do contrato de arrendamento tem início em 1-2-98, e durará por período de seis meses, prorrogável por um mês.

CLÁUSULA PRIMEIRA

A renda mensal a vigorar a partir de 1 de fevereiro de 1998 é de Esc. 110 000$00 (cento e dez mil escudos) paga à senhoria na sua residência ou ao seu procurador, no primeiro dia útil do mês a que respeitar.

3. Mostra-se descrito sob o n.º ...........24 da Conservatória do Registo Predial de Faro, que o prédio urbano situado na Rua do ... n.º ..., ..., ..., ... e ... e Travessa ..., n.º ...,..., ...,..., ..., e ..., em ..., está registado em nome de CC, viúva, e de BB, solteiro, respetivamente, pelas AP 30 de 14/02/2008 e pela AP ..89 de 28/05/2010.

4. Na missiva datada de 18/11/2022 consta que: “Assunto: Aumento de Reda e enviar de novo Alteração Contrato Neste contrato de arrendamento para fim não habitacional do prédio sito em Rua do ..., ..., ..., inscrito na matriz da União das Freguesias de... sob o artigo .....º, andar ou divisão com utilização independente n.º .... Venho, a pedido dos locadores Sr.º BB e EE, comunicar-lhes que os locadores pretendem proceder à actualização da renda em vigor, de 963,00€, pela aplicação do coeficiente de 1,02 estabelecido no art.º 1.º, al. a) e art.º 2.º, n.º 2 do Decreto da Assembleia da República n.º 11/XV, de 22/09/2022 e, em conformidade, que a renda se vencerá no próximo dia 01 de Janeiro de 2023 será de € 986,86 (963,00 x 1,02). (…)”

5. De janeiro de 2023 até novembro de 2023 a Ré pagou aos AA. a quantia mensal de 722,25€, que corresponde ao valor da renda de 963,00€, deduzido o valor do imposto devido (25%).

6. No dia 7/11/2023, através de notificação judicial avulsa, os Autores comunicaram à Ré o seguinte:

“(…) A renda acordada era de 110.000$00 em 1/2/1998 e em 2022 era de 963 euros e por carta datada de 18/11/2022, que deu entrada na estação de correios em 23/11/2022, os locadores comunicaram ao locatário a atualização anual de renda com o coeficiente de 2%, tendo a primeira carta sido devolvida ao remetente em 7/12/2007 por não ter sido levantada na estação de correios e o mesmo aconteceu com a segunda carta enviada em 10/01/2023 e devolvida em 24/1/2023 - artigo 10º, 3 NRAU - docs. 5,6,7 e 8.

Nessas cartas os locadores comunicaram ao locatário que pretendem proceder à atualização da renda em vigor de 963,00 euros pela aplicação do coeficiente de 1,02 estabelecido no artº 1º al. a) e art. 2º n. 2 do decreto da Assembleia da Republica nº 11/XV de 22/09/2022 e, em conformidade que a renda que se vencerá em Janeiro de 2023 será de 986,26 euros.

O locatário não procedeu á atualização da renda e durante este ano de 2023 vem pagando somente a renda de 963,00 euros, encontrando-se assim em situação de incumprimento, e os locadores emitem-lhe os recibos correspondentes à renda recebida, e desde 1 de Janeiro de 2023 que a renda passou a ser a de 986,26, estando assim em divida mensal com o valor de 23,26 euros, o que vem acontecendo ininterrupta e sucessivamente até esta data de Setembro de 2023. Entende-se que a falta de pagamento de atualização de renda é equiparado à falta de pagamento de renda, para efeitos do disposto no artº 1083º, 3 CC (…). Assim, não é exigível aos locadores a manutenção deste arrendamento pelo que vêm resolvê-lo atenta a falta de pagamento de atualização da renda há mais de 3 meses, sendo neste caso há já 9 meses - artº 1083º, nº 3 CC. Vindo exercer o direito de resolução do contrato de arrendamento em causa, pelo presente meio, bem como exigir o pagamento imediato de todas as rendas em divida, e de todas as rendas que se vencerem até à entrega efetiva do locado aos requerentes, e ainda em consequência da resolução do contrato, vêm exigir a entrega imediata do locado livre e desocupado de pessoas e bens.

Nestes termos, vêm requerer a NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA DO REQUERIDO, para o seguinte:

a)- que os requerentes procedem pelo presente meio à resolução do contrato de arrendamento referido nos itens 2º a 4º desta peça, e que a resolução produz efeitos a partir da data em que o requerido seja notificado,

b)- devendo, em consequência, o requerido restituir aos locadores, o locado livre de pessoas e bens, de imediato, e que deve pagar, de imediato, todas as rendas que no momento da notificação estejam vencidas.

c)- devendo ainda ser-lhe notificado que esta resolução fica sem efeito se puser fim à mora no pagamento das rendas, no prazo de um mês também a contar desta notificação.

7. No dia 16/11/2023 a Ré transferiu para a conta bancária titulada pelo Autor, FF, a quantia de 230,28€, referente ao valor das atualizações em atraso, acrescido da indemnização de 20% calculada sobre esse valor, e deduzido o imposto devido pelos AA..

8. No dia 07/12/2023, através do seu Mandatário, a Ré enviou uma missiva ao Mandatário dos AA. da qual consta que:

Assunto: Resposta à notificação judicial avulsa e atualização de renda.

Exmº Senhor Dr.,

Acuso a receção da notificação judicial avulsa dos seus clientes BB e CC, na qualidade de senhorios, submetida em 21/09/2019, dirigida à minha cliente AA Lda., na qualidade de arrendatária, à qual passo a responder.

Verificámos na notificação judicial avulsa, que ocorre uma atualização da renda de €963,00 para €986,26, o que é incorreto. Ora o coeficiente para 2023 foi 2%, pelo que o cálculo da mesma será €963,00 x 1,02 que dá no total €982,26. Ora, na verdade, a diferença da atualização cifra-se em €19,26 e não no valor de €23,26. Pelo que apesar da minha cliente já ter procedido ao pagamento do valor solicitado acrescido do valor da indemnização de 20% com dedução da retenção na fonte, o montante pago em excesso deve reverter a favor da minha cliente”.

9. No dia 14/12/2023 e em resposta à missiva referida em 8, o Il. Mandatário dos AA. enviou missiva ao Mandatário da R, e da qual consta que:

“(…) efetivamente há um lapso de escrita, a nova renda a contar de janeiro de 2023 até dezembro de 2023, é de 982,26 euros e não 986,26 euros (…)

Conforme proposto por V. Exºas queiram deduzir na próxima renda essa quantia indevidamente exigida.

É evidente que também a atualização da renda para 2024, não está correta, e como muito bem V. Exªs propõem e M/s Clientes aceitam expressamente, que a nova renda a contar de janeiro de 2024 e até nova atualização será de 1.050,43€. (…)

O depósito de 230,28 euros que fizeram após ser notificados em novembro, não é correto, porque como consta da descrição, (nem se deram ao trabalho de explicar e penso que deviam), terão depositado “diferencial renda paga e atualização” mas mesmo sem conseguir como chegaram a esse valor, nunca estaria correto, e em nada influenciou o lapso de 4 euros, antes referido, porque deviam ter pago indemnização sobre as rendas do ano de 2023 que se referem na notificação e não só sobre o valor da atualização, pelo que solicitam M/s Clientes a V Exºs a entrega do locado devoluto de pessoas e bens, no prazo de 10 dias, sob pena de prosseguir o despejo. (…)

O depósito feito de 230,28 euros não foi explicado, e está sempre em valor ao devido, porque a indemnização é sobre as rendas na sua totalidade e não sobre o valor da atualização.

10. Em resposta à missiva referida em 9, pelo Mandatário da R. foi enviada nova missiva para o Mandatário dos AA., na qual consta:

“(…) Relativamente ao valor da indemnização da renda, o mesmo será corrigido, pois é sobre o valor total da renda e não apenas sobre o valor em falta. Por esse motivo, o valor a ser pago durante 2023 foi inferior ao que deveria ter sido realizado. Pelo que o valor em dívida em conjunto com a indemnização legal é o valor de €1.540,53.

Contudo no início de 2024, por lapso a minha cliente liquidou o valor em excesso total de 1.510,07€, ficando em dívida o valor de €818,28 relativamente a 2023.

Por esse motivo, em fevereiro de 2024 irá liquidar o valor total de €1606,10, com retenção já realizada, relativamente à renda mensal e ao valor em dívida de 2023. A partir de março de 2024, a minha cliente pagará o valor de 787,82 e assim sucessivamente, com retenção já realizada.

11. Nos dias 2 e 3 de janeiro de 2024 a Ré transferiu para a conta bancária titulada pelo Autor, FF, a quantia de 1510,07€, que englobava a renda de janeiro de 2024 e parte da indemnização de 20% sobre o valor devido, em conformidade com o que havia comunicado com a missiva referida em 10.

12. No dia 5 de fevereiro de 2024 a Ré transferiu para a conta bancária titulada pelo Autor, FF, a quantia de 1606,10€, que englobava a renda de fevereiro de 2024 e parte da indemnização de 20% sobre o valor devido, em conformidade com o que havia comunicado com a missiva referida em 10.

13. A Ré paga a renda aos AA. através de transferência bancária.

14. A Ré fazia a retenção na fonte do imposto devido pelos AA. pelo recebimento rendas, a qual correspondia a 25 % do valor devido.

15. Os AA. aceitaram que a retenção referida em 14 fosse efetuada.»

*

3. O direito aplicável

3.1. Como decorre da factualidade provada, em 01.05.1983, a ré celebrou um contrato de arrendamento, para fim não habitacional, com a anterior locadora (DD). Posteriormente, esse contrato sofreu uma modificação subjetiva, nos termos do artigo 1057.º do CC, tendo passado a ter como locadores os autores da presente ação (BB e CC).

3.2. Estando em causa um contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95 (de 30 de setembro), o regime legal aplicável é o que se encontra traçado pelos artigos 27.º e 28.º da Lei n.º 6/2006. Nos termos deste regime, em tudo o que não se encontrar especificamente previsto para tais contratos, tem aplicação o novo regime (criado pela Lei n.º 6/2006), mesmo às relações que já se encontravam em vigor, como decorre do disposto no artigo 59.º da Lei n.º 6/2006 conjugada com o artigo 12.º, n.º 2 do CC.

No caso concreto, está em causa a questão de saber se o contrato podia ser resolvido por falta de pagamento parcial das rendas. Trata-se de uma matéria para a qual não se encontram previstas normas específicas nos termos dos artigos 27.º e 28.º da Lei n.º 6/2006, pelo que o regime legal convocável no caso concreto é o que vale para os demais contratos de arrendamento, independentemente da data da respetiva celebração.

É, assim, à luz deste regime geral que deve ser apreciada a questão de saber se o contrato de arrendamento deve, ou não, considerar-se resolvido por falta de pagamento de rendas.

3.3. Pagar a renda é a obrigação principal do arrendatário, como decorre do artigo 1038.º, alínea a) do CC.

No contrato de arrendamento urbano, o regime do cumprimento desta obrigação é (naquilo em que não for eficazmente afastado pela vontade das partes), em primeiro lugar, o previsto nos artigos 1075.º a 1077.º do CC, ao qual acrescem as normas gerais da locação sobre o pagamento da renda (aplicáveis segundo a regra de que o especial afasta o geral). Este quadro locativo é ainda completado, entre outros, pelos princípios gerais da pontualidade e da integralidade da prestação, previstos nos artigos 762.º e 763.º do CC, aplicáveis à generalidade dos contratos.

3.4. Vejamos em que consistiu o incumprimento da obrigação de pagar a renda, invocado pelos locadores, e quais as consequências normativas que lhe devem caber.

Deve, antes de mais, notar-se que, nos termos do artigo 5.º, n.º 3 do CPC, no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, este tribunal não se encontra limitado pelas alegações de direito sustentadas pelas partes. Tal como não se encontra limitado à apreciação da interpretação das normas legais em que as instâncias divergiram na decisão da questão jurídica em causa (ou seja, a de saber se existia fundamento para a resolução do contrato de arrendamento), pois, tratando-se de uma revista, podem (e devem) ser convocadas todas as normas integrantes do quadro normativo aplicável à solução da concreta questão jurídica que constitui o objeto do recurso, e que se encontrem sustentadas pela factualidade provada.

Como decorre dos factos assentes, em novembro 2022, os locadores, no exercício do direito ao aumento da renda que lhe é conferido pelo artigo 1077.º do CC, exigiram à arrendatária que, a partir de janeiro de 2023, passasse a pagar a renda aumentada pelo coeficiente legalmente aplicável (de 1,02), passando o valor da renda de 963,00 Euros para 986,86 Euros.

Todavia, de janeiro de 2023 a novembro de 2023, a ré continuou a pagou a renda habitual, sem o aumento exigido pelos locadores.

Face a esse incumprimento, em 07.11.2023, os autores enviaram à ré uma notificação judicial avulsa destinada à resolução do contrato de arrendamento. A ré respondeu a essa notificação, afirmando que existia um erro de cálculo no valor do aumento exigido. Erro esse que os autores reconheceram, concluindo que o valor da nova renda não era de 986,26 como inicialmente exigido, mas sim de 982,26 (ou seja, menos 4 Euros). A ré encontrava-se assim, a pagar menos €19,26 Euros por mês.

Em 16.11.2023 a ré transferiu para a conta bancária titulada pelo autor a quantia de 230,28€, referente ao valor das atualizações em atraso, acrescido da indemnização de 20% calculada sobre esse valor, deduzido o imposto devido pelos autores.

Em 14.12.2023, os autores respondem à ré, afirmando que o valor depositado não era suficiente, porque a indemnização de 20% devia ser calculada sobre todas as rendas do ano de 2023, referidas na notificação, e não apenas sobre o valor da atualização em falta.

Face a esta pretensão, a ré, nos dias 2 e 3 de janeiro de 2024, transferiu para a conta bancária do autor, a quantia de 1.510,07€, que englobava a renda de janeiro de 2024 e parte da indemnização de 20% sobre o valor global das rendas de 2023 (como havia comunicado aos autores – facto provado n.º 10 e 11). E no dia 5 de fevereiro de 2024, transferiu para a conta bancária titulada pelo autor, a quantia de 1.606,10€, que englobava a renda de fevereiro de 2024 e parte da referida indemnização de 20% (facto provado n.º 12). Sobre esses montantes, fez a retenção de 25 % do inerente imposto.

Porém, apesar dos pagamentos efetuados pela ré, os autores moveram Procedimento Especial de Despejo, com base em falta de pagamento de rendas por mais de três meses, por terem entendido que a falta de pagamento atempado da atualização era equivalente à ausência total do pagamento.

A primeira instância julgou a ação improcedente por ter entendido que a indemnização de 20%, prevista no artigo 1041.º do CC (que faz cessar a mora e obsta à eficácia da resolução), embora respeitasse à totalidade da renda mensal, só seria devida se tivesse sido expressamente exigida pelo locador (o que não aconteceu de modo explicito na notificação judicial avulsa enviada em 07.11.2023).

O Tribunal da Relação entendeu que a primeira instância tinha feito errada interpretação do artigo 1041.º do CC, dado que tal indemnização sempre teria de ser paga pela arrendatária, independentemente de ser exigida pelo locador. E, deste modo, revogou a sentença e julgou eficaz a resolução do contrato de arrendamento.

Antes de maior desenvolvimento, pode, desde já, afirmar-se que ambas as instâncias erraram (pelo menos em parte) na interpretação e na aplicação do quadro legal pertinente ao caso concreto.

3.5. Vejamos como a segunda instância justificou a sua decisão.

Do acórdão recorrido extrata-se, com relevo para a presente revista, essencialmente a seguinte fundamentação:

«O tribunal a quo limitou-se a fazer uma interpretação literal do n.º 1 do artigo 1041.º, que o levou a concluir, sem mais, que, não tendo os recorrentes exigido, na notificação judicial avulsa, o pagamento da indemnização ali prevista, a recorrida não tinha de proceder a esse pagamento dentro do prazo de 1 mês para purgar a mora. O tribunal a quo considerou que, estabelecendo aquela norma, meramente, que «o locador tem o direito de exigir», este terá o ónus de formular tal exigência na própria declaração de resolução do contrato, para a hipótese de esta última não se concretizar. Se o locador não fizer tal exigência, o locatário poderá fazer cessar a situação de mora em que se encontra mediante o pagamento das rendas em atraso, sem a referida indemnização.

O n.º 1 do artigo 1041.º não pode ser interpretado nestes termos. Desde logo, nem sequer no plano da estrita literalidade a interpretação feita pelo tribunal a quo é aceitável. A isso acresce que o elemento sistemático da interpretação aponta decisivamente em sentido diverso. Passamos a fundamentar estas duas afirmações.

Atente-se na redacção do preceito: constituindo-se o locatário em mora, «o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização (…)» A interpretar-se a expressão «tem o direito de exigir (…) uma indemnização» nos termos em que o tribunal a quo o fez, outro tanto teria de se fazer relativamente às próprias rendas em atraso. Também em relação a estas, o preceito prevê um mero «direito de exigir» por parte do locador. Logo, se o locador resolvesse o contrato com fundamento em mora no pagamento da renda, mas não exigisse, na declaração de resolução, nem as rendas em atraso nem a indemnização, o tratamento jurídico de ambas (rendas e indemnização) teria de ser o mesmo: o locatário poderia obstar à resolução sem efectuar qualquer pagamento. Parece que lhe bastaria opor-se à resolução, por o locador nada dele ter exigido para além da restituição do locado.

O absurdo de uma tal interpretação é evidente, desde logo porque contrariaria o disposto no n.º 3 do artigo 1084.º. Constituindo-se o locatário em mora no pagamento da renda, a única maneira de ele poder obstar à resolução do contrato é purgando essa mora. E isso apenas acontecerá se o locatário pagar tudo aquilo a que o locador tiver direito: rendas em atraso e indemnização. Não há razão para distinguir entre as rendas em atraso e a indemnização, a ambas se referindo a expressão «tem o direito de exigir».

A expressão «tem direito a exigir» deve, pois, ser interpretada como sinónimo de «tem direito a». No caso, o locador tem direito a uma indemnização igual a 20% do que for devido. E, «tendo direito a», o locador terá, obviamente, o «direito de exigir» aquela indemnização, pois a ordem jurídica atribui direitos subjectivos para que os seus titulares possam exercer os poderes que integram o seu conteúdo, que pode ser o de exigir determinados comportamentos a terceiros.

Podemos, pois, concluir que, mesmo no plano da pura literalidade, a interpretação que o tribunal a quo fez do n.º 1 do artigo 1041.º é insustentável.

A consideração do disposto no n.º 1 do artigo 1042.º corrobora a conclusão de que a interpretação feita pelo tribunal a quo do n.º 1 do artigo 1041.º não é correcta. Ao estabelecer que o locatário pode pôr fim à mora oferecendo ao locador o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, bem como a indemnização fixada no n.º 1 do artigo anterior, aquele preceito demonstra, com toda a clareza, que, sem o pagamento daquela indemnização, a mora persistirá.

O n.º 3 do artigo 1084.º, ao estabelecer, na parte que nos interessa, que a resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de 1 mês, completa o quadro descrito. A resolução do contrato só fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de 1 mês. E, nos termos do n.º 1 do artigo 1042.º, a mora só se extingue se o locatário oferecer, ao locador, o pagamento das rendas em atraso e a indemnização fixada no n.º 1 do artigo 1041.º. Entenda-se, sem necessidade de qualquer específica «exigência» do locador nesse sentido ao resolver o contrato.

Corrobora este entendimento o disposto no n.º 1 do artigo 1048.º, ao estabelecer que, quando for exercido judicialmente, o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca se o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa, pagar, depositar ou consignar em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1 do artigo 1041.º. Também aqui, a mora do locatário apenas cessa se este pagar, além das rendas ou alugueres em dívida, a referida indemnização. E não faria sentido um regime diverso, como aquele que o tribunal a quo pretendeu descortinar, quando a resolução do contrato fosse feita extrajudicialmente, por meio de comunicação à contraparte. Em qualquer hipótese, sem o pagamento da indemnização referida no n.º 1 do artigo 1041.º, a mora não se extingue.

Concluindo, a recorrida não purgou a mora dentro do prazo de 1 mês a contar da notificação da resolução, pelo que, atento o disposto no n.º 3 do artigo 1084.º, esta última produziu o seu efeito extintivo do contrato de arrendamento. Consequentemente, a recorrida está obrigada a restituir o locado aos recorrentes.

Nas suas contra-alegações, a recorrida considera que os recorrentes agiram sempre com abuso de direito, em face da forma como procederam e levaram a crer que o arrendamento se manteria, através da carta transcrita no n.º 9 do enunciado da matéria de facto provada. Sem razão, porém. Na carta em questão, os recorrentes, além do mais, solicitaram «a entrega do locado devoluto de pessoas e bens, no prazo de 10 dias, sob pena de prosseguir o despejo.» Em face desta solicitação, não divisamos qualquer razão para a recorrida crer que o arrendamento se manteria

3.6. A resolução do contrato de arrendamento urbano obedece a um regime legal que, em vários aspetos, se afasta do regime da resolução dos contratos em geral. Desde logo, no artigo 1083.º, n.º 1, do CC, consagra-se uma cláusula geral da qual se concluiu que não é um qualquer incumprimento do contrato que permite ao locador invocar a resolução, pois o incumprimento imputável ao arrendatário tem de atingir um nível de gravidade suficiente para tornar inexigível ao locador a manutenção do contrato.

O modo como essa inexigibilidade se revela em cada uma das alíneas do artigo 1083º, n.º 2 é algo diversificada, o que se compreende em função da natureza de cada uma das hipóteses aí previstas, mas em relação a todas se deve concluir que não bastará um incumprimento de diminuta importância para extinguir uma relação duradoura (independentemente de servir um fim habitacional ou não habitacional). Aliás, verificando-se um incumprimento de escassa importância, já a resolução estaria afastada no contrato de arrendamento, como estaria em qualquer outro contrato, com base no artigo 802.º, n.º 2 do CC, que consagra uma expressão do princípio da boa-fé contratual.

3.7. No que respeita à falta de pagamento de rendas, o legislador já revela, de certo modo, a gravidade desse comportamento, e a consequente inexigibilidade da manutenção do contrato, quando é atingida a duração de três meses. E dada a natureza objetiva ou quantitativamente comprovável deste incumprimento, a lei permite ao locador o exercício do direito de resolução por via extrajudicial nos termos do artigo 1084.º, n.º 2 do CC. Porém, ao arrendatário é ainda conferida uma última oportunidade de neutralizar o efeito do direito exercido pelo senhorio, se puser fim à mora nos termos do artigo 1084.º, n.º 3, o que implica pagar também a indemnização de 20% prevista no artigo 1041.º, como meio para expurgar as consequências da mora (conjugado com o disposto no artigo 1042.º).

O regime traçado por estas normas tem pressuposta a hipótese típica de falta de pagamento total da renda mensal.

Verificando-se um incumprimento parcial da obrigação de pagar a renda, deve proceder-se a uma interpretação teleologicamente adequada deste regime. Naturalmente que o incumprimento parcial da obrigação principal do arrendatário, com a duração de três ou mais meses, também deve permitir ao locador invocar a resolução do contrato. Porém, não deverá estar em causa apenas um incumprimento de escassa importância, porque em tal caso o direito de resolução já se encontra excluído pelo artigo 802.º, n.º 2 do CC, além de que, em tal caso, nunca seria atingida a gravidade minimamente relevante para que, nos termos do artigo 1083.º, n.º 2, fosse inexigível ao locador a manutenção do contrato. O impacto do incumprimento parcial tem, assim, de ser avaliado em função de cada caso concreto, dependendo da importância do específico montante em falta.

3.8. No caso concreto estava em falta o pagamento de 19,26€, ao longo de onze meses, referente a uma renda mensal de 982,26€.

Porém, afigura-se desnecessário desenvolver a questão de saber se esse incumprimento era de escassa importância ou se não era suficientemente grave para justificar a resolução, porque, ainda que se pudesse concluir que o locador teria direito à resolução do contrato, o exercício desse direito foi neutralizado, nos termos do artigo 1084.º, n.º 3, pelo pagamento que a arrendatária fez em 16.11.2023, ou seja, dentro de um mês após a notificação do locador (datada de 07.11.2023), compreendendo os valores da atualização (19,26€, durante 11 meses, acrescidos da indemnização de 20% e deduzidos do imposto retido de 25%).

Por esta via se encontra a solução do caso concreto, com a consequente manutenção do contrato de arrendamento, sendo procedente a oposição que a arrendatária deduziu nos termos do Procedimento Especial de Despejo.

3.9. Porém, as instâncias não apreciaram a questão nestes termos, tendo deslocado a solução para a questão de saber quanto é que a arrendatária teria de pagar a título de indemnização para efeitos do disposto no artigo 1041.º do CC.

Tal questão surge quando os locadores comunicaram à arrendatária que o pagamento por ela efetuado em 16.11.2023 não era suficiente para purgar a mora, pois devia ter pago 20% do valor total das rendas respeitantes aos meses de janeiro a novembro de 2023 (e não apenas sobre a parte em falta, ou seja, 19,26€).

A ré parece ter concordado com esse entendimento, dado que em janeiro pagou 1.510,07€, que englobava a renda de janeiro de 2024 e parte da indemnização de 20% sobre o valor global das rendas de 2023 (como havia comunicado aos autores), e em fevereiro pagou 1.606,10€, que englobava a renda de fevereiro de 2024 e parte da referida indemnização de 20% (procedendo à retenção de 25% do imposto respeitante a esses valores). Todavia, este comportamento da ré acaba por ser irrelevante para a solução da questão normativa em causa, dado que o direito de resolução do locador já havia sido neutralizado com o pagamento efetuado em 16.11.2023.

A primeira instância, embora tivesse concluído (corretamente) que os locadores não tinham direito de resolver o contrato, fez errada interpretação do regime legal, pois entendeu (erradamente) que a arrendatária teria de pagar 20% sobre o valor da renda total devida entre janeiro e novembro de 2023, parecendo confundir incumprimento parcial com incumprimento total. E, depois, entendeu (também erradamente) que, no caso concreto, esse valor não era devido porque os locadores, na sua notificação judicial avulsa, não tinham pedido tal indemnização (ignorando o artigo 1042.º).

A segunda instância debruçou-se apenas sobre esta questão. E embora tenha entendido (corretamente) que a indemnização prevista no artigo 1041.º é devida pelo locatário que pretenda pôr fim à mora, independentemente de ser expressamente exigida pelo locador, fez errada interpretação do regime ao entender que a indemnização de 20% respeita ao montante total do valor mensal da renda e não apenas aos concretos montantes em dívida.

O entendimento sustentado pelas instâncias no sentido de que o incumprimento parcial da renda é idêntico ao incumprimento total é destituído de fundamento legal e até de qualquer lógica jurídica (não encontrando paralelo no regime de qualquer outro contrato).

Efetivamente, em caso de incumprimento parcial da renda mensal, a indemnização igual a 20% do que for devido, que o arrendatário deve pagar para pôr fim à mora, nos termos do artigo 1041.º do CC, respeita, obviamente, a 20% daquilo que se encontra por pagar, e não à totalidade da renda mensal (independentemente da parte que se encontre em dívida). Neste sentido se pronunciam Pires de Lima e Antunes Varela, quando entendem que a indemnização imposta ao locatário é uma percentagem “do montante das rendas em dívida” (in Código Civil Anotado, Volume II, 4ª ed, página 378).

Caso fosse de entender, como entenderam as instâncias, que a indemnização de 20% incidiria sempre sobre o valor total da renda mensal (independentemente do montante que em concreto estivesse em dívida), certamente que o legislador se teria referido a 20% da renda mensal e não do que for devido. Aliás, seguindo tal entendimento, deixaria de existir distinção entre incumprimento total e incumprimento parcial.

Supondo que a renda mensal era de 2.000 € e que durante três meses o arrendatário pagava apenas 1.998 €, ao fim desse tempo estariam em dívida 6 €, o que “teoricamente” permitiria ao locador invocar a resolução do contrato, nos termos do artigo 1083.º, n.º 3 do CC. Porém, para poder opor-se a essa resolução, nos termos do artigo 1084.º, n.º 3, purgando a mora nos termos do artigo 1041.º, o arrendatário teria de pagar 20% de 2.000€ por cada mês de incumprimento parcial, ou seja, teria de pagar 20% de 6.000 € para purgar a mora de 6€. Facilmente se percebe o absurdo de tal interpretação.

Em resumo, o acórdão recorrido não pode manter-se, por não ter feito a adequada aplicação do regime legal pertinente, face à factualidade provada.

*

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista procedente, revogando-se o acórdão recorrido, por não existir fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, mantendo-se a decisão da primeira instância, mas com fundamento diferente.

Custas pelos autores.

Lisboa, 09.07.2025

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Luís Correia de Mendonça

Rosário Gonçalves