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PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
REVOGAÇÃO
AVISO PRÉVIO
Sumário
A inobservância do prazo de aviso prévio não afeta a eficácia da revogação unilateral do contrato que foi comunicada por uma das partes no âmbito de um contrato de prestação de serviço, desde que não exista interesse comum, ainda que possa dar direito a uma indemnização do prejuízo que esta sofrer (artigo 1172.º do CC).
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. Relatório EMP01..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ..., ... ..., instaurou providência de injunção contra a requerida, Freguesia ...,com sede na com sede na Rua ..., ..., ... Coimbra, para exigir o pagamento da quantia de 11.068,14€, sendo 10.539,57€ de capital, acrescido de 176,57€ a título de juros de mora até data de entrada da providência (13-03-2024), 250,00€ a título de outras quantias e 102,00€ respeitante à taxa de justiça paga, alegando como causa de pedir, a prestação de serviços à ré e o não pagamento do respetivo preço.
A requerida deduziu oposição, alegando, em síntese, ter revogado unilateralmente o contrato celebrado entre as partes, no final de 2022 (com efeitos para 01-01-2023), e, por isso, entende não serem devidas as quantias peticionadas, uma vez que dizem respeito a serviços a prestar no ano de 2023.
Foi deduzida reconvenção, a qual não foi admitida.
Os autos foram apresentados à distribuição, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n. º1 do Diploma Anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1-09, correndo termos como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de 24,60€, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data do vencimento da fatura ...91 (emitida em 15-12-2022 e com vencimento a 20-12-2022), até efetivo e integral pagamento e ainda a quantia de € 40,00 a título de outras quantias, absolvendo-a do mais peticionado.
Inconformada com a sentença proferida dela apela a requerente, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«A. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida nos autos aos 15.11.2024, que considerou parcialmente procedente a presente ação, condenando a ré ao pagamento de € 24,60, acrescido de juros de mora, e € 40,00 por outras quantias, mas absolvendo-a do restante peticionado.
B. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos artigos 1154º, 1156º e 1170º, nºs 1 e 2, do Código Civil, entendendo que, com a revogação unilateral do contrato pela ré, o mesmo cessou em 01.01.2023, não mais estando as partes obrigadas ao seu cumprimento.
C. Com o devido respeito, o Tribunal a quo cometeu um erro na aplicação de tais normativos, uma vez que não considerou elementos contratuais relevantes que deveriam ter conduzido a uma solução jurídica diversa, resultando numa sentença manifestamente injusta e contrária ao Direito.
D. Igualmente não procedeu a douta sentença recorrida a um correto julgamento da matéria de facto.
E. Os elementos probatórios carreados para os autos e a análise crítica dos mesmos, impõem que não só seja dado como provado que “Durante o ano de 2023, a autora continuou a permitir o acesso da ré à plataforma “...” e “...” (facto provado 15.º), como que seja igualmente dado como provado, o seguinte facto: “Em 2023, a autora continuou a disponibilizar serviços de consultoria e de serviços de fecho de contas à ré (faturas ...38 e ...26)”.
F. Os depoimentos dos representantes legais da autora, AA e BB, têm em comum o facto de a autora ter os serviços de consultoria disponíveis para serem usufruídos pela ré durante toda a vigência do contrato, tendo por diversas vezes encetados diligências junto da ré para que esta consigo reunisse e fornecesse a documentação e esclarecimentos necessários, sem que tivesse tido sucesso. (cfr. segmentos dos depoimentos supra reproduzidos, e para os quais se remete)
G. Tais depoimentos foram valorados como credíveis na mui douta sentença recorrida, para efeitos de dar como provado o ponto 15º dos factos dados como provados.
H. O raciocínio lógico dedutivo seguido na douta sentença recorrida para dar como provado o ponto 15º deve ser igualmente aplicado aos serviços de consultoria e fecho de contas.
I. Se “não faria sentido que a autora informasse a ré de que teria de cumprir o contrato e, posteriormente, impedisse o acesso desta à plataforma que lhe forneceu” (pág. 6 da douta sentença recorrida), igualmente não faria sentido que a autora informasse a ré de que teria de cumprir o contrato e, posteriormente, não lhe disponibilizasse os restantes serviços contratados.
J. Tal como os serviços relacionados com a plataforma “...” e “...”, também os serviços de consultoria e fecho de contas foram disponibilizados pela autora à ré ao longo do ano de 2023, não obstante a ré ter optado por obstar à sua prestação pela autora.
K. Deve ser dado como provado que “Em 2023, a autora continuou a disponibilizar serviços de consultoria e de serviços de fecho de contas à ré (faturas ...38 e ...26)”.
L. Em face dos factos provados, a decisão proferida não respeita o conteúdo contratual acordado livremente entre as partes, que previa um prazo de aviso prévio de 90 dias para a denúncia dos contratos, que foi incumprido pela ré.
M. As partes acordaram que a denúncia fora do prazo estipulado, implicaria a renovação do contrato e a obrigação de pagamento das prestações até finalização do mesmo.
N. Tal clausulado resulta da vontade livre e esclarecida das partes, refletindo o exercício da autonomia privada e liberdade contratual dos seus outorgantes que, ao regularem os seus interesses, fixaram o conteúdo contratual.
O. Nos termos do artigo 1156º as disposições sobre o mandato, apesar de serem extensivas às modalidades do contrato de prestação de serviços que a lei não regule especialmente, devem ser aplicadas a tais contratos com as necessárias adaptações.
P. Estamos perante contratos de prestação de serviços atípicos, cujo modo e consequências da sua cessação de efeitos foi devidamente acordada pelas partes, devendo prevalecer a vontade destas formalizada no contrato.
Q. Devem considerar-se de natureza supletiva as regras jurídicas estabelecidas para o mandado, cuja aplicação apenas se impunha no silêncio das partes, dando-se assim a devida aplicabilidade ao princípio da liberdade contratual, expresso no artigo 405º do Código Civil.
R. Ao denunciar os contratos aos 13 de dezembro de 2022, com efeitos a 1 de janeiro de 2023 (cfr. facto provado 8.º), a ré não cumpriu o prazo de aviso prévio de 90 dias, estipulado nas cláusulas contratuais.
S. A denúncia contratual operada pela ré é inválida nos termos contratados, tendo conduzido à renovação automática dos contratos por mais 12 meses.
T. A sentença recorrida caiu em manifesto erro de aplicação do Direito, ao não reconhecer que, não tendo a ré cumprido os prazos e formalidades contratuais, os contratos celebrados renovaram-se automaticamente, ficando a ré obrigada ao pagamento das prestações devidas até ao final do período de renovação.
U. A autora continuou a disponibilizar à ré todos os serviços que haviam sido por esta contratados, durante o ano de 2023 (cfr. factos provados 9º e 10º e facto que deve ser dado como provado por via da procedência do presente recurso), com base na renovação automática prevista no contrato, emitindo as correspondentes faturas.
V. A ré incumpriu a sua obrigação principal de pagamento (cfr. facto provados 13º).
W. As quantias peticionadas não se enquadram no conceito de indemnização, uma vez que correspondem a serviços que continuaram a ser disponibilizados e prestados à ré, em conformidade com o contrato.
X. A autora tem legitimidade para exigir da ré o pagamento das faturas não pagas, a título de remuneração pela transação comercial acordada, que se manteve em vigor até final do ano de 2023.
Y. Ao ignorar as disposições contratuais acordadas pelas partes e ao aplicar erradamente o artigo 1170º do Código Civil, a sentença recorrida violou entre outras, as normas legais previstas nos artigos 405º, 762º, 1156º, 1170º do Código Civil.
Z. Deve a douta sentença recorrida ser substituída por outra que condene a ré no pagamento das prestações devidas até finalização do contrato, conforme estipulado nas cláusulas contratuais acordadas.
AA. Sendo, por conseguinte, a ré condenada a pagar à autora não só a fatura do serviço prestado em 2022, melhor descrito na fatura ...91, emitida em 15/12/2022, no valor de € 24,60, e com vencimento a 20/12/2022, como as restantes faturas descritas no ponto 12.º) dos factos dados como provados, correspondentes aos serviços que foram prestados pela autora no ano de 2023.
BB. O montante total a ser pago pela ré à autora é de 10.539,57€.
TERMOS EM QUE
- Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, por via dele, ser a douta sentença recorrida revogada e substituída por outra decisão que, fazendo um correto julgamento da matéria de facto e uma correta aplicação do direito, condene a ré a pagar à autora o montante total de 10.539,57€ (dez mil, quinhentos e trinta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados desde a data do vencimento das faturas, até efetivo e integral pagamento.
- E, ainda, na quantia de € 40,00 (quarenta euros) a título de outras quantias.
só assim se fazendo sã e inteira Justiça!».
A requerida apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação e a consequente manutenção do decidido em 1.ª instância.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.
II. Delimitação do objeto do recurso
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:
A) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
B) Reapreciação do mérito da decisão recorrida em função da pretendida modificação da matéria de facto: saber se se a requerida está ou não obrigada a pagar o remanescente da quantia peticionada.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
III. Fundamentação
1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos considerados provados na sentença recorrida:
1. A Autora é uma sociedade anónima que se dedica ao “desenvolvimento de software, venda de equipamentos informáticos, representação dos mesmos, formação e consultoria”.
2. No âmbito do seu objeto social a Autora celebrou com a Ré os seguintes contratos:
a. Contrato de alojamento de dados em ... (n.º 4311), assinado a 06/02/2018, com duração de 36 meses, automaticamente renovável por um período de 12 meses, junto a fls. 52-53, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
b. Contrato ... (n.º ...45), assinado a 06/02/2018, com duração de 36 meses, automaticamente renovável por um período de 12 meses, junto a fls. 54, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
c. Contrato de serviço em cloud “...” (n.º ...59), assinado a 14/02/2020, com duração de 12 meses, automaticamente renovável por um período de 12 meses, junto a fls. 55-56, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
d. Contrato de prestação de serviços de consultoria mensal (n.º ...), assinado a 04/01/2021, com duração de 12 meses, automaticamente renovável por um período de 12 meses. junto a fls. 57-58, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais; e
e. Contrato de serviços em cloud “...” (n.º ...74), assinado a 11/11/2021, com duração de 12 meses, automaticamente renovável por um período de 12 meses, junto a fls. 59-60, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
3. Consta da cláusula 7ª do contrato n.º ...11, que qualquer das partes pode denunciar o contrato avisando a outra parte por carta registada e aviso de receção no prazo de 90 dias e relação à data do seu termo, ou do termo da sua renovação.
4. Consta da cláusula 13ª do contrato n.º ...45, que qualquer das partes pode denunciar o contrato avisando a outra parte por carta registada e aviso de receção no prazo de 90 dias e relação à data do seu termo, ou do termo da sua renovação.
5. Consta da cláusula 10ª do contrato n.º ...59, que qualquer das partes pode denunciar o contrato avisando a outra parte por carta registada e aviso de receção no prazo de 90 dias e relação à data do seu termo, ou do termo da sua renovação.
6. Consta da cláusula 5ª, § 4º do contrato n.º ...17, que qualquer das partes pode denunciar o contrato avisando a outra parte por carta registada e aviso de receção no prazo de 90 dias e relação à data do seu termo, ou do termo da sua renovação.
7. Consta da cláusula 10º do contrato n.º ...74, que qualquer das partes pode denunciar o contrato avisando a outra parte por carta registada e aviso de receção no prazo de 90 dias e relação à data do seu termo, ou do termo da sua renovação.
8. No decurso das relações comerciais vigentes entre as partes, a ré, em 13 de dezembro de 2022, enviou carta registada com aviso de receção à autora a “revogar” os contratos n.º ...74 e ..., com efeitos a partir de 01-01-2023.
9. A autora respondeu através de e-mail de 16/01/2023, informando que não aceitava a cessação dos contratos referidos em 11.º, uma vez que não havia sido cumprido o prazo de aviso prévio para a sua denúncia,
10. tendo ainda informado a ré que deveria continuar a pagar as prestações referentes a esses serviços.
11. No âmbito e execução dos contratos referidos supra, a Autora prestou à ré serviços que deram origem à emissão da fatura ...91 emitida em 15-12-2022 no valor de 24,60 € e vencimento a 20-12-2022;
12. No ano de 2023, a autora emitiu as seguintes faturas:
i. ...11 emitida em ../../2023 no valor de 83,54 € e vencimento a 08-01-2023;
ii. ...25 emitida em ../../2023 no valor de 24,60 € e vencimento a 09-01-2023;
iii. ...26, emitida em ../../2023, no valor de 492,00 € e vencimento a 09-01-2023.
iv. ...89 emitida em ../../2023 no valor de 24,60 € e vencimento a 11-01-2023;
v. ...90 emitida em ../../2023 no valor de 24,60 € e vencimento a 11-01-2023;
vi. ...39 emitida em ../../2024 no valor de 167,08 € e vencimento a 13-02-2024;
vii. ...40 emitida em ../../2024 no valor de 295,20 € e vencimento a 13-02-2024;
viii. ...41 emitida em ../../2024 no valor de 73,80 € e vencimento a 13-02-2024;
ix. ...42 emitida em ../../2024 no valor de 295,20 € e vencimento a 13-02-2024;
x. ...43 emitida em ../../2024 no valor de 270,60 € e vencimento a 13-02-2024;
xi. ...38, emitida em ../../2024 no valor de 8 364,00 € e vencimento a 13-02-2024;
xii. ...44 emitida em ../../2024 no valor de 399,75 € e vencimento a 13-02-2024.
13. Nenhuma das faturas foi paga na data do seu vencimento ou em data posterior.
14. Em 12-01-2024, a autora interpelou a ré, por carta registada, para proceder ao pagamento das faturas emitidas.
15. Durante o ano de 2023, a autora continuou a permitir o acesso da ré à plataforma “...” e “...”.
1.2. Factos considerados não provados pela 1.ª instância na sentença recorrida:
a) Em 2023, a autora prestou serviços de consultoria e de serviços de fecho de contas à ré (faturas ...38 e ...26).
b) A autora teve despesas com mandatário no valor de € 250,00.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A apelante/ré manifesta a sua discordância relativamente à matéria de facto vertida na decisão recorrida, pretendendo o aditamento à matéria de facto provada do seguinte facto: «Em 2023, a autora continuou a disponibilizar serviços de consultoria e de serviços de fecho de contas à ré (faturas ...38 e ...26)».
Sobre esta questão, a recorrente indica, como meios de prova a atender, as declarações de parte dos legais representantes da autora, BB e AA, com indicação dos concretos segmentos relevantes, que também transcreve no corpo da alegação.
Sucede que o concreto enunciado fáctico que a recorrente pretende agora ver aditado à matéria de facto provada não foi oportunamente alegado em sede de articulados.
Com efeito, o objeto do litígio, conformado pelo pedido formulado e respetiva causa de pedir indicados no requerimento de injunção, reporta-se à prestação de serviços à ré e ao não pagamento do respetivo preço.
Deste modo, os concretos meios de probatórios referenciados pela recorrente como relevantes para a alteração da concreta matéria de facto impugnada foram valorados criticamente pelo Tribunal a quo, em conjunto com os restantes meios de prova produzidos nos autos, visando concretizar as questões de facto efetivamente alegadas nos autos, nos seguintes termos:
«(…) Os factos não provados assim foram consideradas por, na minha convicção, a prova produzida e colhida nos autos não ter conduzido a diversa qualificação dos mesmos, nomeadamente por as testemunhas indicadas não terem revelado possuir conhecimentos concretos, objetivos e convincentes sobre a referida matéria controvertida e por os demais meios de prova produzidos não terem sido de molde a formar uma certeza jurídica quanto à verificação desses factos. Com efeito, e no que concerne ao ponto a), há que referir que os legais representantes da autora, BB e AA, acabaram por confirmar que a autora não prestou serviços de consultoria à ré no ano de 2023. Embora tenham referido que estes serviços não lhe foram solicitados, a verdade é que o que está alegado é a efetiva prestação do serviço. Contudo, como se disse, os legais representantes da autora confirmaram que esse serviço não foi prestado. Também ficamos com dúvidas sobre a prestação dos serviços de fecho de contas (indicados na fatura ...38), na medida em que a autora não prestou qualquer serviço físico à ré no ano de 2023/24. Portanto, este ponto a) terá de ser julgado não provado».
Neste contexto, resulta inequívoco que não pode proceder a ampliação da matéria de facto agora proposta pela recorrente em sede de apelação, por não integrar os poderes de cognição deste Tribunal em sede de julgamento da matéria de facto, revelando-se por isso manifestamente inconsequente à luz do objeto da presente ação.
Como tal, decide-se rejeitar, nessa parte, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
2.2. Reapreciação do mérito da decisão de direito
Atenta a improcedência da impugnação da matéria de facto, resulta evidente que os factos a considerar na apreciação da questão de direito são os que se mostram enunciados sob o ponto 1.1., supra.
A sentença recorrida entendeu que a requerente/apelante celebrou com a requerida/apelada diversos contratos de prestação de serviço atípicos[1], definidos pelo artigo 1154.º do Código Civil (CC) como aqueles em que uma das partes se obriga uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual com ou sem retribuição, qualificação que não se mostra controvertida na presente apelação.
No essencial, o Tribunal a quo entendeu que sendo a revogação unilateral do contrato de prestação de serviço consentida pela lei, face ao preceituado no artigo 1170.º do CC, aplicável por via do disposto no artigo 1156.º do CC, impunha-se concluir que, no seguimento da receção pela autora da declaração pela qual a requerida revogou unilateralmente os contratos com efeitos a partir de 01-01-2023, estes vieram a cessar a sua vigência no dia 01-01-2023, não mais estando as partes obrigadas ao seu cumprimento.
Em consequência, o Tribunal recorrido considerou que procedia a exceção perentória deduzida pela requerida, assim improcedendo a pretensão da requerente, porque assente num pressuposto fáctico que não se verifica, o de que o contrato de prestação de serviços continuava em vigor e, por isso, a requerida estaria obrigada a cumpri-lo, realizando a prestação pecuniária contratualmente estipulada (cf. artigo 762.º do CC).
Concluiu que, com exceção da fatura referente a serviços prestados no ano de 2022, a requerente não tem direito ao recebimento de qualquer quantia relativa ao cumprimento do contrato, uma vez que este cessou com a revogação operada pela requerida. Em consequência, julgou a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência, condenou a requerida a pagar à requerente a quantia de 24,60€, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data do vencimento da fatura, até efetivo e integral pagamento e ainda a quantia de 40,00€ a título de outras quantias.
A recorrente discorda do assim decidido. Sustenta, no essencial, que a decisão proferida não respeita o conteúdo contratual acordado livremente entre as partes, que previa um prazo de aviso prévio de 90 dias para a denúncia dos contratos, que foi incumprido pela ré; as partes acordaram que a denúncia fora do prazo estipulado, implicaria a renovação do contrato e a obrigação de pagamento das prestações até finalização do mesmo; tal clausulado resulta da vontade livre e esclarecida das partes, refletindo o exercício da autonomia privada e liberdade contratual dos seus outorgantes que, ao regularem os seus interesses, fixaram o conteúdo contratual; não tendo a ré cumprido os prazos e formalidades contratuais, os contratos celebrados renovaram-se automaticamente, ficando a ré obrigada ao pagamento das prestações devidas até ao final do período de renovação.
A solução que a recorrente defende para o litígio pressupunha, no mínimo, a prévia ampliação da matéria de facto, nos termos sustentados em sede de impugnação da decisão de facto, o que não se verificou.
Mas, independentemente da procedência da alteração suscitada quanto à matéria de facto, certo é que o artigo 1156.º do CC torna extensíveis, com as necessárias adaptações, as disposições a respeito do mesmo aos contratos de prestação de serviço que a lei não regule especialmente, o que nos remete, quanto à questão agora configurada, para o regime da revogação do mandato a que se reporta o artigo 1170.º do CC, mas sempre com as necessárias adaptações.
E, nos termos do disposto no artigo 1170.º, n. º1 do CC, o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação, resultando do seu n.º 2 que, se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante, salvo ocorrendo justa causa.
Analisando as hipóteses de irrevogabilidade do mandato, previstas no n.º 2 do citado artigo 1170.º do CC, de acordo com orientação que acompanhamos, deve entender-se que o interesse do mandatário ou de terceiro «não pode limitar-se ao consubstanciado no próprio contrato de mandato. Sendo o mandato oneroso, por exemplo, o mandatário teria “sempre” interesse na continuação do mandato, para receber a retribuição. Tal “interesse” ficaria, todavia, garantido com a indemnização decorrente do 1172.º, c), não sendo necessária irrevogabilidade (forte)»[2].
Deste modo, «[s]e o mandato for oneroso, há necessariamente uma vantagem económica para o mandatário, a obtenção de uma remuneração.
Mas não é essa vantagem que está em causa. O interesse do mandatário em receber uma remuneração não é suficiente para afastar o direito do mandante de recuperar a sua autodeterminação»[3]
Daí que o Supremo Tribunal de Justiça venha entendendo que o interesse do mandatário na conservação do mandato suscetível de justificar a irrevogabilidade, conforme a tutela gizada no n.º 2 do artigo 1170.º, não se reconduz à retribuição ou a outras vantagens patrimoniais ou sociais para ele emergentes do contrato de mandato, tão-pouco podendo consistir numa atuação do mandatário por sua conta, a qual subverteria a função económico-social e a tipicidade do contrato delineada no artigo 1157.º[4].
É certo que a requerida, ao denunciar os contratos ao 13-12-2022, com efeitos a 1-01-2023 (cf. ponto 8 dos factos provados), não cumpriu o prazo de aviso prévio de 90 dias, estipulado nas cláusulas contratuais.
Porém, a inobservância do prazo de aviso prévio não afeta a eficácia da revogação unilateral que foi comunicada, ainda que possa dar direito a uma indemnização[5], ou seja, a revogabilidade livre significa eficácia, ainda que possa não significar licitude[6].
Neste domínio, importa atentar que as disposições referentes ao mandato, aplicáveis ao caso por via da remissão do artigo 1156.º do CC, estipulam expressamente no artigo 1172.º do CC a obrigação de indemnização nas seguintes situações:
A parte que revogar o contrato deve indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer:
a) Se assim tiver sido convencionado;
b) Se tiver sido estipulada a irrevogabilidade ou tiver havido renúncia ao direito de revogação;
c) Se a revogação proceder do mandante e versar sobre mandato oneroso, sempre que o mandato tenha sido conferido por certo tempo ou para determinado assunto, ou que o mandante o revogue sem a antecedência conveniente;
d) Se a revogação proceder do mandatário e não tiver sido realizada com a antecedência conveniente.
No caso, ainda que tal não resulte da matéria de facto provada, o recorrente vem alegar em sede de recurso ter sido convencionado que a denúncia fora do prazo estipulado, implicaria a renovação do contrato e a obrigação de pagamento das prestações até finalização do mesmo.
Porém, sendo a revogação unilateral do contrato de prestação de serviço consentida pela lei, face ao preceituado no artigo 1170.º do CC, aplicável por via do disposto no artigo 1156.º do CC, tal como, aliás, consta dos contratos - cf. os pontos 3., 4., 5., 6., e 7., dos factos provados -, impõe-se concluir que, no seguimento da receção pela requerente da declaração pela qual a requerida revogou unilateralmente os contratos, estes cessaram a sua vigência com efeitos a 01-01-2023, não mais estando as partes obrigadas ao seu cumprimento, tal como se concluiu na decisão recorrida.
Poderá tratar-se, é certo, de um caso de revogabilidade fraca: a revogação, embora possível, obriga a indemnizar (1172.º)[7].
Em relação a esta questão, o Tribunal recorrido entendeu o seguinte: «Questão diferente, mas que não cabe aqui apreciar (até porque estamos no âmbito de uma ação especial para cumprimento de obrigações que tem um campo de aplicação restrito), é a de saber se dada a forma como a Ré veio fazer cessar o contrato, com a sua revogação unilateral, ainda que lícita, incorreu na obrigação de indemnizar a Autora. Com efeito, não constitui o objeto do litígio, conformado pelo pedido formulado e respetiva causa de pedir indicados no requerimento de injunção, saber se a Autora tem direito a uma indemnização (pretensão que, aliás, não podia fazer através de procedimento de injunção), pelo que constituiria uma violação dos princípios do contraditório, do dispositivo e da estabilidade da que instância apreciar se a Ré devia ser condenada no pagamento das quantias peticionadas, mas agora a título de indemnização de (supostos) danos pela revogação unilateral/resolução do contrato».
Também quanto a esta questão entendemos que a decisão recorrida não merece censura.
Efetivamente, tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-06-2021[8]:
«(…)
I - Para obter um título executivo e assim exigir o pagamento coercivo de um valor pecuniário correspondente à indemnização por incumprimento prevista em cláusula penal inserida em contrato de adesão, o procedimento injuntivo não é meio processual adequado;
II - Além de não ser uma obrigação pecuniária stricto sensu, a indemnização prevista na cláusula penal que a recorrente acionou por via da injunção não emerge directamente do contrato, mas da sua resolução por incumprimento;
III - Situando-se a pretensão indemnizatória da recorrente no campo da responsabilidade civil contratual, é, expressamente, excluída do âmbito de aplicação do regime da injunção, como prevê o artigo 2.º, n.º 2, al. c), do Dec. Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011».
Assim sendo, não constitui o objeto do litígio, conformado pelo pedido formulado e respetiva causa de pedir indicados no requerimento de injunção, saber se a autora tem direito a uma indemnização (pretensão que, aliás, não podia fazer através de procedimento de injunção)[9].
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a presente apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Síntese conclusiva:
…
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 26 de junho de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis
(Juiz Desembargador - relator)
Alcides Rodrigues
(Juiz Desembargador - 1.º adjunto)
José Carlos Dias Cravo
(Juiz Desembargador - 2.º adjunto)
[1] Enunciados sob o ponto 2 - als. a), b), c), d) e e). [2]Cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado - III - Coord. António Menezes Cordeiro, , CIDP, Almedina, 2024, p. 727. [3]Cf., Maria Helena Brito, Maria de Lurdes Vargas, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 1448. [4]Cf., por todos, o Ac. do STJ de 11-12-2003 (relator: Lucas Coelho), p. 03B3634, disponível em www.dgsi.pt. [5] Neste sentido, cf., por todos, os acs. TRP de 19-11-2020 (relator: Paulo Duarte Teixeira), p. 10608/19.5T8PRT.P1; TRL de 15-09-2014 (relator: Ezagüy Martins), p. 2351/12.2TVLSB.L1-2; disponível em www.dgsi.pt. [6] A propósito, cf. António Menezes Cordeiro - obra citada -, p. 731. [7] Cf. António Menezes Cordeiro - obra citada -, p. 726. [8] Relator Joaquim Moura, p. 2495/19.0T8VLG-A. P1, disponível em www.dgsi.pt. [9] Neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRL de 02-12-2021 (relatora: Laurinda Gemas), p. 96185/19.6YIPRT.L1-2; disponível em www.dgsi.pt.