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INVENTÁRIO
RENDIMENTOS DO TRABALHO DE UM DOS CÔNJUGES
INDEMNIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE UM DOS CÔNJUGES POR DANOS EM BEM COMUNS
Sumário
I - Os rendimentos do trabalho de um dos cônjuges, casado no regime de bens da comunhão de adquiridos, que seja recebido por via de uma sociedade comercial pode vir a fazer parte do património conjugal a partilhar após divórcio se se verificar que a actividade e rendimentos de um e de outro são sobreponíveis. II - A indemnização proveniente da responsabilidade de um dos cônjuges por danos em bens comuns pode fazer parte do património conjugal a partilhar.
Texto Integral
Proc. n.º 2139/21.0T8MTS-D.P1 – Apelação em separado
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores ...
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade
2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva
Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorrida: BB
Na sequência do divórcio, cujo processo foi instaurado a 7/05/2021, entre BB e AA, aquele requereu inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, juntando desde logo a respectiva relação de bens.
O requerente foi nomeado cabeça de casal e a requerida, citada nos termos e para os efeitos do art. 1104.º, n.º 1 do CC, a 24/04/2023, reclamou da relação de bens, além do mais, por falta de relacionação de bens, designadamente: - das quotas sociais da sociedade A..., Lda., no valor de 16.100,00 € e 14.000,00 €, adquiridas em 27/06/2019 e 14/07/2021, respectivamente, posteriormente ao matrimónio, e, portanto, bens comuns, apesar de constarem na certidão permanente que são bens próprios do cabeça de casal.
Da certidão permanente junta pela reclamante relativa à identificada sociedade, consta o seguinte:
. a 13/12/2010 foi registada a constituição desta sociedade, tendo por objecto a prestação de serviços médicos, com duas quotas, uma no valor de 4.900,00 € titulada pelo aqui cabeça de casal e outra no valor de 100,00 €, titulada por CC;
. a 31/12/2013 foi registado o aumento de capital de 2.000,00€ com a constituição de uma nova quota no valor de 2.000,00€ titulada por CC;
. a 27/06/2019 foi registado o aumento de capital no valor de 23.000,00 € por incorporação de parte dos resultados transitados (resultado líquido do exercício de 2018), pelos sócios, dando origem a uma nova quota no valor de 16.100,00 € titulada pelo aqui cabeça de casal;
. a 14/07/2021 foi registado o aumento de capital no valor de 20.000,00 €, por incorporação dos lucros gerados referentes ao exercício de 2020, distribuídos por ambos os sócios na proporção das suas participações sociais para criação de duas novas quotas, uma no valor de 14.000,00 € para o aqui cabeça de casal e outra no valor nominal de 6.000,00 € para CC. - dos rendimentos do cabeça de casal pelo seu trabalho para entidades privadas ou o correspondente direito de crédito sobre a sociedade A..., Lda. em cujas contas, e não nas contas bancárias do casal ou do cabeça de casal, esses rendimentos eram depositados. - dos rendimentos do cabeça de casal provenientes da sua atividade de formador e das palestras que lecciona igualmente pagos através da referida sociedade comercial, em cujas contas, e não nas contas bancárias do casal ou do cabeça de casal, esses rendimentos eram depositados.
Para prova destes dois bens pediu a reclamante
“ d) A notificação de A..., Lda.. para que informe os autos de todos os atos médicos efetuados pelo cabeça de casal para entidades privadas, juntando cópia dos contratos celebrados com as mesmas e toda a faturação a eles referente;
e) A notificação das seguintes entidades médicas para informarem os autos de todos os atos médicos efetuados pelo cabeça de casal desde 2014; todos os pagamentos processados à sociedade comercial A..., Lda. (NIPC ...21); desses pagamentos, quais os referentes a atos médicos praticados pelo cabeça de casal; e para juntarem cópia do(s) contrato(s) celebrado(s) com a aquela sociedade comercial:
i. B..., S.A. (NIF ...29)
ii. C... (NIF ...66)
iii. D... (NIF ...43)
iv. Hospital ... (NIF ...50)
v. Hospital ..., EPE (NIF ...80)
vi. E... S.A. (NIF ...35)
vii. Fundação ... (NIF ...43)
viii. F..., S.A. (NIF ...37)
ix. G..., A.C.E. (NIF ...78)
x. H... S.A. (NIF ...16)
xi. I..., S.A. (NIF ...70)
xii. J..., S.A. (NIF ...17)
xiii. K..., S.A. (NIF ...30)
xiv. L..., S.A. (NIF ...59)
xv. M..., S.A. (NIF ...70)
f) A notificação das seguintes entidades médicas para que informarem os autos de todos os atos médicos efetuados pelo cabeça de casal desde 2014; todos os pagamentos processados à sociedade comercial A..., Lda. (NIPC ...21); desses pagamentos, quais os referentes a atos médicos praticados pelo cabeça de casal; e para juntarem cópia do(s) contrato(s) celebrado(s) com a aquela sociedade comercial
g) A notificação das seguintes entidades privadas para que informarem os autos de todos os atos que o cabeça de casal tenha intervindo; todos os pagamentos processados à sociedade comercial A..., Lda. (NIPC ...21); desses pagamentos, quais os referentes a atos praticados pelo cabeça de casal; e para juntarem cópia do(s) contrato(s) celebrado(s) com a aquela sociedade comercial:
i. N... (NIF ...33);
ii. O..., Lda. (NIF ...70)”
- do valor global de 77.000,00 € da conta bancária n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A., de ambos os interessados, levantado pelo cabeça de casal para propósitos pessoais, e não para satisfação de despesas do ex-casal, do seguinte modo:
a. 60.000,00 EUR no dia 11/05/2018;
b. 7.000,00 EUR no dia 10/07/2018;
c. 5.000,00 EUR no dia 28/12/2020, e
d. 5.000,00 EUR no dia 08/04/2021.
Como prova, indicou a reclamante um rol de testemunhas.
Notificado da reclamação da interessada, o cabeça de casal impugnou a matéria alegada e defendeu que as participações sociais são bens próprios seus, os seus rendimentos pagos pelo Hospital ... e pela identificada sociedade A..., Lda. de que é trabalhador, estão reflectidos na sua declaração fiscal, e a verba de 77.000,00 € por si levantada destinou-se a fazer face a despesas do respectivo agregado familiar.
Juntou, entre outros documentos, recibo de vencimento de Outubro de 2022 passado por A..., Lda. e a declaração de rendimentos relativa ao ano de 2020.
As diligências de prova requeridas pela reclamante para notificação à sociedade comercial A..., Lda. e às entidades supra elencadas às quais prestou serviços foram objecto, em 27/09/2023, da seguinte decisão “…Ora, os presentes autos de inventário têm como objeto a partilha do património comum do casal, o qual será integrado, além do mais, ou não (conforme posição expressa pelo cabeça de casal) pela quota de que é titular na sociedade A..., Lda.
As sociedades comerciais são sujeitos (autónomos) de direito. A atribuição de personalidade jurídica às sociedades, constituindo uma ficção jurídica, assenta num princípio de grande relevância prática, o da separação (nomeadamente de patrimónios) entre a sociedade e os respetivos sócios.
Não servem, pois, os presentes autos de inventário, o propósito de acesso às informações sobre a vida societária de uma sociedade, nomeadamente sobre a respetiva situação patrimonial e giro comercial, para o que existe previsto na lei procedimento adjetivo próprio.
Face ao exposto, indefere-se, a requerida notificação quer à sociedade comercial A..., Lda., quer às entidades supra elencada às quais prestou serviços”.
A 1/03/2024 foi proferido o despacho de saneamento, cujo teor, com relevância para o presente recurso, é o seguinte:
“Intentou BB o presente inventário para separação de meações contra AA e apresentou relação de bens.
Por despacho sob a Ref. n.º 445604847 foi admitido o presente inventário, e nomeado para exercer as funções de cabeça de casal o requerente, ordenando-se a citação da requerida, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 1100º, n.º2, al. b) do CPC e bem assim para os efeitos do disposto no art. 1104º, n.º2 do mesmo diploma legal.
Citada a requerida apresentou reclamação à relação de bens (Cf. Ref. n.º 35458464) nos seguintes termos (Ref. n.º 37143425):
I. Acusa a falta de relacionação:
1) de duas quotas na sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda., NIPC ...21, as quais foram adquiridas, posteriormente ao casamento; caso assim não se entenda, deverá proceder-se à respetiva compensação ao património comum no valor de 30.100,00 EUR como crédito sobre o cabeça de casal.
…
3) Créditos/rendimentos do trabalho provenientes de entidades privadas para as quais o cabeça de casal exerce funções de médico, sendo tais rendimentos pagos através da sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.
4) Rendimentos provenientes da atividade de formador do cabeça de casal e das palestras que leciona são pagos através da referida sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.
…
6) Crédito no montante de 77.000,00 EUR sobre o cabeça de casal, proveniente de levantamentos injustificados da conta bancária das partes com o n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A. em data anterior ao divórcio.
…
Notificado o cabeça de casal da reclamação apresentada respondeu (cf. Ref. n.º 35895856) nos seguintes termos:
- O Requerente é sócio da sociedade A..., Lda., tratando-se a sua quota de um bem adquirido antes do casamento e, como tal, bem próprio; esta sociedade paga ao requerente um salário mensal pelo trabalho por este desenvolvido junto dos clientes da sociedade; que a dita sociedade nunca distribuiu lucros, pelo que, da sua atividade nunca resultou para o requerente qualquer outro proveito, antes ou depois, do casamento que não o do seu salário; que após o casamento ocorreu apenas um aumento de capital; que não se tratando de bem comum, nada haverá a relacionar.
…
- que enquanto trabalhador do Hospital ... e da sociedade A..., Lda., o Requerente presta serviços a diversas entidades, clientes destas sociedades, mas fá-lo ao abrigo do salário que recebe de ambas e nunca por relação direta com as mesmas, estando as mesmas e os seus eventuais pagamentos pelos serviços prestados arredados dos presentes autos.
…
- que a quantia reclamada a titulo de credito no montante de 77.000,00€ serviu para satisfazer as necessidades da família, nomeadamente da requerida, E foram conduzidos ao pagamento salários da empregada, jardineiro, condomínio, IMI, todas as despesas de saúde da família, nomeadamente da Requerida, entre as quais as consultas, ecografias, cesarianas e outras, internamento do DD, bem como exames auxiliares de diagnóstico, medicação e outros, todas as viagens de férias da família, vestuário e alimentação de todos, as despesas do Colégio, pelo que nenhum crédito haverá a relacionar a tal propósito.
…
Por despacho sob a Ref. n.º 451995000 foram indeferidas diligências probatórias requeridas e ordenou o Tribunal a notificação do cabeça de casal para que identificasse quais os saldos de depósitos bancários ou outros produtos financeiros de que é titular, juntando informação bancária com data de abertura de conta e saldo existente à data da cessação das relações patrimoniais – 7 de maio de 2021 e indeferiram-se, com os fundamentos ali constantes as diligências probatórias requeridas pelo cabeça de casal em sede de resposta à reclamação.
Notificado o cabeça de casal do despacho sob a Ref. 453819675 juntou aos autos declaração relativa a cotitularidade de conta sediada no Banco 1... com o n.º ...20 com o saldo, à data de 7/05/2021, no montante de 3.342,41€, conta esta que havia sido identificada pela interessada na reclamação à relação de bens.
Notificada a interessada/reclamante, nada mais foi por ela requerido.
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Saneamento
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo não enferma de qualquer nulidade.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legitimas e não existem irregularidades de representação.
Não existem quaisquer exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Atenta a posição das partes nos respetivos articulados e os documentos juntos considera o Tribunal dispor dos elementos necessários a proferir decisão quanto ao restante do objeto da reclamação apresentada pela requerente.
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Factos provados
Com relevo para a decisão da reclamação apresentada mormente da posição das partes e documentos juntos aos presentes autos e aos principais mostram-se provados os seguintes factos:
1) O cabeça de casal e a interessada contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial no dia 27 de setembro de 2014;
2) O casamento entre o cabeça de casal e a interessada veio a ser dissolvido, por divórcio, por mutuo consentimento por sentença homologatória proferida do dia 9 de junho de 2022.
3) No âmbito do divórcio referido em 2) acordaram o cabeça de casal e a interessada quanto à utilização da casa de morada de família o seguinte: “A utilização da casa de morada de família, bem comum, fica atribuída à cônjuge mulher até à venda ou partilha, ficando o requerente obrigado ao pagamento das despesas de crédito habitação, IMI, condomínio e seguros, sem prejuízo da devida compensação aquando da partilha judicial ou extrajudicial do património comum do casal.
4) O cabeça de casal é gerente da sociedade comercial A..., Lda.
5) A sociedade comercial referida em 4) tem um capital social de 50.000,00€ dividido em duas quotas, sendo uma no montante de 4.900,00 Euros da qual é titular o cabeça de casal e outra no montante de 100,00 Euros da qual é titular CC;
6) A sociedade comercial referida em 4) foi constituída em 13/12/2010 conforme apresentação no registo comercial AP. ...0/20101213;
7) Mostra-se registado com data de 31/12/2013 aumento de capital da referida sociedade e alteração ao contrato de sociedade;
8) Mostra-se registado com data de 27/06/2019 aumento de capital da referida sociedade e alteração ao contrato de sociedade, cujo capital social passou ao montante de 30.000,00€ divididos em cinco quotas sendo duas da titularidade do cabeça de casal e as outras três da titularidade de CC.
9) Mostra-se registado com data de 14/07/2021 aumento de capital da referida sociedade e alteração ao contrato de sociedade, cujo capital social passou ao montante de 50.000,00€ divididos em sete quotas sendo três da titularidade do cabeça de casal e as outras quatro da titularidade de CC.
10) O cabeça de casal é co-titular com a interessada de uma conta de depósitos à ordem com o n.º ...20 sediada no Banco 1..., S.A., cujo saldo à data de 7 de maio de 2021 era de 3342,41€;
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Fundamentação de Direito
Reclamou a interessada da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal acusando:
I) Falta de relacionação:
1) de duas quotas na sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda., NIPC ...21, as quais foram adquiridas, posteriormente ao casamento; caso assim não se entenda, deverá proceder-se à respetiva compensação ao património comum no valor de 30.100,00€ como crédito sobre o cabeça de casal.
Respondeu o cabeça de casal alegando que a referida sociedade foi constituída em data anterior ao casamento.
Da factualidade dada como provada resulta que o cabeça de casal é gerente da sociedade comercial A..., Lda. sendo ainda titular de cinco quotas. Esta sociedade foi constituída em 13/12/2010 conforme apresentação no registo comercial AP. ...0/20101213 e após a sua constituição sofreu alteração ao contrato de sociedade, por via de sucessivos aumentos de capital.
Da certidão permanente junta aos autos não resulta que tenha existido repartição de lucros pelos sócios ou entrada de novos sócios desde a sua constituição.
Tendo sido constituída em 13/12/2010 foi-o em data anterior ao casamento entre requerente e requerida.
Requerente e requerida casaram sob o regime da comunhão de adquiridos.
Estabelece o art. 1724.º al. b) do Código Civil que as quotas e/ou ações que, em geral, tenham sido adquiridas depois da celebração do casamento por qualquer um dos cônjuges ou pelos dois em conjunto são bens comuns do casal, salvo as que por lei forem qualificadas como bens próprios de apenas um dos cônjuges.
Assim, uma quota social constitui um bem comum do casal se adquirida na constância do matrimónio a título oneroso e um bem próprio se adquirida em data anterior ao casamento.
No caso, as quotas da titularidade do cabeça de casal foram adquiridas em data anterior à celebração do casamento coma requerida.
Após o casamento verificaram-se aumentos do capital social.
O contrato de sociedade instituiu uma sociedade por quotas, tendo o seu capital sido dividido em quotas em função do contratualizado, com a menção do montante de cada quota de capital, a identificação do respetivo titular, o montante das entradas efetuadas por cada sócio e o montante das entregas diferidas (artigo 199º do Código das Sociedades Comerciais, daqui em diante designado CSC).
Entre os requisitos essenciais do contrato de sociedade conta-se a contribuição dos sócios com bens ou serviços (artigo 980º), o que torna o contrato de sociedade um contrato oneroso. O capital social, como valor representativo das entradas dos sócios, determina a que estas constituam um ato oneroso.
A entrada de capital traduz-se, igualmente, num ato oneroso de alienação de bens, espécie a que, genericamente, é aplicável o regime da compra e venda [Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Vol. II, pág. 316.]. Em consequência, e no âmbito do regime da comunhão de adquiridos, a quota social constitui um bem comum do casal quando adquirido na constância do matrimónio a título oneroso.
Já a quota social adquirida antes do casamento mantém-se como bem próprio do seu titular, como defende o cabeça de casal, ainda que tenha visto o seu valor aumentado na sequência de aumento de capital ocorrido na constância do matrimónio, como é o caso dos autos, e isto porque só o sócio poderia participar nesse aumento de capital, ou seja, só o facto de ser titular da quota inicial, adquirida antes do matrimónio, lhe permitiu (ao seu titular) participar nesse aumento do capital e, consequentemente, passar a ser titular de quota de valor nominal superior. Assim, o acréscimo do valor da quota, ou a sua valorização, foi adquirido em virtude da titularidade de um bem próprio, mantendo a quota social, por força do disposto no art.º 1728º nº 1 do CC, a sua natureza de bem próprio do requerido. (Cf. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/10/2009 proferido no processo n.º 68/04.0TMCBR-B.C1 e o Ac. do STJ de 16-12-2010, proferido no processo n.º 1851/07.0TVVNF.P1.S1).
Por outro lado, nada há a compensar ao património comum do casal, como, subsidiariamente, parece defender a reclamante.
É certo que no decurso do casamento entre cabeça de casal e reclamante ocorreram aumentos de capital (com o consequente aumento de quotas). Essa incorporação resultou da circunstância de o cabeça de casal ser titular da primitiva quota social, e configura uma constituição de reserva da sociedade, não um fruto civil, pois apenas constituem frutos, os rendimentos efetivamente distribuídos – cfr. art. 212º do Cód. Civil (cf. neste sentido o Ac. do TRL de 9/10/1997, citado no Acórdão do STJ supra citado). A constituição de reservas, não obstante valorizem a sociedade, não tem essa característica, pois não têm existência autónoma com possibilidade de apropriação própria.
Em conclusão, as quotas de que o cabeça de casal é titular na sociedade comercial são bens próprios do cabeça de casal, assim como não existe qualquer fundamento para a pretendida compensação do património comum porquanto as reservas incorporadas, não podendo ser consideradas frutos civis, não se comunicaram à reclamante, pese embora a respetiva constituição se tenha produzido na constância do casamento.
Improcede, nesta parte, a reclamação apresentada.
***
…
3) Dos Créditos/rendimentos:
Acusa a reclamante a falta de relacionação de créditos/rendimentos do trabalho provenientes de entidades privadas para as quais o cabeça de casal exerce funções de médico, sendo tais rendimentos pagos através da sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda. e rendimentos provenientes da atividade de formador do cabeça de casal e das palestras que leciona são pagos através da referida sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.
Ora, a este propósito teve o Tribunal oportunidade de se pronunciar já, conforme despacho sob a Ref. n.º 451995000 de 27/09/2023.
Com efeito, os presentes autos de inventário têm como objeto a partilha do património comum do casal.
As sociedades comerciais são sujeitos (autónomos) de direito. A atribuição de personalidade jurídica às sociedades, constituindo uma ficção jurídica, assenta num princípio de grande relevância prática, o da separação (nomeadamente de patrimónios) entre a sociedade e os respetivos sócios. E, assim sendo, os pagamentos efetuados pelas entidades a quem aquela sociedade presta serviços, constituem património desta, independente do património conjugal, nenhum crédito havendo a reclamar deste último sobre aquele a esse titulo.
Improcede, também nesta parte, a reclamação apresentada.
…
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5. Do crédito no montante de 77.000,00 EUR sobre o cabeça de casal, proveniente de levantamentos injustificados da conta bancária das partes com o n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A. em data anterior ao divórcio.
Respondeu o cabeça de casal que a quantia reclamada serviu para satisfazer as necessidades da família, nomeadamente da requerida, E foram conduzidos ao pagamento salários da empregada, jardineiro, condomínio, IMI, todas as despesas de saúde da família, nomeadamente da Requerida, entre as quais as consultas, ecografias, cesarianas e outras, internamento do DD, bem como exames auxiliares de diagnóstico, medicação e outros, todas as viagens de férias da família, vestuário e alimentação de todos, as despesas do Colégio, pelo que nenhum crédito haverá a relacionar a tal propósito.
O crédito cuja relacionação a reclamante acusa dirá respeito a levantamentos efetuados das contas comuns do casal em momento anterior à data da cessação das relações patrimoniais.
Como tivemos já ocasião de referir supra os efeitos patrimoniais devem ser considerados tendo em conta a data da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges de modo que os montantes pecuniários depositados em contas bancárias em data anterior ou posterior não deverão ser contabilizados.
Caso tenham existido movimentos de transferência do dinheiro de conta de que ambos os cônjuges eram titulares em data em que o casamento estava em plena vigência, à luz do n.º 1 do art. 1789.º do CC, o saldo da conta a considerar como bem relacionável, apenas poderia ser o que resultasse naquela data e nunca o de data posterior ou anterior. Neste último caso, porque nessa data o casamento estava em plena vigência e a partilha do casal só acontece com a cessação das relações patrimoniais em virtude da dissolução do casamento por divórcio – art. 1689.º do CC. No primeiro caso, porque as relações patrimoniais haviam já cessado.
Se a reclamante se sentir prejudicada com um ato de gestão praticado pelo cabeça de casal, pode reagir através da propositura de uma ação de indemnização de perdas e danos, conforme decorre do art. 1681.º, n.º 1, do CC, sendo nesta ação que poderá obter a fixação do seu direito à indemnização, traduzindo-se o direito aí obtido pela sentença num crédito sobre o outro cônjuge, sendo então o seu pagamento considerado em sede de partilha do casal, de acordo com o estatuído no citado art. 1689.º do CC.
Face ao exposto, improcede, também nesta parte, a reclamação.
…
Decisão
Face ao exposto julga-se parcialmente procedente por provada a reclamação da requerida à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal
…”
É deste despacho que a interessada AA interpôs recurso, pretendendo a alteração das “decisões de improcedência proferidas no Despacho Saneador, quanto às quotas sociais, aos rendimentos pagos através da sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.” e aos levantamentos injustificados”, para o que rematou com as seguintes conclusões:
“A- Em sede de reclamação contra a relação de bens, a Interessa acusou a falta de duas quotas da sociedade “A..., Lda.”, de rendimentos de trabalho do cabeça de casal pagos através daquela sociedade e de levantamentos injustificados do cabeça de casal efetuados antes do divórcio.
B- Em douto Despacho Saneador agora proferido, o Tribunal a quo entendeu julgar improcedente a reclamação pela inclusão de tais bens.
C- A Interessada discorda da decisão de improcedência contra a inclusão de tais bens, motivo pelo qual vem apresentar recurso dessa decisão.
D- O Tribunal a quo fundamentou a improcedência pela inclusão dos rendimentos de trabalho faturados através da sociedade comercial na simples independência e autonomia dos patrimónios – o societário e o do casal.
E- Entende a Interessada que, antes do Tribunal a quo concluir pela procedência ou improcedência da pretensão daquela e de concluir pela existência ou não de independência ou autonomia de patrimónios, deveria ter apreciado factualmente tal questão, nem que fosse por remessa para os meios comuns.
F- Tal como a Interessa vem referindo desde início, apesar de serem faturados através de uma sociedade comercial, os rendimentos desta correspondem aos rendimentos de trabalho do cabeça de casal e que, como tal, devem ser integrados na massa conjugal.
G- São diversos os indicadores de que a faturação de rendimentos através da sociedade comercial servem para afastar os mesmos de serem integrados no património conjugal, prejudicando a Interessada e violando o que a lei consagra no artigo 1724.º do Código Civil.
H- A sociedade A..., Lda. tem 2 sócios, o cabeça de casal e o seu progenitor, sendo só aquele médico, com especialidade em ortopedia.
I- A sociedade dedica-se à prática de atos médicos, os quais só podem ser efetuados por uma pessoa singular habilita e qualificada como tal – só o cabeça de casal o é.
J- A atividade de médico ortopedista é uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que alude o artigo 151.º do Código do IRS, o que significa que é uma atividade tipicamente sujeita ao regime de transparência fiscal (os rendimentos faturados pela sociedade são considerados rendimentos dos sócios, independentemente da distribuição ou não de lucros).
K- Se a sociedade A..., Lda. não tivesse integrado o progenitor do cabeça de casal (que não é médico) como sócio, inicialmente com a quota mínima legalmente possível, representando 2 % e se no dia anterior à alteração legal do regime da transparência fiscal, o progenitor não tivesse aumentado a sua percentagem para 30 %, a sociedade estaria formalmente sujeita ao regime da transparência fiscal e assim o cabeça de casal não poderia evitar que os rendimentos do seu trabalho para entidades privadas, ainda que faturados a uma sociedade, fossem considerados rendimentos pessoais e assim entrariam no património conjugal, tendo a Interessada direito aos mesmos.
L- Apesar do cabeça de casal utilizar a sociedade para faturar os rendimentos do seu trabalho, o Tribunal não poderá fechar os olhos a esta situação e, pelo simples argumento da autonomia e independência, frustrar-se a avaliar a verdadeira e real situação.
M- Ainda para mais quando é cada vez mais frequente a utilização de sociedades para faturarem rendimentos de trabalho, evitando assim a entrada de rendimentos no património conjugal, escapando à sua posterior repartição em sede de partilha, assim como para olvidar a uma tributação superior em sede de IRS à que fica sujeita em sede de IRC.
N- Veja-se o mediático caso do ex-selecionador EE que recentemente foi considerado pela nossa ordem jurídica que utilizava uma sociedade para faturar os seus rendimentos de trabalho pelo cargo de selecionador.
O- O mesmo ordenamento jurídico que tem penalizado estas práticas em sede fiscal, é o mesmo que não pode deixar de discriminar estas mesmas práticas em sede civil.
P- Em termos de aplicação do Direito ao caso, o Tribunal poderá basear a sua decisão no abuso de direito, desconsiderando a personalidade jurídica, ou até mesmo por simulação.
Q- O caso tem todas as características de uma utilização abusiva e desconforme da personalidade coletiva.
R- Quem pratica os atos médicos é apenas e só a pessoa singular que tem essas qualificações – o cabeça de casal.
S- A responsabilidade pelos atos médicos é apenas do cabeça de casal, assim como o seguro de responsabilidade.
T- A sociedade comercial é o cabeça de casal, inexistindo sem a sua pessoa.
U- A relação existente com as entidades privadas é intuitu personae, indissociável do seu prestador – o cabeça de casal, sem os seus atos médicos pessoais e intransmissíveis.
V- Apesar da utilização de um veículo – a sociedade comercial – para faturar tais rendimentos, os mesmos têm todas as características para serem considerados como rendimentos de trabalho, que devem ser integrados na massa comum a partilhar.
W- As “prestações de serviço” pagas pelas entidades privadas à sociedade comercial de que o cabeça de casal é o seu gerente e sócio maioritário devem considerar-se como prestadas direta e pessoalmente pelo próprio cabeça de casal.
X- A interposição da sociedade comercial como parte nos contratos com as entidades privadas, no lugar do cabeça de casal, constituiu um mero instrumento para, em abuso da forma jurídica adotada, retirar bastantes vantagens ao nível próprio e pessoal do cabeça de casal, com prejuízo direto para a Interessada, na exata medida em que tais rendimentos não entram no património comum do casal, elidindo-os assim aos bens a partilhar.
Y- De tal modo a intervenção da sociedade é artificiosa, abusiva, meramente formal e sem substância económica.
Z- O presente caso é justamente um abuso de personalidade jurídica, que suscita o levantamento de personalidade jurídica da sociedade comercial.
AA- A interposição da sociedade nos rendimentos auferidos pelos serviços profissionais prestados pelo cabeça de casal é uma atuação contrária à boa fé, aos bons costumes ou pelo fim social ou económico de qualquer direito que possa ser invocado para justificar a interposição.
BB- Outro detalhe que não pode deixar de ser relevante na apreciação do caso é a disparidade e anormalidade dos valores que o cabeça de casal considera como rendimentos de trabalho para com a sociedade comercial A..., Lda., em que declara apenas o ordenado mínimo… parecendo-nos que é por demasiado gritante que um médico não aufira o ordenado mínimo.
CC- A declaração e a emissão do vencimento correspondente ao ordenando mínimo é mais um indício do modo como o cabeça de casal faz uso da sua sociedade comercial para aí estacionar os seus rendimentos de trabalho e assim furtar a sua integração onde deveria – o património conjugal.
DD- E tudo o que foi dito a respeito dos rendimentos de trabalho por atos médicos, o mesmo se reitera a propósito dos rendimentos de trabalho provenientes da atividade de formador.
EE- Pelo exposto, e pela matéria de direito que doutamente o Tribunal ad quem aplicara, deverá ser revogada a decisão de improcedência do pedido da Interessada pela inclusão dos “créditos/rendimentos do trabalho provenientes de entidades privadas para as quais o cabeça de casal exerce funções de médico, sendo tais rendimentos pagos através da sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.”, bem como dos “rendimentos provenientes da atividade de formador do cabeça de casal e das palestras que leciona são pagos através da referida sociedade comercial” e ser proferida decisão que as admita ou, caso assim não entenda, de decisão que remeta para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não destas verbas.
FF- Na senda da argumentação utilizada anteriormente a propósito dos rendimentos faturados através da sociedade comercial, discorda-se da não inclusão de duas quotas sociais nos bens comuns do casal.
GG- Isto é, sendo considerado que os rendimentos são do trabalho, são assim rendimentos do casal e o que for adquirido com recurso a estes adquire esta qualidade de bem comum.
HH- Ou, caso se entenda que a qualidade deve manter a anterior, de bens próprios, no limite, deverá efetuar-se a peticionada subsidiariamente compensação do valor utilizado para o efeito.
II- Pelo que, e pela matéria de direito que doutamente o Tribunal ad quem aplicara, deverá ser revogada a decisão de improcedência do pedido da Interessada pela inclusão dos “de duas quotas na sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda., NIPC ...21, as quais foram adquiridas, posteriormente ao casamento; caso assim não se entenda, deverá proceder-se à respetiva compensação ao património comum no valor de 30.100,00 EUR como crédito sobre o cabeça de casal.” e ser proferida decisão que a admita ou, caso assim não entenda, de decisão que remeta para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não desta verba.
JJ- A respeito da não inclusão dos levantamentos injustificados em data anterior à dissolução conjugal, a Interessa segue o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação do Porto “II – Caso se apure que um dado saldo bancário de uma conta comum ao casal foi substancialmente reduzido por força de levantamentos operados por um deles em data próxima da separação devem relacionar-se como bens comuns as quantias em dinheiro correspondentes a tais levantamentos, independentemente do saldo bancário, necessariamente menor, que subsista.” (processo 349/10.4TBLSD-C.P1 de 06-02-2018)
KK- Daí que e pela matéria de direito que doutamente o Tribunal ad quem aplicara, deverá ser revogada a decisão de improcedência do pedido da Interessada pela inclusão do “Crédito no montante de 77.000,00 EUR sobre o cabeça de casal, proveniente de levantamentos injustificados da conta bancária das partes com o n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A. em data anterior ao divórcio.” e ser proferida decisão que a admita ou, caso assim não entenda, de decisão que remeta para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não desta verba.
LL- Foram violados os artigos 334.º e 1724.º do Código Civil.
MM- Deste modo, deverá ser dado provimento ao recurso, alterando-se as decisões de improcedência proferidas no Despacho Saneador, quanto às quotas sociais, aos rendimentos pagos através da sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.” e aos levantamentos injustificados”.
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Contra-alegou o cabeça de casal, pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
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Subsequentemente, a recorrente veio pedir a suspensão da instância recursiva por causa prejudicial por ter sido citada numa acção movida contra si pela sociedade A..., Lda., em que deduziu reconvenção e requereu a intervenção principal do aqui recorrido, colocando-se aí questões que são prejudiciais relativamente às questões que se mostram colocadas no presente recurso, o que mereceu a oposição do recorrido.
O tribunal indeferiu a requerida suspensão da instância recursiva.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas, a questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se deve ser revogada a decisão que julgou improcedente a reclamação à relação de bens do cabeça de casal na parte em que a recorrente acusa falta de relacionação dos seguintes bens:
1-rendimentos do cabeça de casal pelo seu trabalho e pela sua actividade de formador e de palestraspara entidades privadas ou o correspondente direito de crédito sobre a sociedade A..., Lda. em cujas contas, e não nas contas bancárias do casal ou do cabeça de casal, esses rendimentos eram depositados, ou, caso assim não se entenda, a remessa para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não destas verbas.
2-duas quotas na sociedade comercial A..., Lda., ou, caso assim não se entenda, a respetiva compensação ao património comum no valor de 30.100,00 EUR como crédito sobre o cabeça de casal, ou, caso assim não entenda, a remessa para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não desta verba.
3-crédito no montante de 77.000,00 EUR sobre o cabeça de casal, proveniente de levantamentos da conta bancária das partes com o n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A. em data anterior ao divórcio, ou, caso assim não entenda, a remessa para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não desta verba.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Fundamentação de direito.
Delimitada a questão essencial a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-la.
A pretensão recursiva é a de que se alterem as decisões de improcedência proferidas no despacho saneador quanto a determinados bens cuja falta foi acusada pela recorrente na sua reclamação à relação de bens e, consequentemente, que esses bens sejam relacionados como património conjugal, ou, caso assim não se entenda, que os interessados sejam remetidos para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não dessa verbas (Conclusões II, EE e KK, respectivamente).
Vejamos em conjunto os dois seguintes créditos:
1-rendimentos do cabeça de casal pelo seu trabalho e pela sua actividade de formador e de palestraspara entidades privadas ou o correspondente direito de crédito sobre a sociedade A..., Lda. em cujas contas, e não nas contas bancárias do casal ou do cabeça de casal, esses rendimentos eram depositados, ou, caso assim não se entenda, a remessa para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não destas verbas.
2-duas quotas na sociedade comercial A..., Lda., ou, caso assim não se entenda, a respetiva compensação ao património comum no valor de 30.100,00 EUR como crédito sobre o cabeça de casal, ou, caso assim não entenda, a remessa para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não desta verba.
A respeito dos rendimentos do trabalho e provenientes da actividade de formador e palestrante do cabeça de casal, a decisão do tribunal recorrido foi a seguinte:
“Acusa a reclamante a falta de relacionação de créditos/rendimentos do trabalho provenientes de entidades privadas para as quais o cabeça de casal exerce funções de médico, sendo tais rendimentos pagos através da sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda. e rendimentos provenientes da atividade de formador do cabeça de casal e das palestras que leciona são pagos através da referida sociedade comercial que gira sob a firma A..., Lda.
Ora, a este propósito teve o Tribunal oportunidade de se pronunciar já, conforme despacho sob a Ref. n.º 451995000 de 27/09/2023.
Com efeito, os presentes autos de inventário têm como objeto a partilha do património comum do casal.
As sociedades comerciais são sujeitos (autónomos) de direito. A atribuição de personalidade jurídica às sociedades, constituindo uma ficção jurídica, assenta num princípio de grande relevância prática, o da separação (nomeadamente de patrimónios) entre a sociedade e os respetivos sócios. E, assim sendo, os pagamentos efetuados pelas entidades a quem aquela sociedade presta serviços, constituem património desta, independente do património conjugal, nenhum crédito havendo a reclamar deste último sobre aquele a esse titulo.
Improcede, também nesta parte, a reclamação apresentada”.
A recorrente defende no seu recurso que antes de concluir pela independência e autonomia entre o património conjugal e o património da sociedade A..., Lda., o tribunal deveria ter apreciado factualmente tal questão, nem que fosse por remessa para os meios comuns, posto que, segundo refere, os rendimentos desta sociedade, correspondem exclusivamente aos rendimentos do trabalho e da actividade de formador e palestrante do cabeça de casal prestados na qualidade de médico, todos facturados através da dita sociedade, cujo objecto social é justamente a prestação de serviços médicos, no caso unicamente pelo único sócio que é médico, o cabeça de casal, a quem, na realidade, são devidos tais rendimentos com a consequente integração dos mesmos no património comum do extinto casal, o que poderá ser juridicamente alcançado através das regras do abuso de direito, desconsideração da personalidade jurídica ou da simulação, em prejuízo da aparente e artificial autonomia de patrimónios.
O mesmo, defende a recorrente, em relação às quotas sociais da sociedade A..., Lda., que, tendo o aumento de capital sido sustentado com os referidos rendimentos do cabeça de casal, devem ser consideradas bens comuns do casal a levar à partilha, ou, caso lhes seja atribuída a natureza de bens próprios, deve o património conjugal ser compensado pelo valor dos bens comuns utilizado nos aumentos de capital.
Sobre estes aspectos acabados de enunciar, a recorrente, com a sua reclamação, requereu diligência de prova, que, em suma, consistiam na notificação da sociedade A..., Lda. e bem assim de diversas entidades privadas, designadamente médicas, para informarem dos actos médicos efectuados pelo cabeça-de casal e para juntarem contratos e facturação respectiva, o que foi negado pelo tribunal com fundamento na autonomia dos respectivos patrimónios.
Nesta medida, não foi objecto de prova a factualidade alegada pela recorrente na sua reclamação à relação de bens que interessa à decisão sobre os rendimentos do trabalho do cabeça de casal e os provenientes da sua actividade como formador e palestrante depositados em contas da sociedade A..., Lda. e, consequentemente, à decisão relativa às quotas sociais ou aos aumentos de capital com tais rendimentos.
Sucede que tal factualidade, aliada, por um lado, a factos que resultam dos autos, como seja os relativos àquela sociedade, e, por outro, a factos eventualmente ainda não invocados, pode, ao menos em tese, afectar a autonomização do património da sociedade, de que depende a decisão de incluir ou não da relação de bens comuns do casal os rendimentos relacionados com a actividade profissional privada do recorrido pagos através dessa sociedade, assim como as quotas sociais da mesma ou o valor daquelas que foram constituídas por incorporação dos respectivos resultados (com interesse, vide A. Ferrer Correia “Lições de Direito Comercial”, Lex, págs. 273 e ss.). Efectivamente, figuras como as do abuso de direito (cfr.art. 334.º do CC) ou da desconsideração da personalidade jurídica (cfr. arts. 334.º e 762.º do CC), ou de vícios como o da simulação (cfr. art. 240.º do CC), a verificarem-se, podem acabar com os efeitos da autonomia patrimonial característica das sociedades, em benefício da imputação dos respectivos proventos à esfera particular dos sócios, designadamente como rendimentos do trabalho.
O princípio da suficiência do processo de inventário que decorre do art. 91.º do CPC, porquanto o tribunal competente para a acção é igualmente competente para conhecer de todos os incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa, foi devidamente explicado no acórdão da RC de 30/03/2023 (Proc. 167/21.4T8TCS-A.C1; rel. Henrique Antunes) do seguinte modo: “No iter que conduz à decisão homologatória da partilha, podem … surgir questões de diversa natureza, cuja resolução condiciona o ulterior desse iter: admitindo o seu conhecimento no processo de inventário, a lei revela a sua intenção primacial de considerar que o processo correspondente a si mesmo se basta, que é autossuficiente. O princípio da suficiência, tomado aqui com o significado de que esse processo é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar - a partilha do património hereditário - tem o seu bom fundamento nas exigências de concentração, continuidade e celeridade do processo de inventário, pelo que deve ser actuado na medida do possível (art.° 91.°, n.° 1, do CPC).Todavia, é igualmente certo que o relevo e a complexidade ou a especialidade de que se revertem certas questões, podem reclamar, insistentemente, que nestes casos, a questão não seja decidida no processo de inventário, mas antes devolvida para os meios judiciais comuns, para aí ser resolvida. Compreende-se, por isso, que a lei introduza ao princípio da suficiência do processo de inventário, extensas, embora contadas, limitações. Essas restrições obedecem a um critério comum: a complexidade da matéria de facto subjacente a certas questões (art.°s 1092.°, n.° 1, b), e 1093.°, n.° 1, do CPC)” – in www.dgsi.pt.
O art. 1093.º, n.º 1 do CC diz-nos que se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
Retomando o caso dos autos, verifica-se que a factualidade relativa à associação dos rendimentos do trabalho do cabeça de casal à sociedade de que o mesmo é sócio e no âmbito da qual exerce a sua profissão de médico constitui um conjunto complexo de factos, cujo apuramento, quer em quantidade quer em qualidade, pode exigir diligências de prova não compatíveis, inclusive, pela sua morosidade, com a tramitação própria do processo de inventário que, sendo mais simples e célere, não oferece aos interessados as mesmas garantias disponibilizadas pelo processo comum.
Para mais, citando o Acórdão da Relação de Lisboa de 2/5/2017, proferido no processo 848/15.1T8VFX.L1-7, disponível para consulta inwww.dgsi.pt, convocado pela própria decisão recorrida a propósito de um outro aspecto da reclamação, “a decisão sobre a remessa dos interessados para os meios comuns tanto pode ter lugar antes como depois da produção da prova. As diligências de prova resultariam em acto inútil se, perspectivando-se desde logo que face à complexidade da questão seria incompatível a decisão da mesma no âmbito do processo de inventário, mesmo assim se produzisse a prova para depois determinar aquela remessa”. (…) A remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes, observados os requisitos legais, é um expediente típico, perfeitamente lícito e legítimo, não configurando qualquer situação de eventual, denegação de justiça”. (…) A “remessa para os meios comuns supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efectiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as acções declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental”. Acrescentou-se ainda na decisão recorrida, com plena aplicação no caso “Em conclusão, analisada a questão decidenda, a sua natureza e complexidade da prova bem pode o juiz formular um juízo sobre a possibilidade de a mesma poder ser dirimida no processo de inventário e, na negativa, maxime por carecer de indagação aprofundada, remeter os interessados para os meios ordinários abstendo-se de decidir, sendo que, à luz de um “são critério”, o julgador pode chegar à decisão de remeter os interessados para os meios comuns logo após a mera analise do requerimento do incidente ou, apenas, após a produção de prova. Ora, a tramitação simplificada do processado de inventário e a sua limitação em termos probatórios não se adequa à necessidade, designadamente do convite ao aperfeiçoamento dos articulados… Ou seja, a natureza incidental do inventário não assegura o pleno exercício do contraditório quanto a esta questão”.
Do que vem de se dizer, conclui-se, pois, que a matéria trazida pela recorrente na sua reclamação à relação de bens, no que respeita aos reclamados rendimentos do trabalho do cabeça de casal e provenientes da sua actividade como formador e palestrante e às quotas sociais da sociedade, merece ser objecto de prova e apreciação pelo tribunal, e, como tal, atenta a sua complexidade, decide-se, em ordem a assegurar as garantias processuais dos interessados, remetê-los para os meios comuns nos termos do art. 1093.º, n.º 1 do CC.
Vejamos agora o último dos créditos em discussão:
3 - Crédito no montante de 77.000,00 EUR sobre o cabeça de casal, proveniente de levantamentos da conta bancária das partes com o n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A., em data anterior ao divórcio, ou, caso assim não se entenda, a remessa para os meios comuns a fim de aí ser decidido pela existência ou não desta verba.
Nesta parte a decisão recorrida foi a seguinte:
“Respondeu o cabeça de casal que a quantia reclamada serviu para satisfazer as necessidades da família, nomeadamente da requerida, E foram conduzidos ao pagamento salários da empregada, jardineiro, condomínio, IMI, todas as despesas de saúde da família, nomeadamente da Requerida, entre as quais as consultas, ecografias, cesarianas e outras, internamento do DD, bem como exames auxiliares de diagnóstico, medicação e outros, todas as viagens de férias da família, vestuário e alimentação de todos, as despesas do Colégio, pelo que nenhum crédito haverá a relacionar a tal propósito.
O crédito cuja relacionação a reclamante acusa dirá respeito a levantamentos efetuados das contas comuns do casal em momento anterior à data da cessação das relações patrimoniais.
Como tivemos já ocasião de referir supra os efeitos patrimoniais devem ser considerados tendo em conta a data da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges de modo que os montantes pecuniários depositados em contas bancárias em data anterior ou posterior não deverão ser contabilizados.
Caso tenham existido movimentos de transferência do dinheiro de conta de que ambos os cônjuges eram titulares em data em que o casamento estava em plena vigência, à luz do n.º 1 do art. 1789.º do CC, o saldo da conta a considerar como bem relacionável, apenas poderia ser o que resultasse naquela data e nunca o de data posterior ou anterior. Neste último caso, porque nessa data o casamento estava em plena vigência e a partilha do casal só acontece com a cessação das relações patrimoniais em virtude da dissolução do casamento por divórcio – art. 1689.º do CC. No primeiro caso, porque as relações patrimoniais haviam já cessado.
Se a reclamante se sentir prejudicada com um ato de gestão praticado pelo cabeça de casal, pode reagir através da propositura de uma ação de indemnização de perdas e danos, conforme decorre do art. 1681.º, n.º 1, do CC, sendo nesta ação que poderá obter a fixação do seu direito à indemnização, traduzindo-se o direito aí obtido pela sentença num crédito sobre o outro cônjuge, sendo então o seu pagamento considerado em sede de partilha do casal, de acordo com o estatuído no citado art. 1689.º do CC.
Face ao exposto, improcede, também nesta parte, a reclamação”.
Quanto a este particular, é verdade que, nos termos do art. 1789.º, n.º 1 do CC, os efeitos do divórcio, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraem à data da propositura da acção, no caso 7/05/2021. Sucede que, por força do art. 1689.º, n.º 1 do CC, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros, recebem os seus bens próprios e a sua meação no matrimónio comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
A este respeito o STJ em acórdão de 29/10/2024 (Proc. 431/19.2T8AND.P1.S1; rel. Ferreira Lopes) escreve o seguinte: “Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, CCivil anotado, IV, 2ªedição, pag. 561, que “foi manifesta intenção do legislador evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a propositura da acção sobre valores do património comum.” No entanto, a partir dessa data (a que se retrotraem os efeitos patrimoniais do divórcio) os bens não passam a ser detidos pelos ex-cônjuges em regime de compropriedade, pois só com a partilha é que fica definida a propriedade dos bens, subsistindo a comunhão dos bens, apesar de os mesmos terem deixado de estar afectos à sociedade conjugal (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.03.2013, CJ, tomo 2. pag. 173). A partilha é um acto jurídico complexo que abrange várias operações económicas, eventualmente a compensação de patrimónios, não se limitando simplesmente a uma divisão dos bens identificados no património comum do casal, ao tempo da propositura da acção. Uma coisa é o momento a partir do qual se produzem os efeitos do divórcio (propositura da acção), e ao qual a partilha uma vez realizada poderá retroagir, outra bem diferente é a natureza do património comum que só termina com a partilha dos bens comuns” https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2024:431.19.2T8AND.P1.S1.39/.
Acresce ainda que, nos termos do art. 1678.º, n.ºs 1 e 2 do CC, cada um dos cônjuges tem a administração dos seus bens próprios e ainda a administração, designadamente dos proventos que receba pelo seu trabalho (al. a) e que o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 1678.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
No caso o que foi alegado pela recorrente/reclamante é que, para propósitos pessoais, e não para satisfação de despesas do ex-casal, os 77.000,00 € foram levantados pelo cabeça de casal da conta titulada por ambos, com o n.º ...20, domiciliada no Banco 1..., S.A. do seguinte modo:
a. 60.000,00 EUR no dia 11/05/2018;
b. 7.000,00 EUR no dia 10/07/2018;
c. 5.000,00 EUR no dia 28/12/2020, e
d. 5.000,00 EUR no dia 08/04/2021.
Convoca-se novamente o supra mencionado acórdão do STJ de 29/10/2024 em que se pode ler que «escrevem os citados autores [Pires de Lima e Antunes Varela]: “A doutrina tende a considerar como actos de administração ordinária os que se destinam a prover à conservação dos bens (pintar a casa, reparar o muro caído, consertar a viatura, etc), ou promover a sua frutificação normal (apanha da azeitona, monda da seara, poda árvores, etc). Como actos de administração extraordinária são catalogados os que visam a realização de benfeitorias ou melhoramentos nas coisas ou a frutificação anormal dos bens.” À luz deste critério, a que aderimos, o levantamento pelo Autor das quantias depositadas nas contas de depósito à ordem supra identificadas, não constituem actos de administração, ordinária ou extraordinária, não sendo, pois, aqui aplicável o regime estatuído no nº1 do no art. 1681º do Cód. Civil, norma que prevê a responsabilidade civil do “cônjugeadministrador” pelos danos resultantes da sua actuação sobre os bens comuns ou próprios do outro quando tenha agido intencionalmente. Não pode, com efeito, qualificar-se de administração o acto de apropriação de dinheiro depositado em contas solidárias, não podendo o Autor/recorrente ignorar que metade não lhe pertencia. A invocação de que os levantamentos foram um acto de gestão do Recorrente, e que uma eventual responsabilização sua teria de ser apurada em sede de acção de indemnização por perdas e danos que a Recorrida viesse a intentar nos termos do artigo 1681º do CC, não pode ser acolhida. Como se afirmou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.04.2013, P. 133/08 “(…) sujeitar o outro cônjuge a ir responsabilizar civilmente o respectivo agente, seu ex-cônjuge, por tal actuação claramente censurável, numa acção autónoma, é uma solução que a ordem jurídica não deve admitir. E não o deve admitir por duas ordens de razões: a primeira, porque assim estaria a acolher, pelo menos no imediato, como irrelevante uma conduta claramente culposa, isto é, passível de censura segundo o juízo da consciência ético-jurídica da comunidade, onerando a vítima dessa conduta com o ónus de intentar uma outra acção para ali ter de invocar e demonstrar novamente o seu direito; a segunda, por razões de economia processual: não deve remeter-se para a decisão de outra acção, a decorrer entre as mesmas partes, um litígio cujos elementos, após adequada discussão, estão todos presentes numa causa onde, por definição, deve ser dirimido. Com efeito, o presente processo de inventário é o lugar adequado para a identificação dos bens a partilhar e para a sua repartição entre os dois interessados.” Neste sentido se pronuncia, Rita Lobo Xavier, in Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, pag. 396-398 “deve entender-se que o património empobrecido tem direito a uma compensação no momento da dissolução do regime, em qualquer situação que se verifique o enriquecimento de uma das massas patrimoniais à custa da outra, mesmo que não exista uma norma legal específica a ressalvar expressamente a correspondente compensação. A não ser assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custa do património de cada um dos cônjuges ou de um destes à custa daquela”. Neste sentido decidiram os acórdãos deste STJ de 14.07.2022, P. 4106/20, e de 20.09.2023, P. 947/17, em cujo sumários se lê:
P. 4106/20:
I - O regime definido no art. 1689º do CC, ao determinar como se apura o património comum e a meação de cada cônjuge (“conferindo o que cada um deles dever a este património”), consagra um princípio geral que obriga às compensações entre os cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento do outro.
II - Devem, assim ser relacionados no processo de inventário, para integrar os bens objecto de partilha, a quantia depositada em conta bancária e levantada exclusivamente pelo cônjuge administrador em proveito próprio, antes da propositura da acção de divórcio.”
P. 947/17:
I – Do art. 1689º do CCivil extrai-se um princípio geral que obriga às compensações entre patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento do outro, repondo-se, assim, o equilíbrio contratual.
II – Fazem parte do património comum do (ex)casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, não apenas os bens existentes à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos ex-cônjuges.
Também assim entendemos.
Em conclusão: o bem em litígio – dinheiro levantado pelo Autor de contas solidárias tituladas pelos ex-cônjuges no mês anterior à propositura da acção de divórcio – deve ser relacionado e objecto de partilha, executando-se a regra da metade, sem enriquecimento do património próprio de nenhum dos cônjuges à custa do património comum”.
Francisco Pereira Coelho e Guilherme Oliveira explicam, igualmente, que “No caso de se pedir responsabilidades a um cônjuge administrador, vai ser necessário decidir se o crédito de indemnização é próprio ou comum…Se o dano indemnizável for um dano em bens comuns, é difícil optar entre duas possibilidades: ou o crédito integral pertence ao património comum, ou o crédito corresponde a metade do dano e pertence ao cônjuge meeiro que se achou prejudicado. A primeira forma de resolver a questão reconhece ao cônjuge autor a qualidade de defensor da comunhão, protege mais o património comum como um todo, restabelece o valor total do património; mas pode parecer estranho que o cônjuge lesado pague indemnização no que diz respeito ao prejuízo total e, portanto, mesmo no que diz respeito à sua metade no património comum, embora esta solução interesse bastante aos credores comuns que vêem a sua garantia restabelecida. A segunda forma de resolver só tem sentido se o cônjuge credor puder considerar o crédito (correspondente à sua metade do dano) como um bem próprio; de facto, não tem sentido considerar este crédito (de metade do dano) como um valor comum, sujeito a partilha” (in “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 379/380).
Aqui chegados, é possível afirmar que à recorrente assiste a possibilidade de optar por reclamar do recorrido o valor dos bens comuns de que alegadamente este se apropriou antes do divórcio (com interesse vide igualmente o acórdão da RP de 21/03/2024, citado pela recorrente, proc. 431/19.2T8AND.P1, rel. Ana Vieira).
Sucede que também em relação a este valor 77.000,00 € reclamado pela recorrente, a matéria a apurar e a prova a produzir se reveste de complexidade a que a estrutura do processo de inventário não permite responder sem prejudicar as garantias dos interessados, e, como tal, este tribunal de recurso opta, ao abrigo do art. 1093.º, n.º 1 do CPC, por remetê-los para os meios comuns.
As custas são da responsabilidade da recorrente, posto que, não havendo vencimento quanto à questão objecto do recurso, a revogação da decisão recorrida é a si que desde já aproveita (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, julgando parcialmente procedente o recurso, revogar a decisão recorrida e, abstendo-se de decidir sobre os bens que, reclamadas pela recorrente são objecto do presente recurso, remeter os interessados para os meios comuns em relação aos mesmos.