I - A legitimidade, enquanto pressuposto processual, é aferida (vide artigo 30º do CPC) em função do objeto da ação, conformado pelo pedido e causa de pedir delineados pelo autor.
II - A falta de pronúncia sobre o pedido de condenação da contraparte como litigante de má-fé, importa não a nulidade in totum da decisão recorrida, mas tão só parcial por omissão. Com a consequência de dever a mesma ser suprida pela primeira instância.
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta - Eugénia Cunha
Adjunta – Maria Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Central Cível do Porto
Apelante/ “A... LDA”
Apelados / AA e B... – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA
Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
“A... LDA.” instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra:
AA
E
“B... – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.”
Pela procedência da ação peticionou a A. que seja proferida sentença pela qual: “seja transferida para a Autora, livre de quaisquer ónus ou encargos, a propriedade sobre as frações autónomas E, F, G, H, I, e J do prédio urbano, com entrada pelo n.º ...86, da Rua ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., do concelho ..., sob o artigo n.º ...83, com a licença de utilização n.º ...1/50, emitida em ../../1950, pela Câmara Municipal ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...50/20090313 – freguesia ..., condenando os RR. a reconhecer a Autora como sua legítima proprietária (…)”.
Para o efeito, alegou a A.:
- ser arrendatária do r/c frente e traseiras do prédio urbano identificado no artigo 1º da p.i., na sequência de contrato de arrendamento celebrado entre si e o 1º R. em 01/11/2011. Correspondendo as partes do edifício mencionado supra às frações A, B, C e D desse mesmo prédio que em março de 2023 foi constituído em propriedade horizontal;
- o 1º R. comunicou à A. – para efeitos de exercício do seu direito de preferência - por carta de 05/05/2023 a sua intenção de vender à 2ª R. a totalidade das frações do prédio pelo preço global de €725.000,00, de forma una e indivisível. Atribuindo às frações arrendadas à A. os preços de € 112.500 por cada uma das mesmas e às restantes seis frações o valor de €275.000,00 e indicando como data limite para a realização da escritura o dia 30/06/2023;
- A A. declarou pretender exercer o seu direito de preferência por carta de 02/06/2023, tendo o R. respondido que o seu direito de preferência era só sobre as frações das quais era inquilino. Ao que a A. respondeu pretender exercer o direito de preferência relativamente a todas as frações do mencionado prédio urbano;
- A A. foi notificada para a realização da escritura das frações de que era arrendatária, à qual compareceu;
- O 1º R. obstou a que a A. exercesse o seu direito de preferência sobre a totalidade do prédio, tendo celebrado com a 2ª R. escritura pública de compra e venda relativa às restantes frações, mesmo em data anterior à escritura de compra e venda celebrada com a A., apesar de ter a A. anunciado que iria desenvolver as medidas adequadas ao exercício global do seu direito de preferência.
Direito que foi violado e que por via desta ação visa exercer.
Nos termos que a final peticionou e supra já indicados.
Devidamente citados, contestaram os RR.
Contestou a 2ª R.:
. alegou não ter a A. direito a exercer o direito de preferência sobre as frações de que não era arrendatária;
. invocou a caducidade do direito da A. por não ter depositado o preço da aquisição no prazo de 15 dias a contar da data da propositura da ação;
. impugnou parcialmente a factualidade alegada e
. alegou litigar a A. de má-fé, por tal requerendo a sua condenação em multa e indemnização a seu favor
Terminando concluindo que se decida:
“a) Julgar procedente, por provada, a exceção invocada;
b) Julgar a ação totalmente improcedente, por não provada, com todas as consequências legais;
c) Condenar a Autora como litigante de má fé e em indemnização a arbitrar ulteriormente à Ré, nos termos e com os fundamentos supra expostos.”
Contestou o 1º R.:
. impugnou parcialmente a factualidade alegada;
. invocou a ineptidão da p.i. por contradição entre pedido e causa de pedir;
.a caducidade do direito de ação por não interposição no prazo de seis meses a contar da data em que a A. teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação (preço e condições de pagamento) e por não depósito do preço devido nos 15 dias posteriores à propositura da ação;
. no mais defendeu não ter a A. direito a exercer o direito de preferência sobre as frações de que não era arrendatária, bem como
. alegou litigar a A. de má-fé, por tal requerendo a sua condenação em multa e indemnização a seu favor
Terminando concluindo que se decida:
“a) seja a Petição Inicial julgada totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, seja o Réu absolvido do pedido.
b) Ser julgada procedente, por provada, a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial nos termos da al. a), do n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil, e em consequência ser o Réu absolvido da instância.
c) Seja julgada procedente a exceção perentória de caducidade do direito da Autora e, em consequência, seja o Réu absolvido do pedido;
E CONCOMITANTEMENTE DEVE SER:
d) Condenada a Autora como litigante de má-fé, e ainda ao pagamento da quantia de 2.250,00 Euros, a título de multa e indemnização.”
Após convite do tribunal para tanto, respondeu a autora às exceções invocadas, pugnando pela total improcedência das mesmas.
E proferido despacho saneador, no qual e apreciando as invocadas exceções concluiu o tribunal a quo em relação à A. pela falta de “legitimidade para vir exercer o direito de preferência sobre as frações E, F, G, H, I, e J.”
Assim decidindo:
“Julga-se o A. A... LDA parte ilegítima na ação e absolve-se da instância os RR. AA e B... – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA, nos termos dos artºs 30º, 278º n.º 1 al. d), 576º n.º 2 e 577º al. e 578º do CPC.”
CONCLUSÕES:
(…)
Apresentou a 2ª R. contra-alegações ao recurso interposto pela Autora, requerendo subsidiariamente a ampliação do âmbito do recurso, após a motivação apresentando a final as seguintes
“Conclusões:
(…)
Tendo apresentado motivação e formulado as seguintes
“Conclusões:
(…)
Não se mostram apresentadas contra-alegações ao recurso assim interposto pela 2ª R..
*
Foram colhidos os vistos legais.
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelas apelantes serem questões a apreciar:
Do recurso da autora:
- se a julgada ilegitimidade da autora merece censura e assim se deverá ser revogada a decisão e ordenada a prossecução dos autos;
- sendo julgada procedente a pretensão da recorrente autora, se é de conhecer da ampliação do âmbito do recurso convocada pela 2ª R. a título subsidiário e assim conhecida
. a exceção de caducidade do direito de preferência da autora por não depósito tempestivo do preço nos termos do artigo 1410º do CC;
. a peticionada condenação da autora como litigante de má-fé.
Do recurso da 2ª ré:
- da nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à condenação da autora como litigante de má-fé e subsequente baixa dos autos para conhecimento de tal pretensão; subsidiariamente condenação da autora como litigante de má-fé e remessa dos autos à 1ª instância para oportuna fixação da indemnização; subsidiariamente e caso seja entendido não ser admissível o recurso, apreciação do requerimento apresentado enquanto reclamação.
O tribunal a quo considerou para a prolação da decisão recorrida, as vicissitudes processuais em suma acima enunciadas.
E, com base nas mesmas, concluiu pela ilegitimidade da autora, com os seguintes argumentos que aqui se deixam em parte reproduzidos:
“Compulsada a petição inicial constata-se que o A. invoca ser arrendatário das frações A, B, C, D.
No entanto, formula pedido para exercer a preferência sobre as frações E, F, G, H, I e J, sobre as quais não é arrendatário.
Nos termos do artº 1091º, nº 1, a), do CC o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda e dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos.
Ora, a questão não tem a ver propriamente com a ineptidão da petição inicial, porquanto o A. expõe as razões de facto e de direito em que assenta o pedido, mas sim com uma questão de legitimidade.
A legitimidade:
A finalidade deste pressuposto processual é que a causa seja discutida entre as partes certas, entendendo-se estas, em geral, como as titulares da relação jurídica substantiva.
Daí que tirando as inevitáveis exceções, apenas se considerem partes legítimas os titulares diretos e imediatos da relação jurídica controvertida, ou seja, os sujeitos ativos e passivos dessa relação.
(...)
Ou seja, a legitimidade deve ser analisada pela titularidade da relação material controvertida, tal como configurada pelo autor. O mesmo é dizer que a legitimidade deve ser referida à relação jurídica objeto do litígio (causa de pedir e pedido), determinando-se através da análise dos fundamentos da ação e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos.
A legitimidade do objeto do processo e, portanto, da legitimidade em face dele é feita, necessariamente, pelo autor e só por ele, sem necessidade de averiguação (a roçar o fundo da causa) sobre se as partes são titulares da efetiva e real relação jurídica controvertida.
(...)
Ora, sendo o A. apenas arrendatário das frações A, B, C, e D, sobre as quais até veio a celebrar escritura pública de compra e venda, significa que nenhum direito legal de preferência lhe assiste quanto às frações E, F, G, H, I e J, sobre as quais não é arrendatário.
Não é invocado na petição inicial qualquer outro direito que permita o exercício do direito de preferência além de ser arrendatário sobre as aludidas frações A, B, C, e D), o qual estaria tutelado pelo artº 1091º, nº 1, do CC.
Do exposto, resulta que o A. não tem legitimidade para o direito que pretende exercer, porquanto não é alegado qualquer factualidade em que possa assentar o seu direito de preferência.
Assim sendo, é evidente que o A. não tem legitimidade para vir exercer o direito de preferência sobre as frações E, F, G, H, I, e J.”
Conhecendo.
Tal qual resulta do relatório supra, a autora intentou a presente ação invocando ser arrendatária das frações A, B, C e D, sendo já sua legítima proprietária na sequência da aquisição que das mesmas fez ao abrigo do direito de preferência que exerceu.
Mas, mais, alegou ter recebido carta registada com AR enviada pelo 1º R. na qualidade de proprietário de todas as frações do prédio em causa nos autos, comunicando-lhe pretender vender de forma una e indivisível todas as frações desse prédio, pelo valor global que indicou e a pagar no ato da escritura de compra e venda, sendo-lhe dado o seu legal direito de preferência nos mesmos termos e condições da promitente compradora anunciada nesse comunicação.
A A. comunicou ao 1º R. pretender exercer o seu direito de preferência sobre todas as frações de tal prédio. O que lhe foi negado pelo 1º R.
Do assim exposto resulta que a A. intentou a presente ação alegando, não só ter sido arrendatária do 1º R. e nessa qualidade ter já comprado as frações de que era arrendatária no exercício do seu direito de preferência, mas também ter recebido do 1º R. uma proposta de venda de todas as frações do prédio em questão, proposta que aceitou.
Se o alegado encontra correspondência com o teor da comunicação que a A. convoca para o justificar, é matéria que respeita ao mérito da causa e que carece de apreciação por via interpretativa dessa mesma comunicação, já que nada foi invocado quanto à real vontade do declarante ou sentido das declarações contidas na missiva em causa, para que fosse suscetível de prova esta mesma intenção.
Tal interpretação, a realizar de acordo com a “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual o tribunal interpreta as declarações negociais / contratuais recorrendo para tal ao critério de interpretação do declaratário normal colocado na posição do real declaratário, consagrada no artigo 236º do CC, conformada pela limitação da correspondência mínima entre o texto e o sentido da declaração a que se reporta o artigo 238º do CC para os negócios formais cumpre, como mencionado, ao tribunal a quo e contende com a própria procedência do pedido.
Para o que ora releva, a recorrente não se limitou a invocar a sua qualidade de arrendatária – com base na qual o tribunal a quo aferiu a legitimidade processual da recorrente - já que mais alegou ter-lhe sido apresentada uma proposta de exercer o direito de preferência sobre a totalidade das frações que compõem o prédio em questão. Proposta que aceitou.
Sendo a legitimidade, enquanto pressuposto processual aferida (vide artigo 30º do CPC) em função do objeto da ação, conformado pelo pedido e causa de pedir delineados pelo autor, face aos termos em que a autora configurou o direito por si invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir têm na relação jurídica controvertida, é de concluir pela legitimidade processual da autora.
Implicando a revogação da decisão, com a consequente prossecução dos autos, de acordo com os termos que o tribunal a quo entender por pertinentes.
Diversa é a questão da legitimidade substantiva, a qual respeita já ao mérito da causa, ou seja, à suscetibilidade da pretensão formulada ser procedente em função do pedido e causa de pedir delineados pela autora[1].
Se a pretensão da autora, em função do pela mesma alegado, preenche os requisitos substantivos necessários ao reconhecimento do direito reclamado pela autora é já questão que respeita ao mérito dos autos e que como tal cumpre ao tribunal a quo apreciar, de acordo com a tramitação que aos autos subsequentemente couber, em função das exceções apresentadas em sede de defesa e igualmente pendentes de apreciação.
A revogação da decisão proferida, afasta o conhecimento do objeto da ampliação do âmbito do recurso formulada pela recorrida.
Note-se que a pretensão de conhecimento da exceção de caducidade do direito da autora não foi pelo tribunal a quo apreciada por considerada prejudicada face ao decidido em sede de pressuposto processual e como tal não respeita aos fundamentos oportunamente esgrimidos pela recorrida para afastar a pretensão da autora – sendo este o fundamento da admissibilidade da ampliação do objeto do recurso[2] que para o efeito se não aplica.
Ainda e no que respeita à questão da litigância de má-fé, tendo a recorrente interposto recurso autónomo quanto a esta questão, a sede própria para apreciar o a este propósito alegado é na apreciação deste recurso.
O que ora de seguida se efetua.
Recurso da 2ª ré:
Em causa a omissão de pronúncia do tribunal a quo sobre a peticionada condenação da autora como litigante de má-fé.
A omissão de pronúncia é evidente.
Não estando em causa questão que respeite ao mérito da causa e que não pôs termo ao processo, não é de ponderar a aplicação do previsto no artigo 665º do CPC.
Por outro lado e enquanto questão acessória, entende-se que a falta de pronúncia sobre o pedido de condenação da contraparte como litigante de má-fé, importa não a nulidade in totum da decisão recorrida, mas tão só parcial por omissão com a consequência de dever a mesma ser suprida pela primeira instância[3]. Questão com relevo em sede de recurso, já que da decisão de condenação como litigante de má-fé deve ser interposto recurso conjunto com o da sentença proferida.
De qualquer modo, perante a revogação da decisão do tribunal a quo nos termos acima decididos, sempre os autos serão remetidos à 1ª instância, onde deverá oportunamente e no momento da prolação de decisão final ser apreciada a questão da invocada litigância de má-fé, suprindo assim o tribunal a quo esta omissão.
As custas deste recurso, na ausência de contra-alegações, ficarão a cargo da recorrente que do mesmo tirou proveito (artigo 527º nº 1 do CPC).
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar:
- Procedente o recurso interposto pela autora, revogando a decisão recorrida e determinando a prossecução dos ulteriores termos processuais.
Custas pela recorrida.
- Procedente o recurso interposto pela 2ª R., determinando, em função do decidido quanto ao recurso interposto pela autora, que o tribunal a quo oportunamente se pronuncie sobre a arguida litigância de má-fé da autora.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Porto, 2025-06-26
(M. Fátima Andrade)
(Eugénia Cunha)
(Maria Fernanda Almeida)
________________________________
[1] Cfr. Sobre a distinção entre legitimidade processual e substantiva Ac. TRE de 23/04/2024, nº de processo 41251/22.0YIPRT.E1; Ac. STJ de 12/10/2023, nº de processo 731/22.4T8VRL-A.G1.S1, ambos in www.dgsi.pt
[2] Cfr. neste sentido António S. Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, 7ª edição atualizada, p. 145 em anotação ao artigo 636º do CPC.
[3] Vide neste sentido Ac. TRP de 28/04/2025, nº de processo 6368/22.0T8PRT.P1 in www.dgsi.pt e jurisprudência no mesmo citada (onde a ora relatora interveio como 2ª adjunta).