COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL / VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS SALARIAIS E CONTRA CRÉDITO INVOCADO DE NATUREZA TRIBUTÁRIA
Sumário

I – A competência material do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respectivos fundamentos, nos termos em que é configurado pelo autor.
II – No caso em que, não está em causa, “a verificação de uma prestação tributária ou a cobrança da mesma”, mas antes a verificação de créditos salariais, reclamados pela Autora (e que a Ré só reconhece em parte) e um contra-crédito da Ré (da responsabilidade da Autora em termos tributários e que a Ré satisfez), é competente para conhecer do pedido reconvencional, deduzido pela Ré, o Tribunal Judicial de competência especializada (Juízo do Trabalho) e não o Tribunal Administrativo.

Texto Integral

Proc. nº 21482/24.0T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo do Trabalho do Porto - Juiz 1
Recorrente: A..., S.A.
Recorrida: AA

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
O presente recurso vem interposto de decisão proferida nos autos, acção declarativa de condenação, sob a forma de Processo Comum, intentada pela A., AA, médica, casada, nif ..., residente na Rua ..., ... PORTO, contra A..., S.A., sociedade comercial anónima com o número único de pessoa colectiva e de matrícula ..., sede na Av. ..., ... LISBOA, requerendo que deve ser julgada provada e procedente e, em consequência:
“a) condenada a ré a pagar à autora a quantia de €285.197,49 – correspondente ao somatório dos valores das retribuições em dívida relativamente ao trabalho prestado no período de 1 de Março de 2000 a 31 de Janeiro de 2021 -, acrescida da quantia de €121.451,02, relativa aos juros de mora já vencidos e bem assim dos juros de mora vincendos, contados sobre a referida quantia, a partir da presente data, à taxa legal e até que ocorra integral pagamento;
b) a ré condenada a pagar à autora uma indemnização da quantia de €250.000,00 ou fixar esta no que se vier a liquidar em execução de sentença para ressarcimento dos danos relativos à falta de pagamento de contribuições para a Segurança Social.”.
Para o que, agora, interessa alega, em síntese, ter sido admitida ao serviço da R., na qualidade de médica, em 01/03/2000 para exercer a sua actividade na especialidade de medicina no trabalho, nas instalações da demandada sitas no Porto. Descreve as circunstâncias pelas quais entende que o seu vínculo laboral deverá ser configurado como sendo um contrato de trabalho e não de prestação de serviços, o que já lhe foi reconhecido, através da decisão proferida em acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que correu os seus termos, no Tribunal “a quo”, a partir de 01/03/2020.
Mais, alega que, apesar da referida decisão, a aqui demandada não regularizou a situação contributiva referente à A. até à data, o que causará impacto no momento em que a demandante vier a requerer a atribuição de reforma por velhice, dado que o montante será calculado com base em valores que contêm os montantes que a R. foi condenada a regularizar.
Alega, ainda, ter direito a ser ressarcida pelos danos que ainda lhe causará por via do não cumprimento das aludidas obrigações contributivas mediante o pagamento de indemnização pecuniária de valor equivalente ao somatório do diferencial que assim resultar na pensão que a autora presumivelmente auferirá a partir da idade de reforma ou em situação de invalidez e até ao fim da sua vida e, bem assim, pela falta de constituição daquele complemento de reforma. O qual, pelas razões expostas, não é concretamente determinável no presente momento, mas que se estima, segundo um prudente juízo de equidade, próprio de um bom pai de família, em nunca menos de €250.000,00 e que na falta de necessários elementos, haveria sempre de ser arbitrado em execução de sentença

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Frustrada a conciliação, conforme decorre da acta datada de 26.09.2023, na audiência de partes, foi a ré notificada para contestar, o que veio a fazer, nos termos que constam dos autos, por excepção e impugnação.
Fundamentou-o, em síntese, alegando que, no seguimento da decisão final proferida na acção acima indicada, a mesma comunicou à Segurança Social a integração nos seus quadros da A., de forma a regularizar a sua situação contributiva, tendo dado conhecimento à demandante deste pedido em 16/02/2021, o que viria a ser concretizado pelos indicados serviços sociais em 19/12/2024 (quanto ao período entre 01/01/2002 e 31/01/2021) e em 03/01/2025 (quanto ao período entre 01/03/2000 e 31/12/2001), tendo submetido as declarações de retribuições de reconstituição da carreira contributiva da A., por referência ao período em causa e liquidado os respectivos montantes, num total de € 146.713,69.
Ora, em sede de pedido reconvencional a R. vem peticionar a condenação da A. no reembolso da quantia relativa à sua comparticipação nas referidas contribuições liquidadas aos serviços sociais competentes (equivalente a 11% sobre o valor total) que ascende a € 46.441,74, invocando o direito de regresso de que se considera titular.
Conclui que, “deverá:
(a) a acção ser julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, ser a R. absolvida dos pedidos, na parte que excede o reconhecimento do seu direito ao recebimento, a título de subsídios de férias e de Natal, conforme apurado pelo Centro Distrital ... da Segurança Social no processo de qualificação como TCO da aqui A., com referência ao período de 01/01/2002 a 31/12/2020, do valor total ilíquido de 60.290,74€ (30.145,37€ + 30.145,37€).
(b) sem prejuízo e sem conceder, ser declarado prescrito o direito a juros de mora vencidos até 09/12/2019 que hipoteticamente tivessem sido constituídos sobre quaisquer eventuais créditos contratuais da A. sobre a R..
(c) a reconvenção ser admitida – cf. artigo 30.º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho –, julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser a A. condenada a pagar à R. a quantia total de 46.441,74€ relativa a quotizações da sua responsabilidade decorrentes da obrigação contributiva resultante da sua qualificação como TCO e ao período de 01/03/2002 a 31/01/2021.
(d) ser declarado extinta, por compensação, até ao valor do crédito da R. sobre a A. referido na anterior alínea (c), a dívida da R. sobre a mesma, nomeadamente a referida na parte final da anterior alínea (a).”.
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Notificada a A. veio responder, com os fundamentos que constam do articulado junto, em 11.02.2025, opondo-se ao alegado pela R., invocando que parte das obrigações contributivas se encontram prescritas, pelo que a demandante não teria qualquer dever de proceder ao seu pagamento e não tendo notificado a A. para proceder ao seu pagamento, procedeu ao cumprimento duma obrigação natural, pelo que não lhe poderá ser reconhecido qualquer direito de regresso sobre a mesma, improcedendo o pedido reconvencional.
Termina com o pedido, de que, “deve a reconvenção ser julgada improcedente e a autora-reconvinda absolvida do pedido, concluindo-se, no demais, como na petição inicial.”.
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Nos termos que constam do despacho, de 10.03.2025, a Mª Juíza “a quo” proferiu a seguinte decisão: “Assim, atenta a incompetência em razão da matéria e de acordo com o preceituado no art. 96º do C.P.C. determina-se a absolvição da R. da instância, quanto ao pedido deduzido pela A. na al. b) do pedido formulado na petição inicial, absolvendo-se igualmente da instância, a aqui demandante, quanto ao pedido reconvencional.
Fixa-se ao pedido deduzido pela A. o valor de € 250.000,00 e à reconvenção o valor de € 46.441,74.
Custas por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.”.
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Inconformada a Ré interpôs recurso, nos termos das alegações juntas que, terminou com as seguintes: “CONCLUSÕES:
I- A relação material controvertida respeitante à reconvenção, tal como delineada pela R. Reconvinte, não tem natureza contributiva, afeta ao foro dos tribunais administrativos e fiscais, mas sim natureza jurídico-material creditícia, atinente à responsabilidade civil da A. Reconvinda que a R. Reconvinte pretende fazer valer por via do exercício do seu direito de regresso contra aquela.
II- O direito de regresso da R. sobre a A. tendo em vista a reclamação desse crédito, estribado nos artigos 524.º, 847.º e 854.º, do Código Civil, em conjugação com os artigos 279.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código do Trabalho, e 11.º, nº 2 (parte final), 13.º, 42.º, nº 2, e 53.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, é uma questão acessória e dependente da relação jurídica de trabalho que subjaz ao pedido e causa de pedir configurados pela A. na ação.
III- Em todo o caso, sendo reconvencionada a compensação do crédito da R. sobre a A. com a quantia que na ação for reconhecida em dívida pela R. à A., sempre estaria dispensada aquela conexão para efeitos de atribuição de competência aos juízos do trabalho em matéria cível, conforme disposto no artigo 126.º, n.º 1, al. o), da LOSJ.
IV- O Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1 é competente, em razão da matéria, para apreciar e julgar o pedido reconvencional nos termos deduzidos pela R. na presente ação.
V- A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 126.º, n.º 1, al. o), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 96.º, al. a), do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a sentença proferida na parte em que julgou o Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1 incompetente em razão da matéria quanto ao pedido reconvencional, e ser substituída por outra que determine a apreciação e o conhecimento nesta ação desse pedido, por este tribunal, por ser materialmente competente para tanto, como é de plena e inteira JUSTIÇA!”.
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A A. não respondeu.
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No despacho proferido, em 30.04.2025, em sede de audiência prévia, a Mª Juíza “a quo” admitiu o recurso interposto pela Ré, na parte em que julgou inadmissível o pedido reconvencional pela mesma formulado com a referência: 42046501, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 79ºA e seguintes, mormente no 83.º, todos do Código do Processo do Trabalho e no art. 644.º do Código de Processo Civil e determinou a subida dos autos a esta Relação.
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Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer, dizendo estar-lhe vedada, no presente recurso, essa possibilidade, por inaplicabilidade do artigo 87º, n.º 3, do CPT.
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Cumpridos os vistos, há que apreciar e decidir.
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É sabido que, salvo as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito a este Tribunal “ad quem” conhecer de matérias nelas não incluídas (cfr. art.s 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 608º nº 2, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10).
Assim, a questão suscitada e a apreciar consiste em saber se, a decisão recorrida deve ser revogada, por caber aos juízos do trabalho a competência material para apreciar e julgar a reconvenção deduzida na presente acção, como defende a R./recorrente.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A factualidade a atender é a que decorre do relatório que antecede, devidamente documentada nos autos.
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Vejamos.
Comecemos por transcrever da decisão recorrida, em síntese, o seguinte: «(…).
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
A inscrição do trabalhador na Segurança Social constitui obrigação legal do empregador e deverá ser efectuada nos termos do disposto no art. 8º da Lei nº 110/2009 de 16/09 que aprovou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
A caracterização da obrigação do pagamento destas contribuições, após larga discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria, tem sido unanimemente considerada como tratando-se de obrigação parafiscal, sendo certo que as questões suscitadas pela demandada quanto aos danos causados pelo não pagamento do montante que considera ser devido a esta título se insere no âmbito da matéria relativa à mesma obrigação.
Ora, a este propósito, têm sido proferidas diversas decisões que reflectem a incompetência em razão da matéria dos Tribunais Judiciais, mormente dos Tribunais de Trabalho para a apreciação destas questões, que têm subjacentes o pagamento das contribuições devidas à Segurança Social, destacando.se aqui o Ac. da Rel. de Guimarães de 17/05/2018, In proc. nº 1926/16.5T8VRL.G1, www.dgsi.pt, e mais recentemente o Ac. do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 01/07/2024, In proc. nº 125/23.4BEALM, www.dgsi.pt, o qual em sede de resolução dum conflito negativo de competências, explicitou “A obrigação contributiva da entidade empregadora constitui-se – como também decorre dos diplomas citados – com o início do exercício da actividade profissional dos trabalhadores ao seu serviço. Está, assim, delineada, nestes diplomas, uma relação jurídica bilateral, de natureza contributiva, que impõe à entidade empregadora a obrigação de efectuar uma prestação pecuniária (a contribuição), correspondendo a tal obrigação o direito da Segurança Social a essa prestação.
Embora fundada na relação laboral, esta relação jurídica contributiva não se confunde com ela, e apenas incide sobre um dos sujeitos da relação laboral, a entidade empregadora, pois que, como vimos, é esta a responsável pelo pagamento, mesmo na parte respeitante ao trabalhador. Como tem vindo a ser referido pela jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, no âmbito desta relação jurídica contributiva a entidade empregadora não está constituída perante o trabalhador em qualquer dever jurídico; é perante as instituições de Segurança Social, que integram a chamada administração indirecta do Estado, pois são entidades públicas, revestidas de autoridade pública, designadamente tendo poderes para intervenções coactivas, que as entidades empregadoras têm de cumprir a sua obrigação contributiva. Ademais, hoje, após uma longa discussão doutrinária sobre a natureza das contribuições para a Segurança Social, é inequívoco que estas constituem verdadeiros impostos (() (Desenvolvidamente, sobre a questão, vide JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., volume I, anotação 4 ao art. 6.º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, págs. 50 a 52.)). Seja como for, se é certo que a relação jurídica contributiva se estabelece tendo como pressuposto a existência de um contrato de trabalho, verdade é também que ela não emerge de relação conexa com a relação de trabalho. Ela concretiza-se sob a forma de uma relação jurídica bilateral entre o empregador e o Estado, no âmbito da qual, a entidade empregadora se acha constituída face à Segurança Social numa obrigação a ser cumprida perante esta. Sem prejuízo do que ficou dito, o trabalhador sempre terá o direito a que a sua entidade patronal cumpra com aquela obrigação perante a Segurança Social, pois desse cumprimento depende a possibilidade dele poder vir a auferir da Segurança Social, e pelo montante correcto, as prestações que a lei lhe reconheça. Em face desse direito e da natureza indiscutivelmente tributária da relação jurídica em causa, a jurisprudência tem vindo a entender que é da competência dos tribunais tributários conhecer da acção intentada pelo trabalhador contra a entidade patronal, pedindo a condenação a proceder aos pagamentos contributivos considerados em falta. (...)” - fim de citação. Ora, com bem se evidenciou no já citado acórdão de 27/10/21, do TCA Norte, “todos os considerandos espelhados naquele Acórdão são válidos para as contribuições à Caixa Geral de aposentações cujo reconhecimento é demandado, assente no respectivo quadro legal. Estamos perante uma obrigação contributiva imposta por lei de que é beneficiária a Caixa Geral de Aposentações, destinando-se, portanto, a financiar o regime previdencial público. Ou seja, estamos perante um verdadeiro tributo que é devido à Caixa Geral de Aposentações, porque inserida no regime de financiamento das pensões e geridas por aquela entidade, comparável às contribuições para a segurança social (que têm sido pacificamente consideradas como tributos pela jurisprudência, e actualmente consideradas como verdadeiros impostos – cfr. por todos, Ac. do Pleno do STA de Pleno do STA, de 26/2/2014, proc. n.º 01481/13)”. Temos, assim, que os tribunais tributários são competentes para conhecer da ação intentada pelos trabalhadores contra a entidade patronal, pedindo, a título principal, a condenação desta a proceder aos pagamentos contributivos considerados em falta.” (nosso sublinhado).
Deste modo, não resta senão concluir que, o pedido apresentado pela aqui demandante, porque fundamentado na insuficiência do pagamento efectuado pela demandada, a título de contribuições devidas à Segurança Social e ao cômputo dos danos que decorrem desta conduta omissiva, encontra-se atribuído aos Tribunais Administrativos e Fiscais, de acordo com o disposto nos artigos 5º e 49º-A nº 1 al. a) do ETAF (na sua versão introduzida pela Lei nº 114/2019 de 12/09). Mas, igualmente se terá de considerar que o pedido reconvencional aqui formulado pela R. se insere na esfera de competência destes mesmos Tribunais, dado que se encontra, igualmente, e de forma intrínseca, dependente da apreciação que vier a ser feita do montante devido a este título, perante o reconhecimento dum vínculo laboral entre as partes desde 01/03/2000 e da determinação do sujeito passivo responsável pelo pagamento à entidade pública competente.» (Fim de citação).
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A Ré discorda, alegando o seguinte: “Concluiu o tribunal ad quem que o pedido reconvencional aqui formulado pela R. se insere na esfera de competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, de acordo com o disposto nos artigos 5.º e 49.º-A, nº 1, al. a), do ETAF (na sua versão introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro), dado que se encontra, igualmente, e de forma intrínseca, dependente da apreciação que vier a ser feita do montante devido a título de contribuições devidas à Segurança Social, perante o reconhecimento dum vínculo laboral entre as partes desde 01/03/2000 e da determinação do sujeito passivo responsável pelo pagamento à entidade pública competente.
Com o respeito devido, tal conclusão não tem fundamento, devendo a decisão que julgou o tribunal incompetente em razão da matéria quanto ao pedido reconvencional ser revogada.
Na verdade,
A presente ação de processo comum emerge da sentença proferida nos autos com processo especial de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instaurada pelo Ministério Público contra a aqui R. e autuada sob o n.º ... no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1, que declarou “...que a relação estabelecida entre a interessada AA e a Ré A..., S.A., com o NIF ..., é uma relação laboral, com início em 1 de março de 2000” (cf. documento nº 484 oferecido com a petição inicial).
Em cumprimento dessa sentença, a R., aqui Recorrente, requereu à Segurança Social, em 15/02/2021, a qualificação como TCO da A., aqui Recorrida, com referência ao período de 01/03/2000 a 31/01/2021 (cf. documento nº 1 junto com a contestação).
Decorrido esse processo de qualificação como TCO da A., nos termos da sentença proferida, a R. submeteu as declarações de retribuições de reconstituição da carreira contributiva da A. com referência ao período da sua responsabilidade e pagou os valores associados, incluindo as contribuições e quotizações devidas pela entidade empregadora e pela própria trabalhadora às taxas aplicáveis de 23,75% e 11%, respetivamente (cf. documentos nºs 7 a 14 juntos com a contestação).
Ou seja, a R. liquidou à Segurança Social, a título de quotizações e contribuições devidas pela qualificação da A. como TCO e ao período em causa, um total de 146.713,69€ (cf. Documentos nºs 8 a 14 juntos com a contestação), correspondente a:
Quotizações da A. (11%):
• sobre o total recebido de 361.906,94€ 39.809,76€
• sobre um total de subsídios de férias de 30.145,37€ (*) 3.315,99€
• sobre um total de subsídios de Natal de 30.145,37€ (*) 3.315,99€
Contribuições da R. (23,75%):
• sobre o total recebido de 361.906,94€ 85.952,90€
• sobre um total de subsídios de férias de 30.145,37€ (*) 7.159,52€
• sobre um total de subsídios de Natal de 30.145,37€ (*) 7.159,52€
total: 146.713,69€
(*) não inclui valores referentes a janeiro de 2021, ano em que o processamento dos subsídios de férias e de Natal, incluindo TSU, seguiu o regime de TCO aplicado à generalidade dos trabalhadores da R.
Em sede de reconvenção, a R., aqui Recorrente, invocou que as quotizações – 11% sobre o valor total (i) de remunerações recebidas pela A., aqui Recorrida, e (ii) de 13º e 14º meses de remunerações, correspondentes a subsídios de férias e de Natal, ambas relativas ao referido período – são responsabilidade da A. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 11.º, nº 2 (parte final), 13.º, 42.º, nº 2, e 53.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado em anexo à Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro.
E que, tendo liquidado à Segurança Social o valor das quotizações devidas pela A., num total de 46.441,74€, a R., aqui Recorrente, tem direito de regresso sobre a condevedora, aqui A. – cf. artigo 524.º do Código Civil,
O que veio exercer, em reconvenção e mediante compensação com a quantia que nestes autos de processo comum que a A. move contra a R. for reconhecida em dívida pela R. à A. – cf. Artigos 847.º e 854.º do Código Civil, e 279.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código do Trabalho.
Ora,
O processo de qualificação como TCO da A., para efeitos contributivos, assentou, na parte da responsabilidade da R. e validado pelo Centro Distrital ... da Segurança Social, no seguinte:
a) no número total de horas de serviços prestados em cada um dos meses do período em causa decorrido até janeiro de 2021 – cf. documento nº 3 junto com a contestação (mapa dos valores de retribuição submetido pela R. à Segurança Social) e documentos nºs 17 a 264 oferecidos com a petição inicial;
b) no valor recebido pela A. em contrapartida de serviços prestados em cada um desses meses – cf. documento nº 3 junto com a contestação e documentos nºs 265 a 483 oferecidos com a petição inicial;
c) no cálculo dos valores de 13º e 14º meses em cada ano, correspondentes aos subsídios de férias e de Natal, com base na divisão por 12 da soma dos valores mensais recebidos em cada ano.
Ou seja, tem por base, por uma parte, quantias anteriormente liquidadas à A., correspondentes aos valores faturados e recebidos pela mesma em contrapartida dos serviços prestados em cada um dos meses do período em causa decorrido até janeiro 2021,
E, por outra parte, quantias correspondentes aos subsídios de férias e de Natal, com base na divisão por 12 da soma dos valores mensais faturados e recebidos em cada ano, que a R. aceita dever à A. a esse título, em decorrência da sentença que declarou “...que a relação estabelecida entre a interessada AA e a Ré A..., S.A., com o NIF ..., é uma relação laboral, com início em 1 de março de 2000”.
A qualificação dessas quantias como tendo natureza laboral, isto é, constituindo a contrapartida devida pela R. à A. por virtude da relação laboral declarada por aquela sentença, ficou assente com o trânsito em julgado da mesma e não é controvertida.
Tendo sido este pressuposto que possibilitou e determinou o apuramento pela Segurança Social das respetivas quotizações e contribuições devidas,
E a liquidação pela R. dos valores de quotizações e contribuições apurados pelo Centro Distrital ... da Segurança Social, em cumprimento da obrigação contributiva que a R., como empregadora, tem perante o Estado – cf. artigos 38.º, nº 1, 39.º, e 42.º, nº 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
O pedido reconvencional, como decorre do que atrás se deixou exposto, está estritamente limitado ao direito de regresso da R. sobre a A. quanto ao valor de quotizações que liquidou à Segurança Social e que são responsabilidade da A. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 11.º, nº 2 (parte final), 13.º, 42.º, nº 2, e 53.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
Não respeita assim à determinação e/ou ao cumprimento da obrigação contributiva da R. perante a Segurança Social que eventualmente poderá suceder no caso de serem reconhecidos outros créditos laborais em falta, devidos pela R., em decorrência da requalificação como laboral da relação de prestação de serviços que vinculou as partes.
Como é pacífico, para apuramento da competência material, como pressuposto processual que é, importa apenas considerar a causa de pedir e o pedido invocados, neste caso da reconvenção.
A relação material controvertida respeitante à reconvenção, tal como delineada pela R., não tem natureza contributiva, afeta ao foro dos tribunais administrativos e fiscais, mas sim natureza jurídico-material creditícia, atinente à responsabilidade civil da A. Reconvinda que a R. Reconvinte pretende fazer valer por via do exercício do seu direito de regresso contra aquela.
O direito de regresso da R. sobre a A. tendo em vista a reclamação desse crédito, estribado nos artigos 524.º, 847.º e 854.º, do Código Civil, em conjugação com os artigos 279.º, nºs 2, al. a), e 3, do Código do Trabalho, e 11.º, nº 2 (parte final), 13.º, 42.º, nº 2, e 53.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, é uma questão acessória e dependente da relação jurídica de trabalho que subjaz ao pedido e causa de pedir tal como configurados pela A. na ação.
E em todo o caso, sem conceder, sendo reconvencionada a compensação daquele crédito da R. sobre a A. com a quantia que na ação for reconhecida em dívida pela R. à A., sempre estaria dispensada tal conexão para efeitos de atribuição de competência aos juízos do trabalho em matéria cível – cf. artigo 126.º, n.º 1, al. o), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Resulta de todo o exposto que cabe indubitavelmente aos juízos do trabalho a competência material para apreciar e julgar a reconvenção deduzida na presente acção, pelo que merece censura a decisão recorrida que, julgando verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal, por violação das regras de competência material, absolveu a A. Reconvinda da instância reconvencional.”.
Que dizer?
Desde logo, importa ter presente que a competência material constitui um pressuposto processual que se afere em função, quer do pedido, quer da causa de pedir, padronizada pelos termos em que a relação jurídica material é configurada pelo autor.
A competência em razão da matéria, conforme ensina o Prof. (Alberto dos Reis, in Comentário ao CPC, volume I, pág.110), determina-se pelo conteúdo da lide.
E igual opinião tem o Prof. (Manuel de Andrade in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág.91) ao referir que, “a competência do Tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.
E mais adiante refere ainda aquele ilustre professor, “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualificativo – o da natureza da relação substancial pleiteada”, (obra citada, pág.94).
De facto, segundo doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência material deve ser aferida em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, englobando o pedido e a causa de pedir, quer na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se, pois, por base a relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, cfr. na jurisprudência vejam-se os: (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - de 30-03-2011 (processo nº 492/09.2TTPRT.P1.S1), de 12-09-2013 (processo nº 204/11.0TTVRL.P1), de 16-06-2015 (processo nº 117/14.4TTLMG.C1.S1) e de 15-12-2022 (processo nº 7760/21.7T8PRT-A.P1.S1); Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 29-03-2011 (processo nº 025/10), de 1-10-2015 (processo nº 8/14) e de 8-11-2018 (processo nº 020/18) – todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Para a resolução da questão da competência em razão da matéria não importa, pois, averiguar quais deveriam ser os correctos termos da pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável.
Como se expõe no citado (Acórdão do STJ de 15-12-2022), “[a] competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. Trata-se de questão a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (considerando aí os respetivos fundamentos), não importando indagar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Deste modo, atendendo a lei na definição da competência em razão da matéria ao objeto da causa, encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial preceituada -, a estruturação da causa apresentada pelo autor é que fixa o único tema decisivo para o efeito dessa modalidade da competência dos tribunais.
A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento de determinada pretensão deve partir do teor dessa pretensão e dos fundamentos que a justificam, sendo irrelevantes, para este efeito, as qualificações jurídicas desta pretensão efetuadas pelo autor, bem como o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma, por se tratar de questão atinente ao mérito da causa (…)”.
A competência interna dos diversos tribunais portugueses, nomeadamente no que respeita à matéria é regulada pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas normas processuais respectivas, sendo certo que serão da competência dos tribunais judiciais (comuns) todas as causas que não sejam atribuídas a qualquer outra ordem jurisdicional [cfr. art.s 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 60º e 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário, na sua versão atualizada – adiante designada por LOSJ).
Tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Acresce que nos próprios tribunais judiciais vigora a regra da especialização em função da natureza das questões, atribuindo-se competência própria a juízos especializados sendo atribuída aos juízos cíveis com uma competência residual nas situações em que a competência não couber aos juízos especializados (art.s 60º, 65º do Código de Processo Civil e 33º, 37º nº 1, 40º, 80º e 81º da LSOJ).
Estabelece o art. 126º, nº 1, da LSOJ:
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;
i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;
j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;
k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;
l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;
m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;
p) Das questões cíveis relativas à greve;
q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;
r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;
s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas.” (negrito nosso).
Os juízos de trabalho têm, pois, competência especializada, competindo-lhes dirimir conflitos relacionados com a jurisdição laboral, nomeadamente os resultantes de contratos de trabalho, acidentes de trabalho, doenças profissionais, interpretação de instrumentos de regulamentação coletiva, questões reconvencionais emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, etc.
Os tribunais administrativos e fiscais têm uma competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas.
Com efeito, estabelece o art. 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais» (cfr. ainda art.s 144º, nº 1, da LOSJ e 1º, nº 1, da Lei nº 13/2002, de 19.02, na redação dada pela Lei nº114/2019 de 12.09 - Lei que prevê o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua versão atualizada – adiante designado por ETAF).
Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, os tribunais da jurisdição administrativa são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º desse Estatuto.
Assim, o art. 4º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição, estabelecendo o seguinte:
1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.” (negrito nosso).
Da análise deste preceito decorre inequivocamente que os nºs 1 e 2 concretizam as questões que devem ser julgadas pelos tribunais administrativos e fiscais, enquanto que os nºs 3 e 4 versam sobre as situações que estão excluídas do âmbito da jurisdição daqueles tribunais.
Como refere, (Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas in “A amplitude da competência material dos tribunais administrativos em sede de acções relativas a responsabilidade civil contratual”, in Revista Julgar, nº 15, 2011, pág. 108), «à luz do artigo 212.º da CRP e do artigo 1.º do ETAF o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas, que constitui assim a regra geral para a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais, detendo por força dela os Tribunais Administrativos competência para dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas, excepto nos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição, como os desde logo previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 4.º do ETAF 6, mas também os que são ou venham a ser contemplados em legislação avulsa.» - a referência aos nºs 2 e 3 do art. 4º é transponível para os atuais nºs 3 e 4 do mesmo artigo na versão atualizada do ETAF.
O ETAF prescreve no n.º 4, al. b) do citado art. 4º que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.
Ora, apelando às regras da interpretação e aplicação da lei, e sendo clara e evidente a letra da lei, a única interpretação que se pode extrair é que não cabe aos tribunais administrativos e fiscais dirimir litígios decorrentes de contratos de trabalho.
Os litígios emergentes dos contratos individuais de trabalho em regime de direito privado estão, pois, expressamente excluídos da competência da jurisdição administrativa e fiscal.
No presente caso, tal como a acção é configurada pela Autora, estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, decorrente de contrato de trabalho celebrado ao abrigo do direito privado, do Código de Trabalho, e não perante um litígio emergente de vínculo de emprego público.
Tendo em conta o pedido formulado pela Autora (na parte que releva) (…) “condenada a ré a pagar à autora a quantia de €285.197,49 – correspondente ao somatório dos valores das retribuições em dívida relativamente ao trabalho prestado no período de 1 de Março de 2000 a 31 de Janeiro de 2021 -, acrescida da quantia de €121.451,02, relativa aos juros de mora já vencidos e bem assim dos juros de mora vincendos, contados sobre a referida quantia, a partir da presente data, à taxa legal e até que ocorra integral pagamento”, não temos qualquer dúvida em afirmar que para conhecer do mesmo é competente o Tribunal de Trabalho posto que o fundamento da ação é a reclamação de créditos salariais que a Autora refere serem devidos e que a Ré não pagou (cf. al. b) do nº4 do art. 4º do ETAF atrás transcrito).
Ou seja, as questões colocadas no presente litígio decorrem, tal como estão configuradas pela Autora, de uma relação de trabalho subordinado existente, sujeita à disciplina do Código do Trabalho, valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante daquela al. b) do nº 4 do art. 4º do ETAF.
E quanto ao pedido reconvencional?
A Ré veio formular o seguinte pedido reconvencional: “(a) a acção ser julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, ser a R. absolvida dos pedidos, na parte que excede o reconhecimento do seu direito ao recebimento, a título de subsídios de férias e de Natal, conforme apurado pelo Centro Distrital ... da Segurança Social no processo de qualificação como TCO da aqui A., com referência ao período de 01/01/2002 a 31/12/2020, do valor total ilíquido de 60.290,74€ (30.145,37€ + 30.145,37€)
c) a reconvenção ser admitida – cf. artigo 30.º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho –, julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser a A. condenada a pagar à R. a quantia total de 46.441,74€ relativa a quotizações da sua responsabilidade decorrentes da obrigação contributiva resultante da sua qualificação como TCO e ao período de 01/03/2002 a 31/01/2021.
(d) ser declarado extinta, por compensação, até ao valor do crédito da R. sobre a A. referido na anterior alínea (c), a dívida da R. sobre a mesma, nomeadamente a referida na parte final da anterior alínea (a).”.
Ora, e no que respeita ao pedido reconvencional, a Ré veio dizer que liquidou perante a Segurança Social quotizações que eram a cargo da Autora e por isso, pretende que esta lhe pague determinado valor, a esse título, e reconhecendo dever à Autora determinados créditos que ela reclama na presente ação “ vem exercer, em reconvenção e mediante compensação com a quantia que nestes autos for reconhecida em dívida à reconvinda – cf. artigos 847º e 854º do Código Civil, e 279º, nºs 2, al. a), e 3, do Código do Trabalho”.
Não podemos, assim, acompanhar a decisão recorrida quando aí se afirma que o pedido reconvencional está, “dependente da apreciação que vier a ser feita do montante devido a este título, perante o reconhecimento dum vínculo laboral entre as partes desde 01/03/2000”.
Na verdade, o pedido reconvencional não está dependente da verificação de uma prestação/obrigação tributária, posto que a Ré, conforme fundamenta o mesmo, diz ter dado cumprimento a essa obrigação mas fê-lo, satisfazendo igualmente a obrigação tributária que incumbia à Autora.
Ou melhor dizendo: no caso, não está em causa “a verificação de uma prestação tributária ou a cobrança da mesma” mas antes a verificação de créditos salariais, reclamados pela Autora (e que a Ré só reconhece em parte) e um contra-crédito da Ré (da responsabilidade da Autora em termos tributários e que a Ré satisfez).
Face a isso, tal como defende e pretende a recorrente, só podemos concluir que, o tribunal do trabalho é competente em razão da matéria para conhecer do pedido reconvencional por o mesmo se fundamentar num contrato de trabalho subordinado (art. 126º, nº 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
E, por assim ser, a decisão recorrida não pode manter-se e procede a apelação.
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III – DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se nesta secção em julgar o recurso procedente e revogar a decisão recorrida.
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Sem custas.
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Porto, 30 de Junho de 2025
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Rita Romeira
António Luís Carvalhão
Sílvia Saraiva