ENFERMEIROS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DECRETO-LEI N.º 80-B/2022
DE 28 DE NOVEMBRO
CONTAGEM DE PONTOS
Sumário

I - O primeiro estádio da interpretação da lei assenta no texto da lei, que forma o substrato de que o intérprete deve partir, sendo que só após, no exercício hermenêutico, além de contar com esse elemento literal ou gramatical, terá de socorrer-se, também, sendo esse o caso, de outros elementos, fatores ou critérios de interpretação para determinar o sentido normativo – elementos histórico, sistemático e racional ou teleológico.
II - O Decreto-Lei n.º 80-B/2022, de 28 de novembro, que estabeleceu os termos da contagem de pontos em sede de avaliação de desempenho dos trabalhadores enfermeiros à data da transição para as carreiras de enfermagem e especial de enfermagem e que se mostra aplicável, entre outros, aos enfermeiros com contrato de trabalho sem termo, celebrados com entidades públicas empresariais integradas no Serviço Nacional de Saúde, que transitaram para a 1.ª posição remuneratória, nível remuneratório 15, da categoria de enfermeiro da carreira de enfermagem em 2015 ou em momento anterior, não distingue, para efeitos de atribuição de pontos, os enfermeiros consoante os mesmos tenham iniciado funções no primeiro ou no segundo semestre do ano civil.

Texto Integral

Apelação / processo n.º 20156/23.3T8PRT.P2

Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho do Porto - Juiz 1

Autor: Sindicato dos Enfermeiros

Réu: Centro Hospitalar ..., EPE

________

Nélson Fernandes (relator)

António Costa Gomes

Rita Romeira

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1. Sindicato dos Enfermeiros intentou a presente ação, com processo comum, contra Centro Hospitalar ..., EPE, peticionando a condenação desta entidade a dar cumprimento ao disposto no Decreto-Lei nº 80-B/2022 de 28/11 relativamente á avaliação de desempenho dos enfermeiros vinculados por contrato individual de trabalho, retroagida á data do respetivo início de funções, independentemente deste ter coincidido com o 1º ou com o 2º semestre do ano a que respeita.

Para o efeito invocou, em síntese: o Decreto-Lei nº 80-B/2022 determinou que a avaliação de desempenho dos enfermeiros dentro da carreira especial de enfermagem abrange também os profissionais que tenham o seu vínculo fundamentado na outorga de contrato individual de trabalho, relativamente aos quais o Réu atende ao início da prestação de funções, mas apenas após o decurso do primeiros seis meses de exercício profissional, sendo que, porém, tal traduz-se num erro de interpretação do diploma legal referido, pois que a avaliação deverá coincidir com o início da prestação de funções, sem qualquer período inicial subtraído, ou seja, mesmo que o enfermeiro tenha iniciado as suas funções no 2º semestre do ano civil, deverá ser-lhe considerado esse período temporal para a sua avaliação de desempenho.

Regularmente notificada, a Ré contestou, invocando, depois de excecionar a ilegitimidade do autor, em síntese que: o objeto da presente lide é inviável de obter procedência, dado que o Autor pretende que o Tribunal estabeleça uma interpretação genérica duma norma legal, o que não se insere na previsão legal do artigo 4.º do C.P.T; antes da publicação do ACT de 2018 (publicado no BTE nº 11 de 22/03/2018) inexistia norma que determinasse o regime da avaliação de desempenho dos enfermeiros, baseando a sua interpretação, quanto à contabilização do período de vigência do contrato de trabalho dos enfermeiros, no que dispõe o artigo 3º nº 2 do Decreto-Lei nº 80-B/2022 de 28/11, que determina que o desempenho daqueles profissionais, inferior a 6 meses não é objeto de avaliação agregado como biénio seguinte.

Tendo sido proferida, na audiência prévia, decisão que julgou o Autor parte ilegítima para intentar a presente ação, com a consequente absolvição da Ré da instância, no âmbito do recurso, entretanto entreposto, foi proferido Acórdão, nesta Relação, que revogou tal decisão, determinando-se o prosseguimento dos autos.

2. Descidos os autos à 1.ª instância, por se ter considerado que os autos contêm já todos os elementos necessários à decisão sobre o mérito da causa, foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta (transcrição):

“Tudo visto e nos termos expostos julga-se a presente acção improcedente por não provada, absolvendo-se o R. dos pedidos formulados pelo A.

Fixa-se à acção o valor de € 30.000,01.

Custas pelo A. sem prejuízo da isenção de que beneficia.

Registe e notifique.”

2.1. Não se conformando com o assim decidido, apresentou o Autor requerimento de interposição de recurso, finalizando as alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

“I – No presente recurso impugna-se a douta sentença, relativamente ao facto de a Decisão ter sido, por um lado, subsumida ao constante do BTE n.º 23 de 23/06/2018, que nada tem a ver com a carreira de enfermagem, antes, porém, se refere a áreas, na função pública, totalmente diferentes, ainda que algumas na área da saúde, e, por outro lado, por não ter sido feito o devido e almejado enquadramento no que prevê o Dec. Lei n.º 80-B/2022, de 28/11, quanto à avaliação do desempenho dos enfermeiros, associados do ora recorrente;

II – Desta feita, o tribunal a quo não aplicou, corretamente, a disposição do art.º 3.º do Dec. Lei n.º 80-B/2022, regime que estabelece a regra da contagem do tempo para efeitos de atribuição de pontos em sede de avaliação do desempenho dos enfermeiros, e de acordo com o qual se conta desde o início de funções, independentemente ao ano a que respeita;

III – Da douta sentença ora recorrida resulta, sem mais, uma séria injustiça para os enfermeiros que possam ter iniciado funções a 01 de Julho de determinado ano, comparativamente com outros que possam ter iniciado funções em 30 de Junho desse mesmo ano;

IV – A Jurisprudência, acerca deste tema, vem-se firmando no sentido de que a avaliação do desempenho dos enfermeiros deve relevar a partir do início de funções, independentemente de este coincidir, seja com o primeiro semestre, seja com o segundo semestre do ano a que as mesmas se reportem;”

Conclui pela procedência do recurso.

2.1.1. Não constam dos autos contra-alegações.

2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

3. Subidos os autos, pelo Exmo. Procurador-Geral Adjuto foi emitido parecer, a que alude o n.º 3 do artigo 87.º do CPT, no sentido da improcedência do recurso.

3.1 Notificado o aludido parecer, as partes não se pronunciaram.


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Cumpridas as formalidades legais, nada mais obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir:

II- Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do CPC) – aplicável “ex vi” do artigo 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a única questão a decidir prende-se como saber se o tribunal recorrido, confrontado com o pedido formulado na ação, aplicou adequadamente o direito na sentença proferida.


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III – Fundamentação

Sendo objeto de recurso apenas a pronúncia do Tribunal recorrido no âmbito da aplicação do direito – não constando aliás da sentença qualquer pronúncia em sede de matéria de facto –, de seguida procederemos à apreciação.

Discussão / o Direito do caso:

Insurge-se o Recorrente contra o decidido na sentença, no âmbito da aplicação do direito, invocando, por um lado, que, tendo na decisão recorrida a situação subsumida ao constante do BTE n.º 23 de 23/06/2018, este nada tem a ver, diz, com a carreira de enfermagem – referindo-se antes “a áreas, na função pública, totalmente diferentes, ainda que algumas na área da saúde” –, e, por outro lado, que não foi feito o devido “enquadramento no que prevê o Dec. Lei n.º 80-B/2022, de 28/11, quanto à avaliação do desempenho dos enfermeiros” – não tendo pois o tribunal a quo aplicado, corretamente, “a disposição do art.º 3.º do Dec. Lei n.º 80-B/2022, regime que estabelece a regra da contagem do tempo para efeitos de atribuição de pontos em sede de avaliação do desempenho dos enfermeiros, e de acordo com o qual se conta desde o início de funções, independentemente ao ano a que respeita” / da sentença resulta uma situação de “injustiça para os enfermeiros que possam ter iniciado funções a 01 de Julho de determinado ano, comparativamente com outros que possam ter iniciado funções em 30 de Junho desse mesmo ano”.

Não constando dos autos contra-alegações, pronunciando-se o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, pela improcedência do recurso, cumprindo-nos apreciar, importa que façamos desde já um esclarecimento, no sentido de que consideramos também, tal como o salienta o Recorrente, que não releva para a apreciação da questão que nos é colocada, e que o foi na presente ação, o regime que possa resultar do CCT publicado no BTE n.º 23, de 23/06/2018, a que alude o Tribunal recorrido na fundamentação da sentença, pois que, efetivamente, nesse não tendo tido intervenção o aqui Autor, também não se vislumbra, até porque não é invocado, por outro lado, qualquer instrumento legal do qual possa resultar essa aplicação. Noutros termos, a respeito de instrumentos de contratação coletiva, apenas nos deparamos, sendo que sequer esse foi mencionado na sentença recorrida, com o CCT celebrado entre “o Centro Hospitalar do Algarve, EPE e outros e o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses – SEP”, aplicável aos trabalhadores enfermeiros em regime de contrato de trabalho (pois que subscrito também pela aqui Ré na ação), publicado no BTE n.º 11, de 22 de março de 2018, sendo que, constando do n.º 1 da sua cláusula 1.ª que se trata de “instrumento parcelar e transitório de regulamentação coletiva de trabalho” aplicável a “todos os trabalhadores enfermeiros filiados na associação sindical outorgante, vinculados por contrato de trabalho”, “celebrado com entidades públicas empresariais do setor da saúde, integradas no Serviço Nacional de Saúde que o subscrevem”, no entanto, porém, apenas resulta, no que à questão em apreciação se refere, da sua cláusula 3.ª (sob a epígrafe “Avaliação do desempenho”, que “a avaliação do desempenho dos trabalhadores abrangidos pelo presente instrumento fica sujeita, para todos os efeitos legais, incluindo a alteração do correspondente posicionamento remuneratório, ao regime vigente para os trabalhadores com vínculo de emprego público, integrados na carreira especial de enfermagem”. Como não releva também, aliás, como na nossa ótica se apresenta sem grandes dúvidas, o que possa ou não resultar da Lei nº 34/2021, de 08/06, a que se refere a mesma sentença, já que referente a outros profissionais de saúde que não os enfermeiros – essa lei, como da mesmo claramente resulta, procedeu à alteração “do Decreto-Lei n.º 25/2019, de 11 de fevereiro, que estabelece o regime remuneratório aplicável à carreira especial de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica, bem como as regras de transição dos trabalhadores para esta carreira, e à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 111/2017, de 31 de agosto, que estabelece o regime da carreira especial de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica, alterado pelo Decreto-Lei n.º 25/2019, de 11 de fevereiro.”

Feitos as considerações anteriores, avançando-se então na análise, importa que verifiquemos, tal como o Recorrente o defende, se a sentença recorrida não se fez o devido enquadramento do que se prevê no Decreto-Lei n.º 80-B/2022, de 28 de novembro, quanto à avaliação do desempenho dos enfermeiros, em particular sobre saber se, na sentença, foi ou não aplicado adequadamente o regime que resulta do seu artigo 3.º.

Ora, desde logo, como resulta do seu preâmbulo, o aludido “decreto-lei estabelece os termos da relevância das avaliações do desempenho dos trabalhadores à data da transição para as carreiras de enfermagem e especial de enfermagem a que se referem, respetivamente, os Decretos-Leis n.ºs 247/2009 e 248/2009, ambos de 22 de setembro, na sua redação atual”, afirmando-se ainda não poder descurar-se “a transição automática para as categorias de enfermeiro especialista e de enfermeiro-gestor, operada através do Decreto-Lei n.º 71/2019, de 27 de maio” e que, neste contexto, “acautela também a relevância das avaliações do desempenho anteriores a esse reposicionamento”. Aliás, a respeito deste diploma legal, importa ter presente que se reporta, por um lado, à situação dos enfermeiros integrados no âmbito de aplicação do decreto-lei n.º 247/2009 (aplicável aos enfermeiros em regime de contrato individual de trabalho, nos termos do Código do Trabalho, nas entidades públicas empresariais e nas parcerias em saúde, em regime de gestão e financiamento privados, integradas no Serviço Nacional de Saúde, nos termos dos diplomas legais que definem o regime jurídico dos trabalhadores das referidas entidades, sem prejuízo da manutenção do mesmo regime laboral e dos termos acordados no respetivo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho), e, por outro, ao decreto lei n.º 248/2009 (aplicável aos enfermeiros integrados na carreira especial de enfermagem cuja relação jurídica de emprego público seja constituída por contrato de trabalho em funções públicas), ambos de 22 de setembro. Ou seja, o referido diploma manteve a diversidade de regimes aplicáveis a uns e outros profissionais, em face do regime da respetiva contratação.

De resto, já nos pronunciámos antes, diversas vezes, como assinalámos por exemplo no Acórdão de 24 de outubro de 2022[1], sobre a diversidade de regimes que resulta afinal dos diversos diplomas legais aplicáveis a uns e a outros, assim, por um lado, aos enfermeiros integrados no Sistema Nacional de Saúde mediante contrato de trabalho em funções públicas (nomeadamente, o DL n.º 248/2009 e o DL n.º 122/2010) e, por outro, aos que contratados no âmbito de contrato individual de trabalho (neste caso, em particular, o DL n.º 247/2009), sendo que, fazendo a comparação dos regimes previstos no DL n.º 248/2009 e no DL n.º 247/2009, ressalta desde logo, no que agora importa, que só no primeiro, assim seu artigo 21.º, n.º 1, se estipula que “A avaliação de desempenho dos trabalhadores que integrem a carreira especial de enfermagem rege-se por sistema adaptado do Sistema Integrado de Gestão e Avaliação de Desempenho na Administração Pública (SIADAP), a estabelecer em diploma próprio”.

Dentro das pronúncias anteriores desta Secção a que antes nos referimos, incidindo sobre questões conexas com aquela que aqui se aprecia, assim a respeito da aludida diferença de regimes aplicáveis, em face do vínculo dos referidos profissionais de saúde, para além de outros, em que se inclui o Acórdão de 8 de janeiro de 2018[2] (em que estava em causa saber se um profissional contratado por contrato de trabalho estaria abrangido pelas regras de reposicionamento remuneratório a que se refere o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 122/2010), veja-se designadamente o Acórdão, de 26 de junho de 2023[3], este especificamente sobre a questão de saber se a avaliação de desempenho dos enfermeiros com contrato individual de trabalho a exercer funções em entidades públicas empresariais, avaliação essa prevista na Cláusula 3.ª do Acordo Coletivo entre o Centro Hospitalar do Algarve, EPE e outros – nos quais se inclui o Réu - e o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses – SEP, a que de resto já antes nos referimos, é aplicável o disposto nos artigos 89.º e seguintes da LGTFP (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela lei 35/2014 de 20 de Junho)[4], sendo que, como resulta desse Acórdão, estava em causa recurso que incidia sobre sentença proferida sentença em 1.ª instância na qual se havia acolhido posição[5] no sentido de que tal cláusula não consentia uma interpretação que lhe confira qualquer retroatividade anterior a janeiro de 2018, citando em apoio dessa posição o entendimento afirmado no Acórdão da Relação de Coimbra de 8 de setembro de 2021, para defender retirar-se dele, “com segurança, que o direito reclamado não se constitui senão a partir de janeiro de 2018, inexistindo consagração de qualquer projeção retroativa”.

Ora, não se deixando de reconhecer a diversidade de regimes que antes se assinalou, que resulta aliás evidenciada também no seu preâmbulo, bem como a intenção claramente manifestada pelo legislador, assim a de se pretender estabelecer os termos da relevância das avaliações do desempenho dos trabalhadores à data da transição para as carreiras de enfermagem e especial de enfermagem, sem se descurar, porém, a transição automática para as categorias de enfermeiro especialista e de enfermeiro-gestor, operada através do Decreto-Lei n.º 71/2019, de 27 de maio –, no Decreto-Lei n.º 80-B/2022, sendo seu objeto, como resulta do seu artigo 1.º, estabelecer “os termos da relevância das avaliações do desempenho dos trabalhadores enfermeiros à data da transição para as carreiras de enfermagem e especial de enfermagem a que se referem, respetivamente, os Decretos-Leis n.ºs 247/2009 e 248/2009, ambos de 22 de setembro, na sua redação atual”, quanto ao seu âmbito de aplicação, estabelecido no artigo 2.º, são abrangidos quer os trabalhadores com contrato de trabalho sem termo, celebrado com entidades públicas empresarias integradas no Serviço Nacional de Saúde, que transitaram para a 1.ª posição remuneratória, nível remuneratório 15, da categoria de enfermeiro da carreira de enfermagem em 2015 ou em momento anterior, por força, respetivamente, dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho ou da equiparação ao regime da carreira especial de enfermagem prevista no correspondente contrato de trabalho”, quer os “trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado que transitaram para a 1.ª posição remuneratória, nível remuneratório 15, da categoria de enfermeiro em 2011, 2012 e 2013”, quer, por último, os “os trabalhadores que, independentemente da natureza da relação jurídica de emprego, transitaram para a categoria de enfermeiro especialista ou enfermeiro-gestor e foram reposicionados em posições remuneratórias automaticamente criadas para o efeito, nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 71/2019, de 27 de maio, na sua redação atual” (respetivamente, alíneas a), b) e c) do seu n.º 1).

Evidencia-se, assim, como facilmente se extrai, ter sido intenção do legislador abranger afinal, no âmbito da aplicação do diploma, todos os profissionais, independentemente da natureza do respetivo vínculo, que se encontrem nas situações previstas no diploma, mas apenas, importa tê-lo em consideração, sendo este o único aspeto que se pretendeu regular, os termos da relevância das avaliações do desempenho dos trabalhadores à data da transição para as carreiras de enfermagem e especial de enfermagem, mas sem que se enuncie, nomeadamente, qualquer aspeto relacionado com o processo como deve decorrer daquela avaliação. Dito de outro modo, o diploma que se analisa não pretendeu regular, o que consideramos resultar claramente, o modo como deve processar-se a avaliação dos profissionais em causa, sendo que esses processos haverão de decorrer, então, de outros diplomas, como afinal decorrem, sendo que, como antes já o dissemos, com sujeição a regulamentação diversa, desde logo por decorrência da natureza do vínculo de contratação – sem prejuízo, no entanto, como antes também já o referimos, de importar atender ao que eventualmente possa resultar da Cláusula 3.ª do Acordo Coletivo entre o Centro Hospitalar do Algarve, EPE e outros – nos quais se inclui o Réu - e o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses – SEP (remetendo-se, pois, para o que antes mencionámos a esse propósito).

Neste contexto, extraindo-se é certo do n.º 1 do artigo 3.º, mas sendo esse aplicável apenas aos casos em que tenha existido avaliação do desempenho (aí se referindo “correspondente ao tempo de serviço prestado pelos trabalhadores a que se refere o n.º 1 do artigo anterior”) desde quando e até quando os pontos adquiridos “relevam para efeitos de reposicionamento remuneratório”, já do seu n.º 2, por sua vez, precisamente aquele sobre o qual é pretendida a nossa pronúncia, em termos de interpretação, sendo aplicável aos casos de ausência da avaliação, apenas resulta, atendendo à sua letra (o seu texto), que, “independentemente da natureza jurídica do vínculo”, “são atribuídos por cada ano de trabalho: a) 1,5 pontos, entre 2004 e 2014; e b) 1 ponto, nos anos subsequentes”.

Ora, sendo quanto a esta norma que incide a nossa pronúncia, pois que só essa é objeto do presente recurso, constata-se que apenas se fez constar da sentença recorrida, depois de se citar o teor dos artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 80-B/2022, o seguinte (transcrição), “(…) ou seja, as normas em questão dependem dos profissionais de enfermagem ao serviço do R. terem transitado para a posição remuneratória acima referida até 2015, inexistindo qualquer norma legal que determine a avaliação de desempenho pelo exercício de funções inferior a um ano, referindo-se expressamente a norma legal invocada pelo demandante a “cada ano de trabalho” e não a fracção desse mesmo período temporal”, para se concluir de seguida que se entende, assim, “que o A. não demonstrou a imposição da interpretação pela qual pugnou na presente acção, pelo que considerando o acima exposto, não se pode deixar de concluir pela improcedência do pedido apresentado pelo mesmo.”

Com a natural salvaguarda do respeito devido, não acompanhamos a solução a que se chegou na sentença recorrida, pelas razões que referiremos de seguida.

Estando em causa uma tarefa de interpretação da lei, como é consabido e é afirmado em geral pela doutrina e jurisprudência, seguindo-se de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de setembro de 2021[6], diremos também que o primeiro estádio assenta no texto da lei, que forma o substrato de que o intérprete deve partir, sendo que só após, no exercício hermenêutico, o intérprete, além de contar com esse elemento literal ou gramatical, terá de socorrer-se, muitas vezes, de outros elementos, fatores ou critérios de interpretação para determinar o sentido normativo da norma – elementos: a) o histórico, que atende à história da lei [trabalhos preparatórios e occasio legis (circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada)]; b) o sistemático, que implica a consideração da unidade e coerência jurídico-sistemáticos; c) o racional ou teleológico, que faz atender ao fim ou objectivo prático que a norma visa realizar (ratio legis). Porém, como também se esclarece no mesmo Aresto, “uma das situações em que a interpretação restritiva pode ter lugar é, precisamente, quando o princípio jurídico que subjaz à norma, se aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado, ou seja, quando se surpreende uma discordância entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical.”

Avançando-se então na análise, como aliás o Recorrente o invoca, constata-se que sobre a norma que aqui se interpreta se pronunciou já o Tribunal da Relação de Évora, assim no Acórdão proferido em 11 de julho de 2024[7], desse resultando designadamente o seguinte (transcrição):

«(…) Em sede de recurso, o réu veio alegar que a 1.ª instância não deveria ter atribuído a pontuação de 1,5 relativa ao ano de início da relação laboral quanto aos autores cujo vínculo contratual se efetivou no 2.º semestre do ano civil, porquanto o artigo 28.º do Despacho n.º 2/1993, de 30 de março, continua em vigor.

(…)

Vejamos.

O Decreto-Lei n.º 437/91, de 8 de novembro, aprovou o regime legal da carreira de enfermagem, consagrando-se no artigo 43.º a existência de avaliação de desempenho e no artigo 53.º que o sistema de avaliação seria posteriormente regulamentado por despacho do membro do Governo competente.

Posteriormente, o Despacho n.º 2/93, de 30 de março, proferido pelo Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde aprovou o “Regulamento de Avaliação de Desempenho na Carreira de Enfermagem”. (…)

O artigo 28.º do despacho, com o título “Inicio do triénio da avaliação do desempenho”, determinava o seguinte:

«1- A avaliação do desempenho reporta-se ao exercício profissional correspondente a anos civis, independentemente da data de início de funções do enfermeiro.

2- Nas situações de início de funções durante o 1.º semestre do ano, a avaliação do desempenho inclui o ano civil correspondente, como primeiro ano do triénio.

3- Nas situações de início de funções durante o 2.º semestre do ano, este tempo acresce ao primeiro ano do triénio que se inicia no ano civil seguinte».

Sucede, porém, que, mais tarde, a Lei n.º 66-B/2007, de 28 de dezembro, veio estabelecer um sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública, designado por SIADAP – cf. artigo 1.º desta lei – que, por força da Portaria n.º 242/2011, de 21 de junho, acabou por ser aplicado, de forma adaptada, aos trabalhadores integrados na carreira especial de enfermagem com vínculo de emprego público.

Contudo, entre a data da entrada em vigor da Lei n.º 66-B/2007 e o surgimento da Portaria n.º 242/2011, foi publicado o Decreto-Lei n.º 247/2009, de 22 de setembro, que definiu o regime geral da carreira aplicável ao enfermeiros em regime de contrato individual de trabalho, nas entidades públicas empresariais e nas parcerias em saúde, em regime de gestão e financiamento privados, integrados no Serviço nacional de Saúde – cf. artigo 2.º do diploma.

Neste regime nada consta sobre avaliação de desempenho e não nos parece que a Lei n.º 66-B/2007 e a Portaria n.º 242/2011 possam ser aplicáveis, por não existir qualquer remissão legal nesse sentido e os referidos diplomas se restringirem ao universo de trabalhadores integrados na carreira especial de enfermagem com vínculo de emprego público.

Acresce que, no vertente caso, também não foi invocada a existência de qualquer instrumento de regulamentação coletiva que determinasse a aplicação do regime de avaliação de desempenho dos trabalhadores da carreira especial de enfermagem com vínculo de emprego público aos enfermeiros em regime de contrato individual de trabalho.

A mesma fundamentação se aplica com referência ao Despacho n.º 2/1993.

Avancemos, então, no tempo…

Mais tarde, surgiu o Decreto-Lei n.º 80-B/2022, de 28 de novembro, que estabeleceu os termos da contagem de pontos em sede de avaliação de desempenho dos trabalhadores enfermeiros à data da transição para as carreiras de enfermagem e especial de enfermagem e que se mostra aplicável, entre outros, aos enfermeiros com contrato de trabalho sem termo, celebrados com entidades públicas empresariais integradas no serviço Nacional de Saúde, que transitaram para a 1.ª posição remuneratória, nível remuneratório 15, da categoria de enfermeiro da carreira de enfermagem em 2015 ou em momento anterior – cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do diploma.

Estatui o artigo 3.º deste decreto-lei, com o título “Relevância das avaliações do desempenho”: (…)

Resulta do normativo que a avaliação de desempenho correspondente ao tempo de serviço prestado - não se trata de uma avaliação de desempenho baseada no mérito – releva desde data de início de funções ou da última alteração da posição remuneratória, consoante o caso, desde que posterior a 31 de dezembro de 2003, e os pontos previstos são atribuídos “por cada ano de trabalho”, e não em função do ano civil, como se estabelecia no Despacho n.º 2/93.

Assim sendo, não há qualquer fundamento legal para distinguir, para efeitos de avaliação e atribuição de pontos, os enfermeiros consoante os mesmos tenham iniciado funções no primeiro ou no segundo semestre do ano civil. (…)».

Acompanhamos, diga-se, o citado Acórdão quando se escreve que a avaliação de desempenho a que se reporta o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 80-B/2022, correspondente ao tempo de serviço prestado (não se tratando assim de uma avaliação baseada no mérito), releva desde a data de início de funções ou da última alteração da posição remuneratória, consoante o caso, desde que posterior a 31 de dezembro de 2003, como, ainda, quando se afirma de seguida que e os pontos aí previstos “são atribuídos “por cada ano de trabalho”, e não em função do ano civil, como se estabelecia no Despacho n.º 2/93”. Porém, referindo-se de seguida que “não há qualquer fundamento legal para distinguir, para efeitos de avaliação e atribuição de pontos, os enfermeiros consoante os mesmos tenham iniciado funções no primeiro ou no segundo semestre do ano civil”, afirmação essa que em geral acompanhamos, importa no entanto esclarecer que, tanto mais que os pontos são atribuídos “por cada ano de trabalho”, impondo-se, como dito, a consideração do período que tenha decorrido (contado desde o início das funções, independentemente de esse ter ocorrido no primeiro ou no segundo semestre do ano civil), a atribuição de pontos, estabelecida na noma, haverá de resultar do resultado a que se chegue (com atribuição de 1,5 pontos, entre 2004 e 2014, e 1 ponto, nos anos subsequentes). Assim o esclarecemos, apenas para que se entendam as bases do raciocínio que seguimos e solução a que se possa chegar, pois que, dada a natureza da presente ação e respetivo objeto, delimitado pelo pedido que foi expressamente formulado, essa é questão que não foi afinal colocada, como não o foi na ação, já que o pedido formulado foi apenas o de que a Ré fosse condenada, dando cumprimento ao disposto no Decreto- Lei n.º 80-B / 2022, de 28/11, a “aplicar a avaliação de desempenho dos enfermeiros vinculados por Contrato Individual de Trabalho, independentemente de ser Contrato a Termo e / ou Por Tempo Indeterminado, mas sempre retroagida à data do respetivo início de funções, independentemente de este ter coincidido, seja com o primeiro, seja com o segundo semestre, do ano a que respeite”.

Por decorrência do exposto, sem necessidade de outras considerações, o presente recurso procede, procedendo assim a ação, mas nos termos antes ditos.

Por decaimento, a responsabilidade pelas custas, na ação e no presente recurso, impende sobre a Ré / recorrente (artigo 527.º do CPC).


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Sumário do presente acórdão – artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, na procedência do recurso, em revogar a sentença recorrida, a qual se substitui, neste acórdão, em declarar procedente a ação, sendo a Ré condenada, no cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Decreto- Lei n.º 80-B/2022, de 28/11, a aplicar, aos enfermeiros vinculados por Contrato Individual de Trabalho, independentemente de ser Contrato a Termo e / ou Por Tempo Indeterminado, a contagem dos pontos nesse normativo previstos, retroagida à data do respetivo início de funções, independentemente de este ter coincidido, seja com o primeiro, seja com o segundo semestre, do ano a que respeite.

Custas da ação e do presente recurso pela Ré / recorrida.


Porto, 30 de junho de 2025
(assinado digitalmente)
Nelson Fernandes
António Costa Gomes
Rita Romeira
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[1] Relatado pelo também aqui relator.
[2] Relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção como adjunto do aqui relator – processo 3639/15.6T8VFR.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Processo n.º 20081/21.2T8PRT.P1, Relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção como adjunto do aqui relator, em www.dgsi.pt.
[4] Posição defendida pelo aí autor, invocando que a lei do Orçamento de Estado para o ano de 2018, aprovada pela Lei no 114/2017, que veio no artigo 18.º proceder ao descongelamento das carreiras e das valorizações remuneratórias, defendendo-se que seria aplicável o aí previsto nos n.ºs 2 e 3, quanto às avaliações, aos trabalhadores com Contrato Individual de Trabalho, por força do disposto no art.º 23.º da mesma Lei.
[5] Defendida pela aí Ré.
[6]Relator Conselheiro José Rainho, in www.dgsi.pt.
[7] Relatora Desembargadora Paula do Paço, in www.dgsi.pt.