I - “[R]elativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).”
II - Os termos da ponderação tida pelo legislador nacional na introdução no ordenamento jurídico português da presunção de laboralidade, contemplada no artigo 12º - A do Código do Trabalho “são obrigatórios para os tribunais”.
III - Sendo inequívoca a integração numa estrutura organizativa alheia ao prestador da atividade, sendo os factos assentes enquadráveis nas diversas alíneas do nº 1, do artigo 12º-A do Código de Trabalho e não tendo a Recorrida logrado provar os factos necessários para ilidir a presunção legal de existência de contrato de trabalho (cujo ónus da prova lhe incumbia, por força do artigo 350º do Código Civil) – no caso, por um estafeta ter um emprego fixo numa fábrica, a tempo completo, servindo o que ganha a fazer entregas como complemento do salário que aufere por trabalhar na fábrica e por um outro estafeta exercer desde a mesma altura as mesmas funções para uma plataforma concorrente – impõe-se fazer operar a presunção estabelecida no artigo 12º-A do Código do Trabalho e concluir pela existência de um contrato de trabalho.
IV - “[O]s interesses de ordem pública subjacentes à ação especial de reconhecimento da existência do contrato de trabalho e a imperatividade do art.º 186.º- A, n.º 8 do CPT, (…) impõem ao tribunal o julgamento da ação de acordo com a realidade (…)”
V - Atenta “a inserção do estafeta na organização produtiva da recorrida e a sua sujeição à autoridade desta”, também apreciando a qualificação do vinculo à luz do método indiciário ou tipológico – impendendo sobre o autor o ónus da prova (artigo 342º do Código Civil) dos factos constitutivos do direito à qualificação do vínculo como contrato de trabalho – se justifica reconhecer a existência do contrato de trabalho com efeitos a partir da data em que os estafetas passaram a ter atividade registada na plataforma.
(sumário inclui texto dos sumários e fundamentação do acórdão do STJ proferido no processo nº 1980/23.3T8CTB.C2.S1, em 15.05.2025, do acórdão do STJ proferido no processo nº 29923/23.7T8LSB.L1.S1, em 28.05.2025 e do acórdão desta secção proferido no processo nº 4119/23.1T8VFR.P,1 em 17.03.2025)
Origem: Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão
António Joaquim da Costa Gomes
Acordam os juízes da secção social do Tribunal da Relação do Porto
Relatório
O Ministério Público intentou a presente ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho contra A...app Portugal, Unipessoal, Lda, pedindo que seja reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a ré e o trabalhador AA, por tempo indeterminado, fixando-se a data do seu início no dia 1/5/2023.
Alegou para o efeito, e em síntese, que o identificado prestador/estafeta presta atividade para a ré através de plataforma digital, em termos e condições qualificáveis como contrato de trabalho subordinado, o que se presume, nos termos do art. 12.º - A do Código do Trabalho, por se verificarem várias das características nele previstas.
Defendeu, no essencial, que a relação entre a ré e o estafeta não é de natureza laboral.
Requereu, ainda, a apensação de ações nos termos do preceituado no art.º 267º do Código de Processo Civil.
Também no processo 454/24.0T8AVR foi proferido despacho na mesma data (refª 134474373) a determinar a apensação daqueles autos a este processo 4370/23.4T8AVR.
Foi proferida sentença que conheceu dos pedidos relativamente aos dois trabalhadores: AA (Processo n.º 4370/23.4T8AVR) e BB (identificado na sentença como Processo n.º 4370/23.4T8AVR-A, mas que corresponde ao processo 454/24.0T8AVR).
Na mesma data foi proferida sentença no processo apensado, com o mesmo conteúdo.
O Ministério Público, inconformado, apresentou dois recursos, com o mesmo conteúdo, um nestes autos e outro no processo apensado.
Nesta Relação, foi proferido despacho a determinar que o recurso do processo 454/24.0T8AVR fosse apensado a estes autos a fim de se proceder à tramitação única dos dois recursos.
Alegou para o efeito, e em síntese, que o identificado prestador/estafeta presta atividade para a ré através de plataforma digital, em termos e condições qualificáveis como contrato de trabalho subordinado, o que se presume, nos termos do art. 12.º - A do Código do Trabalho, por se verificarem várias das características nele previstas.
Defendeu, no essencial, que a relação entre a ré e o estafeta não é de natureza laboral.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso (refª 16881600 quanto ao processo 4370/23.4T8AVR.P1) e (refª 16881600 quanto ao processo 454/24.0T8AVR.P1). Formulou as seguintes CONCLUSÕES[1]:
………………………………
………………………………
………………………………
A ré apresentou contra-alegações (refª 41250754) defendendo que deve ser negado provimento ao recurso. Formulou as seguintes CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
O tribunal a quo proferiu despacho (refªs 135980758 e 135980800) pelo qual admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
Nesta Relação o Ministério Público não emitiu Parecer (refªs 18893038 e 18893040).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Questões a decidir
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99 de 9 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 295/2009 de 13 de Outubro), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, são as seguintes as questões a que temos que dar resposta:
- se deve ser qualificada como contrato de trabalho a relação entre a ré e AA, e BB;
E
- na eventualidade de serem acolhidos os argumentos do recorrente, se deve a matéria de facto ser alterada nos termos propostos pela ré (em sede de ampliação do âmbito do recurso nos termos do preceituado no art.º 636.º, n.º 2 do Código de Processo Civil) e se, em função dessa alteração, a decisão deve ser distinta.
3. Fundamentação:
3.1 Fundamentação de facto:
3.1.1. Porque tem interesse para a decisão do recurso, desde já se consignam os factos dados como provados na sentença de 1ª instância, objeto de recurso (em realce a matéria de facto aditada/alterada).
“1. A R. encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o n.º ... e tem por objeto o desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via eletrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares. Exploração, comercialização, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das atividades constantes do seu objeto social. Realização de atividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objeto social. Qualquer outra atividade que esteja direta ou indiretamente relacionada com as atividades acima identificadas.
2. A R. presta/disponibiliza serviços à distância, de recolha, transporte e entrega de produtos, a pedido de utilizadores, através de meios eletrónicos, nomeadamente, do sítio da internet e da aplicação informática (App A... Couriers), pertencentes à R..
3. Os clientes - clientes finais/consumidores e estabelecimentos aderentes/parceiros - são da plataforma e é esta que contacta/contrata com o mercado (clientes) e disponibiliza toda a rede de suporte e ferramentas tecnológicas para o desenvolvimento da atividade.
4. Na plataforma digital são registados os clientes consumidores finais e os estabelecimentos aderentes, designados de parceiros.
5. Através do uso de uma aplicação ou do site, a plataforma A...app permite que os clientes encomendem bens junto dos estabelecimentos parceiros inscritos na plataforma.
6. O negócio é concretizado com a recolha dos bens junto dos estabelecimentos parceiros da plataforma e posterior entrega aos clientes finais da plataforma, no local por estes definido e transmitido à plataforma.
7. Este modelo de negócios de distribuição de produtos impõe a contratação de quem concretize e torne operacional este modelo organizacional definido pela plataforma. ELIMINADO
8. Os prestadores de atividade/estafetas têm de proceder a um registo prévio na plataforma da R., disponibilizando o nome, o número de telefone e o endereço de correio eletrónico, e de submeter os seguintes documentos de identificação: a. cartão de cidadão; b. declaração de início de atividade como trabalhador independente, com os códigos ... ou ...; c. carta de condução; d. registo e seguro do veículo a utilizar na execução de tarefas - veículo esse que é escolhido pelo estafeta.
9. As condições contratuais ao abrigo das quais os prestadores/estafetas prestam os seus serviços são ditadas unilateralmente pela R., a que os prestadores/estafetas se limitam a aderir, aquando do seu registo na plataforma.
10. Ao registarem-se, os prestadores de atividade/estafetas aceitam os termos e condições de utilização da plataforma A... para estafetas, que contém diversas regras a aceitar e a cumprir, acompanhadas da aceitação de: a. Política de Privacidade e de Proteção de Dados; b. Política de Cookies; c. Normas de Ética e Conduta Empresarial para Terceiros da A...; d. Políticas/Diretrizes aplicáveis à comunidade A....
11. Desses termos e condições da utilização da plataforma A... para estafetas, elaborados pela R., consta, além do mais:
«Ao aceder aos Serviços A... e registar-se pela primeira vez na Plataforma, inserindo os seus dados de identificação de conta (adiante designado por «Dados de Identificação de Conta»), está a aceitar os presentes Termos e Condições, bem como todos os anexos que inclui.
Tem de aceder à sua conta pessoa (a «Conta») iniciando sessão com o nome de utilizador que escolheu e o código de segurança pessoal (o «Código de Segurança»). Aceitaremos manter a confidencialidade do seu Código de Segurança e alterá-lo frequentemente. Cada Conta é pessoal e única, pelo que está proibido de registar ou ter mais do que uma Conta. Além disso, a Conta é intransmissível, salvo nos países em que legislação local o permita.
Garantir que todas as informações de identidade e capacidade fornecidas à A... nos formulários de registo para o uso da plataforma são verdadeiras, precisas e completas. Além disso, compromete-se a manter as informações atualizadas, de acordo com a cláusula 5.1.1. Se fornecer alguma informação falsa, imprecisa ou incompleta, ou se a A... considerar que existem razões fundamentadas para duvidar da veracidade, precisão ou integridade de tais informações, a A... pode negar o acesso atual ou futuro à plataforma ou a qualquer um de seus conteúdos e/ou serviços.
Em caso de utilização ilegítima ou fraududenta, a A... pode cancelar, suspender ou desativar duas ou mais Contas com os mesmos dados ou dados relacionados que possa detetar, mediante intervenção humana sempre por parte de um agente da A... e permitindo, em todo o caso, que o Estafeta apresente uma queixa e/ou reclamação contra essa decisão em caso de discrepância. Será responsável por todas as transações realizadas na sua Conta (por si ou por eventuais substitutos), uma vez que só é possível aceder à mesma com o Código de Segurança e estão sujeitos à aceitação dos nossos Termos e Condições, incluindo, nomeadamente, responsabilidade penal. Você pode notificar imediatamente, através de meios apropriados e seguros, qualquer utilização fraudulenta ou ilegítima da sua Conta, bem como qualquer acesso à mesma por terceiros não autorizados. Para evitar dúvidas, qualquer venda, cessão e transferência da Conta sempre que possa ser considerada ilegal é proibida em quaisquer circunstâncias, salvo nos casos de sublocação/subcontratação da sua conta em conformidade com a regulamentação local aplicável.» (…)
Serviços incluídos na Taxa de Utilização da Plataforma:
- Acesso à plataforma que lhe permitirá oferecer voluntária e livremente os seus serviços de entrega, podendo conectá-lo em qualquer altura de acordo com a possibilidade de escolher livremente os pedidos que pretende realizar. Esse acesso inclui a possibilidade de prestar os seus serviços a qualquer um dos Utilizadores da Plataforma (Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, etc.), independentemente da empesa do Grupo A... (A... e/ou as suas filiais e/ou empresas coligadas) que gere a Plataforma à qual se conectou e sempre de acordo com a disponibilidade do país no qual se conecta.
- Acesso a cobertura de seguro durante o período de conexão à Plataforma.
- Acesso a apoio e serviço de assistência para qualquer inconveniente técnico que possa ocorrer.
- Gestão e intermediação no serviço de recolha e pagamentos.
- Aquisição e/ou uso de materiais que podem ser solicitados por você.
Serviços incluídos dentro da taxa de ativação (se aplicável ao país em que você se conecta):
- Criação do perfil do courier para usar a plataforma A....
- Aquisição e/ou uso de materiais que podem ser solicitados por você.
De igual modo, a A... pode oferecer outros Produtos e Serviços não incluídos na Tarifa e que o Estafeta, consoante apropriado de acordo com a legislação de cada país, pode adquirir ou contratar voluntariamente através de um dos nossos canais de venda; (…)
Ao aceitar os presentes Termos e Condições, também se torna um utilizador da aplicação A.... Deste modo, pode usar e conectar-se à Plataforma A... de forma flexível e a seu critério. Aceda à Plataforma para usar uma tecnologia da Plataforma que lhe permite conectar-se a outros Utilizadores da Plataforma. Os mesmos poderão ser: Estabelecimentos Comerciais, Utilizadores, outros Estafetas ou outros Utilizadores.
Se estiver no seu país, usa a A... como:
- Utilizador Estafeta Independente: Pode definir os seus próprios horários para se conectar à Plataforma e manter o seu perfil registado. Atuará em seu próprio nome e interesse, também usando os seus próprios equipamentos para exercer a atividade.
- Utilizador Estafeta numa empresa de serviços de logística: Enquanto profissional de uma empresa de serviços de logística que usa os Serviços da Plataforma, estará dependente das instruções da sua empresa.
A A... não dirigirá, controlará ou será considerada dirigir ou controlar as ações ou conduta da empresa no âmbito dos presentes Termos e Condições, nomeadamente no que diz respeito à prestação dos seus serviços a outros Utilizadores da Plataforma.
Reconhece que não existe nenhuma obrigação ou relação de exclusividade entre Si e a A..., de tal modo que pode, a seu exclusivo critério, oferecer serviços ou exercer qualquer outra atividade comercial ou profissional relacionada ou não com o setor de atividades da A...”. (…)
As Partes podem cessar os Serviços pelas seguintes razões:
1. Por vontade própria, em qualquer altura sem aviso prévio, salvo se acordado de outro modo por escrito.
2. Por violação de qualquer uma das obrigações previstas nos presentes Termos e Condições.
3. Em caso de impossibilidade de cumprir qualquer disposição dos presentes Termos e Condições.
4. O não cumprimento das Normas de Ética e Conduta Empresarial para Terceiros da A... e/ou de qualquer outra Política da A... aplicável a todos os Utilizadores da Plataforma.
5. Por violação da legislação local por parte do Estafeta que possa constituir uma violação do princípio de boa-fé entre as Partes.
6. Quaisquer outras circunstâncias resultantes em danos fiscais, de segurança social, financeiros, comerciais, organizacionais ou de reputação para a outra Parte ou um Terceiro, independentemente do montante ou dimensão do dano causado.
7. A utilização da Plataforma A... para fins abusivos ou fraudulentos suscetíveis de causar danos materiais e/ou imateriais a qualquer um dos Utilizadores da plataforma.
8. Em situações de força maior, de acordo com a cláusula 8.5 destes Termos e Condições. (…)
O processamento dos pagamentos estará sujeito a todas as condições do Processador de Pagamento, às condições e políticas de privacidade e deverá ter sua própria conta individual ou comercial, dependendo do país em questão, junto do Processador de Pagamento.
A A..., através de um processador de pagamento, conectar-se-á e atuará como um intermediário nos pagamentos entre Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais e Estafetas (ou empresa de serviços de logística conectada).
Aceitamos e concordamos que, dependendo das normas locais aplicáveis, bem como da forma na qual se conecta à Plataforma (diretamente ou através de uma empresa de serviços de logística), os serviços que oferece podem e terão de ser facturados ou refaturados ao Cliente Utilizador e/ou ao Estabelecimento Comercial, que em última instância paga o preço dos serviços por si oferecidos.
É aceitável que a taxa pelos serviços que pagará à A... inclui, seja autorizado por si e esteja em conformidade com a legislação local do seu país, bem como da forma como se conecta à Plataforma (diretamente ou através de uma empresa de serviços de logística), a gestão e intermediação da faturação correspondente aos seus serviços. Neste caso, estas faturas serão consideradas aceites caso a A... não receba qualquer comunicação da sua parte no prazo de 5 dias a contar da emissão das faturas.
O Estafeta regular e concorda que a A..., em conformidade com o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), pode proceder a uma revisão periódica dos pagamentos que lhe são efetuados. Tal revisão pode resultar na retenção do imposto sobre o rendimento caso o limite, em conformidade com o disposto no Artigo 53 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e no Artigo 101 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), seja ultrapassado.
O Estafeta registra e aceita a sua responsabilidade pelo dinheiro que lhe foi entregue pelos Utilizadores Cliente e que é propriedade dos Estabelecimentos Comerciais. Neste sentido, aceita que, consoante apropriado à forma como se conecta à Plataforma, o preço que lhe foi pago pelo serviço pelo Estabelecimento Comercial inclui o serviço de recolha do dinheiro que tem de ser entregue ao referido Estabelecimento Comercial. (…)
Você pode determinar e escolher o preço dos seus serviços através da Plataforma A.... A A..., para fins informativos, com base em informações de mercado, irá sugerir um preço de mercado que poderá ser alterado diariamente pelo Estafeta através do seu Perfil de Utilizador, sem que isso implique garantias de adjudicação do serviço.
5.5.2 Caso seja identificado que o preço por serviço tenha sido alterado de maneira fraudulenta ou através do uso de erros e bugs do sistema, a A... reserva-se o direito de tomar as medidas necessárias. (…)
O Estafeta terá uma Reputação associada ao seu perfil fácil de usar e consultar. Este sistema é automático e é atualizado periodicamente à medida que os diferentes Utilizadores realizam transações na Plataforma A... e está sujeito às regras aí contidas e sobre as quais os Utilizadores são informados no presente documento e/ou na APP e/ou através dos canais de comunicação apropriados, para que o conheçam exaustivamente e o considerem útil.
O sistema baseia-se em dados objetivos, informação numérica e métricas fornecidas pelos Utilizadores da Plataforma e os clientes do Estafeta: Utilizadores Cliente e Estabelecimentos Comerciais.
A A... não manipula ou intervém no processo de formação da Reputação, mas apenas consolida informação objetiva obtida dos Utilizadores Cliente e Estabelecimentos Comerciais, beneficiários dos serviços do Estafeta.
A A... não verifica a veracidade ou precisão dos comentários feitos por outros Utilizadores e não é responsável pelo que é expresso no sítio Web ou por outros meios, nomeadamente e-mail. Todas as informações fornecidas pelos Utilizadores serão incluídas no sítio Web sob a exclusiva responsabilidade do seu autor. (…)
Ao utilizar a aplicação fornecida pela A... para a execução da relação e, portanto, para exercer a atividade, a A... pode receber os dados de geolocalização do Estafeta caso o mesmo tenha ativado esta função diretamente no seu telemóvel.
A A... usará os Dados obtidos para prestar os Serviços ao Estafeta e partilhá-los com o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial cujo pedido o Estafeta aceitou executar, para que o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial possam contactar o Estafeta no caso de algum incidente.
É expressamente indicado que o Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e especificação dos seus serviços e em nenhum caso a A... utilizará esses dados para fins de controlo.».
Mais consta:
“1. Em conformidade com o Código de Ética que rege todos os Utilizadores da Plataforma, utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da A....
2. Violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da A....
3. Participar em atos ou conduta violentos.
4. Violar os seus direitos na aplicação da A..., causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
5. Na prevenção de ações fraudulentas, se a identidade do Utilizador da Plataforma e/ou dos seus substitutos ou subcontratantes não puder ser verificada e/ou qualquer informação prestada por si e/ou os seus substitutos ou subcontratantes estiver incorreta.
6. A fim de prevenir a segurança de todos os Utilizadores da Plataforma em caso de violação da Política de Mercadorias, sujeito ao seguinte (…)
Caso não cumpra qualquer um dos presentes Termos e Condições, a A... pode desativar a sua Conta, sem prejuízo de qualquer ação legal/ação que possa resultar de crimes, violações ou danos civis que possam ter sido causados.” ADITADO
12. Ao registar-se, o prestador de atividade/estafeta escolhe uma área territorial para desenvolver a sua atividade.
13. Quando esteja em causa o transporte de alimentos, o estafeta tem de utilizar uma mochila isotérmica, adequada ao transporte dos produtos, limpa e em boas condições/bom estado, de acordo com os regulamentos de higiene para transporte de alimentos.
14. A mochila não tem de ser da marca «A...».
15. O estafeta tem de ter um telemóvel com acesso a dados móveis e geolocalização.
16. A R. exige que o prestador de atividade/estafeta identifique o seu rosto na aplicação com uma periodicidade variável (reconhecimento facial/controlo biométrico), através de uma fotografia (“selfie”).
17. Quando um consumidor final efetua um pedido, este é direcionado para o estafeta, que o pode aceitar, recusar ou ignorar, tal como o pode rejeitar mesmo após aceitar e até à respetiva recolha.
18. A R. fornece ao estafeta, além do mais, informação sobre o pedido formulado pelo consumidor final, o valor a pagar ou pago pelo consumidor final, o endereço da entrega e o valor pecuniário associado à entrega/tarefa a desenvolver pelo estafeta.
19. O valor pecuniário associado à tarefa a desenvolver pelo estafeta tem uma componente fixa e uma componente variável, esta resultante da conjugação das seguintes rubricas: uma quantia não concretamente apurada por quilómetro percorrido pelo estafeta, desde o local de recolha do pedido até ao endereço de entrega; uma compensação variável em função da hora do pedido/entrega, época do ano, condições climatéricas ou promoções; uma compensação pelo tempo de espera que é um ganho extra se o restaurante ou outro estabelecimento parceiro demorar mais tempo do que o normal para entregar o pedido para recolha do prestador; uma componente variável designada por “multiplicador”, que é definido pelo estafeta na App A... Couriers (App), entre os quocientes disponíveis, de montantes não concretamente apurados; e gorjetas, se atribuídas pelo cliente.
20. A plataforma processa os pagamentos a efetuar e paga a retribuição diretamente ao prestador de atividade. ALTERADO
Alterado para:
20. A plataforma processa os pagamentos a efetuar e paga diretamente ao prestador de atividade.
21. O pagamento é quinzenal e efetua-se por transferência para a conta bancária indicada pelo prestador de atividade na altura do registo na plataforma.
22. A plataforma negoceia os preços e condições com os titulares dos estabelecimentos parceiros.
23. O cliente final paga à plataforma e não ao prestador de atividade.
24. A fatura do pagamento do pedido é emitida pelo estabelecimento parceiro ao cliente final e não ao prestador da atividade/estafeta.
25. A plataforma permite que o cliente final pague em dinheiro ao estafeta, ficando este com “dinheiro em mãos”, sendo essa quantia abatida no valor a receber quinzenalmente da plataforma.
26. Quando o valor pago pelos clientes finais em numerário ao estafeta excede determinada quantia, não concretamente apurada, o estafeta tem de o depositar à ordem da plataforma num prazo determinado.
27. O prestador de atividade/estafeta, paga uma taxa de utilização da plataforma, por quinzena, de valor não concretamente apurado.
28. Ao iniciar a sessão (colocar-se “on line”) na App “A... Couriers”, com os dados móveis e a localização ligados, no seu telemóvel pessoal, a plataforma passa a saber a localização do estafeta.
29. O sistema de GPS do telemóvel do prestador de actividade/estafeta tem que estar ligado para que lhe seja atribuído serviço.
30. Uma vez aceite o pedido, o prestador de atividade/estafeta pode desligar a aplicação.
31. O prestador de atividade/estafeta escolhe quando quer conectar-se e desconectar-se da aplicação e quantos serviços pretende realizar, não tendo de cumprir horários, trabalhando se quiser e quando quiser, podendo estar vários dias ou meses desligado da plataforma.
32. O estafeta pode aceitar ou rejeitar os pedidos.
33. Após a aceitação do pedido, quer a plataforma, quer o cliente final, passam a conhecer, em tempo real, a sua localização devido à geolocalização existente na App.
34. O estafeta tem de ativar a opção correspondente na app sempre que chega ao ponto de recolha, quando recolhe o pedido, quando chega a casa do cliente e quando o entrega.
35. Logo que confirme a recolha, a App dá-lhe a morada do cliente e permite utilizar uma qualquer aplicação de visualização de mapas e percursos que o estafeta tenha instalado no telemóvel (v.g. Google Maps).
36. O estafeta pode escolher livremente o percurso que entender para realizar a entrega.
37. Os clientes e os restaurantes ou outros estabelecimentos avaliam o estafeta pela qualidade do trabalho desenvolvido através da plataforma “A...”.
38. A R. não avalia os estafetas.
39. O estafeta pode prestar atividade para outras empresas, inclusive para plataformas concorrentes da R..
40. É possível ao estafeta, mediante determinadas condições, “reatribuir” ou subcontratar o pedido a outro estafeta.
41. A plataforma pode desativar a conta do prestador de atividade/estafeta, nos casos previstos nos “Termos e Condições” por este aceites ao registar-se, nomeadamente por comportamentos contrários aos códigos de conduta da plataforma ou quando se verificam situações de violação de lei ou de fraude.
42. Os prestadores de atividade/estafetas ficaram abrangido por um contrato de seguro celebrado pela R. com a Companhia de Seguros B... PLC, que cobre danos causados por estafetas a terceiros, que deveria comunicar na plataforma da R. em caso de sinistro, bem como um contrato de seguro celebrado com a empresa C..., SE, que cobre acidentes pessoais.
43. Este último seguro inclui, em função dos capitais contratados, prestações por morte por acidente, incapacidade total e definitiva por acidente, incapacidade permanente total para o desempenho de qualquer relação laboral por acidente, incapacidade permanente parcial por acidente de acordo com uma escala baseada em indemnização por amputação, fratura óssea, luxações e entorses, devido a um acidente, indemnização diária em caso de incapacidade temporária total por acidente, de duração máxima da indemnização diária até 30 dias e franquia de 7 dias (ou seja, o segurado é indemnizado a partir do 8º dia de incapacidade), reembolso da assistência médica em caso de acidente, repatriamento para o país de origem do segurado em caso de morte por acidente, deslocação de um familiar do segurado falecido no estrangeiro (bilhete de ida e volta para familiar e despesas de alojamento do familiar), viagem de um acompanhante que acompanha o segurado hospitalizado (bilhete de ida e volta para familiar e despesas de hospedagem do familiar), reembolso das despesas de assistência jurídica, despesas de funeral em caso de morte por acidente do segurado e subsídio de orfandade.
44. No dia 27 de Setembro de 2023, no período compreendido entre as 19.30 horas e as 21.30 horas, o prestador/estafeta AA encontrava-se no Centro Comercial ..., sito na Av. ..., ... Ovar, ligado à Plataforma da R., aguardando que surgisse um pedido de entrega e transporte de comida, quando foi abordado pela Inspetora do Trabalho, CC.
45. AA registou-se na Plataforma da R. em Setembro de 2021, como prestador de atividade/estafeta, tendo aceitado os termos e condições referidos no n.º 11 dos factos provados.
46. Para validação da conta, teve de facultar as informações e apresentar os documentos referidos no n.º 8 dos factos provados
47. Ainda em Setembro de 2021, passou a desempenhar funções de recolha, distribuição/transporte e de entrega de produtos adquiridos por terceiros (clientes finais), na plataforma eletrónica da R. - da forma e nos termos e condições que acima ficaram descritas, nos n.ºs 12 a 43 dos factos provados.
48. Escolheu a zona de Ovar e fazia uso de um veículo automóvel.
49. É proprietário do veículo automóvel que conduzia, do vestuário que usava, da mochila e do telemóvel, onde utiliza a aplicação da plataforma digital.
50. Comprou onde quis a mochila de entrega que usa, que tem que ser isotérmica, para poder transportar os alimentos.
51. Recebia de 15 em 15 dias, por transferência bancária, nos termos referidos nos n.ºs 19 a 21 e 25 a 27 dos factos provados.
52. Para além de exercer funções de estafeta na plataforma da R., tem desde 2004 um emprego fixo numa fábrica, a tempo completo, servindo o que ganha a fazer entregas como complemento do salário que aufere por trabalhar na fábrica.
53. No dia 20 de Setembro de 2023, entre as 12.00 e as 14.00 horas, o prestador de atividade/estafeta Gilmar dos Santos encontrava-se no Centro Comercial ..., sito na Av. ..., ... Ovar, ligado à Plataforma da R., aguardando que surgisse um pedido de entrega e transporte de comida, quando foi abordado pelas Inspetoras do Trabalho, CC e DD.
54. BB registou-se na Plataforma da R. em Outubro de 2022, como prestador de atividade/estafeta, tendo aceitado os termos e condições referidos no n.º 11 dos factos provados.
55. Para validação da conta, teve de facultar as informações e apresentar os documentos referidos no n.º 8 dos factos provados.
56. Ainda em Outubro de 2022, passou a desempenhar funções de recolha, distribuição/transporte e de entrega de produtos adquiridos por terceiros (clientes finais), na plataforma eletrónica da R. - da forma e nos termos e condições que acima ficaram descritas, nos n.ºs 12 a 43 dos factos provados.
57. Escolheu a zona de Ovar e fazia uso de um veículo automóvel.
58. É proprietário do veículo automóvel que conduzia, do vestuário que usava, da mochila e do telemóvel, onde utiliza a aplicação da plataforma digital.
59. Comprou onde quis a mochila de entrega que usa, que tem que ser isotérmica, para poder transportar os alimentos.
60. Recebia de 15 em 15 dias, por transferência bancária, nos termos referidos nos n.ºs 19 a 21 e 25 a 27 dos factos provados.
61. Para além de exercer funções de estafeta na plataforma da R., exerce desde a mesma altura as mesmas funções para uma plataforma concorrente da R. (a D...).
62. A ACT notificou a R., nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15º-A, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, para no prazo de 10 dias regularizar a situação dos estafetas aqui em causa.
63. A R. não regularizou a situação no referido prazo, tendo a ACT levantado autos de notícia pela prática de contra-ordenação laboral muito grave, prevista no art.º 12.º, n.º 2 do Código do Trabalho, remetendo-o ao Ministério Público.”
1.2 Factos não provados
Foram os seguintes os factos dados como provados na sentença de 1ª instância, objeto de recurso.
“- A plataforma da R. emite instruções que lhe permitem controlar o processo produtivo e institui meios de controlo que incidem sobre a actividade e não apenas sobre o resultado, mediante gestão algorítmica do serviço, geolocalização e avaliação daqueles prestadores.
- A plataforma controla e supervisiona a prestação da atividade dos estafetas, em tempo real, com recurso ao sistema de geolocalização.
- O estafeta tem de seguir o trajeto indicado pela plataforma, via “Google Maps”, e se não o fizer, é questionado sobre o que o levou a alterar o trajeto.
- Se o cliente se recusar a ficar com o produto ou se o preço for diferente do que tinha contratado com a plataforma, o estafeta tem de reportar à plataforma, para esta contactar com o cliente final.
- Os estafetas podiam receber “pedidos combinados” (dois pedidos juntos e de início ou de forma sucessiva) a levantar no mesmo estabelecimento comercial, caso em que a aplicação A... Couriers indicava a morada a fazer a primeira entre a morada para fazer a segunda entrega. - Se o restaurante/parceiro ou outro estabelecimento avisar que poderá demorar algum tempo a terminar o segundo pedido, o prestador deve contactar o apoio da plataforma que avalia a situação e eventualmente poderá dividir o pedido combinado em dois.
- A plataforma apenas disponibiliza serviços em Ovar, num determinado período de tempo.
- A área de abrangência de cada zona é definida pela plataforma.
- A plataforma tem o poder de sancionar os estafetas por uma pluralidade de condutas diferentes, como por exemplo, atrasos, ausências, más avaliações, períodos de indisponibilidade, recusa de pedidos.
- O estafeta está sujeito a ordens e restrições, cujo incumprimento pode importar a cessação da atividade.
- A avaliação dada por restaurantes ou outros estabelecimentos ou clientes ao estafeta, pode levar a plataforma a condicionar a prestação de atividade do estafeta.
- Muitas avaliações negativas podem levar o estafeta a perder a conta.
- Os estafetas estavam obrigados a comunicar à R. qualquer alteração do veículo utilizado na realização da sua atividade, bem como da alteração ou renovação da “carta verde” do seguro do veículo;
- A plataforma estabelece limites máximos e mínimos para a retribuição auferida pelos estafetas.
- É a plataforma que fixa a retribuição para o serviço a efetuar, sem qualquer negociação com os estafetas.
- Só após a aceitação do pedido, é que os estafetas têm conhecimento da distância e percorrer e do valor pecuniário associado à tarefa a desenvolver.
- Se os estafetas aumentassem o “multiplicador”, eram sancionados pela R. e não recebiam pedidos, ou recebia menos pedidos.
- Os estafetas recebiam mais ou menos pedidos em função do tempo que estivessem ligados à plataforma; da escolha definida quanto ao “multiplicador”; da distância a que se encontrava do ponto de recolha; da rota a percorrer no decurso da entrega da encomenda/pedido definida pelo Google Maps e disponibilizada pela aplicação; e de se encontrar nas zonas mais ativas.
- Os seguros não tinham custos para os estafetas.
- A identificação por fotografia pode ocorrer várias vezes no próprio dia ou pelo menos, uma vez por dia, após a efetivação de cerca de dois ou três pedidos/entregas.
- Enquanto o estafeta não fizer tal identificação, fica impedido de receber novos pedidos.
- Se não passar no processo de reconhecimento facial a conta é descativada, sendo-lhe enviado um e-mail, para querendo, recorrer da decisão.
- AA auferia 250,00€ (entre 100€ a 120€, de 15 em 15 dias) e fazia um horário das 19.00 horas às 21.00 horas, durante 15 dias úteis e 4 fins-de-semana por mês.
- BB auferia cerca de 700€/mês (entre 300€ e 400€, de 15 em 15 dias) e habitualmente prestava actividade 6 a 7 horas por dia e fazia login e colocava-se online (em disponibilidade) em geral cerca das 11:30 às 14:30 e das 18:30 às 22:00 horas, todos os dias da semana.”
3.1.2. Impugnação da decisão de facto:
De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 1º, nº 2, al. A) do Código de Processo do Trabalho), o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, «se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 1º, nº 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho), o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, «se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto foram reforçados na atual redação do Código de Processo Civil.
Preceitua ainda o artigo 640º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil:
«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)».
A omissão de cumprimento dos ónus processuais legalmente previstos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto.
Alega a Recorrida que que foram dados como provados factos que não têm sustentação na prova produzida em audiência de julgamento
É este o teor do item 7º dos factos provados:
- Este modelo de negócios de distribuição de produtos impõe a contratação de quem concretize e torne operacional este modelo organizacional definido pela plataforma.
Conclui a Recorrida que o facto 7, é uma mera conclusão diretamente relacionados com o thema decidendum, não consubstanciando um facto, pelo que não pode, por esse motivo, integrar a matéria de facto.
Tem razão, é matéria conclusiva.
“Como é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.(…)”. Acórdão desta Secção de 27.09.2017, proferido no processo nº3978/15.6T8VFR.P1, (relator Desembargador Jerónimo Freitas).
“Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objecto do processo ou, mais rigorosa ou latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objecto de disputa das partes”, lê-se no Acórdão do S.T.J. de 12.03.2014, in www.dgsi.pt.
Determina-se a eliminação do item 7º dos factos provados.
É este o teor do item 34º dos factos provados:
- O estafeta tem de ativar a opção correspondente na app sempre que chega ao ponto de recolha, quando recolhe o pedido, quando chega a casa do cliente e quando o entrega.
Refere a Recorrida que essas opções existentes na plataforma (ativar a chegada ao ponto de recolha, ao ponto de entrega, etc), não passam disso mesmo, opções.
Conclui a Recorrida que o facto 34 deverá passar a ter a seguinte redação:
- O estafeta não é obrigado a ativar a opção correspondente na app quando chega ao ponto de recolha, quando recolhe o pedido, quando chega a casa do cliente e quando o entrega, podendo efetuar a entrega do serviço sem assinalar os respetivos passos.
Conclui a Recorrida que se fosse obrigatório ao estafeta ativar essas opções, não seria possível efetuar a entrega nos termos dados como provados no facto 30 - uma vez aceite o pedido, o prestador de atividade/estafeta pode desligar a aplicação.
Invoca que ambos os Estafetas referiram que podem efetivamente desligar o GPS e, ainda assim, realizar a entrega.
Ainda o Parecer do INESCID no sentido de estar em causa uma opção e não uma obrigatoriedade.
Vejamos:
A recorrida invoca o depoimento dos dois Estafetas, (tendo os depoimentos prestados sido gravados), mas não os identifica, não indica quaisquer passagens da gravação, não transcreve qualquer excerto dos depoimentos e não invoca estes depoimentos como meio de prova relevante nas alegações, mas apenas nas conclusões.
Nesta medida, na parte em que funda a impugnação da matéria de facto nos depoimentos dos dois estafetas, rejeita-se a impugnação.
Quanto aos restantes fundamentos invocados para a alteração da decisão da matéria de facto, não existe a invocada contradição com o item 30, uma vez que neste último não é referido até que momento o estafeta pode manter desligada a aplicação.
“Por outro lado, do parecer junto pela recorrida consta o seguinte:
“Nos testes efetuados, nomeadamente no Teste #7, verificámos que, no decurso de um serviço, a plataforma comunicou ao utilizador-estafeta um conjunto de informações essenciais à realização do serviço de estafeta e solicitou apenas que o mesmo assinalasse a conclusão das seguintes atividades:
● chegada à morada do parceiro (ponto de recolha);
● recolha dos artigos no parceiro;
● chegada à morada do utilizador-cliente (ponto de entrega);
● entrega dos artigos ao utilizador-cliente e conclusão do serviço.
No entanto, tal como observado no Teste #21, o facto de o utilizador-estafeta não ter assinalado a conclusão de nenhuma das atividades, excetuando a última, não comprometeu a execução do serviço.”
Resulta, pois, do parecer que é solicitado ao estafeta que assinale a chegada à morada do parceiro e a recolha dos artigos, (…).
A circunstância de no parecer se ter concluído com base no teste realizado que apenas foi assinalada a conclusão do serviço, sem que tal tenha comprometido a sua execução não permite concluir que o estafeta não tem a obrigação de cumprir o solicitado, mas apenas que não a cumpriu. Questão diversa é saber se desse incumprimento resultam ou não consequências para o estafeta.
Não se vislumbra, pois, que os fundamentos e meios de prova invocados pela recorrida imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal, improcedendo [nesta parte] a impugnação.” – considerações feitas no acórdão desta secção, proferido no processo nº 4119/23.1T8VFR.P1, em 15.03.2025 que infra melhor se identifica e que aqui se acolhem como fundamentação bastante.
Improcede nesta parte a pretensão da Recorrida.
Ao abrigo dos poderes oficiosos contemplados no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil, impõe-se alterar a decisão sobre a matéria de facto dada como provada.
É este o teor do itemº 20 dos factos provados:
- A plataforma processa os pagamentos a efetuar e paga a retribuição diretamente ao prestador de atividade.
«Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de facto que se insira de forma relevante na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta ou componente relevante da resposta àquelas questões, ou cuja determinação de sentido exija o recurso a critérios jurídicos, deve o mesmo ser eliminado», lê-se no Acórdão do S.T.J. de 28.01.2016, in www.dgsi.pt.
Altera-se o item 20 para:
A plataforma processa os pagamentos a efetuar e paga diretamente ao prestador de atividade.
Acresce que resulta do ponto 5.2 dos “Termos e Condições de Utilização da Plataforma A... para Estafetas”:
“1. Em conformidade com o Código de Ética que rege todos os Utilizadores da Plataforma, utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da A....
2. Violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da A....
3. Participar em atos ou conduta violentos.
4. Violar os seus direitos na aplicação da A..., causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
5. Na prevenção de ações fraudulentas, se a identidade do Utilizador da Plataforma e/ou dos seus substitutos ou subcontratantes não puder ser verificada e/ou qualquer informação prestada por si e/ou os seus substitutos ou subcontratantes estiver incorreta.
6. A fim de prevenir a segurança de todos os Utilizadores da Plataforma em caso de violação da Política de Mercadorias, sujeito ao seguinte (…)
Caso não cumpra qualquer um dos presentes Termos e Condições, a A... pode desativar a sua Conta, sem prejuízo de qualquer ação legal/ação que possa resultar de crimes, violações ou danos civis que possam ter sido causados.”
Matéria que pela sua relevância se decide aditar no item 11º dos factos provados.
3.2 Fundamentação de direito:
- Quanto a saber se deve ser qualificada como contrato de trabalho a relação entre a ré e AA e BB:
Temos como justificado seguir a ordem temporal das decisões proferidas que se mencionam.
Começamos por referir o acórdão proferido no processo nº 367/24.5T8AVR.P1, em 03.02.2025, relatado pela Desembargadora Sílvia Saraiva, (subscrito pela aqui relatora) - pioneiro sobre o tema nesta secção - no sentido do reconhecimento da existência de relação laboral de estafeta inserido numa organização produtiva externa (a da plataforma digital), evidenciando que “a subordinação nesta era digital deve ser encarada de forma mais flexível e adaptada a esta nova realidade tecnológica, distanciando-se do modelo fordista tradicional.”
Menciona-se ainda o acórdão proferido no processo nº 4119/23.1T8VFR.P1, em 15.03.2025, nesta secção, relatado pela Desembargadora Maria Luzia Carvalho, (subscrito também pelo aqui 1º Adjunto, Desembargador António Luís Carvalhão), também no sentido de se reconhecer a existência do contrato de trabalho a partir da data em que o estafeta teve atividade registada na plataforma, considerando que “Existe subordinação jurídica do estafeta à plataforma digital se, a partir do momento em que aquele se conecta à aplicação passa a integrar um serviço organizado alheio e concebido inteiramente pela recorrida, observando parâmetros de organização e funcionamento unilateralmente definidos pela mesma através da aplicação que organiza o esquema de prestação da atividade, ficando ainda sujeito ao poder sancionatório.”
Desta mesma secção, em sentido diverso, referencia-se o acórdão após aqueles, proferido no processo nº 9755/23.3T8VNG.P1, em 07.04.2025, relatado pelo Desembargador Rui Penha, em cujo sumário, nomeadamente se lê “Não é de qualificar como laboral a relação entre a detentora/administradora de plataforma digital e o prestador de atividade no âmbito da mesma, quando o mesmo pode definir o valor mínimo a receber pela sua atividade, pode escolher quando presta a atividade, e onde, pode rejeitar as ofertas que lhe são feitas, e mesmo cancelar as já aceites, desde que ainda não tenha recolhido o produto a entregar, pode fazer-se substituir, por outros prestadores inscritos na mesma aplicação, e pode na mesma altura prestar a sua atividade a terceiros, nomeadamente a plataformas digitais concorrentes.”
Nos citados acórdãos desta secção, todos disponíveis in www.dgsi.pt, ficaram identificados acórdãos que sobre o tema foram proferidos noutras Relações. Pela sua análise exaustiva, fazemos particular referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03.10.2024 (relatora Desembargadora Maria Leonor Barroso, in www.dgsi.pt). Aí se assina que: “Segundo dados do Conselho Europeu e da EU, em 2022 os trabalhadores em plataformas digitais ascendiam a 28,3 milhões, número semelhante aos da indústria transformadoras de 29 milhões e, em 2025, estima-se que aqueles atinjam o número de 43 milhões – https://consilium.europa.eu.”
O Supremo Tribunal de Justiça, em 15.05.2025, no Acórdão proferido por unanimidade no Processo nº 1980/23.3T8CTB.C2.S1, decidiu, com clareza “que, relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).”
Indicou assim, critério normativo relativamente à compreensão do âmbito de aplicação temporal do artigo 12º-A do Código do Trabalho, critério que se impõe acompanhar, desde logo de modo a promover a coerência da jurisprudência na decisão de situações semelhantes de relações entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais estabelecidas antes da entrada em vigor do referido artigo.
As situações destes autos enquadram-se, precisamente, naquelas que naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça se mencionam.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça, voltou a pronunciar-se sobre o tema, no Acórdão proferido no Processo nº 29923/23.7T8LSB.L1.S1, em 28.05.2025, evidenciando, nomeadamente, que os termos da ponderação tida pelo legislador nacional na introdução no ordenamento jurídico português da presunção de laboralidade, contemplada no artigo 12º - A do Código do Trabalho – antes mesmo, portanto, da entrada em vigor da Diretiva (UE) 2024/2831, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais – “são obrigatórios para os tribunais”. Transcreve-se o respetivo sumário:
«I. No caso vertente, está assente que se encontram verificados os índices da presunção de laboralidade previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do art. 12.º-A, do Código do Trabalho, ou seja, um total de cinco elementos em seis possíveis.
II. Para além desta significativa expressão quantitativa, acresce que estão verificados os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), que são especialmente fortes, uma vez que os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral.
III. Sendo certo que a qualificação de determinada situação jurídica exige sempre uma abordagem holística, em que todos os factos e circunstâncias relevantes são tidos na devida conta, a favor de uma relação de trabalho subordinado, há a considerar, desde logo, uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica da R., encontrando-se o mesmo, inclusivamente, enquanto elemento do respetivo serviço de entregas, abrangido por um seguro de acidentes pessoais.
IV. Conexamente com este elemento organizacional, também assume especial relevo a circunstância de pertencerem e serem geridas/exploradas pela R. a plataforma digital e aplicações a ela associadas (App), as quais – enquanto intermediário tecnológico no processo de transmissão dos dados relativos aos pedidos formulados pelo utilizador-cliente –são os instrumentos de trabalho essenciais do estafeta.
V. Toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a estas ferramentas digitais, pelo que, neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade.
VI. O estafeta encontrava-se na dependência económica da ré e trabalhou regularmente, em regra, diariamente. A existência de um horário de trabalho não é elemento essencial do contrato de trabalho, tal como nada obsta a que o trabalhador seja pago “à peça”, sendo que esta forma de cálculo da retribuição se reconduz, no fundo, a uma forma modificada do salário por tempo. Também não é de valorizar a circunstância de o estafeta poder alterar o valor base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados.
VII. Independentemente da margem de liberdade reconhecida ao estafeta no exercício da sua atividade, é indiscutível que esta é desenvolvida num quadro de regras específicas definidas pela empresa, a qual – nos termos que tem por adequados e consentâneos com a prossecução do seu modelo de negócio – também controla e supervisiona a atuação da contraparte, tal como tem a possibilidade de exercer o poder disciplinar, mediante a suspensão ou desativação da respetiva conta.
VIII. Tudo a sugerir, pois, que o estafeta igualmente se encontrava sujeito à autoridade da R., sendo certo que a subordinação pode ser meramente potencial, não sendo necessário que se traduza em atos de autoridade e direção efetiva.
IX. O conjunto de factos provados que de forma mais nítida aponta no sentido de uma relação de trabalho autónomo não é, naturalmente, desvalorizável. Mas, para além de tudo o que já antes ficou dito, impõe-se ter presente que (com maior ou menor expressão) tais elementos são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e vários países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade em apreço no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais.
X. Não pode deixar de reconhecer-se que o facto de o estafeta pagar à R. uma taxa pela utilização da plataforma contrasta especialmente com a matriz típica de uma relação de trabalho subordinado.
XI. Todavia, de forma alguma se pode conferir a este elemento, só por si, relevância decisiva, tanto mais que, como se sabe, o recurso a cláusulas contratuais com características de autonomia se encontra com frequência associado ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas, flagelo que com a presunção de laboralidade em apreço se visou, precisamente, combater.
XII. Sem deixar de assinalar que, ao invés, no sentido da subordinação, há ainda a considerar o facto de o estafeta não ter qualquer obrigação de resultado para com a contraparte, bem como a circunstância de ele não assumir algum risco financeiro ou económico, conclui-se que a ré não logrou ilidir a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.»
Quanto à relevância do considerando 33 da Diretiva (UE) 2024/2831, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais para a delimitação do âmbito de aplicação temporal do artigo 12º-A do Código do Trabalho, sendo este último preceito uma disposição de direito interno português adotada antes da referida Diretiva 2024/2831, de 23 de outubro de 2024, sempre se dirá que este considerando não releva para a interpretação e definição do âmbito de aplicação de disposições de Direito interno dos Estados-Membros, como o referido artigo 12º-A em vigor desde 01.05.2023.
Este considerando não obstou, com efeito, à adoção, pelo STJ, do critério de a presunção de contrato de trabalho, no âmbito de plataforma digital, plasmada em norma de direito interno – o artigo 12º-A do Código do Trabalho – ser aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que no âmbito de relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor de tal presunção, em 01.05.2023, tenham sido praticados posteriormente àquele momento, sendo esta pois questão decidida e ultrapassada.
Importa ainda assinalar que resulta expressamente do artigo 26º da Diretiva 2024/2831, que esta contém uma cláusula de não regressão e de salvaguarda de disposições mais favoráveis de direito nacional. O considerando 68 antecipa, de resto, esse artigo 26º afirmando que a Diretiva «define requisitos mínimos, deixando aos Estados-Membros a prerrogativa de introduzirem ou manterem disposições mais favoráveis às pessoas que trabalham em plataformas digitais. Os direitos adquiridos ao abrigo do atual regime jurídico deverão continuar a ser aplicáveis, inclusive no que respeita a mecanismos para verificar a existência de uma relação de trabalho, salvo quando a presente diretiva introduza disposições mais favoráveis. A aplicação da presente diretiva não pode ser utilizada para reduzir os direitos previstos no direito da União ou nacional em vigor neste domínio […].»
Tratando-se de norma especial, atenderemos, desde logo, ao regime que resulta do artigo 12º-A do Código de Trabalho.
Resulta do indicado normativo:
«1- Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2- Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3- O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4- A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
5- A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
6- No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.
(…)».
“Esta presunção legal implica a inversão do ónus da prova, ficando o trabalhador dispensado de fazer a prova dos elementos constitutivos da relação laboral (art. 350º, nº 1, do C. Civil), embora seja admitida prova em contrário para a ilidir (nº 2 do mesmo artigo), mediante a prova pela contraparte de “factos positivos excludentes da subordinação”15, ou seja, da existência de trabalho autónomo ou da falta de qualquer elemento essencial do contrato de trabalho16 [elementos que, reafirma-se, à luz do art. 11º, do CT, são: i) obrigação de prestar uma atividade a outrem; ii) retribuição: e iii) subordinação jurídica].
Prova em contrário consistente, numa formulação feliz de um Acórdão do TRL de 11.02.2015, citado por Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira,17 na ocorrência de (contra)indícios que, “pela quantidade e impressividade, imponham a conclusão de se estar perante outro tipo de relação jurídica”.
Com efeito, basicamente nas palavras das mesmas autoras, verificados dois ou mais elementos elencados no art. 12º, nº 1, apenas deverá afastar-se o resultado presuntivo se o interessado lograr fazê-lo, dissipando não apenas convicção de que o contrato em análise é um contrato de trabalho como a dúvida sobre se o será18 (não bastando, pois, a simples contraprova, que apenas tem o alcance de tornar duvidoso o facto presumido).
(…)
15. Na expressão de Monteiro Fernandes, ob. cit., p. 155.
16. Cfr. ainda Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 53.
17. Direito do Trabalho, Relação Individual, 2ª edição, Almedina, 2023, p. 100.
18. Ibidem, p. 99.” – Acórdão do STJ proferido no Processo nº 29923/23.7T8LSB.L1.S1, em 28.05.2025, (sublinhado aqui introduzido).
No caso, deparamo-nos, nomeadamente, com os seguintes factos:
- A Ré exige que o prestador de atividade/estafeta identifique o seu rosto na aplicação com uma periodicidade variável (reconhecimento facial/controlo biométrico), através de uma fotografia (“selfie”). (item 16º dos factos provados)
- A Ré fornece ao estafeta, além do mais, informação sobre o pedido formulado pelo consumidor final, o valor a pagar ou pago pelo consumidor final, o endereço da entrega e o valor pecuniário associado à entrega/tarefa a desenvolver pelo estafeta. (item 18º dos factos provados)
- O valor pecuniário associado à tarefa a desenvolver pelo estafeta tem uma componente fixa e uma componente variável, esta resultante da conjugação das seguintes rubricas: uma quantia não concretamente apurada por quilómetro percorrido pelo estafeta, desde o local de recolha do pedido até ao endereço de entrega; uma compensação variável em função da hora do pedido/entrega, época do ano, condições climatéricas ou promoções; uma compensação pelo tempo de espera que é um ganho extra se o restaurante ou outro estabelecimento parceiro demorar mais tempo do que o normal para entregar o pedido para recolha do prestador; uma componente variável designada por “multiplicador”, que é definido pelo estafeta na App A... Couriers (App), entre os quocientes disponíveis, de montantes não concretamente apurados; e gorjetas, se atribuídas pelo cliente. (item 19º dos factos provados)
- A plataforma processa os pagamentos a efetuar e paga diretamente ao prestador de atividade. (item 20º dos factos provados)
- O pagamento é quinzenal e efetua-se por transferência para a conta bancária indicada pelo prestador de atividade na altura do registo na plataforma. (item 21º dos factos provados)
- A plataforma negoceia os preços e condições com os titulares dos estabelecimentos parceiros. (item 22º dos factos provados)
- O cliente final paga à plataforma e não ao prestador de atividade. (item 23º dos factos provados)
- A fatura do pagamento do pedido é emitida pelo estabelecimento parceiro ao cliente final e não ao prestador da atividade/estafeta. (item 24º dos factos provados)
- A plataforma permite que o cliente final pague em dinheiro ao estafeta, ficando este com “dinheiro em mãos”, sendo essa quantia abatida no valor a receber quinzenalmente da plataforma. (item 25º dos factos provados)
- Quando o valor pago pelos clientes finais em numerário ao estafeta excede determinada quantia, não concretamente apurada, o estafeta tem de o depositar à ordem da plataforma num prazo determinado. (item 26º dos factos provados)
- Ao iniciar a sessão (colocar-se “on line”) na App “A... Couriers”, com os dados móveis e a localização ligados, no seu telemóvel pessoal, a plataforma passa a saber a localização do estafeta. (item 28º dos factos provados)
- O sistema de GPS do telemóvel do prestador de atividade/estafeta tem que estar ligado para que lhe seja atribuído serviço. (item 29º dos factos provados)
- Após a aceitação do pedido, quer a plataforma, quer o cliente final, passam a conhecer, em tempo real, a sua localização devido à geolocalização existente na App. (item 33º dos factos provados)
- O estafeta tem de ativar a opção correspondente na app sempre que chega ao ponto de recolha, quando recolhe o pedido, quando chega a casa do cliente e quando o entrega. (item 34º dos factos provados)
- Logo que confirme a recolha, a App dá-lhe a morada do cliente e permite utilizar uma qualquer aplicação de visualização de mapas e percursos que o estafeta tenha instalado no telemóvel (v.g. Google Maps). (item 35º dos factos provados)
- Os clientes e os restaurantes ou outros estabelecimentos avaliam o estafeta pela qualidade do trabalho desenvolvido através da plataforma “A...”. (item 37º dos factos provados)
- A plataforma pode desativar a conta do prestador de atividade/estafeta, nos casos previstos nos “Termos e Condições” por este aceites ao registar-se, nomeadamente por comportamentos contrários aos códigos de conduta da plataforma ou quando se verificam situações de violação de lei ou de fraude. (item 41º dos factos provados)
Aferimos que tais factos assentes – dos quais resulta ser inequívoca a integração numa estrutura organizativa alheia ao prestador da atividade - são enquadráveis nas diversas alíneas do nº 1, do artigo 12º-A do Código de Trabalho, como se explicitará.
Sobre a qualificação jurídica do contrato, considerando a fundamentação do referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2025, transcrevemos parte do teor do voto de vencida da Desembargadora Sílvia Saraiva, no Acórdão, desta secção, proferido no Processo nº 4395.23.0T8OAZ.P1 (relatado pelo Desembargador Nélson Fernandes), em 02.06.2025, no que do mesmo voto se transcreve:
“(…) estamos perante uma plataforma digital, encontrando-se preenchidas as caraterísticas constantes das alíneas a), b), c), d), e) e f) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
Como se sublinha, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.11.2021 (relatora: Paula Sá Fernandes), Processo n.º 2608/19.1T8OAZ.P1.S1[2], a presunção de laboralidade é uma presunção relativa (juris tantum), cabendo ao trabalhador alegar e provar a existência de pelo menos duas características de laboralidade ali previstas, cabendo à Ré o ónus de ilidir tal presunção, pois, como resulta do artigo 350.º do Código Civil, quem tem a seu a favor a presunção legal escusa de provar o facto a que a ela conduz, podendo, todavia, ser ilida mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir.”
Com respaldo também na fundamentação do acórdão proferido no processo nº 4392/23.5T8OAZ. P1, em 16.06.2025, (Relatora Desembargadora Sílvia Saraiva, subscrito também pela aqui relatora), transcreve-se o que se considera como bastante (introduzindo as alterações aplicáveis ao caso dos estafetas destes autos):
“Vejamos:
1. Quanto à alínea a): A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela. Com efeito, é a Recorr[ida] quem fixa a retribuição porque “define o preço de cada entrega” e a remuneração do prestador de atividade é a soma das entregas aceites e concluídas.
- Com exceção do "multiplicador" (…), “todos os outros componentes da retribuição dependem unicamente da plataforma”.
- Apesar de os termos e condições poderem prever gratificações de clientes, estas não são consideradas retribuição paga pela plataforma.
- O prestador de atividade “não pode negociar o preço” proposto para uma entrega; ele apenas pode aceitar ou recusar a proposta.
2. Quanto à alínea b): A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade:
- In casu, o[s] estafeta[s] não tinha uma verdadeira capacidade para organizar a sua prestação de trabalho, carecendo de autonomia para tal e estando sujeito às diretrizes organizativas fixadas pela empresa; isso revela um exercício do poder empresarial quanto ao modo de prestação do serviço.
3. Quanto à alínea c): A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.
- A exigência de “controlo biométrico (reconhecimento facial)” com periodicidade variável constitui um sistema de controlo e supervisão da prestação de atividade.
- O sistema de “geolocalização” permite à plataforma saber onde o estafeta está disponível e, durante a entrega, monitorizar a sua localização, o que se traduz num controlo da atividade em tempo real. A possibilidade de a plataforma monitorizar a atividade em qualquer momento é suficiente, mesmo que não ocorra em contínuo.
- O facto de a atividade se reconduzir a entregas permite verificar, em cada momento, onde o prestador está e quanto tempo falta para terminar.
4. No tocante à alínea d): A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho, dos períodos de ausência ou de descanso, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma:
- Admite-se o preenchimento da presente alínea, bem próxima da prevista na alínea e) quanto à “capacidade da plataforma de excluir o prestador de futuras atividades”, porquanto se provou que a plataforma suspende temporariamente a possibilidade de receber pedidos, pelo menos [por comportamentos contrários aos códigos de conduta da plataforma].
5. Quanto à alínea f): Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação:
- A aplicação informática/plataforma digital é um instrumento de trabalho essencial.
- Apesar de outros instrumentos (como o telemóvel, o meio de transporte e a mochila) pertencerem ao prestador de atividade, a plataforma é vista como o “instrumento de trabalho essencial e principal”.
- Sem a aplicação, a relação entre as partes não existe, não há propostas nem entregas. Comparativamente, os instrumentos do estafeta são de menor relevância económica.”
Provou-se é certo ainda que:
- A mochila não tem de ser da marca «A...». (item 14º dos factos provados)
- Quando um consumidor final efetua um pedido, este é direcionado para o estafeta, que o pode aceitar, recusar ou ignorar, tal como o pode rejeitar mesmo após aceitar e até à respetiva recolha. (item 17º dos factos provados)
- O prestador de atividade/estafeta, paga uma taxa de utilização da plataforma, por quinzena, de valor não concretamente apurado. (item 27º dos factos provados)
- Uma vez aceite o pedido, o prestador de atividade/estafeta pode desligar a aplicação. (item 30º dos factos provados)
- O prestador de atividade/estafeta escolhe quando quer conectar-se e desconectar-se da aplicação e quantos serviços pretende realizar, não tendo de cumprir horários, trabalhando se quiser e quando quiser, podendo estar vários dias ou meses desligado da plataforma. (item 31º dos factos provados)
- O estafeta pode aceitar ou rejeitar os pedidos. (item 32º dos factos provados)
- O estafeta pode escolher livremente o percurso que entender para realizar a entrega. (item 36º dos factos provados)
- A Ré não avalia os estafetas. (item 38º dos factos provados)
- O estafeta pode prestar atividade para outras empresas, inclusive para plataformas concorrentes da Ré. (item 39º dos factos provados)
- É possível ao estafeta, mediante determinadas condições, “reatribuir” ou subcontratar o pedido a outro estafeta. (item 40º dos factos provados)
- Os prestadores de atividade/estafetas ficaram abrangido por um contrato de seguro celebrado pela R. com a Companhia de Seguros B... PLC, que cobre danos causados por estafetas a terceiros, que deveria comunicar na plataforma da R. em caso de sinistro, bem como um contrato de seguro celebrado com a empresa C..., SE, que cobre acidentes pessoais. (item 42º dos factos provados)
- Escolheram a zona de Ovar e fazia uso de um veículo automóvel. (iten 48º e 57º dos factos provados)
- São proprietários dos veículos automóveis que conduziam, do vestuário que usavam, da mochila e do telemóvel, onde utilizam a aplicação da plataforma digital. (itens 49º e 58º dos factos provados)
- Compraram onde quiseram a mochila de entrega que usam, que tem que ser isotérmica, para poder transportar os alimentos. (itens 50º e 59º dos factos provados)
Não temos tal matéria como bastante para ilidir a presunção de laboralidade afirmada. Como evidenciado no Acórdão proferido pelo STJ, no Processo nº 29923/23.7T8LSB.L1.S1, em 28.05.2025, “impõe-se ter presente que (com maior ou menor expressão) tais elementos são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais”.
No mais significativo: «não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade.»
Em particular:
Provou-se ainda, mas apenas relativamente ao Estafeta AA:
- Para além de exercer funções de estafeta na plataforma da Ré, tem desde 2004 um emprego fixo numa fábrica, a tempo completo, servindo o que ganha a fazer entregas como complemento do salário que aufere por trabalhar na fábrica. (item 52º dos factos provados)
Ainda assim não se provou que tempo do dia, para além do que cumpria naquele outro emprego, era dedicado à atividade de Estafeta.
Por si só, ter um emprego fixo, a tempo completo, numa fábrica não é decisivo, já que nada mais se provou, nomeadamente que os acessos deste Estafeta à plataforma digital eram ocasionais, esporádicos ou irregulares, não podendo a plataforma contar com a sua presença efetiva e regular.
Destaca o STJ no Processo nº 29923/23.7T8LSB.L1.S1, em 28.05.2025, dos considerandos da Directiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2024 “a qual, exprimindo o empenhamento das instituições da União Europeia no combate ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas (em linha com a Recomendação nº 198 (2006) da OIT), e visando, precisamente, a melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais19, assenta:
(…)
– O trabalho em plataformas digitais pode resultar numa imprevisibilidade dos horários de trabalho e pode dificultar a distinção entre “relação de trabalho” e “atividade independente”, bem como a separação de responsabilidades dos empregadores e trabalhadores. A classificação incorreta do estatuto profissional tem consequências para as pessoas afetadas, na medida em que pode restringir o acesso aos direitos laborais e sociais existentes. Além disso, gera condições injustas de concorrência para as empresas que classificam corretamente os seus trabalhadores e tem implicações nos sistemas de relações laborais dos Estados-Membros, na sua base tributável e na cobertura e sustentabilidade dos seus sistemas de proteção social.”
Provou-se, ainda, apenas relativamente ao Estafeta Gilmar dos Santos:
- Para além de exercer funções de estafeta na plataforma da R., exerce desde a mesma altura as mesmas funções para uma plataforma concorrente da R. (a D...). (item 61º dos factos provados)
Nada mais se tendo provado, para além do exercício da mesma atividade de forma simultânea através de uma outra plataforma, não resultando que o faça de forma estruturada, coerente e organizada, tal matéria não “indicia fortemente uma atividade autónoma”.
É que há situações de pluriemprego consentidas pela plataforma digital.
Com efeito, “[a] ausência do dever de exclusividade, não assume relevância quanto à qualificação do contrato como prestação de serviços, pois importa, por um lado, considerar que é a própria recorrida que a inclui nas condições contratuais, pelo que, nunca se poderia falar de incumprimento pelo estafeta do dever de lealdade tipicamente laboral e por outro lado, considerar que como se refere no Ac. da RG de 03/10/2024[17] os estafetas “São “mercadoria fungível”, facilmente substituível, em que não faz qualquer sentido falar em exclusividade ou impossibilidade de subdelegação de tarefas.” - acórdão desta secção, proferido no processo nº 4119/23.1T8VFR.P1 em 17.03.2025.
Com arrimo no acórdão desta mesma secção, proferido no processo nº 367/24.5T8AVR.P1, em 03.02.2025:
“A demonstração da autonomia consistiria, nomeadamente:
> Na prova de que os acessos do estafeta à plataforma digital eram ocasionais, esporádicos ou irregulares, não podendo a plataforma contar com a sua presença efetiva e regular.
> Na prova do exercício efetivo de concorrência (por exemplo, se o estafeta exerce a mesma atividade diretamente para restaurantes ou através de outras plataformas, de forma simultânea, estruturada, coerente e organizada, não sendo suficientes, para o efeito, as situações de pluriemprego consentidas pela plataforma digital).
> Na prova da utilização de auxiliares, substitutos ou do exercício da atividade em conjunto com outras pessoas, demonstrando um grau de organização.
Nas palavras de Pedro Santos[23]:
«Nestas situações o “estafeta” não assume uma vinculação com o grau de compromisso esperado e expetável num contrato de trabalho.
(…)
De uma forma sumária, parece-nos que a identificação das situações em que o exercício efetivo da concorrência indicia fortemente uma atividade autónoma e deve funcionar no sentido do afastamento da presunção de laboralidade, reconduz-se ao exercício da atividade de forma estruturalmente autónoma em que o recurso às plataformas digitais surge como um meio para obtenção e angariação de serviços e clientes e não propriamente para a obtenção de um trabalho ou emprego.
(…)
pelo que se o prestador, com conta na plataforma, recorre a terceiros ou atua em conjunto com outras pessoas, por exemplo, familiares, que trabalham simultânea (por exemplo, um fica no veículo para não perderem tempo a estacionar e o outro vai fazer a recolha e/ou a entrega) ou sucessivamente (utilizando a conta de um deles), consideramos que existe um grau de organização que revela uma autonomia acrescida, ilidindo a presunção de laboralidade. Contudo, importa sempre apurar em que termos a própria plataforma digital admite a utilização da mesma conta por mais de um prestador de atividade e em que termos essa possibilidade potencial de recurso a terceiros é compatível com um eventual, mas efetivo, controlo biométrico durante a prestação da atividade.» (…)
(…)”.
Em suma, não logrou nestes autos a Recorrente provar os factos necessários para ilidir a presunção legal de existência de contrato de trabalho (cujo ónus da prova lhe incumbia, por força do artigo 350º do Código Civil) prevista no citado artigo 12º-A.
Como tal, a consequência inelutável é a de fazer operar a presunção aí estabelecida e concluir, relativamente a cada um dos Estafetas, pela existência um contrato de trabalho.
Transcreve-se ainda da fundamentação do acórdão proferido no processo nº 4392/23.5T8OAZ. P1 o que se considera também como pertinente:
“Em suma, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que os elementos que apontam para a autonomia, embora relevantes, não são suficientes para a afastar a presunção legal e contrato de trabalho quando estão presentes, como no caso sub judice, cinco características da presunção do n.º 1 do artigo 12.º-A.
Sublinhou que a existência de autonomia formal não elimina, por si, só, a subordinação jurídica, sobretudo quando a atividade do estafeta se insere de forma estruturante na organização da plataforma, que detém poderes de direção, supervisão e controlo, ainda que exercidos de forma algorítmica e não tradicional.
Considera, e bem, que a dependência tecnológica do estafeta é análoga à utilização de equipamentos tradicionais fornecidos pelo empregador, reforçando a ideia de inserção do trabalhador na organização da empresa. Mesmo que o estafeta utilize meios próprios (bicicleta, veículo motorizado, telemóvel, mochila), a app e os sistemas digitais da plataforma são os verdadeiros instrumentos de trabalho, sem os quais a atividade não poderia ser exercida.
Esta perspetiva reflete uma adaptação do conceito de subordinação jurídica à realidade da economia digital, onde o controlo e a organização do trabalho são exercidos por via tecnológica. A questão torna-se mais clara se nos focarmo-nos, na integração, ou não, do estafeta na estrutura organizativa da Recorrente, beneficiária da sua atividade.
De facto, é fundamental ponderar as especificidades da atividade em questão. É inegável que a margem de liberdade operacional do estafeta é superior à dos trabalhadores ditos tradicionais (ex.: operário fabril, da construção civil, hotelaria, etc.)
Com efeito, o estafeta não está sujeito a deveres de assiduidade e pontualidade (por exemplo, pode não estar sempre disponível, escolher as faixas horárias de prestação de serviço e até recusar serviços específicos). Também não está sujeito a deveres de exclusividade ou de não concorrência (podendo trabalhar para várias plataformas, incluindo concorrentes). Por fim, utiliza instrumentos de trabalho próprios (automóvel, mota, bicicleta, smartphone e mochila).
Não obstante, mesmo assim, verificam-se traços indiciadores de subordinação bastante vincados:
- O estafeta, tal como o motorista, não tem clientes próprios; os clientes pertencem à plataforma, que é quem interage com o mercado (os utilizadores instalam a app nos seus smartphones).
- O estafeta efetua as entregas sob a marca da plataforma, prestando a sua atividade para uma organização produtiva externa (a da plataforma digital), sem possuir uma organização empresarial própria.
- Não assume riscos de ganhos ou perdas, que são assumidos pela empresa sob cuja marca presta serviços.
- É a plataforma que define o valor final a receber pelo estafeta caso este aceite o pedido de entrega, processando os pagamentos. Embora o estafeta não receba um valor fixo e periódico, o critério de determinação da remuneração é, em última análise, definido pela plataforma, apesar de o estafeta poder recusar a prestação do serviço, nomeadamente por discordar do valor proposto.
- A plataforma controla a prestação do serviço em tempo real, através da gestão algorítmica e de sistemas de geolocalização constante do estafeta e do cliente, impedindo que o serviço seja realizado de forma independente.”
Salvo o devido respeito por melhor opinião, também nesta parte a Recorrida não tem razão.
Acompanhamos, uma vez mais, a fundamentação do acórdão proferido nesta mesma data, no processo nº º 4392/23.5T8OAZ. P1.
“O artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece o princípio da igualdade, que é fundamental no ordenamento jurídico português. Este artigo afirma que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Não obstante, é pacífico o entendimento de que o princípio da igualdade não proíbe tratamentos diferenciados de situações distintas. Assim, o princípio da igualdade proíbe diferenciações de tratamento, exceto quando estas são objetivamente justificadas.
Por outro lado, tal como sublinha, o Ministério Público nas suas contra-alegações, a liberdade de iniciativa económica prevista no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa não é, na sua totalidade, um direito, liberdade e garantia insuscetível de restrições, particularmente quando destinadas à salvaguarda de outros direitos, valores ou interesses constitucionais.
Como é sabido, o princípio da proporcionalidade é um dos princípios fundamentais consagrados na nossa Constituição da República Portuguesa (cfr. artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). Ele é essencial para garantir que as ações do Estado não sejam excessivas e respeitem os direitos dos cidadãos.
Este princípio divide-se em três vertentes principais, cujos traços gerais são:
1 – Adequação: As medidas adotadas devem ser apropriadas para alcançar os objetivos pretendidos. Isso significa que a ação deve ser capaz de produzir o efeito desejado.
2 – Necessidade: Entre as várias opções disponíveis, deve-se escolher a que menos restrinja os direitos dos cidadãos. Por outras palavras, a medida deve ser necessária e não deve haver uma alternativa menos gravosa para atingir o mesmo fim.
3 – Proporcionalidade em sentido estrito: A medida deve ser equilibrada, ou seja, os benefícios da ação devem superar os prejuízos causados. Em suma, deve haver uma relação justa entre os meios utilizados e os fins pretendidos.
Nessa medida, sopesando o bem jurídico protegido (falsa situação de autonomia) e a nova realidade jurídica (era digital) retratada pela presunção de contrato de trabalho no âmbito da plataforma digital, é manifesto que a presunção contida no artigo 12.º-A não é desproporcional, nem viola os artigos 13.º, 18.º e 61.º da Constituição da República Portuguesa.
Aliás, conforme se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de maio de 2025[3]:
«Refira-se que esta disposição legal foi aditada ao Código do Trabalho por imposição da Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2024, cuja transposição antecipou, a qual, exprimindo o empenhamento das instituições da União Europeia no combate ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas (em linha com a Recomendação nº 198 (2006) da OIT), e visando, precisamente, a melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais (…).» (Fim da transcrição e negrito nosso).”
Mais ainda, na solução do caso vertente, entendo que se justificava reconhecer a existência do contrato de trabalho com efeitos a partir da data em que cada um dos Estafetas passou a ter atividade registada na plataforma.
O Ministério Público, quer na petição inicial, quer nas alegações e conclusões do recurso, requereu esse reconhecimento com efeitos a partir de 01.05.2023.
A aqui relatora tomou já posição expressa a este respeito no voto de vencida que proferiu no acórdão desta secção de 16.06.2025, proferido no processo nº 4420/23.4T8OAZ.P1 (relator Desembargador António Costa Gomes), como aí ficou mencionado:
Não nos parece de excluir que se possa afirmar a existência do contrato de trabalho desde essa data, uma vez reconhecido o vínculo laboral, com base no artigo 12º-A do Código do Trabalho, conforme este é aplicado temporalmente pelo STJ. Entendemos, com efeito, que seria artificial ficcionar que o contrato de trabalho só existe a partir de 01.05.2023, data da entrada em vigor da Lei nº 13/2023, quando a relação em causa, nestes autos, existe exatamente nos mesmos termos desde a data a partir da qual a Ré aceitou o registo do Estafeta na plataforma GlovoApp.
É certo que o STJ não teve que abordar esta questão especifica no referido acórdão de 15.05.2025.
Na linha do que afirmamos acima, estando em causa o artigo 12º-A do Código do Trabalho – uma disposição de direito interno português adotada antes da Diretiva 2024/2831, de 23 de outubro de 2024 – não nos parece que o aludido considerando 33 desta Diretiva obste também à interpretação e delimitação do âmbito de aplicação temporal deste artigo 12º-A no sentido de se poder concluir pela existência de um contrato de trabalho, com efeitos a partir da data em que o estafeta passou a ter atividade registada na plataforma, anterior a 01.05.2023.
Na resposta que se aguarda seja dada à questão específica indicada, não abordada pelo STJ, em nada querendo adiantar a esse respeito, afigura-se-nos ainda assim incontornável ponderar, como acima assinalamos, que a Diretiva é uma diretiva de mínimos. Deixa claramente aos Estados-Membros a possibilidade de manterem disposições mais favoráveis a quem trabalha em plataformas digitais, «inclusive no que respeita a mecanismos para verificar a existência de uma relação de trabalho.»
Independentemente do que venha a ser decidido pelo STJ quanto a esta questão específica, em todo o caso, na situação destes autos, relativamente ao Estafeta AA, no período que decorreu entre Setembro de 2021, na data a partir da qual a Ré aceitou o seu registo na plataforma GlovoApp (item 45º dos factos provados) e 01.05.2023 e relativamente ao Estafeta Gilmar dos Santos no período que decorreu entre Outubro de 2022, na data a partir do qual a Ré aceitou o seu registo do na plataforma GlovoApp (item 54º dos factos provados) e 01.05.2023, considerando a natureza e especificidade da atividade em causa, também apreciando a qualificação do vinculo à luz do método indiciário ou tipológico – impendendo sobre o autor o ónus da prova (artigo 342º do Código Civil) dos factos constitutivos do direito à qualificação do vínculo como contrato de trabalho – entendo que resulta demonstrado dos factos assentes que o Estafeta prestava a sua atividade à Recorrida, no âmbito da organização e sob a autoridade da mesma (artigo 11º do Código do Trabalho).
Neste sentido apontam claramente os factos provados nos itens 2º, 3º, 8º, 9º, 10º, 13º, 15º, 16º, 18º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 28º, 29º, 33º, 34º, 35º, 37º, 41º.
A fundamentação do acórdão desta mesma secção, proferido no processo nº 4119/23.1T8VFR.P1, em 17.03.2025, elucida que “a natureza da ação especial de reconhecimento da existência do contrato de trabalho impõe [(…)] que a relação contratual que lhes está subjacente seja apreciada desde a sua constituição.
Na verdade, a Lei nº 63/2103, que expressamente veio consagrar a “Instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado” (cfr. art.º 1.º) contém normas de interesse e ordem pública.
Teve-se em vista combater a existência de verdadeiros contratos de trabalho subordinado encobertos sob a designação de contratos de prestação de serviços, os quais, para além de afetarem o trabalhador subordinado em alguns dos seus direitos, prejudicam, igualmente, interesses do Estado, de natureza fiscal e de segurança social.
E parafraseando o Ac. da Rel. de Lisboa de 10/09/2014[1] “Assim sendo, o julgamento da ação deverá traduzir a realidade e não ficar restrito ao peticionado pelo MºPº ou ao alegado no articulado do trabalhador, se o houver, devendo a sentença, mesmo que tal não seja indicado por qualquer daqueles, “fixar a data do início da relação laboral”- nº 8 do artº 186º- O. Esta norma, tal como todas as outras referidas, apresenta-se como imperativa, estando em causa, como já se aludiu, valores que o legislador considera fundamentais, impondo-se, portanto, à vontade das partes e diminuindo a sua liberdade de estipulação. Funciona aqui o princípio do inquisitório, aparecendo o princípio do dispositivo como claramente mitigado.”
Ainda com respaldo nas considerações efetuadas no mesmo acórdão desta secção, proferido no processo nº 4119/23.1T8VFR.P,1 em 17.03.2025 que transcrevemos aqui no mais relevante, adaptando no necessário à factualidade provada nestes autos:
“O art.º 1152.º do Código Civil define o contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direção destas.
O art.º 1154.º do mesmo Código define o contrato de prestação de serviços nos seguinte termos: “Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”
Por sua vez, nos termos do art.º 11.º do CT, “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade desta.”
Porque condensa o que entendemos ser relevante equacionar, nesta fase, socorremo-nos do Ac. RG de 17/10/2024[7], no qual se lê “A jurisprudência e doutrina têm apontado como traço característico do contrato de trabalho a subordinação jurídica, que é modernamente entendida como a sujeição da atividade prestada pelo trabalhador a parâmetros importantes ditados pelo empregador, que assim gere, conforma e delimita a execução do trabalho, classificado de hetero-determinado porque inserido em estrutura organizativa alheia.
Está hoje definitivamente ultrapassada a ideia de subordinação associada à emissão de ordens evidentes, diretas e sistemáticas, por força da crescente autonomia técnica dos trabalhadores e das atuais formas de organização e de interação laboral. O traço decisivo é o chamado elemento organizatório conforme espelhado na fórmula legal que refere atividade laboral como sendo a prestada “no âmbito de organização e sob a autoridade” de outrem -11º do CT/09.[8]
Donde, o fulcro da subordinação consistirá no facto de o prestador não trabalhar segundo a sua própria organização, mas sim inserido num ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem, estando adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário - António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 19º ed., p. 148.”
Como refere Maria do Rosário Palma Ramalho[9] “A referência à integração do trabalhador no âmbito da organização do empregador, que é agora feita no contexto da noção de contrato de trabalho (art. 11º do CT), vem justamente salientar a componente organizacional do contrato de trabalho (…), e que, obviamente tem um valor qualificativo”.
Alterou-se, pois, o centro de gravidade da subordinação jurídica subjetiva (heterodeterminação da prestação de atividade, com presença dos poderes hierárquico, organizacional e disciplinar) para a subordinação jurídica objetiva (que leva em conta a integração do trabalhador na estrutura produtiva).
Na prática judiciária, reconhecendo-se a dificuldade de, em concreto, traçar uma fronteira completamente definida entre o contrato de trabalho e algumas das figuras que lhe são afins em que a atividade é prestada à margem da subordinação jurídica, tem-se optado pelo recurso à verificação, em cada caso, de um conjunto de indícios da existência ou inexistência de subordinação jurídica, particularmente, nas situações, de interpretação divergente do sentido das declarações de vontade na celebração do contrato.
Os indícios normalmente apontados no sentido da existência de subordinação são, entre outros, o de o lugar do trabalho pertencer ao empregador ou ser por ele determinado, o horário de trabalho ser o definido pelo empregador, a existência de poder disciplinar, a organização do trabalho depender estritamente da vontade o empregador, serem os instrumentos de trabalho pertencentes ao empregador, a existência de outros trabalhadores subordinados no exercício da mesma atividade, a opção pela modalidade de retribuição certa, o aumento periódico da retribuição, o pagamento de subsídios de férias e de Natal, a exclusividade da atividade laboral por conta do empregador, a sindicalização e a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem.
O que importa, pois, considerar com vista à distinção do contrato de trabalho de formas de prestação de trabalho autónomas, é, afinal, o modo concreto de execução da prestação.
[(…)]
[D]o nosso ponto de vista, o acervo factual impõe a conclusão de que o autor logrou cumprir o supramencionado ónus.
Na verdade, releva no caso dos autos que a recorrida se dedica, além do mais, à distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares, disponibilizando serviços à distância através de meios eletrónicos, designadamente, através da aplicação informática “A...” que gere, (…) fazendo a intermediação entre os diversos utilizadores da aplicação, isto é, os estabelecimentos comerciais, os clientes finais e os estafetas, utilizando estes a aplicação “A... Couriers”, de tal forma que, no que interessa à situação em apreço, a recorrida, através dos estafetas registados na aplicação, faz o transporte e entrega aos clientes finais dos produtos por estes solicitados e que aqueles recolhem nos estabelecimentos comerciais aderentes.
Esta atividade da recorrida de distribuição de produtos é, assim, tal como delineada pela recorrida, realizada através dos estafetas, (…), quer os estabelecimentos comerciais, quer os clientes finais não estabelecem qualquer relação contratual com o mesmo.
O estabelecimento do vínculo entre a recorrida e o[s] estafeta[s] foi feito através do registo obrigatório deste na “plataforma” A..., através da criação de uma conta no web site d[os estafetas] (...), sendo as condições contratuais ao abrigo das quais o estafeta prestava a sua atividade estabelecidos pela recorrida (ponto [19.º] dos factos provados), o que representa uma contratação não negocial, unilateral, que não é própria do trabalho autónomo.
De entre as condições relativas ao registo e inscrição do[s] estafeta[s], destacam-se a declaração de início de atividade como trabalhador independente, o que evidencia que é a recorrida que define unilateralmente o regime de enquadramento fiscal do estafeta.
(…)
A recorrida impõe também ao estafeta, no momento do registo, a obrigação de identificação do veículo a utilizar no exercício das funções, o que induz a impossibilidade de o estafeta utilizar veículo diferente do registado (fosse a relação entre o estafeta e a recorrida verdadeiramente autónoma e à recorrida não interessaria certamente qual o veículo utilizado em cada momento pelo estafeta, ou se este utilizava um veículo).
A recorrida impõe que para o exercício da sua atividade, o estafeta possua, além do veículo, uma mochila isotérmica para o transporte de refeições e a aplicação “App A... Couriers” instalada e ativa no seu telemóvel.
É, pois, a recorrida que decide que a atividade dos estafetas é realizada com um veículo (impedindo assim, por exemplo, que as entregas sejam feitas a pé), com um telemóvel (não um computador, por exemplo) e com uma mochila isotérmica (que seja isotérmica até poderá ser imposição legal no que respeita ao transporte de refeições ou produtos frescos ou congelados, por exemplo, mas é a recorrida que decide que o equipamento de transporte é uma mochila e não qualquer outro, como uma caixa ou um saco, por exemplo).
E para que lhe sejam distribuídos pedidos o estafeta tinha que aceder ao seu “perfil conta” na aplicação “App A... Couriers” que tinha que ter instalada no seu telemóvel, iniciar a sessão (colocando-se on line) com os dados móveis ligados e a localização ativada, a, passando a recorrida a saber a sua localização daí em diante, (…).
Aqui se evidencia a essencialidade da aplicação da recorrida para o exercício da atividade do estafeta, reiterando-se, nesta parte, o que acima afirmámos quanto à qualificação e preponderância da aplicação como instrumento ou equipamento de trabalho do estafeta.
É a recorrida que escolhe e define os estabelecimentos comerciais e os clientes finais. O estafeta não tem, pois, clientela própria, os clientes pertencem à recorrida, que é quem interage com o mercado e que é dona do negócio. E não se demostrou qualquer facto sequer indiciador de que o estafeta detivesse ou controlasse qualquer estrutura organizada de prestação de atividade.
A recorrida define também os locais a que o estafeta tinha que se dirigir para recolher os pedidos e para os entregar aos clientes finais, que ficam acessíveis na aplicação (…).
É certo que o estafeta pode escolher o itinerário a utilizar para a realização do serviço, mas trata-se uma liberdade meramente aparente, na medida em que, uma das componentes variáveis da sua remuneração é um valor (…) por cada km percorrido (…).
No que respeita à remuneração verifica-se que a definição da estrutura do valor pago ao estafeta é feita pela recorrida, e que o concreto valor a pagar depende, quase em exclusivo, da recorrida.
Com efeito, o valor a pagar ao estafeta é composto por vários “itens” cujo montante é exclusiva e unilateralmente decidido pela recorrida. Assim, acontece com a componente fixa, (…); com o valor pago por km percorrido, (…).
A estes valores acrescerá uma outra componente variável designada por multiplicador cujo valor pode ser definido pelo estafeta, mas sujeito aos limites mínimo e máximo (…).
(…)
Como já resulta do supra exposto a remuneração era paga com periodicidade quinzenal e era paga por transferência bancária. Havia a possibilidade de o estafeta receber diretamente dos clientes em dinheiro ficando com o dinheiro em mãos (ignorando-se, porque não resulta da matéria de facto, se alguma vez aconteceu), mas o valor recebido era compensado no pagamento quinzenal (o que pressupõe que a ré controlava qual o valor recebido pelo estafeta nesses moldes) e se exceder um limite, que é pré-definido pela recorrida, o estafeta fica obrigado a depositá-lo à ordem daquela em determinado prazo.
De resto, mais uma vez está em causa uma possibilidade que apenas existe porque a recorrida a permite, tal como ficou provado.
Importa ainda considerar que a recorrida pede ao estafeta o seu reconhecimento facial efetuado através do telemóvel, o que acontece com uma periodicidade variável (…) evidenciando não uma mera possibilidade de controlo do estafeta, mas um controlo efetivo.
O estafeta pode também ver avaliada qualitativamente a forma como realiza a sua atividade. Tal avaliação é efetuada pelos clientes (…).
(…)
Por fim importa referir que a recorrida detém um verdadeiro poder sancionatório relativamente aos estafetas.
Na verdade resulta do ponto 5.2 dos “Termos e Condições de Utilização da Plataforma G... para Estafetas” que a recorrida pode desativar temporária ou permanentemente a conta do estafeta caso este não cumpra qualquer um dos “Termos e Condições” constantes do mesmo documento, designadamente se:
“1. Em conformidade com o Código de Ética que rege todos os Utilizadores da Plataforma, utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da A....
2. Violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da A....
3. Participar em atos ou conduta violentos.
4. Violar os seus direitos na aplicação da A..., causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
5. Na prevenção de ações fraudulentas, se a identidade do Utilizador da Plataforma e/ou dos seus substitutos ou subcontratantes não puder ser verificada e/ou qualquer informação prestada por si e/ou os seus substitutos ou subcontratantes estiver incorreta.
6. A fim de prevenir a segurança de todos os Utilizadores da Plataforma em caso de violação da Política de Mercadorias, sujeito ao seguinte (…)
Caso não cumpra qualquer um dos presentes Termos e Condições, a A... pode desativar a sua Conta, sem prejuízo de qualquer ação legal/ação que possa resultar de crimes, violações ou danos civis que possam ter sido causados.”
Confere-se, pois, à recorrida, no seu próprio interesse um poder extremamente amplo relativamente a todas as condições de execução da atividade pelo estafeta, sejam elas principais ou acessórias, incluindo éticas, que em caso de incumprimento, lhe permite suspender a atividade do estafeta ou cessá-la, uma vez que, caso não possa aceder à conta, o estafeta deixa de receber pedidos.
Trata-se de um poder que, tal como configurado, contém uma faceta ordenadora e prescritiva que vai para além das consequências do mero incumprimento contratual, distinguindo-se da responsabilidade civil, cuja finalidade é no essencial reparatória e, sem se ater aos seus limites, pois a aplicação da “sanção” de desativar temporária ou permanentemente a conta do estafeta, pode ser cumulada com a responsabilidade civil.
E tal poder, como se lê no Ac. RG de 31/10/2024[14] “(…) acaba por se traduzir numa espécie de sanção disciplinar equivalente à suspensão do trabalho com perda de retribuição ou mesmo ao despedimento, sem instauração de procedimento disciplinar.
Este poder de tutela de que a Ré dispõe afigura-se-nos ser totalmente incompatível com a relação de trabalho autónomo quer pela amplitude das razões que levam a aplicação das “sanções”, quer pela gravidade das consequências do eventual incumprimento, que pode dar lugar à cessação da atividade de imediato.”
O estafeta encontra-se, pois, sujeito ao poder sancionatório da recorrida que reforça a relação de dependência daquele a esta.
Conclui-se, pois, que quando se liga à plataforma digital o estafeta passa a integrar um serviço organizado e concebido inteiramente pela recorrida, observando parâmetros de organização e funcionamento unilateralmente definidos pela mesma. A sua atividade é prestada dentro de um serviço organizado alheio, sendo as condições essenciais de execução determinadas unilateralmente pela recorrida através da aplicação que organiza todo esquema de prestação da atividade.
Estabeleceu-se, assim, entre as partes, apesar das especificidades próprias desta nova forma de organização do trabalho, uma relação na qual está presente o poder de direção da atividade do estafeta pela recorrida e o poder disciplinar ou sancionatório, afinal uma relação de efetiva subordinação jurídica, entendida sob a nova roupagem que lhe conferem as hodiernas formas de organização do trabalho e, em particular o trabalho prestado às plataforma digitais pelos estafetas.
E aquelas especificidades não são aptas a descaracterizar a dita relação enquanto laboral.
Na verdade, impressionará que, o estafeta escolha os dias e horas em que quer ligar-se à aplicação da recorrida e que possa não aceitar ou rejeitar os pedidos, definindo o número de pedidos que pretende realizar, em contradição com os deveres de assiduidade e pontualidade.
No mesmo sentido impressionará que o estafeta possa desligar a geolocalização durante a execução do serviço, que possa subcontratar a sua conta, que possa alterar a zona geográfica em que pretende efetuar as entregas e que possa prestar outras atividades, incluindo a mesma atividade para empresas concorrentes da recorrida.
Quanto à possibilidade de o estafeta desligar a geolocalização não podemos deixar de dizer que não assume particular relevância, se atentarmos que se limita ao percurso feito pelo estafeta entre a recolha e entrega dos produtos, tratando-se de uma faculdade quase aparente do estafeta. De facto, para receber os pedidos o estafeta tem que ter a aplicação ativa e o sistema de geolocalização ligado. E é muito reduzido o interesse da recorrida na utilização do GPS para controlar a atividade do estafeta, já que tal utilização, se dentro da legalidade, se destina no essencial, a garantir o controlo da integridade dos bens do empregador, que já vimos que não são implicados no transporte dos produtos, e a controlar o sítio em que o trabalhador se encontra, o que no âmbito da atividade exercida pela recorrida não assume interesse relevante, já que é até a própria plataforma que permite, por exemplo, a prestação de atividade a plataformas concorrentes, que não atribui qualquer efeito à avaliação feita pelos clientes (…).
Do mesmo modo, a possibilidade de o estafeta subcontratar a sua conta, revela uma autonomia meramente aparente, já que é uma possibilidade restrita [a determinadas condições](…).
(…)
Como se pode ler no Ac. RP de 03/02/2025[15], no qual aqui a relatora interveio como (…) adjunta “(…) como salienta Pedro Santos[16], a autonomia resultante apenas da letra do contrato, não é suficiente.
Ou seja, não bastam formulações contratuais de liberdade quase total, pré-concebidas pela própria plataforma digital e às quais o prestador de atividade meramente adere; exige-se, antes, uma efetiva autonomia na prestação e organização da atividade, traduzida numa autonomia factual.”
A ausência do dever de exclusividade, não assume relevância quanto à qualificação do contrato como prestação de serviços, pois importa, por um lado, considerar que é a própria recorrida que a inclui nas condições contratuais, pelo que, nunca se poderia falar de incumprimento pelo estafeta do dever de lealdade tipicamente laboral e por outro lado, considerar que como se refere no Ac. da RG de 03/10/2024[17] os estafetas “São “mercadoria fungível”, facilmente substituível, em que não faz qualquer sentido falar em exclusividade ou impossibilidade de subdelegação de tarefas.”
Por fim a possibilidade de o estafeta escolher os dias e horas em que quer ligar-se à aplicação da recorrida e de não aceitar ou rejeitar os pedidos, definindo o número de pedidos que pretende realizar, também não é suficiente para descaracterizar o laço de subordinação jurídica que acima concluímos existir entre o estafeta e a recorrida.
Não se ignora que são possibilidades estranhas à tradicional conceção do contrato de trabalho, mas não se pode ignorar que o poder de direção e de conformação da atividade do trabalhador tem vindo a perder relevância na distinção e qualificação do contrato de trabalho.
Desde logo, foi abandonada na noção de contrato de trabalho a referência à direção pelo empregador, como já acima referimos e aqui reiteramos.
São várias as situações consagradas pelo CT em que o poder de direção, a existir, não pertence ao empregador (contrato de trabalho temporário, cedência ocasional de trabalhadores, por exemplo).
O regime do teletrabalho, esbateu os deveres de assiduidade e pontualidade e o alcance o poder de direção do empregador.
A consagração do contrato de trabalho intermitente, remete-nos para situações em que o contrato de trabalho não pressupõe a execução permanente de atividade pelo trabalhador.
Por outro lado, na nossa perspetiva, é de importância fulcral a captação da realidade da era digital em que nos encontramos, que constituiu referência do «Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho», 2021, para a recomendação de criação da presunção de laboralidade adaptada às plataformas digitais podendo ler-se na pág. 172 que se tornou necessário «[c]riar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre o trabalhador por conta de outrem e o trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital». (…)
E como refere Monteiro Fernandes[18] «Há, pois, uma progressiva desvalorização dos comportamentos diretivos na caracterização do trabalho subordinado. Se se adotar como critério identificativo a ocorrência de ordens e instruções pelas quais o trabalhador, em regime de obediência, paute o seu comportamento na execução do contrato, deixar-se-á à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua atividade em proveito de outra, no quadro de uma organização concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador de trabalho está adstrito a observar parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização de trabalho, ainda que execute a sua atividade sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções”.»
(…)” (realce aqui introduzido)
Em conformidade, impõe-se reconhecer a existência do contrato de trabalho com efeitos:
- a partir de Setembro de 2021, na data a partir da qual o Estafeta AA tem atividade registada na plataforma GlovoApp.
- a partir de Outubro de 2022, na data a partir da qual o Estafeta Gilmar dos Santos tem atividade registada na plataforma.
4. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em julgar totalmente procedente o recurso de apelação, e consequentemente:
- Reconhece-se a existência de contrato individual de trabalho, com início em Setembro de 2021 entre a Ré/Recorrida e AA;
- Reconhece-se a existência de contrato individual de trabalho, com início em Outubro de 2022 entre a Ré/Recorrida e BB.
- Custas pela Recorrida em ambas as instâncias [em sede de recurso de apelação é devida a taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao Regulamento Custas Processuais (cfr. artigo 7º, nº 2 do Regulamento Custas Processuais)].
Custas da ação e Apelação pela Apelante.
Notifique e registe.
Oportunamente, cumpra-se o disposto no artigo 186º-O, nº 9, do Código de Processo do Trabalho.
Porto, 30.06.2025
Teresa Sá Lopes
António Costa Gomes [vencido:
Fiquei vencido quanto à fundamentação de direito e decisão pelas razões que, sumariamente, elenco.
O Código do Trabalho define contrato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas” – cfr. art.º 11º do CT.
Também no Código Civil é definido contrato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta” – cfr. art.º 1152º do CC.
O contrato de trabalho caracteriza-se por dois elementos: prestação de uma atividade; e o pagamento de uma remuneração.
Porém, porque existem outras categorias contratuais que podem apresentar os mesmos elementos, nem sempre é fácil distinguir entre umas e outras. É o caso do contrato de prestação de serviços.
Considerando a noção legal de contrato de trabalho, apontam-se, em regra, três elementos que o distinguem de figuras contratuais próximas: a retribuição; o facto de o objeto da prestação ser uma atividade; e a subordinação jurídica.
Quanto à retribuição, acaba por se apresentar como o menos relevantes dos critérios porquanto, em regra, todos os contratos pressupõem uma contrapartida e é precisamente a existência do pagamento para remunerar a atividade que, não raras vezes, torna difícil a distinção.
Quanto ao objeto, trata-se de um critério de difícil análise uma vez que toda a atividade pressupõe um resultado e todo o resultado tem na sua base uma atividade. Pelo que, as mais das vezes, a distinção só é possível em abstrato. Aliás, para o empregador, credor da prestação, o que interessa é efetivamente o resultado. O que se torna, aliás, visível no estabelecimento de objetivos e prémios de produtividade.
Este critério assume, no entanto, relevância especial quando associado ao último dos critérios apresentados, a subordinação jurídica.
Assim, estaremos próximos do contrato de trabalho se o credor da prestação goza do poder de determinar o modo concreto como a prestação há-de ser realizada, estando o devedor da prestação obrigado a cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias – cfr. art.º 128º, n.º 1, al.e) do CT. E estaremos próximos da prestação de serviços se, definido o resultado pretendido, o devedor da prestação goza de autonomia para organizar os meios para alcançar o resultado.
O direito do trabalho é o direito do equilíbrio.
De um lado, os interesses das empresas, e do outro os interesses dos trabalhadores. Uns e outros com proteção constitucional.
Dispõe o art.º 61.º, n.º 1 da Constituição que “a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”.
Conforme ensina Jorge Miranda, a iniciativa privada é um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias e podem ser analisados em dois momentos…
«Num primeiro momento, trata-se da liberdade de iniciativa em sentido estrito ou, doutra ótica, da liberdade de estabelecimento. É o direito de iniciar uma atividade económica, o direito de constituir uma empresa, o direito, que pode ser individual e que pode ser institucional, de organização de certos meios de produção para um determinado fim económico.
No segundo momento, é o resultado da iniciativa e, do mesmo passo, a condição da sua prossecução a empresa que ressalta. Trata-se agora da liberdade de empresa, do direito da empresa de praticar os atos correspondentes aos meios e fins predispostos e de reger livremente a organização em que tem de assentar.».
Naturalmente que, como todos os direitos, não é absoluto. Terá que ser analisado, num esforço de concordância prática, com os demais direitos, nomeadamente os que a Constituição confere aos trabalhadores, em particular:
- o direito à segurança no emprego – art.º 53º da Constituição -, que “implica naturalmente a compressão, no domínio das relações laborais, da autonomia privada, da liberdade empresarial e de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
a) Com efeito, "a Constituição deixa claro o reconhecimento de que as relações do trabalho subordinado não se configuram como verdadeiras relações entre iguais", procurando proteger a "autonomia dos menos autónomos" (Acórdão n. 581/95)”;
- o direito ao trabalho – art.º 58º da Constituição -, competindo ao Estado a execução de políticas de pleno emprego;
- o direito à retribuição, à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, à organização do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, ao repouso, à assistência e reparação em casos de acidente - art.º 58º da Constituição -.
O esforço de concordância prática a que aludimos pressupõe que na aplicação do direito ao caso concreto fique sempre salvaguardado o núcleo fundamental de cada um dos direitos em confronto.
O art.º 11º do Código do Trabalho procura realizar esse equilíbrio ao definir define contrato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas” – cfr. art.º 11º do CT.
No caso concreto, e respeitando opinião distinta, os únicos indícios que apontam no sentido de estarmos perante um contrato de trabalho são:
- o fornecimento pela ré da plataforma (e, em termos da essencialidade para a execução das tarefas, a plataforma não é mais importante que o veículo, o telemóvel ou a mochila), e
- o facto de a ré manter o poder de influenciar e, em certas situações, impedir a prestação de serviços por parte do estafeta, seja através da suspensão temporária da receção de pedidos ou da desativação da conta. As condições contratuais eram ditadas pela plataforma e aceites pelo prestador de atividade. O prestador não podia realizar a sua tarefa se estivesse desligado da plataforma. O serviço de entrega era concebido e organizado pela plataforma. Desta forma, a obrigação de prestar serviço e as condições em que tal ocorria estavam fortemente sujeitas às regras e à vontade da Ré.
Mas estes indícios são claramente insuficientes.
Com efeito, o contrato de trabalho caracteriza-se, essencialmente, pela existência de subordinação jurídica, a qual se reconduz à possibilidade de determinação da atividade do trabalhador. A determinação da atividade do trabalhador não se basta com o poder influenciar e, em certas situações, impedir a prestação de serviços por parte do estafeta, seja através da suspensão temporária da receção de pedidos ou da desativação da conta. Pressupõe, desde logo, que o beneficiário da prestação possa dispor da força de trabalho do estafeta num horário certo e determinado e que tenha o poder de exigir assiduidade.
Sem este poder, fica completamente esvaziado o núcleo fundamental do apontado direito à iniciativa económica privada.
Com efeito, não se concebe que se possa impor à ré um contrato de trabalho quando o estafeta trabalha nos dias que quer e nas horas que entende; quando é livre de aceitar o pedido ou de o rejeitar sem consequências; quando, no mesmo período pode estar a trabalhar para outra entidade, incluindo empresas concorrentes da ré, não estando sujeito a qualquer dever de exclusividade ou não concorrência; quando a ré não controla a rota que o mesmo faz para concluir as entregas; e quando se pode fazer substituir por outro estafeta da plataforma.
Pelo que, e tal como tenho vindo a decidir noutros processos, não reconheceria, no caso concreto, a existência de contrato de trabalho.]
António Costa Gomes
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