ARROLAMENTO
INSTRUMENTALIDADE
PRESSUPOSTOS
Sumário

Sumário: 1-2-3
I. O arrolamento é uma providência cautelar conservatória que tem por finalidade impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens (móveis ou imóveis), ou de documentos litigiosos;
II. O procedimento cautelar de arrolamento constitui dependência de ação declarativa que vise apurar a existência e /ou definir titularidade de direitos que o requerente se arroga sobre a(s) coisa(s) a arrolar.
III. A procedência do procedimento cautelar de arrolamento depende da verificação dos seguintes pressupostos:
a. Um fumus boni iuris específico, traduzido na probabilidade da existência de um direito sobre bens (móveis ou imóveis) ou documentos;
b. Um periculum in mora específico, traduzido no justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos mesmos bens ou documentos.
IV. Mostram-se verificados os pressupostos referidos em III. numa situação em que:
a. O requerente é o único herdeiro dos seus pais, que faleceram sem deixar outros herdeiros ou terem feito testamento;
b. Os pais do requerente adquiriram um imóvel, com intenção de o fazer em nome próprio, e pagando-o com dinheiro seu, mas registaram-no em nome da requerida (sua neta e filha do requerente) apenas para evitar que, caso falecessem, aquele bem pudesse vir a ser alvo de credores de uma empresa do requerente;
c. A requerida sempre soube que a vontade dos avós era adquirir para si próprios o referido imóvel e que, quando falecessem o mesmo fosse transmitido ao requerente;
d. A requerida pretende alienar o referido imóvel.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório4
BB5 intentou procedimento cautelar de arresto contra AA 6, pedindo que seja decretado o arrolamento da fração autónoma designada pela letra ”C” correspondente ao rés-do-chão direito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na ..., da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .. da referida freguesia de ... e inscrito na matriz urbana sob o art. ... da ... e ... com o valor patrimonial de €:48.210,00 (quarenta e oito mil euros e duzentos e dez cêntimos).
Mais pediu que o Tribunal decrete a inversão do contencioso.
Para tanto alegou, em síntese, que:
• É pai da requerida, sendo igualmente o único herdeiro legitimário dos seus pais, falecidos em 2024;
• Os falecidos, seus pais, não deixaram testamento, nem qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhes sucedido como único herdeiro, o aqui requerente.
• Os seus pais foram até ao dia 31 de agosto de 2022, os proprietários do imóvel onde residiam sito na ....
• No dia 31 de agosto de 2022, no Cartório Notarial de Sintra da Dra. CC, os pais do requerente procederam à venda da fração onde residiam pelo preço de € 163.500,00 (cento e sessenta e três mil e quinhentos euros).
• Os seus pais celebraram inicialmente em seu nome, e na presença da Sra. DD, um contrato de promessa de compra e venda da fração autónoma correspondente ao rés do chão do nº … da Praceta ….
• Dias antes da celebração da Escritura Pública de Compra e Venda, os pais do requerente que se encontravam doentes e tinham conhecimento de que o filho tinha sido gerente da sociedade a “...”, que se deparava com um período financeiro difícil, decidiram solicitar à Sra. DD, que alterasse o nome dos compradores no contrato de promessa de compra e venda, e assim, em vez de ficarem a constar os nomes de ambos como promitentes compradores, passaria a constar unicamente o nome da requerida, esclarecendo que tinham receio de morrer, e que o imóvel pudesse ser penhorado por alguma divida em processo de reversão da empresa de que o filho tinha sido gerente, mas que a intenção era que o bem ficasse para o filho.
• Este seria o único bem que poderia integrar a herança, dado que a anterior fração já tinha sido vendida, o que aliás, possibilitou a compra da atual.
• Foi do pleno conhecimento da requerida, que a decisão dos avós visava exclusivamente, a salvaguarda do imóvel, e que não se tratava de fazerem nenhuma doação do dinheiro
• No dia 21 de setembro de 2022, foi realizada no Cartório da Notária EE, em nome da requerida, a Escritura Pública de Compra e Venda, da fração autónoma correspondente ao rés-do-chão direito do nº …, do imóvel sito em ..., e efetuado o competente registo na Conservatória do Registo Predial.
• Esta fração ao ter ficado registada em nome da requerida, esvaziou a herança aberta por óbito dos pais do requerente, que ficou sem o dinheiro da venda da anterior fração, e sem a propriedade da atual fração.
• O valor de aquisição da fração paga pelos pais do requerente foi de 144.500,00 (cento e quarenta e quatro mil e quinhentos euros).
• A fração, que está em nome da requerida, foi totalmente paga com o produto da venda do único bem propriedade dos pais do requerente.
• A requerida pretende vender o imóvel que tinha sido comprado com o dinheiro dos seus pais.
• Encontrando-se o imóvel registado só a favor da requerida.
• Tendo a requerida expressamente dito à Sra. D. DD, que tem um interessado na compra da fração, solicitando-lhe para o efeito as plantas, verifica-se que pode estar iminente a dissipação do imóvel através da venda a terceiros de boa-fé.
• A eventual venda do imóvel a terceiros de boa-fé, para além de acarretar um avultado prejuízo para o requerente, causa-lhe uma lesão grave e de difícil reparação em face da ausência de outros bens da herança, que pudessem compor a sua legitima.
• A eventual venda(dissipação) da fração, atento o seu valor, a terceiros de boa-fé, causa ao requerente uma grave lesão de difícil reparação.
Tendo o Tribunal a quo dispensado a audição prévia da requerida7, foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo requerente8, após o que veio a ser proferida decisão com o seguinte dispositivo 9:
“Pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e as normas acima citadas, julga-se procedente, por provada, o presente procedimento cautelar e, em consequência, decreta-se o arrolamento do seguinte bem imóvel:
Fração autónoma designada pela letra C correspondente ao rés-do-chão direito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na ..., da freguesia de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..-C da freguesia de ... e inscrita na matriz urbana sob o art.º ... da ... e ... com o valor patrimonial de €:48.210,00 (quarenta e oito mil euros e duzentos e dez cêntimos).
*
Indefere-se o pedido de inversão do contencioso.
Procedimento Cautelar (CPC2013)
*
O arrolamento ora ordenado deve observar as formalidades previstas no art.º 406.º, nºs 1 a 5, do CPC.
Ao abrigo do disposto nos art.ºs 405.º, nº 3, e 408.º, nº 1, do CPC:
• Nomeio como depositário do bem a arrolar a Requerida AA.
• Nomeio como avaliador do bem imóvel arrolado FF com residência na ..., melhor identificado pelo Requerente na audiência de 27/02/2025 (cfr. ata correspondente).
• Nomeio como agente de execução GG, portador da cédula ...., com escritório na ..., melhor identificado pelo Requerente na audiência de 27/02/2025 (cfr. ata correspondente), o qual procederá à execução do arrolamento ora decretado.
*
Registe o presente arrolamento junto da competente Conservatória do Registo Predial – cfr. art.º 5.º, nº 1, e art.º 3.º, nº 1, al. d), do Código de Registo Predial - DL n.º 224/84, de 06 de julho) – imóvel identificado na certidão permanente junta como Doc. 10 com o requerimento inicial.
D.N.
*
Oportunamente e após concretização do arrolamento, notifique a requerida nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 366.º, nº 6 e 372.º do CPC.
*
Custas a cargo do Requerente (cfr. art.º 539.º, n.º 1, do CPC).”
Concretizado o arrolamento, e citada a requerida10, a mesma interpôs o presente recurso de apelação11, apresentando alegações de recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:

A. Da matéria de facto dada como provada pela decisão recorrida não é possível concluir pelo “fumus boni iuris” ou seja, pela existência do direito, liberalidade inoficiosa, que fundamenta o pedido de arrolamento da fração;
B. Também não se encontra demonstrado o justo receio (“periculum in mora”) de que a venda da fração é suscetível de causar um dano ao Recorrido de difícil ou impossível reparação;
C. O Recorrido não colocou em causa a validade da compra e venda efetuada pela Recorrente, nem a legalidade da doação dos € 144.500,00 efetuada pelos seus pais;
D. Os pais do Recorrido nunca adquiriram a propriedade da fração arrolada e esta nunca fez parte do seu acervo hereditário, como reconhece expressamente o Recorrido;
E. A referida fração não é assim uma liberalidade dos falecidos pais do Recorrido e como tal é insuscetível de redução inoficiosa, nos termos dos artigos 2168.º, 2171.º e 2174.º do Código Civil;
F. O que fazia parte do património dos pais do Recorrido e que pode ter sido doado à Recorrente foram, segundo a petição inicial e a decisão recorrida, os € 144.500,00 para compra da fração.
G. Não se provou qual era o acervo hereditário dos pais do Recorrido, qual o montante da sua legítima e em que percentagem a legítima poderá ter sido ofendida pela doação dos € 144.500,00;
H. Não ficou provado que a doação efetuada pelos pais do Recorrido é suscetível, de ofender a legítima do Recorrido e por isso;
I. Também não ficou provado que terá de haver uma redução da liberalidade, por inoficiosa, nos termos dos artigos 2168.º n.º 1 e 2174.º do C. Civil;
J. Também não ficou provado que a redução de liberalidades inoficiosas, entre vivos, teria de começar pela doação efetuada à Recorrente, nos termos e para os efeitos do art.º 2173.º n.º 1 do C. Civil;
K. Errou assim o Tribunal a quo quando considerou que se tinha demonstrado o designado “fumus boni iuris”, nos termos dos artigos 2168.º, 2173.º e 2174.º todos do C. Civil;
L. Errou também o Tribunal a quo quando considerou verificado o periculum in mora, nomeadamente a possibilidade de existir um dano grave e de difícil reparação se a Recorrente vendesse a fração arrolada;
M. E assim é porque não se provou em que montante a doação ofendeu a legitima do Recorrente, nem o montante da redução da liberalidade;
N. Não sendo possível quantificar o dano, não é possível saber se o mesmo é grave e de difícil reparação, nomeadamente porque também nada se provou sobre as condições económicas da Recorrente;
O. Esta é a razão pela qual o Tribunal a quo não fundamenta na decisão recorrida por que razão entende que a venda da fração é suscetível de causar um dano de difícil ou impossível reparação aos interesses do Recorrido.
P. Como também não diz, porque não sabe, qual é o eventual dano do Recorrido e quais são as condições económico e financeiras da Recorrente.
Q. Para que haja uma liberalidade inoficiosa tem de haver uma ofensa da legítima e para que haja uma ofensa da legitima, terá que se demonstrar indiciariamente quais os montantes da(s) herança(s), da legítima e da liberalidade.
R. Percorridos os factos dados como provados não é possível concluir que a eventual doação dos € 144.500,00 ofendeu a legítima do Recorrido, nem qual o montante da redução da liberalidade.
S. Também não se pode dar como provado, mesmo que indiciariamente, que a eventual doação efetuada pelos pais do Recorrido consubstancia uma liberalidade inoficiosa, nos termos do art.º 2168.º do C. Civil.
T. Errou assim o Tribunal a quo quando na decisão recorrida considerou indiciariamente demonstrada a existência de uma liberalidade que ofendia a legitima do Recorrido e que a venda da fração poderia causar um dano grave e de difícil reparação ao seu direito.
U. O bem arrolado não era dos pais do Recorrido e não se encontra demonstrado, mesmo que indiciariamente, que a doação a Recorrente, dos montantes ou do bem, ofende a sua legítima.
V. Do supra exposto, conclui-se que da matéria dada como provada não ficou indiciariamente demonstrada a probabilidade da existência de um direito sobre o bem arrolado, nem a invocada inoficiosidade da liberalidade efetuada pelos pais do Recorrido.
W. A decisão recorrida viola o princípio da proporcionalidade porque decretou o arrolamento da fração sem ponderar os eventuais prejuízos do seu decretamento.
X. Decretar o arrolamento da fração, sem apurar a existência do direito do Recorrido, do eventual dano e da sua gravidade é desproporcional e excede consideravelmente o putativo dano que se pretende evitar.
Y. Pelo exposto, a decisão recorrida viola o preceituado nos artigos 362.º n.º 1 e 368.º n.º 2 do C. P. Civil.
Z. Deverá dar-se provimento ao presente recurso e por via dele anular-se a decisão recorrida e substituí-la por outra que indefira, por não provado, o pedido de arrolamento da fração da Recorrida. ”
O apelado contra-alegou12, apresentando as seguintes conclusões:

A. A recorrente interpôs o presente recurso de Apelação, preterindo a possibilidade de se opor à decretação do arrolamento.
B. No entanto, na sua maior parte, verifica-se que a argumentação alegada não é matéria sujeita a recurso, mas sim matéria cuja apreciação deveria ser remetida para a discussão de oposição ou para a discussão da ação principal, faltando fundamento ao recurso de Apelação.
C. A recorrente alega não resultar da matéria provada o ‘fumus boni iuris’, o ‘periculum in mora’ e o princípio da proporcionalidade, requisitos essenciais para a decretação do arrolamento.
D. No que respeita ao ‘fumus boni iuris’, não pode concordar o recorrido com a alegação da recorrente por considerar que a convicção do julgador, justificada pela qualidade de herdeiro único, está correta.
E. A decisão de que existe uma aparência de direito justificada pela demonstração de que o recorrido tem legitimidade e interesse na conservação do imóvel adquirido, com provável ofensa da legítima, com o dinheiro dos seus pais é suficiente para preencher o requisito ‘fumus boni iuris’.
F. Relativamente ao ‘periculum in mora’, a matéria alegada pela recorrente consubstancia uma verdadeira oposição (e não matéria sujeita a recurso), para além de que resultou provado do depoimento da testemunha DD que a requerida se preparava para proceder à venda do imóvel.
G. Considera o recorrido que, considerando as regras gerais do ónus da prova, caberia à recorrente, em sede de oposição, demonstrar que possui bens suficientes para garantir o pagamento ao recorrido, o que não foi feito.
H. Tendo ficado provado que a herança não possuía mais bens imóveis ou de valor considerável, julgou bem o tribunal a quo.
I. Por fim, considera o recorrido que a decisão não viola o preceituado nos artigos 362.º n.º 1 e 368.º n.º 2 do CPC., considerando que cabia à recorrente – em sede de oposição – demonstrar o quantum do seu prejuízo, para aferição da proporcionalidade, o que não fez.
J. No entender do recorrido, a decisão do tribunal a quo está conforme com a lei, foi justa e corretamente elaborada. A matéria de facto dada como provada é suficiente para sustentar a decisão de decretar o arrolamento e a apreciação da prova foi correta.
K. O presente recurso carece, assim, de fundamento, quer de facto, quer de direito.”
Remetidos os autos a este Tribunal, e nada obstando ao conhecimento do mérito do presente recurso, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam13. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil).
Não obstante, e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas14.
Finalmente, importa reter que nos termos do disposto no art. 635º, nº 2 do CPC assiste ao recorrente a faculdade de restringir o objeto do recurso à discussão de uma parte do objeto da causa.
Revertendo ao caso em apreço, analisadas as conclusões de recurso, a única questão a apreciar e decidir reside em determinar se se mostram reunidos os requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar de arrolamento, considerando a factualidade provada, que não foi impugnada.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
O Tribunal a quo considerou indiciariamente provados os seguintes factos:
1. O aqui requerente é o pai da requerida.
2. O requerente é o único herdeiro legitimário dos seus pais (o seu único filho).
3. O requerente é o cabeça de casal na herança aberta por óbito dos seus pais a Sra. HH, falecida no dia 6 de junho de 2024, e o Sr. II, falecido no dia 4 de outubro de 2024.
4. Os falecidos não deixaram testamento, nem qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhes sucedido como único herdeiro, o aqui requerente.
5. Os pais do aqui requerente foram até ao dia 31 de agosto de 2022, os proprietários do imóvel onde residiam sito na ....
6. Como a fração de que eram proprietários era um terceiro andar, num prédio sem elevador, e a idade avançada já não lhes permitia subir e descer escadas, decidiram colocar à venda a casa de que eram proprietários, e com o dinheiro da venda, adquirirem um outro imóvel, que fosse ou um rés do chão, ou um outro andar, mas num prédio que tivesse um elevador.
7. Os pais do requerente, pediram-lhe ajuda no sentido de contactarem uma imobiliária, que promovesse a venda do seu imóvel, e que simultaneamente, fizesse uma prospeção de mercado, no sentido de encontrar um imóvel que correspondesse às características pretendidas.
8. O aqui requerente contactou a Sra. D. DD, que trabalhava numa Sociedade de Mediação Imobiliária, cujas firmas eram a “... “e a “...,” para proceder à venda da fração propriedade dos seus pais, e na angariação da compra da nova fração.
9. A mediadora após uma prospeção de mercado, informou-os que tinha angariado para venda o rés-do-chão no prédio ao lado da sua atual casa, ou seja, do nº … da Praceta ….
10. Foi realizada uma reunião com a agente imobiliária, na qual estiveram presentes o requerente, e os seus pais, que manifestaram o seu agrado pela aquisição do rés-do-chão, afirmando que seria uma excelente compra, mas que para o efeito necessitariam de vender primeiro a sua fração, porque não disponham de capitais próprios para adquirir o novo imóvel, e a idade já não lhes permitia recorrer ao crédito bancário.
11. A Sra. D. DD, foi efetuando diligências e acabou por encontrar interessados na compra da fração dos pais do requerente.
12. No dia 31 de agosto de 2022, no Cartório Notarial de Sintra da Dra. CC, os pais do requerente procederam à venda da fração onde residiam pelo preço de €: 163.500,00 (cento e sessenta e três mil e quinhentos euros), tendo sido posteriormente realizado o competente registo do ato na Conservatória do Registo Predial.
13. Foi pago a título de sinal e princípio de pagamento pelo Comprador o Sr. JJ, a quantia de € 32.700,00 (trinta e dois mil e setecentos euros) por duas transferências:
• Uma transferência bancária realizada para a conta da CGD dos pais do requerente no dia 31 de julho de 2022, no montante de €:3.700,00(três mil e setecentos euros);
• Uma transferência bancária efetuada para a conta da CGD dos pais do requerente no dia 1 de agosto de 2022, no montante de €:29.000,00(vinte e nove mil euros).
14. Ambas as transferências bancárias foram efetuadas pelo comprador JJ para a conta dos falecidos pais do requerente, conta da CGD com o NIB: PT ....
15. Posteriormente foi pago através do cheque bancário com o número ... sacado sobre o Banco Bankinter S.A., o remanescente do valor da aquisição, ou seja, o valor de €:130.800,00(cento e trinta mil e oitocentos euros) depositado na conta dos vendedores e aqui pais do requerente.
16. Os pais do requerente celebraram inicialmente em seu nome, e na presença da Sra. DD, um contrato de promessa de compra e venda da fração autónoma correspondente ao rés do chão do nº … da Praceta ….
17. Dias antes da celebração da Escritura Pública de Compra e Venda, os pais do requerente, que se encontravam doentes e tinham conhecimento de que o filho tinha sido gerente da sociedade a “...”, que se deparava com um período financeiro difícil, decidiram solicitar à Sra. DD, que alterasse o nome dos compradores no contrato de promessa de compra e venda, e assim, em vez de ficarem a constar os nomes de ambos como promitentes compradores, passaria a constar unicamente o nome da requerida, esclarecendo que tinham receio de morrer, e que o imóvel pudesse ser penhorado por alguma divida em processo de reversão da empresa de que o filho tinha sido gerente, mas que a intenção era que o bem ficasse para o filho.
18. Foi do pleno conhecimento da requerida, que a decisão dos avós visava exclusivamente a salvaguarda do imóvel, e que não se tratava de fazerem nenhuma doação do dinheiro.
19. No dia 21 de setembro de 2022, foi realizada no Cartório da Notária EE, em nome da requerida, a Escritura Pública de Compra e Venda, da fração autónoma correspondente ao rés-do-chão direito do nº …, do imóvel sito em ..., e efetuado o competente registo na Conservatória do Registo Predial.
20. O valor de aquisição da fração paga pelos pais do requerente foi de 144.500,00 (cento e quarenta e quatro mil e quinhentos euros).
21. O pagamento deste valor foi feito da seguinte forma:
• Uma transferência bancária feita diretamente da conta da CGD dos pais do requerente no dia 3/08/2022, valor de €:14.450,00(catorze mil, quatrocentos e cinquenta euros).
• E no dia 15/09/2022, através do cheque bancário nº ..., sacado também sob a conta da CGD dos pais do requerente foi pago o restante valor da aquisição do imóvel, ou seja, foi paga a quantia de €: 130.050,00(cento e trinta mil e cinquenta cêntimos).
22. A fração correspondente ao rés-do-chão direito do nº …, foi paga integralmente com o dinheiro dos pais do requerente, dinheiro proveniente da venda da casa onde residiam e o único bem imóvel de que dispunham.
23. Com o pagamento do valor de 144.500,00 (cento e quarenta e quatro mil e quinhentos euros) e com o registo da fração em nome da requerida, o património dos pais do requerente ficou despojado de bens com valor.
24. Apesar da escritura ter sido feita em nome da requerida, os pais do requerente sempre consideraram a casa como sua, foi lá que residiram, estando os contratos de água, luz e internet, em nome do falecido pai do requerente.
25. Os pais do requerente suportaram os custos de uma cozinha totalmente nova, bem como, compraram os eletrodomésticos, tudo no valor de €: 4.037,94(quatro mil e trinta e sete euros e noventa e quatro cêntimos).
26. Passado algum tempo após a celebração da Escritura de Compra e Venda, a requerida passou a ter um comportamento estranho com os seus avós, dizendo-lhes frequentemente que era ela a dona da casa.
27. Chegou a dizer aos avós que o imóvel era dela, e que como tal, podia fazer o que bem entendesse.
28. Assustados com o comportamento inesperado da requerida, e percebendo que esta se estava a apoderar do imóvel, os pais do requerente contactaram novamente a Sra. D. DD, e pediram-lhe para os ajudar a reverter a situação, ou seja, a colocar o imóvel no nome deles, pois a requerida dizia que a casa era dela, que fazia o que bem entendesse, e chegou inclusive a ameaçá-los que os colocava na rua.
29. A mediadora com muita pena dos pais do requerente, prontificou-se a ajudar o casal, e nessa medida contactou a Notária do Cartório Notarial onde tinha sido celebrada a escritura, questionando-a sobre como poderiam reverter a situação, e colocar a fração no nome do casal.
30. A notária informou a mediadora que a única forma de reverter a situação seria a requerida fazer uma doação do imóvel aos seus avós.
31. A requerida, confrontada com esse pedido, recusou-se a fazer a doação, alegando que o imóvel estava em nome dela, e ameaçando os avós que se continuassem a querer mudar a titularidade do imóvel eram os dois colocados na rua.
32. Os idosos declararam não só à Sra. agente imobiliária, bem como, a pessoas de família, que desejavam reverter a situação, que queriam colocar a casa em nome deles, mas que a neta se negava a fazê-lo, ameaçando-os que os colocava na rua.
33. A mãe do requerente acabou por falecer no dia 26 de junho de 2024, e o pai faleceu 4 meses depois, ou seja, 4 de outubro de 2024.
34. A mãe do requerente antes de morrer pediu-lhe desculpas por ter feito a escritura da casa em nome da neta, e explicou-lhe que o tinham feito com medo de que ele ficasse sem o único bem imóvel que tinham, e que nunca pensaram que a neta fosse ter este comportamento.
35. O pai do requerente já no hospital disse-lhe que tanto ele, como a mãe, pediram diversas vezes à requerida para lhes fazer uma doação do imóvel, mas esta sempre se recusou a fazê-la.
36. O pai do requerente por várias vezes disse à Sra. agente imobiliária, a D. DD, que queria voltar a colocar a casa em seu nome, e da sua mulher.
37. Nunca foi intuito dos avós da requerida fazerem-lhe uma doação no valor de €: 144.500,00 (cento e quarenta e quatro mil e quinhentos euros) valor da aquisição do imóvel, nem prejudicarem o requerente.
38. A fração que está em nome da requerida, foi totalmente paga com o produto da venda do único bem propriedade dos pais do requerente.
39. O valor da compra da fração não saiu da conta dos pais do requerente para a conta da requerida.
40. A transferência foi efetuada diretamente da conta dos avós da requerida, para a conta dos vendedores.
41. A requerida pretende proceder à venda do bem imóvel.
42. A requerida contactou há pouco tempo a agente imobiliária, a Sr ª D. DD, com o intuito de saber se ainda tinha com ela as plantas da casa, pois tinha um amigo interessado na compra da casa, e necessitava de ter as plantas para o processo de venda.
43. Foi a Sra. D. DD quem alertou o requerente há pouco tempo, que a requerida pretendia vender o imóvel que tinha sido comprado com o dinheiro dos seus pais, negócio que tinha intermediado, e do qual teve conhecimento direto de todos os contornos.
A decisão apelada não contém qualquer elenco de factos não provados.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Do arrolamento e dos requisitos de que depende o seu decretamento
A delimitação da figura do procedimento cautelar de arrolamento resulta do disposto nos arts. 403º a 405º do CPC, que têm o seguinte teor:
“ Artigo 403.º (art.º 421.º CPC 1961)
Fundamento
1 - Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2 - O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.
Artigo 404.º (art.º 422.º CPC 1961)
Legitimidade
1 - O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos.
2 - Aos credores só é permitido requerer arrolamento nos casos em que haja lugar à arrecadação da herança.
Artigo 405.º (art.º 423.º CPC 1961)
Processo para o decretamento da providência
1 - O requerente faz prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente.
2 - Produzidas as provas que forem julgadas necessárias, o juiz ordena as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.
3 - No respetivo despacho, procede-se logo a nomeação de um depositário e ainda de um avaliador, que é dispensado do juramento.“
Como resulta das citadas disposições legais, o arrolamento constitui uma providência cautelar conservatória, que visa evitar o extravio, ocultação ou dissipação de bens móveis, imóveis, ou documentos, relativamente aos quais o requerente invoque um direito que resultaria afetado pelo seu descaminho.
Nas palavras de LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE15, “[a]rrolar significa inscrever em rol (Cândido de Figueiredo, Dicionário). A ideia de arrolamento está por isso ligada à de existência duma pluralidade de bens que se pretende acautelar. (…) Se estes estiverem identificados e apenas se discutir a titularidade do direito (real ou de propriedade intelectual) sobre eles, ou se são ou não devidos (como objecto de obrigação de dare ou facere), a providência adequada é inominada, cabendo ao caso o procedimento cautelar comum. Não importa já descrever ou especificar os bens, mas apenas apreendê-los e depositá-los ou entregá-los a título provisório ao autor”.
Por seu turno observam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA16 que o arrolamento constitui “uma medida de carácter conservatório que pode apresentar-se sob duas vertentes: como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a questão da titularidade do direito sobre eles não for decidida na ação principal; como medida destinada a garantir a persistência de documentos necessários para provar a titularidade do direito a discutir na ação principal.”
Também recorda ABRANTES GERALDES17 que o arrolamento “apresenta algumas semelhanças com o arresto, tendo em conta a latitude dos bens sobre que pode incidir e o modo de execução, dele diferindo quanto á situação de perigo que visa prevenir: em lugar do perigo de perda da garantia patrimonial, tende a eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos. Por outro lado, ainda que no procedimento cautelar comum se possam inserir providências gerais que consistam na apreensão de bens ou na sua entrega a um fiel depositário, o arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de «especificação» no processo principal (…).”
Assim, como já referia ALBERTO DOS REIS18, “se uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante a ocorrência que justifica o uso (…) do arrolamento.”
Na mesma linha concluem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA19 que o procedimento cautelar de arrolamento “[é] instrumental em relação a todas as ações em que esteja presente a discussão da titularidade de certos bens (v.g. inventário sucessório ou para partilha do património comum dos cônjuges, prestação de contas, entrega de universalidade de facto ou de direito”.
Deste excurso decorre que constituem requisitos da procedência do procedimento cautelar de arrolamento:
a. A probabilidade da existência de um direito incidente sobre bens móveis, direitos ou documentos, a demonstrar mediante prova sumária (fumus boni iuris), já reconhecido ou a reconhecer em ação a intentar pelo requerente, e o justo receio de extravio, ocultação, ou dissipação dos mesmos bens ou direitos (periculum in mora).
Relativamente ao requisito do fumus boni iuris diz MARCO CARVALHO GONÇALVES20 que “torna-se necessário que o requerente alegue e faça prova sumária da titularidade de um direito sobre os bens ou documentos que pretende arrolar, ou seja, exige-se que o requerente demonstre um interesse jurídico relevante na conservação desses mesmos bens ou documentos (art.º 405º, n.º 1). Se esse direito depender de ação proposta ou a propor, o requerente deve igualmente convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente. Exige-se, por isso, um “direito aparente”, o qual pode estar já constituído e reconhecido ou a aguardar pela sua declaração em ação judicial pendente ou a propor”.
Já quanto ao periculum in mora, refere o mesmo autor21 que “o requerente deve alegar factos concretos e objetivos dos quais se possa extrair a conclusão de que esse receio é real e efetivo. Não bastam, por isso, simples temores ou receios meramente subjetivos, sem qualquer tipo de concretização factual.”
3.2.2. O caso dos autos
No caso vertente resultou indiciariamente provado que os pais do requerente faleceram, e que o requerente é o seu único filho, não tendo os falecidos feito testamento ou deixado qualquer outra disposição de vontade22, o que significa que o requerente é o único herdeiro dos seus pais (arts. 2131º a 2135º, 2139º, nº 2, e 2157º, todos do CC).
Mais se apurou que os falecidos pais do requerente pretenderam adquirir um imóvel, e vieram a concretizar tal aquisição, pagando o preço da aquisição com capitais próprios, e passando a usá-lo como seu, embora aquela aquisição tenha sido formalizada em nome da requerida, porque na altura os pais do requerente se encontravam ambos doentes, e tinham receio de que adquirindo o mesmo imóvel em nome próprio, e vindo ambos a falecer, tal bem viesse a ser reclamado para pagamento de dívidas de uma empresa do requerente. Mais se provou que era intenção dos pais do requerente que, após a sua morte, tal imóvel “ficasse” para o filho, e que a requerida tinha pleno conhecimento dessa vontade, e não se opôs à concretização da aquisição do imóvel nesses moldes 23.
Esta factualidade indicia fortemente uma situação de interposição real de pessoas, legitimando a afirmação de que o imóvel a que se reportam os presentes autos constitui, afinal de contas, um bem da herança dos falecidos pais do requerente e avós da requerida.
Expliquemo-nos.
A celebração de um negócio jurídico através de outra pessoa, que age como “testa de ferro” do contraente pode configurar uma situação de interposição fictícia, ou de interposição real.
A interposição fictícia ocorrerá quando todos os intervenientes no negócio se mostrem conhecedores de que um deles age em nome de terceiro, embora formalmente outorgue o negócio em nome próprio. Nestas circunstâncias verifica-se uma situação de simulação relativa subjetiva, em que a divergência entre a vontade e a declaração tem por objeto a identidade real de um dos contraentes. Este vício conduz à nulidade do negócio jurídico simulado, embora possa subsistir o negócio dissimulado (arts. 240º e 241º do CC).
Como modalidade de simulação relativa, a interposição fictícia só ocorre quando todos os outorgantes do negócio atuem em conluio. Assim, e porque no caso em apreço não se apurou que os vendedores do imóvel que constitui objeto do presente procedimento cautelar tivessem conhecimento de que quem pretendia comprar o mesmo imóvel eram os pais do requerente e não a filha deste, e que a requerida atuava como “testa de ferro” dos avós, e ainda assim tenham pactuado com tal situação, integrando assim um verdadeiro pacto simulatório, não pode considerar-se verificada uma situação de interposição fictícia.
Contudo, sempre que alguém celebra um negócio em nome próprio, mas no interesse e por conta de terceiro, sem que se apure que o(s) outro(s) contraente(s) tinham conhecimento dessa interposição, ocorre uma situação de interposição real.
Esta não se rege pelas regras da simulação, atenta a ausência de pacto simulatório que congregue todos os outorgantes do negócio.
Contudo, as situações de interposição real regem-se pelas regras do mantado (arts. 1157º ss. do CC), mais precisamente aquelas que regulam o mandato sem representação.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, CARLOS MOTA PINTO24, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS E PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS,25 MAFALDA MIRANDA BARBOSA26, e A. BARRETO MENEZES CORDEIRO27, bem como os seguintes arestos:
• RP 23-06-2015 (Carlos Portela), p. 172/14.7TBPVZ.P1;
• RG 05-02-2015 (Espinheira Baltar), p. 2936/07.9TBBCL.G1;
• RC 08-09-2015 (Isabel Silva), p. 316879/11.9YIPRT.C1;
• RG 20-04-2017 (Higina Castelo), p. 1195/14.1TBBRG.G1;
• RC 09-05-2017 (Jorge Arcanjo), p. 1941/12.8TBFIG.C1;
• RG 18-12-2017 (Sandra Melo), p. 170/16.6T8VPA.G1;
• RP 27-01-2020 (Fernanda Almeida), p. 238/19.7T8PVZ.P1;
• RC 15-12-2021 (Sílvia Pires), p. 1612/17.9T8LRA.C1;
• STJ 10-04-1980 (Aquilino Ribeiro), p. 068364;
• STJ 15-05-2003 (Ferreira de Almeida), p. 03B1162;
• STJ 19-10-2014 (Fernando Bento), p. 199/03.4TBAVS-A.E2.S1;
• STJ 12-07-2018 (Fátima Gomes), p. 659/16.7T8VNG.S1;
• STJ 15-03-2022 (Barateiro Martins), p. 2113/19.6T8LRS.L1.S1;
• STJ 30-11-2022 Afonso Henrique), p. 360/18.7T8PVZ.P2.S1;
No caso da interposição real, a concretização do negócio entre o mandatário e o terceiro corresponde à vontade real dos outorgantes e também do mandante, mas inexiste qualquer acordo entre este e do outro outorgante, que desconhece a interposição.
Ora, no caso vertente, é nesse sentido que a factualidade indiciariamente provada aponta. Assim, tendo a requerida celebrado o contrato de compra-e-venda do imóvel dos autos na qualidade de compradora, adquiriu o direito de propriedade sobre tal imóvel (art. 1180º do CC), mas manteve-se vinculada ao mandato, nomeadamente a obrigação de agir de acordo com o ajustado com os mandantes, a saber os seus avós paternos, pais do ora requerente (art. 1161º, a), do CC), maxime a de transferir para os mandantes os direitos adquiridos em execução do mandato (art. 1181º, nº 1 do CC).
Neste mesmo sentido, analisando uma situação em tudo semelhante à dos presentes autos, cfr. ac. STJ 30-01-2025 Ferreira Lopes), p. 24248/20.2TSLSB.L1.S1, em cujo sumário se pode ler:

I- Consubstancia um mandato sem representação o acordo pelo qual a Ré, a pedido do avô, em benefício e por conta deste, outorgou como compradora numa escritura de compra de uma fracção autónoma;
II– Ainda que tenha sido dado como não provado que o mandante “acordou com a Ré que, depois da aquisição, esta lhe transmitiria o prédio quando este quisesse e pedisse”, a Ré não deixa de estar obrigada a transmitir o imóvel para a herança aberta por óbito daquele;
III – A obrigação do mandatário de transferir para o mandante os direitos adquiridos na execução do mandato resulta directamente do nº1 do art. 1181º, do CCivil.”.
Conclui-se assim que no caso vertente, o requerente, na qualidade de único herdeiro dos seus pais e cabeça-de-casal da mesma herança, tem o direito de exigir da requerida, se necessário pela via judicial, que a mesma “restitua” o imóvel dos autos à mencionada herança. Foi aliás o que sucedeu no caso do último acórdão citado, que confirmou acórdão do Tribunal da Relação que havia declarado transmitida para a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do avô da ré o imóvel objeto do negócio celebrado com interposição real.
Verifica-se, pois, que a factualidade provada, que corresponde a matéria alegada pelo requerente no requerimento inicial permite concluir que este tem direito a questionar a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel dos presentes autos que se acha registado a favor da requerida, nos termo expostos, o que permite desde logo ter por preenchido o requisito do fumus boni iuris.
É certo que não foi exatamente deste modo que o requerente qualificou juridicamente a sua pretensão, tendo antes invocado o regime das doações inoficiosas. Contudo, o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dos factos alegados pelo requerente, (art. 5º, nº 3 do CPC), sendo certo que o requerente invocou expressamente o direito de exigir a “restituição” deste bem ao acervo hereditário e só subsidiariamente sustentou a redução da inoficiosidade de uma eventual doação, caso se qualificasse a aquisição do imóvel em nome da requerida como tal (vd. art. 112º, als. c) e d) do requerimento inicial).
Seja como for, mesmo que se qualificasse a concretização desse negócio como liberalidade, por implicar a doação do mesmo imóvel (visto que quem pagou o preço foram os pais do requerente28), sempre chegaríamos à mesma conclusão.
Na verdade, a doação é definida no art. 940º, nº 1 do CC como “(…)o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.”
Ora, nos termos do disposto no art. 2168º, nº 1 do CC, “Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários”.
No caso dos autos, sendo o requerente o único herdeiro dos seus pais29, e sendo o imóvel dos autos o único bem que estes tinham30, é inegável que a aquisição do imóvel dos autos pela requerida, a título gratuito (posto que esta nada pagou31) ofende a legítima do requerente e, por isso é inoficiosa. Daí que o requerente tenha o direito de exigir a sua redução, que no caso abrange a totalidade do bem, implicando por isso a restituição do mesmo à massa hereditária dos pais do requerente e avós da requerida (art. 274º, nº 2, 1ª parte, do CC).
Face ao supra exposto é inegável que se verifica o pressuposto do fumus boni iuris.
No que diz respeito ao periculum in mora, e ao contrário do que sustenta a apelante, este requisito basta-se com a demonstração de que a mesma pretende alienar o imóvel dos presentes autos32. Com efeito, o art. 403º, nº 1 consagra um conceito específico de periculum in mora, que se preenche pela demonstração do receio objetivo de dissipação do bem a arrolar. Essa dissipação pode resultar da alienação do mesmo bem a terceiro de boa-fé, na medida em que tal negócio seria oponível ao requerente e os proveitos dali resultantes seriam facilmente ocultados.33
Não tem por isso o requerente que demonstrar qualquer outro prejuízo.
A finalizar importa ainda deixar claro que, também ao contrário do sustentado pela apelante, os arts. 362º, nº 1 e 368º, nº 2 do CPC não se aplicam ao procedimento cautelar especificado de arrolamento, antes integram o regime do procedimento cautelar comum – Tal é o que resulta, quanto à 1ª norma citada, do art. 362º, nº 3 e, quanto à segunda, da circunstância de ser incompatível com a natureza e finalidades do arrolamento.
Termos em que se conclui pela total improcedência da presente apelação.
3.2.3. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito”.
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº 1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à total improcedência da presente apelação, as custas deveriam ser suportadas pela apelante.
Não obstante, por via do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido, e que inclui a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo34, a mesma acha-se dispensada de as pagar.
Tal dispensa não constitui uma situação de isenção, porquanto aquele benefício pode ser revogado nos termos previstos no Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais35 (vd. arts. 10º e 13º do referido diploma).
Daí que se justifique a condenação da apelante em custas, embora com ressalva do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido36.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, assim confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 1 de julho de 2025 37
Diogo Ravara
José Capacete
Micaela Sousa
____________________________________________________
1. Da responsabilidade do relator - art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06, e adiante designado pela sigla “CPC”.
2. Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original.
3. Todos os acórdãos citados no presente aresto se acham publicados em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão eletrónica deste acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados.
4. Reproduzimos o relatório constante da decisão recorrida, ao qual acrescentámos a referência aos desenvolvimentos posteriores.
5. Titular do º de identificação civil 07861335 e do nº de identificação fiscal ....
6. Titular do º de identificação civil ... e do nº de identificação fiscal ....
7. Refª ..., de 14-02-2025.
8. Vd. ata com a refª ..., de 27-02-2025.
9. Refª ..., de 28-02-2025.
10. Refª 27893271, de 14-05-2025.
11. Refª 27891818/52286231, de 13-05-2025
12. Refª 28022048/52506610, de 02-06-2025.
13. Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
14. Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
15. “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2, Coimbra Editora, p. 156.
16. “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., Almedina, 2022, pp. 516-517.
17. “Temas da reforma do processo civil”, vol. IV, Almedina, 2003, pp. 264-26
18. “Código de Processo Civil anotado”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 105.
19. Ob. e vol. cits. p. 517.
20. “Providências cautelares”, 4ª ed., Almedina, 2023, pp. 260-261.
21. “Tutela cautelar conservatória: Perspetivas jurisprudenciais sobre o arresto e o arrolamento”, in Liber Amirocum Benedita Mac Crorie, vol. II, UMinho Editora, 2022, p. 54 e “Providências Cautelares”, 4ª ed., Almedina, 2023, p. 262
22. Pontos 1 a 4 dos factos provados.
23. Pontos 5 a 10, e 16 a 25 dos factos provados.
24. “Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 470.
25. “Teoria Geral do Direito Civil”, 9.ª ed., Almedina, 2019, p. 681.
26. “Falta e Vícios da Vontade. Dogmática e Jurisprudência em Diálogo”, Gestlegal, 2020, pp. 13-17, e “Lições de Teoria Geral do Direito Civil”, Gestlegal, 2021, pp. 661-664.
27. “Da Simulação no Direito Civil”, 2.ª ed., Almedina, 2017, p. 86.
28. Pontos 21, 39, e 40.dos factos provados.
29. Pontos 2 a 4 dos factos provados.
30. Ponto 22 dos factos provados.
31. Vd. pontos 39 e 40 dos factos provados.
32. Pontos 41 e 42 dos factos provados.
33. No sentido exposto, cfr. ABRANTES GERALDES, ob. e vol. cits. p. 289.
34. Cfr. expediente com a refª 27997852/ 52445175, de 28-05-2025.
35. Aprovado pela Lei nº 34/2004, de 29-07, alterada pela Lei 47/2007, de 28-08, pela Lei nº 40/2018, de 08-08, pelo DL nº 120/2018, de 27-12, pela Lei nº 2/2020, de 31-03, e pela Lei nº 45/2023, de 17-08.
36. Em sentido diverso, considerando inexistir fundamento para condenação em custas da parte que beneficia de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais custas, vd. cfr. SALVADOR DA COSTA “Condenação das partes no pagamento de custas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam”, disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1CiQm3I6JPXJrGXv6PxJAyJ7dtBIfMgat/view.
37. O presente acórdão foi assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.