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ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATRELADO
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
PERDA DA MERCADORIA
Sumário
Sumário: 1-2-3-4 I. A errada interpretação e apreciação da causa de pedir invocada pelo autor não configura uma situação de nulidade da sentença (art. 615º, nº 1, al. d) do CPC), mas antes um erro de julgamento; II. Os danos sofridos na carga transportada no veículo seguro e seus atrelados não integram o âmbito de cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – art. o art. 14º, nº 4, als. a) e b) do Regime Jurídico do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel5. III. Ainda que assim não fosse, a responsabilidade civil extracontratual, seja por facto ilícito culposo (art. 483º do CC), seja pelo risco associado aos veículos automóveis (art. 503º do CC) depende da prova da ocorrência de um dano na esfera jurídica do lesado. IV. Invocando a autora a ocorrência de um acidente de viação envolvendo um veículo pesado segurado na ré, do qual resultou a perda total da carga transportada no reboque atrelado ao mesmo, mas não resultando da factualidade provada quem era o proprietário de tal carga, é de ter por indemonstrado o pressuposto do dano, com a consequente improcedência do pedido indemnizatório que consistia no pagamento à autora de quantia correspondente ao valor da carga transportada.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
Sotimber – Serviços Florestais, S.A.6 intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Zurich Insurance PLC – Sucursal em Portugal7 e Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.8, formulando os seguintes pedidos:
“- Deve a Ré Zurich ser condenada a:
1. Reparar o veículo de Matrícula VC-… por si seguro com apólice de danos próprios, ou a indemnizar a A. pelo respetivo valor contratado, caso se apure
perda total;
2. Indemnizar a A. pela privação do aludido veículo, no montante diário de € 235,49, desde 11.09.2023, até efetiva reparação ou apuramento de eventual perda
total;
3. Pagar à oficina onde o veículo se encontra eventual custo de armazenamento que venha a ser devido, ou reembolsar dele a A., caso esta o tenha de, no
entretanto, liquidar àquela;
- Deve a Ré Allianz ser condenada a indemnizar a A. no valor de € 10.344,30, devido pela carga (mercadoria) perdida, acrescido de juros legais de mora contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;
- Devem, por fim, serem as RR. condenadas nas custas e, no que mais legal se impuser.”
Para tanto alegou, em síntese, que ocorreu um acidente de viação que envolveu um veículo pesado, da propriedade de outra empresa, e ao qual estava atrelado um reboque de sua propriedade (dela, autora), do qual resultaram diversos danos, nomeadamente a perda total da carga transportada no reboque.
Mais alega que relativamente ao pesado, ao seu atrelado, e à carga transportada haviam sido celebrados dois contratos de seguro, um deles relativo ao trator, celebrado com a ré Allianz, e outro respeitante ao reboque, celebrado com a ré Zurich.
Citadas, ambas as rés contestaram, o que fizeram separadamente, rejeitando qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos danos invocados pela autora na petição inicial; tendo a ré Allianz sustentado que o contrato de seguro que celebrou com a autora excluía expressamente os riscos relacionados com o transporte de produtos a granel.
No desenvolvimento da causa veio a realizar-se a audiência final, no decurso da qual a autora e a ré Zurich outorgaram transação, pondo fim aos termos da causa quanto a esta ré, a qual foi homologada por sentença proferida na mesma ocasião9.
Prosseguindo a causa apenas contra a ré Allianz, e concluída a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a ação improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a Ré «Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.» do pedido deduzido pela Autora «Sotimber - Serviços Florestais, S.A.».
Custas pela Autora.”
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação culminou nas seguintes conclusões:
A. A recorrente demandou a recorrida com base em duas apólices: uma do seguro de carga que entendia ter para os transportes efetuados pelo seu reboque de matrícula VC-… e outra por ser a que cobre os danos causados pela circulação do trator ..-JQ-.., propriedade da transportadora que efetuava o transporte para aquela, ambas contratadas na recorrida;
B. O Tribunal entendeu que a recorrida não pode responder pelos danos na mercadoria, uma vez que da apólice contratada pela A. está excluído o Transporte a granel e, desse jeito, absolve a recorrida sem se pronunciar, contudo, pela responsabilidade desta ao abrigo da apólice do trator, pela qual a mesma, igualmente, se achava demandada e, desse jeito, deixou de conhecer de questão a que estava obrigado a conhecer e, desse modo, a decisão sindicada é nula à luz do que dispõe a al. d) do Art° 615°. do CPC;
C. Independentemente da responsabilidade do veículo que originou o sinistro, a responsabilidade da recorrida decorre da apólice do veículo ..-JQ-.., por si seguro, porquanto era este (pertencente a uma empresa terceira) que atrelava a carga da A. que foi danificada, responsabilidade que impende sobre o proprietário deste e que decorre do Art° 17.° do Regime Jurídico do Transporte Nacional de Mercadorias, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 239/2003, de 04 de outubro (alterado pelo Decreto-Lei n.° 145/2008, de 28 de julho, e pelo Decreto-Lei n.° 57/2021, de 13 de julho), o qual havia transferido esta responsabilidade para a Ré / recorrida, disposição que a decisão recorrida violou e cumpre repor com a consequente procedência da ação.
A apelada apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1. Vem a Autora, ora Recorrente, interpor recurso da sentença proferida pelo douto Tribunal a quo a 13 de Janeiro de 2025, que julgou totalmente improcedente a ação e, em consequência, absolveu a ora Recorrida do pedido.
2. Isto porque, a A. considera que o douto Tribunal a quo não se pronunciou pela responsabilidade da Recorrida ao abrigo da apólice do veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-JQ-.., não conhecendo de uma questão a que estava obrigado a conhecer. Considerando ainda, que a responsabilidade da Recorrida decorre dessa mesma apólice.
3. Acontece, porém, que, os fundamentos apresentados pela Recorrente não merecem colhimento, considerando a Recorrida ser de manter a douta sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal a quo.
4. Ora, no dia 11.09.2023, cerca das 14 horas e 38 minutos, na EN 10, ao quilómetro 89,30, localidade de ..., áreas deste Conselho ocorreu um acidente de viação, tendo nele intervindo um veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-JQ-.., que atrelava o reboque de matrícula VC-...., propriedade da A., sendo que, o acidente foi motivado pela necessidade de evitar a colisão com a matrícula ..-QM-.., que circulava na faixa de rodagem destinada ao trânsito contrário.
5. Face a tudo o que precede, o recurso da Recorrente encontra-se desprovido de razão, sendo certo que o Tribunal a quo fez a correta apreciação e ponderação da matéria de facto dada como provada, bem como o consequente enquadramento jurídico-legal do caso em apreço, decidido em conformidade com as normas e princípios competentes, pugnando a Recorrida pela manutenção da douta sentença recorrida.
Recebido o recurso neste Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam10. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas11.
Por outro lado, estabelece o art. 635º, nº 2 do CPC que o recorrente pode restringir, expressa ou tacitamente o objeto do recurso.
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1. A nulidade da sentença apelada;
2. Aferir se a ré Allianz deve ressarcir a autora pelos danos decorrentes da perda da mercadoria transportada no reboque do veículo acidentado.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
A. No dia 24 de outubro de 2019, a Autora celebrou com a Ré «Allianz», por escrito, um contrato de seguro denominado «Allianz Mercadorias», atinente à Apólice n.° ..., relativo à transferência da responsabilidade civil de transportador rodoviário por conta de outrem.
B. (...) Tendo Autora e Ré contratualizado uma franquia de € 600 por sinistro.
C. (...) E acordado que se encontra expressamente excluído das coberturas do seguro o transporte de «produtos a granel».
D. No dia 11 de setembro de 2023, cerca das 14 horas e 38 minutos, na Estrada Nacional 10, ao quilómetro 89,30, localidade de ..., seguia, no sentido Porto Alto / Taipadas, o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-JQ-.., que atrelava o reboque de matrícula VC-…, propriedade da Autora.
E. (...) Transportando biomassa (Lote de pellets (combustível densificado pinho 1)) no valor de € 8.410,00 + IVA.
F. (...) Quando entrou em despiste por se ter desviado do veículo com a matrícula 28- QM-94.
G. Por via do descrito de D) a F), a carga transportada pelo conjunto de veículos «JQ» / «VC» ficou completamente danificada.
H. (.) Tendo sido recolhido e vendido como biomassa pelo valor de € 449,50.
I. No dia 28 de novembro de 2023, a Ré «Allianz» comunicou à Autora que havia concluído que a responsabilidade pelo acidente dos autos coube ao condutor do veículo com a matrícula ..-QM-.., seguro na «Fidelidade», pelo facto de circular na faixa de rodagem destinada ao trânsito contrário.
J. A Autora ficou com uma cópia escrita do contrato de seguro, celebrado em língua portuguesa, onde constavam os elementos descritos de A) a C).
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou inexistirem factos não provados para a decisão da causa.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia 3.2.1.1. Considerações gerais
Nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Esta nulidade configura, no fundo, uma violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do mesmo Código, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste contexto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava ALBERTO DOS REIS12, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas que o tribunal tenha o dever de apreciar e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
Dito de outro modo: esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, e não quando apenas se verifica a mera omissão da ponderação das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas. Com efeito, as questões a decidir não são os argumentos utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir.
Do supra exposto flui que não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam para sustentar a procedência ou improcedência da ação. Nas palavras precisas de MANUEL TOMÉ SOARES GOMES13 “(…) já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.”
Pode, pois, concluir-se que não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes. O juiz não tem que analisar todos os argumentos invocados pelas partes, embora se ache vinculado a apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer, mas não tem que se pronunciar sobre os pedidos e questões cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros/as (art. 608º, nº 2, do CPC).
O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Por isso, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra.
No que tange ao excesso de pronúncia (segunda parte da alínea d) do nº 1 do art. 615º), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado. Também neste domínio valem as considerações acima expendidas a propósito da delimitação do conceito de questões.
Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012 (João Bernardo), p. 469/11.8TJPRT.P1.S114 à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões suscitadas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.
A discordância da parte relativamente à subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou à decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.
Como se afere das considerações supra expostas, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objeto questões a decidir na sentença, e não propriamente factos
ou argumentos jurídicos.
Neste sentido, sublinhou o ac. RL 23-04-2015 (Ondina Alves), p. 185/14.9TBRGR.L1-2, que «questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.
Apreciar e rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da ação, bem como a circunstância de lhes fazer, ou não, referência, não determina a nulidade da sentença por excesso ou omissão de pronúncia. (…)
Situação diversa da nulidade da sentença é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), (…) se a questão é abordada, mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “error in procedendo”».
Em sentido semelhante, decidiu, entre outros, e por mais recente, o ac. RC 23-02-2016 (Carvalho Martins), p. 2316/12.4TBPBL.L1, no qual se sublinhou que “só há omissão de pronúncia com vício de limite previsto na al. d) do nº1 do art. 668º do CPC (615º NCPC), quando o Tribunal incumpre quanto aos seus poderes e deveres de cognição o disposto no nº2 do art. 660º do mesmo diploma (608º NCPC)”.
Também o ac. RG 16-11-2017 (José Flores), p. 833/15.3T8BGC.G1, apontou em sentido idêntico, referindo que “não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação.“
Não obstante, mais recentemente, esta mesma questão foi apreciada de modo algo diverso no ac. RL 29-05-2018 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 19516/17.3YIPRT.L1-7. Neste aresto, apreciava-se uma situação em que na sentença se considerou provado determinado facto não alegado pelas partes, e que o Tribunal recorrido qualificou como complementar ou acessório (art. 5º, nº 2, al. b) do CPC), sem que no decurso da audiência tenha informado as partes da possibilidade de considerar tal facto na sentença, e sem que tenha concedido aos litigantes a possibilidade de produzir prova.
Com efeito, no mencionado acórdão expôs–se o seguinte:
“da ata da audiência de julgamento não resulta que o Mmo. Juiz a quo tenha anunciado às partes a pretensão de ampliar a matéria de facto e, muito menos, que lhes tenha facultado a produção de prova, sendo certo que este Tribunal da Relação não tem acesso à gravação da audiência porque não ocorreu.
Nesta medida, não tendo sido observado o formalismo garantístico da alínea b) do nº2 do artigo 5º, a subsequente decisão do tribunal a quo de considerar tais factos na sentença consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento (Artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil)”. Em sentido semelhante se havia igualmente pronunciado o ac. RP 30-04-2015 (Aristides Rodrigues de Almeida), p. 5800/13.9TBMTS.P1.
Quanto a nós, cremos que a nulidade decorrente de omissão ou excesso de pronúncia não tem por objeto factos, mas apenas as questões de direito a dirimir à luz da causa de pedir da ação ou da reconvenção, bem como as questões de direito que integram a defesa por exceção.
Tecidas estas considerações, regressemos ao caso dos autos. 3.2.1.2. O caso dos autos
No caso vertente, sustentou a apelante que o Tribunal a quo omitiu a apreciação de questão por si alegada com relevância para a apreciação da decisão da causa, a saber, a respeitante à obrigação de indemnizar da apelada emergente do contrato de seguro respeitante ao veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-JQ-...
Cremos, porém, que a apelante confunde os conceitos de questões e argumentos a que fizemos referência no ponto antecedente.
Com efeito, a questão a apreciar nos presentes autos residia e reside em determinar se a autora tem direito a receber da ré a quantia de € 10.344,30 correspondente ao valor da carga transportada no reboque com a matrícula VC-2596 que, à data do acidente dos autos, circulava atrelado ao veículo pesado de mercadorias supraidentificado, por tal risco se achar coberto por contrato de seguro celebrado entre ambas. E sobre esta questão o Tribunal a quo pronunciou-se expressamente.
Simplesmente, como veremos infra, no ponto 3.2.3., embora a autora, na petição inicial, tenha invocado a celebração e vigência de dois contratos de seguro celebrados com a ré Allianz, o Tribunal a quo apreciou o mérito da causa reportando-se apenas a um deles, ignorando qualquer referência ao outro.
Admitindo-se a eventual relevância do contrato não considerado na sentença final, de acordo com as várias soluções plausíveis, tal poderá constituir um erro de julgamento, mas não configura omissão de pronúncia.
Termos em que, sem prejuízo da reapreciação do mérito da causa considerando o argumento cuja apreciação foi omitida, se conclui que a sentença apelada não enferma da nulidade que lhe foi imputada.
3.2.2. Da alteração oficiosa da decisão sobre matéria de facto
Da análise da petição inicial resulta que a autora invocou dois contratos de seguro celebrados com a ré Allianz:
• um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel relativo ao veículo pesado de mercadorias com a matrícula AA, titulado pela apólice ...
• um contrato de seguro de responsabilidade civil de transportador de mercadorias, titulado pela apólice nº ....
Na sua contestação, a ré Allianz centrou a sua argumentação no último contrato mencionado, ignorando o primeiro17.
E também na sentença, a decisão sobre matéria de facto se reportou apenas ao seguro de responsabilidade civil de transportador de mercadorias, desconsiderando o seguro de responsabilidade civil automóvel relativo ao veículo pesado de mercadorias que, na ocasião do acidente, rebocava o atrelado da autora.
Considerando que a apreciação do âmbito de cobertura deste contrato de seguro releva para a decisão sobre o mérito da causa, à luz das várias soluções plausíveis da causa, tal com a autora a configurou, impõe-se, por isso suprir a descrita insuficiência da decisão sobre matéria de facto, sendo certo que, conforme exporemos, pode o Tribunal da Relação fazê-lo oficiosamente.
Com efeito, dispõe o art. 662.º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Em comentário a esta disposição legal ensinam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA18:
“1. A decisão sobre matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento confissão ou acordo das partes com força probatória plena (…). Outrossim quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (…), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (..).
2. Em qualquer destas situações a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente dentro dos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente, mediante aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (arts. 607º, º 4, e 663º, nº 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do art. 635º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório.”
Como bem explicam os citados autores, nos casos mencionados a alteração da decisão sobre matéria de facto pode ter lugar por iniciativa do Tribunal da Relação e ainda que nenhuma das partes o requeira, isto é, pode ter lugar oficiosamente. E o uso da forma verbal deve não deixa margem para dúvidas: não se trata de uma mera faculdade, mas de um dever imposto à Relação.
Nas palavras de ABRANTES GERALDES19, “Como a nova redação do art. 662.º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto, (v.g. contradição) e também sempre juízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.
(…)
Obviamente que a modificação continuará a justificar-se (…) designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que ocorre quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n,º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais.
O mesmo deve acontecer quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358.º do CC e arts. 484.º, n.º 1, e 463.º do CPC) ou quando tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º.º, n.º 2, do CPC) (…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts 351.º e 393.º do CC), situação em que modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art. 364.º, n.º 1, do CC).
Em qualquer destes casos a relação limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a 1.ªinstância considerou não provado o retirar dela o facto que ultimamente foi considerado provado sempre juízo neste caso da sua sustentação no torneio de prova alteração que nem sequer Depende da iniciativa da parte.
Com efeito nos termos do art. 663.º n.º 2 aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para elaboração da sentença entre as quais se insere o arte 607.º, n.º 4, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença (que agora integra também a decisão sobre os “temas da prova”) dos factos admitidos por acordo e plenamente provados por documentos
ou por confissão reduzida a escrito.
Por outro lado, continua a ser impedido que se considerem provados os factos relativamente aos quais foram violadas regras prova vinculada, como aquelas que impõem a apresentação de prova documental.
Tal como o tribunal de 1.ª instância, também a Relação tem poderes que tanto podem determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório como a desconsideração de factos cuja prova tem respeitado essas mesmas regras.”
À luz destes ensinamentos, e no tocante ao exercício, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de reapreciação da prova, a jurisprudência do STJ tem sublinhado os seguintes princípios norteadores:
1. Os poderes de averiguação oficiosa da Relação a que se reporta o nº 1 do art. 662º do CPC devem ser exercidos:
a. as situações de desrespeito por regras de direito probatório material, e bem assim às situações em que, em virtude da apreciação de impugnação da decisão sobre matéria de facto que julgue procedente, seja necessário alterar pontos de facto não impugnados, a fim de evitar contradições – Cfr. STJ 12-09-2013 (Fonseca Ramos), p. 2154/08.9TBMGR.C1.S1; STJ 07-11-2019 (Rosa Tching), p. 2929/17.8T8ALM.L1.S1, STJ 08-04-2021 (Maria Rosário Morgado), p. 453/14.0TBVRS.L1.S1; e STJ 08-09-2021 (Rosa Tching), p. 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1;
b. em caso de insuficiência da decisão sobre matéria de facto, a fim de evitar anulação da sentença apelada, nos termos do nº 2 do mesmo art. 662º - cfr. o mesmo acórdão;
c. nas situações em que, resultando da prova produzida em 1ª instância o apuramento de factos supervenientes relevantes para a decisão da causa, o Tribunal a quo não os tenha integrado na decisão sobre matéria de facto, nos termos previstos nos arts. 611º do CPC em conjugação com os arts. 5º, nº 2, al. c) e 412º, nº 2 do mesmo Código.
2. Ao apreciar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, a Relação pode, de acordo com as circunstâncias:
a. concluir pela desnecessidade de ouvir os trechos invocados por apelante e apelado, se considerar que tal é desnecessário, nomeadamente se considerar aplicável qualquer meio de prova plena, ou proibição de prova testemunhal;
b. limitar-se a ouvir o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado; ou ainda;
c. ouvir toda a prova gravada (e não apenas o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado)
– STJ 17-11-2021 (Tibério Silva), p. 8344/17.6T8STB.E1.S1.
No caso vertente, como já referimos, a decisão sobre matéria de facto constante da sentença apelada é omissa no tocante à invocada celebração e objeto de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel respeitante ao veículo pesado com a matrícula ..-JQ-.., titulado pela apólice com o nº ..., emitida pela ré Allianz.
Tendo a apólice em apreço e respetivas condições gerais especiais e particulares sido juntas aos autos pela ré Allianz20, aliás a pedido da própria autora21, e considerando que a autora, devidamente notificada, não impugnou tais documentos22, nada obsta a que se aditem os seguintes pontos de facto, que se consideram provados pelos mencionados documentos:
K. a sociedade “Transportes o brilho de esperança, Unipessoal, Lda.” e a ré Allianz celebraram acordo escrito “Contrato de seguro Allianz Frotas”, que veio a ser titulado pela apólice com o nº ..., nos termos do qual, nomeadamente, e com efeitos a partir de 20-01-2023, a ré Allianz assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos abrangidos pelas “coberturas contratadas” mencionadas na mesma apólice, e relativamente aos veículos constantes da lista fornecida pela mencionada empresa, mediante contrapartida em dinheiro.
L. As “coberturas contratadas” mencionadas em K) eram as seguintes:
Responsabilidade Civil de Subscrição Obrigatória: 6.000.000,00€
Responsabilidade Civil Complementar: 44.000.000,00€
Quebra de vidros: 1.000,00€
Ocupantes
Morte e invalidez permanente: 5.000,00€
Despesa de tratamento e repatriamento: 500,00€
Despesas de funeral: : 500,00€
M. O clausulado das condições particulares do acordo referido em K) integra, entre outras, as seguintes cláusulas:´
“1. Coberturas do Seguro
1.1. Responsabilidade Civil Obrigatória
1. O presente contrato corresponde ao legalmente exigido quanto à obrigação de segurar a responsabilidade civil decorrente da circulação de veículos terrestres a motor, seus reboques ou semirreboques perante terceiros, transportados ou não, por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais, nos termos da lei.
2. O presente contrato garante:
a) A responsabilidade civil do proprietário do veículo, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, bem como dos seus legítimos detentores e condutores, pelos prejuízos causados a terceiros em virtude da circulação do veículo seguro, até aos limites e nas condições legalmente estabelecidos;
b) Os danos causados a terceiros, provenientes de acidentes de viação dolosamente provocados ou resultantes de furto, roubo ou furto de uso;
1. 2. Responsabilidade Civil Complementar
1. O Seguro de Responsabilidade Civil abrangido por esta cobertura só funciona fora do âmbito do Seguro Obrigatório e complementarmente ao mesmo, de acordo com o que for expressamente declarado nas Condições Particulares.
2. No âmbito do presente Contrato, considera-se excecionalmente que o capital facultativo de Responsabilidade Civil garantido no Contrato relativamente ao veículo seguro, é subsidiariamente extensivo à responsabilidade decorrente
da condução benévola pelo Segurado de veículos de Terceiros, seguros e matriculados em Portugal, e que estejam garantidos apenas no limite da Responsabilidade Civil Obrigatória.
3. Âmbito Territorial - O expressamente convencionado e referido nas Condições Gerais - Parte II - Âmbito Territorial da cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória.
1.3. Quebra de Vidros
1. Ficam abrangidos os prejuízos resultantes da quebra de vidros, desde que os danos se limitem exclusivamente aos vidros no veículo. Esta cobertura não é extensiva a faróis, farolins, espelhos retrovisores, tejadilhos ou tetos de abrir, painéis ou janelas em materiais sintéticos e vidros do reboque ou caravana.
2. Âmbito Territorial - O expressamente convencionado e referido nas Condições Gerais - Parte II - Âmbito Territorial da cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória.
(…)
Artigo 9.º Exclusões
(…)
3. Exclusões das Garantias relativas ao Veículo e seus Ocupantes
a. Mercadorias ou cargas transportadas assim como o equipamento não necessário à circulação do veículo (sistemas frigoríficos ou refrigeração, etc);
(…)”
N. O clausulado das condições gerais do acordo referido em K) integra, nomeadamente, as seguintes cláusulas:
“Cláusula 5.ª Exclusões da garantia obrigatória
(…)
4. Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro:
a) Os danos causados no próprio veículo seguro;
b) Os danos causados nos bens transportados no veículo seguro, quer se verifiquem durante o transporte quer em operações de carga e descarga.”
O. Da lista de veículos referida em K) relativa ao período de 01-07-2023 a 01-10-2023 constava expressa referência ao veículo com a matrícula ..-JQ-...
3.2.3. Do ressarcimento dos danos decorrentes da perda da carga transportada
Nos presentes autos discute-se a alegada responsabilidade da ré Allianz pelo ressarcimento de danos sofridos pela autora em consequência da perda de mercadoria transportada em reboque atrelado a um veículo segurado na mencionada ré.
De acordo com a argumentação da autora exposta na petição inicial, a responsabilidade pelo ressarcimento daqueles danos tem como fonte um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, relativo ao veículo pesado de mercadorias ao qual se achava atrelado o reboque da autora.
Interpretando o art. 1º da LCS, ensina JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES23 que contrato de seguro é “o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco económico da verificação de um dano, na esfera jurídica própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração“ (o prémio – vd. art. 51º da LCS).
Para o mesmo autor, “o contrato de seguro caracteriza-se ainda por possuir um determinado conteúdo típico, onde se destacam as obrigações recíprocas das partes contratantes: o segurador, que assume a cobertura do risco, tem o dever fundamental de “liquidar o sinistro”, ou seja, realizar a prestação convencionada em caso de verificação, total ou parcial, dos eventos compreendidos no risco coberto pelo contrato (arts. l.°, 99.°, e 102.° da LCS); e o tomador do seguro tem o dever fundamental de “pagar o prémio”, ou seja, realizar a prestação pecuniária convencionada que representa a contrapartida daquela cobertura (arts. l.° e 51.° da LCS)”.
No caso dos autos sustentou a autora que se verificou um evento danoso coberto por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado com a ré, e que esta não cumpriu a obrigação de realizar a prestação pecuniária nele prevista, pretendendo assim a condenação da ré na prestação acordada.
Da factualidade provada resulta que tal contrato de seguro cobria quer danos causados a terceiros, quer danos próprios, quer danos sofridos por ocupantes do veículo24.
No que respeita aos danos próprios, tal pretensão encontraria acolhimento nos termos do disposto nos arts. 406º, e 817º, nº 1 do Código Civil.
Sucede, porém, que a autora não é parte em tal contrato, visto que a posição jurídica de tomador de seguro e segurado é ocupada pela sociedade Transportes o brilho de esperança, Unipessoal, Lda25, e não pela autora.
Tal significa que a perda da mercadoria transportada no atrelado de que a autora é proprietária não pode ser considerada dano próprio nos termos previstos neste contrato.
Acresce igualmente que o único dano próprio coberto por este contrato de seguro é o decorrente da quebra de vidros, pelo que mesmo que a autora fosse a tomadora e segurada deste contrato, os danos em questão não estariam abrangidos pela cobertura de danos próprios.
Aqui chegados, restaria apenas aferir se os mesmos danos poderiam ser imputados à empresa proprietária do veículo com a matrícula ..-JQ-.., nos quadros da responsabilidade civil extracontratual, e se o ressarcimento de tais danos poderia ser imputado à ré Allianz, por força do contrato de seguro já referido, na sua vertente de seguro de responsabilidade civil.
Neste particular, diremos desde logo que em nosso entender os danos sofridos na carga transportada em reboque atrelado a veículo seguro não devem ser qualificados danos causados a terceiro, nos termos previstos no RJRCA, ainda que o reboque seja propriedade de entidade diversa do proprietário e tomador do seguro relativo ao veículo pesado (trator) ao qual tal reboque tenha sido atrelado.
Com efeito, estabelece o art. 14º, nº 4, als. a) e b) do mencionado diploma26:
“4 - Excluem-se igualmente da garantia do seguro:
a) Os danos causados no próprio veículo seguro;
b) Os danos causados nos bens transportados no veículo seguro, quer se verifiquem durante o transporte quer em operações de carga e descarga;
c) Quaisquer danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga;
(…).”
No caso dos veículos pesados, o conceito de “veículo seguro” constante desta disposição legal abrange quer o trator, quer o reboque a ele atrelado. Daí que os danos sofridos na carga do reboque estejam excluídos do âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel, o que permite desde já concluir que a ré Allianz não está obrigada a ressarcir os mesmos, por estarem excluídos do objeto do contrato de seguro relativo ao veículo pesado que rebocava aquele atrelado.
A este propósito cumpre dar nota de que já depois da ocorrência do acidente dos autos o DL nº 26/2025, de 20-03, que veio transpor para a ordem jurídica nacional a Diretiva (UE) 2021/2118, de 24-11-2021, do Parlamento Europeu e do Conselho, que altera a Diretiva 2009/103/CE relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, aditou ao RJSORCA um novo art. 26-A, com o seguinte teor:
“Artigo 26.º-A
Acidentes com envolvimento de reboques
1 - Em caso de acidente envolvendo um veículo trator e um reboque seguros por contratos de seguro de responsabilidade civil distintos, os lesados podem:
a) Quando se trate de contratos celebrados com empresas de seguros distintas, solicitar a qualquer uma delas informação sobre a identidade da outra;
b) Solicitar a indemnização da totalidade do dano ao abrigo de qualquer um dos contratos, dentro dos limites do capital seguro pelo mesmo.
2 - Em caso de acidente envolvendo um veículo trator e um reboque em que apenas um dos veículos se encontre seguro, ou em que apenas seja possível identificar uma das empresas de seguros, a empresa de seguros informa o lesado:
a) De que é responsável pelo pagamento da totalidade do dano, dentro dos limites do capital seguro pelo contrato, nos termos do disposto no artigo 51.º-A;
b) Da existência e funções do Fundo de Garantia Automóvel, com indicação de que este é responsável pelo pagamento do dano, caso possa opor exceção atendível ao lesado.”
Não obstante, mesmo que se entenda que esta alteração ao RJSORCA tem natureza meramente interpretativa e, por isso, se aplica aos acidentes ocorridos em data anterior àquela em que o DL 26/2025 entrou em vigor, o certo é que este preceito se integra num regime jurídico que visa regular a responsabilidade por danos causados a entidades distintas dos proprietários do veículo automóvel e respetivos atrelados, não cobrindo por isso danos sofridos na carga transportada seja no trator, seja no atrelado.
Esta interpretação do normativo legal aplicável encontra pleno eco no contrato de seguro exclui expressamente do seu objeto os danos sofridos na mercadoria transportada - vd. art. 9º nº 3 das condições particulares e cláusula 5ª, nº 4, al. b) do contrato de seguro27.
De qualquer modo, ainda que assim não fosse, sempre concluiríamos que no caso em apreço não se mostram reunidos os pressupostos da obrigação de indemnizar fundada na responsabilidade civil extracontratual.
Vejamos então.
Como aponta CARNEIRO DA FRADA28 “a responsabilidade civil é um instituto jurídico que comunga da tarefa primordial do Direito que consiste na ordenação e distribuição dos riscos e contingências que afectam a vida dos sujeitos e a sua coexistência social”.
Por seu turno, acrescenta JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ29 que a “responsabilidade civil cumpre uma função: obrigar terceiro a proceder à reparação de danos provocados na esfera jurídica do lesado (credor para esse efeito)”.
Qualquer que seja o ponto vista sobre o qual se encare, o direito a ser ressarcido nos quadros da responsabildade civil depende da verificação dos pressupostos desta.
Interpretando o disposto no art. 483º do CC, a doutrina dominante tem entendido, de modo convergente, que a responsabilidade civil delitual depende da verificação dos seguintes pressupostos :
a. Um facto - comportamento voluntário do lesante;
b. A ilicitude e a culpa;
c. A imputação do facto ao lesante;
d. O dano; e
e. O nexo de causalidade e adequação entre o facto e o dano.
Por facto deverá entender-se todo o comportamento voluntário ou forma de conduta humana.
A ilicitude poderá resultar, da violação de direito(s) de outrem (máxime direitos absolutos), ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Mas, para uma conduta ser ilícita, a lesão desse direito de tutela erga omnes deve resultar de factos voluntários contrários ao direito.
Quanto à culpa, dispõe o art. 487º do CC que na falta de outro critério legal, pela ela deve ser aferida pela diligência de um bom pai de família, isto é, pela diligência de uma pessoa sem especiais qualidades, qualificações, ou perícia.
O dano consiste na ofensa de bens ou interesses alheios tutelados pela ordem jurídica.
O nexo de causalidade e adequação exprime uma relação de causa e efeito entre a conduta do lesante e o dano sofrido pelo lesado, apreciada não apenas de um ponto de vista naturalístico, mas numa perspetiva jurídica – vd. arts. 562º, 563º, e 566º do CC30.
No caso vertente, considerando a factualidade provada, não pode, de forma alguma, considerar-se que o acidente dos autos se tenha devido a conduta ilícita e culposa do condutor do veículo segurado na ré Allianz.
Com efeito, da factualidade provada apenas resulta que tal acidente ocorreu porque o condutor do veículo em apreço perdeu o controle do mesmo por se ter desviado de um outro veículo, sem que se saiba quem era esse condutor, por conta de quem conduzia tal veículo, em que sentido circulava o outro veículo, e por que razão o condutor do veículo seguro na ré teve de se desviar do mesmo31.
Acresce ainda que para além de a factualidade provada não permitir concluir que o acidente se deveu a facto ilícito e culposo do condutor do veículo seguro, também não se provou que a carga transportada fosse propriedade da autora. Com efeito, da factualidade provada apenas resulta que a autora é proprietária do reboque e que em consequência do acidente a carga nele transportada resultou destruída32, mas não consta do elenco de factos provados que a autora fosse proprietária da carga, nem sequer que em consequência da destruição da mesma carga tenha sofrido um qualquer prejuízo patrimonial.
Tal significa que o requisito do dano também não resultou demonstrado.
Poderia ainda aferir-se da responsabilidade da proprietária do veículo segurado pela ré Allianz e da consequente obrigação de indemnizar por parte da mesma ré, nos termos do mencionado contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel nos quadros da responsabilidade pelo risco, nos termos previstos no art. 503º do CC.
Contudo, o requisito do dano constitui um pressuposto do dever de indemnizar emergente da responsabilidade pelo risco. Daí que, não constando da factualidade provada qualquer facto que permita concluir pela verificação de um tal dano, também sob este prisma a pretensão indemnizatória deduzida pela autora contra a ré Allianz terá que soçobrar.
Finalmente, cumpre ainda referir que em sede de recurso veio a autora reiterar que a obrigação de indemnizar que invoca decorre também da responsabilidade prevista no regime jurídico do transporte nacional de mercadorias (aprovado pelo DL nº 239/2003, de 04-10, e alterado pelo DL 145/2008, de 28-07)33.
Porém, esta responsabilidade não se acha coberta pelo seguro relativo ao veículo pesado que rebocava o atrelado da ré, que apenas cobria riscos emergentes de responsabilidade civil automóvel. E também não se achava coberto pelo seguro celebrado com a ré Allianz intitulado «Allianz Mercadorias» e titulado pela Apólice n.° ... visto que, como bem expôs a sentença apelada, este excluía expressamente os danos sofridos em mercadorias a granel34.
Não obstante, caso assim se não entendesse, sempre se concluiria que este risco não se acha coberto pelo contrato de seguro referente ao veículo pesado ao qual estava atrelado o reboque da autora.
Termos em que se conclui pela total improcedência do recurso.
3.2.4. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
No caso vertente, face à total improcedência da presente apelação, as custas deverão ser suportadas pela apelante.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença apelada.
Valor da causa a considerar relativamente ao presente recurso: € 10.344,30.
Custas pela apelante.
Lisboa, 01 de julho de 2025 35
Diogo Ravara
Micaela Sousa
Ana Mónica Mendonça Pavão
_____________________________________________________
1. Da responsabilidade do relator - art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06.
2. No presente acórdão utilizaremos as signas “CPC” e “CC” para designar o Código de Processo Civil e o Código Civil.
3. No presente acórdão utilizamos a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original.
4. Todos os acórdãos citados no presente aresto se acham publicados em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão eletrónica deste acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se achem publicados nos referidos sites. Os arestos sem indicação de publicação nem hiperligações encontram-se inéditos.
5. Aprovado pelo D.L. n.º 291/2007, de 21-08, retificado pela Decl. Rect. n.º 96/2007, de 19-10, e sucessivamente alterado pelo DL n.º 153/2008, de 06-08, pela Lei n.º 32/2023, de 10-07, e pelo DL n.º 26/2025, de 20-03. Passaremos a designar este diploma pela sigla RJSORCA.
6. Pessoa coletiva nº 507961617
7. Pessoa coletiva nº 980420636.
8. Pessoal coletiva nº 500069514.
9. Vd. ata com a refª 439357534, de 17-10-2024.
10. Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
11. Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
12. “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra 3ª Ed., p. 143.
13. “Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
14. Todos os arestos invocados no presente acórdão se encontram publicados em http://www.dgsi.pt e/ou e https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se mostrem publicados em páginas internet de livre acesso.
15. Art. 1º da petição inicial.
16. Art. 12º da petição inicial.
17. Arts. 1º a 15º da contestação da ré Allianz
18. “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2018, p.796.
19. “Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 286-289
20. Vd. requerimento com a refª 40770935/ 50197508, de
21. Vd. ata da 1ª sessão da audiência final que constitui a refª nº 439357534, de 17-10-2024.
22. Cfr. Ata da 2ª sessão da audiência final, com a refª 439574029, de 24-10-2024.
23. “O contrato de Seguro na LCS de 2008”, ROA, ano 69, n.º 3 e 4 (jul.-dez. 2009), pp. 815-858, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Be96274ba-f961-4442-a4e4-46fb5338440e%7D.pdf, em especial, p. 819 e 822
24. Vd. als. K) a M) dos factos provados.
25. Vd. al. K) dos factos provados.
26. A redação deste preceito provém do DL 291/2007, sendo por isso inequívoca a sua aplicabilidade ao caso dos autos.
27. Transcritas nas als. M) e N) dos factos provados.
28. “Uma «terceira via» no Direito da Responsabilidade Civil?”, Almedina, 1997, página 15.
29. “Responsabilidade Civil”, 2ª edição, Quid Juris, 2009, páginas 14-15.
30. Cfr., ALMEIDA COSTA, ob. cit., pp. 760 ss.
31. Cfr. als. D) a F) dos factos provados.
32. Als. D) e G) dos factos provados.
33. Conclusão C.
34. Al C). dos factos provados.
35. Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.