MEIO DE PROVA ILÍCITO
GRAVAÇÃO DE CHAMADA TELEFÓNICA
AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO
Sumário

Sumário: (da responsabilidade da relatora - art. 663º/7 CPC):
I. Os meios de prova que violem o disposto nos arts 26º e 32º/8 da CRP são materialmente proibidos, seja em processo penal, seja em processo civil, impondo-se a aplicação neste último das correspondentes normas estabelecidas naquele sobre proibição de prova (art. 126º do CPP), sem prejuízo do disposto no art. 417º/3 b) do Código de Processo Civil.
II. Não se tratando de um facto notório, incumbe à ora R. o ónus de alegação e prova de que obteve autorização da legal representante da A. para a gravação da conversa telefónica em causa;
III. A junção aos autos pela R. de registo áudio de conversação entre si e a A., sem autorização ou consentimento desta, constitui prova ilícita/proibida e nula.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
Na presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que CIFRA VERSÁTIL - LDA. intentou contra CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., peticionando a condenação da ré (R.) a pagar à autora (A.) a quantia de €12.607,56, correspondente ao prejuízo causado à A., decorrente de transferência fraudulenta da sua conta bancária, veio a Ré, por requerimento datado de 6/2/25 (ref.ª citius 41860934), requerer a junção aos autos de um ficheiro de áudio contendo uma gravação da chamada telefónica da representante legal da A. para a Ré (Caixadirecta), no dia 20/02/2024.
Notificada, veio a A., por requerimento de 18/2/25 (ref.ª 41985801), manifestar a sua oposição à junção da gravação, alegando que não prestou consentimento prévio para a gravação da chamada, concluindo que está em causa um meio de prova ilícito. Mais alega que a referida chamada não teve como contexto e/ou finalidade a realização de qualquer transacção comercial/venda de produtos.
Por requerimento de 28/2/25 (ref.ª 42096175), a R. pugnou pela validade da gravação, afirmando que a legal representante da A. deu o seu consentimento à gravação realizada no dia 20/2/24, pois “sempre que o cliente liga para o CCC da Ré, é disponibilizado um guia vocal, no qual é transmitido que, se não pretender a gravação, deverá contactar pelos meios alternativos ou recorrer às agências”. Juntou uma gravação com o referido guia vocal.
Sobre o requerimento apresentado pela A. em 18/2/25, o tribunal de 1ª instância proferiu o seguinte despacho:
“Ref.ª citius 41860934 de 06/02/2025, 41985801 de 18/02/2025 e 42096175 de 28/02/2025:
Vem a Ré Caixa Geral de Depósitos, S.A. requerer a junção aos autos de um ficheiro de áudio contendo uma gravação da chamada da representante legal da Autora para o CCC da Ré no dia 20/02/2024.
A Autora Cifra Versátil, Lda. opôs-se à junção da prova requerida, pugnado não ter prestado o seu consentimento prévio para a gravação da chamada e como tal ser a mesma, no seu entender, um meio de prova nulo e inadmissível.
A Ré respondeu à invocada nulidade, alegando que sempre que o cliente liga para o CCC da Ré é disponibilizado um guia vocal, no qual é transmitido que, se não pretender a gravação, deverá contactar pelos meios alternativos ou recorrer às agências e que, contrariamente ao afirmado pela Autora, esta deu o seu consentimento à gravação da chamada.
Cumpre apreciar e decidir:
O direito a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa) implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, sendo nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações (Art. 32.º, n.º 8 da Constituição) e que constituam uma violação aos direitos à palavra e à reserva da vida privada, consagrados no art. 26.º n.º 1 da Lei Fundamental.
Todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade são materialmente proibidos, seja em processo penal, seja em processo civil, impondo-se a aplicação neste último das correspondentes normas estabelecidas naquele sobre proibição de prova.
Sendo certo que a busca da verdade no âmbito de um processo judicial não é um valor absoluto, não sendo admissível que se possa procurar a verdade usando de quaisquer meios, mas tão-só de meios justos, ou seja, através de meios legalmente admissíveis, no caso concreto não tem o Tribunal dividas quanto ao consentimento prestado pela Legal Representante da Autora para a gravação da chamada cuja junção a Autora requer, porquanto é facto notório que quando se liga para uma entidade bancária se é advertido da gravação da chamada e dos procedimentos a adotar caso se discorde de tal gravação.
Assim, admite-se o referido meio de prova junto aos autos pela Ré.
Todavia, e porquanto o mesmo não foi apresentado com a contestação, nem até à realização de audiência prévia (artigo 598.º, n.º 1 do CPC), e nem tendo a parte ter sido a tal convidada, vai a Ré condenada em multa processual que fixo em 1 UC – artigo 423.º, n.º 2 do CPC.
Notifique.”
Inconformada com tal despacho, veio a A. dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
I - A EVENTUAL ADVERTÊNCIA, POR UMA ENTIDADE BANCÁRIA, DA GRAVAÇÃO DE CHAMADAS TELEFÓNICAS E DOS PROCEDIMENTOS A ADOTAR CASO SE DISCORDE DE TAL GRAVAÇÃO, NÃO CONSTITUI UM FACTO NOTÓRIO
A) Para admitir, sem mais, como meio de prova nos presente autos, a gravação de uma chamada telefónica entre a legal representante da Recorrente e a Recorrida, o Tribunal a quo refere o seguinte: “(…) é facto notório que quando se liga para uma entidade bancária se é advertido da gravação da chamada e dos procedimentos a adotar caso se discorde de tal gravação”.
B) Salvo o devido respeito, a referida afirmação, que sustenta a decisão recorrida, é genérica e conclusiva, não integrando o conceito de facto notório.
C) Refira-se, desde logo que, contrariamente ao que decorre da fundamentação do despacho recorrido, nem todas as chamadas telefónicas são gravadas pelas entidades bancárias: varia consoante o canal de contacto utilizado e o conteúdo e finalidade das chamadas.
D) Acresce que a eventual gravação de chamadas, mesmo em serviços de atendimento ao cliente, depende, ainda, de práticas internas de cada entidade bancária, sendo os procedimentos adotados distintos entre as entidades e mesmo nos diferentes canais de contacto de cada entidade.
E) Pelo que se nos afigura evidente que a alegada circunstância segundo a qual “quando se liga para uma entidade bancária se é advertido da gravação da chamada e dos procedimentos a adotar caso se discorde de tal gravação”, para além de ser genérica, conclusiva e carecer de rigor - não sendo, de facto, assim em muitas situações, - não consubstancia qualquer facto notório.
F) Com efeito, os factos notórios implicam um conhecimento generalizado e inequívoco, por toda a população, estando revestidos do caráter de certeza, o que não se verifica na situação em apreço [cfr., por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.05.2013, proferido no Processo n.º 7053/10.1TBCSC.L1-6, Relatora: Fátima Galante, no qual, de forma e ilustrar o grau de difusão e o carácter de certeza, que são ínsitos ao conceito de “factos notórios”, são apresentados os seguintes exemplos: (i) “que ao dia se sucede a noite e a esta novo dia”; (ii) “que se nasce, vive e morre”; (iii) “que existe Sol e Lua”].
G) Não sendo aplicável à situação dos autos o disposto no artigo 412.º, n.º 1, do C.P.C., cabia à Recorrida, que requereu a junção aos autos, como meio de prova, da gravação da chamada telefónica de 20.02.2024, alegar e provar que obteve a autorização da legal representante da Recorrente para a gravação da conversa em causa, o que não logrou fazer.
II - A LEGAL REPRESENTANTE DA RECORRENTE NÃO PRESTOU O SEU CONSENTIMENTO PARA A GRAVAÇÃO DA CHAMADA TELEFÓNICA DE 20.02.2024, QUE FOI ADMITIDA, COMO MEIO DE PROVA, NO DESPACHO RECORRIDO
H) Da análise do requerimento da Recorrida, de 6.02.2025, no qual foi junta a gravação da chamada telefónica de 20.02.2024, verifica-se que a Recorrida não alega que obteve o consentimento da legal representante da Recorrente para a gravação da referida chamada telefónica.
I) A Recorrida também não alega que a legal representante da Recorrente teria sido informada da gravação da chamada.
J) Conforme referido pela Recorrente, no seu requerimento de 18.02.2025, a sua legal representante não prestou o seu consentimento para a gravação da chamada telefónica do dia 20.02.2024, não tendo sido sequer alertada para o facto de a chamada estar a ser gravada.
K) A Recorrida não juntou aos autos qualquer elemento de prova que pudesse demostrar ter obtido autorização para a gravação da chamada, uma vez que, na verdade, tal não sucedeu.
L) A audição, pelo menos, da parte inicial da chamada demonstra, cristalinamente, que a chamada foi gravada sem o conhecimento e/ou a autorização da legal representante da Recorrente.
M) Em momento anterior ao envio, para Tribunal, do requerimento de 18.02.2025, os mandatários da Recorrente efetuaram duas chamadas telefónicas, para os dois números de telefone da linha “Caixa Direta Empresas”, que constam do documento n.º 4 da petição inicial.
N) A audição das referidas chamadas, confirma que, na data em que as mesmas foram efetuadas (i.e., em 18.02.2025), ou seja, cerca de um ano após a chamada de 20.02.2024, a Recorrida continuava a não pedir o consentimento para a gravação das chamadas efetuadas para os números da linha “Caixa Direta Empresas” (procedimento que terá, entretanto, alterado).
O) A Recorrida juntou aos autos prova documental e testemunhal, não constituindo a gravação da chamada em causa o único meio para tentar demonstrar os factos que invoca nos autos (o que, aliás, não foi sequer alegado pela Recorrida).
P) A gravação da chamada telefónica, junta pela Recorrida, constitui, assim, um meio de prova ilícito, proibido e nulo, conforme resulta, nomeadamente, do disposto no artigo 199.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, bem como nos artigos 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 8 e 34.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa [cfr., neste sentido, e por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 2.02.2021, Processo n.º 4348/19.2T8ALM-A.L1-7, Relator: Carlos Oliveira, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 19.12.2023, proferido no Processo n.º 2423/22.5T8BRG-A.G1, Relator: Jorge Santos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15.04.2010, proferido no Processo n.º 10795/08.8TBVNG-A.P1, Relator: Teixeira Ribeiro, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16.02.2012, proferido no Processo n.º 435234/09.8YIPRT-A.G1, Relator: José Raínho, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 24.10.2013, proferido no Processo n.º 102197/12.1YIPRT, Relator: Tibério Silva].
Q) Em conclusão, a gravação da chamada telefónica de 20.02.2024 não poderá ser valorada nos presentes autos, devendo, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, e substituído por outra decisão que ordene o desentranhamento dos autos da referida gravação.
Sem prejuízo do exposto em (i) e (ii), e por mera cautela de patrocínio,
III - A GRAVAÇÃO EM CAUSA NOS AUTOS SEMPRE EXTRAVASARIA, EM QUALQUER CASO, AS FINALIDADES DAS GRAVAÇÕES DE CHAMADAS FEITAS PELA RECORRIDA
R) Refira-se por fim que, ainda que a legal representante da Recorrente tivesse dado o seu consentimento para a gravação da chamada - no que não se concede e só por mera hipótese de raciocínio se equaciona -, o consentimento para a gravação de uma chamada para um determinado fim não implicaria, automaticamente, o consentimento para utilizar essa gravação em qualquer outro contexto ou para fins diferentes daqueles para os quais foi dado o consentimento.
S) Da audição da gravação do “guia vocal” genérico, que foi junto aos autos, pela Recorrida, no seu requerimento de 28.02.2025, para demonstração do que os seus clientes ouvem quando ligam “para o CCC da Ré”, constata-se que o que aí se refere é que a chamada será gravada para “para cumprimento de obrigações legais e para efeitos de prova e monitorização da qualidade dos serviços prestados”.
T) Mesmo considerando a gravação do “guia vocal” genérico, que foi junto aos autos pela Recorrida, - que nada tem que ver com a situação dos autos, e aqui se equaciona por mera cautela de patrocínio, - sempre seria de concluir que a utilização em juízo da gravação da chamada telefónica em causa, extravasaria, em qualquer caso, as finalidades da gravação mencionadas no referido “guia vocal” (i.e., cumprimento de obrigações legais e/ou prova e monitorização da qualidade dos serviços prestados).
U) Pelo que, estaríamos, em qualquer circunstância, perante um meio de prova ilícito [cfr., nomeadamente, o disposto no artigo 199.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 5.º do Regulamento Geral de Proteção de Dados].
Conclui a recorrente que deve o recurso ser julgado procedente.
A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Nos autos principais foi designado para julgamento o dia 22/9/25, estando agendada a tomada de declarações de parte aos legais representantes da autora e a audição da prova testemunhal indicada por ambas as partes (cf. acta de 17/1/25 e despacho de 14/5/25, refª 445211249).
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir da seguinte questão:
- Validade da prova apresentada pela ré em 6/02/2025 - gravação da chamada telefónica da representante legal da autora para a ré (Caixadirecta) no dia 20/02/2024.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
A tramitação processual relevante que importa à decisão do recurso é a que consta do relatório supra.
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III.2. Apreciação jurídica
No presente recurso a autora impugna o despacho proferido em 28/3/25, que admitiu a junção aos autos, requerida pela ré, de um ficheiro de áudio contendo uma gravação da chamada telefónica efectuada em 20/2/24 pela legal representante da autora para a ré (Caixadirecta).
Sustenta que tal constitui um meio de prova ilícito, proibido e nulo, conforme resulta, nomeadamente, do disposto no artigo 199º/1, alínea a) do Código Penal, bem como dos artigos 26.º/1, 32.º/8 e 34.º/1, todos da Constituição da República Portuguesa.
Contra-alega a ré/recorrida que:
• é facto notório, não carecendo de prova, que quem usa serviços de call centers de entidades bancárias é advertido da gravação da chamada e dos procedimentos a adoptar caso discorde de tal gravação, conforme impõe o D.L. nº 134/2009, de 2 de Junho.
• no caso de provas relativamente inadmissíveis não decorre da lei processual civil a proibição absoluta da admissibilidade da prova, podendo a mesma ser ou não valorada pelo Tribunal em função das circunstâncias como foi obtida.
• na sequência da invocação pela recorrente da nulidade da prova apresentada pela ré, esta fez juntar aos autos uma nova gravação, correspondente ao guia vocal que é disponibilizado a todos os clientes que ligam para o seu call center, através do qual é o cliente informado que se irá proceder à gravação da chamada e, caso não o pretenda, deverá contactar pelos meios alternativos ou recorrer às agências;
Concluindo a recorrida que, considerando que a gravação da chamada se verificou, tal gravação decorreu da vontade de autorizar e consentir na mesma pela representante legal da recorrente, pelo que a mencionada prova é lícita.
A questão a decidir consiste, assim, em saber se a gravação da conversa telefónica verificada em 20/2/24 entre a legal representante da A. e a R. deve ou não ser admitida, sendo certo que está em causa nos autos uma transferência fraudulenta da conta bancária da A., pretendendo esta ser ressarcida dos prejuízos que lhe foram causados.
Apreciemos.
Como resulta da audição da gravação em causa (ref. citius 41860934), a que procedemos, a chamada telefónica foi efectuada (em 20/2/24) pela legal representante da A. e atendida pelo funcionário do banco (CGD) da Caixadirecta, não constando do ficheiro junto aos autos, no início da chamada, qualquer informação de que a chamada iria ser gravada.
Em momento posterior (requerimento de 28/2/24), após a arguição da nulidade da prova pela A., veio a ré juntar uma outra gravação, que constitui um guia vocal que informa o cliente de que “para efeito de cumprimento de obrigações legais e efeitos de prova e monitorização da qualidade do serviço prestado, a presente chamada será gravada … e caso não autorize a gravação pode contactar-nos pelos meios alternativos ou dirigir-se a uma das nossas agências.”
Diz a apelada que é facto notório a existência deste guia vocal em todas as chamadas efectuadas para o call center da CGD, sendo este o fundamento que esteve na base do despacho recorrido, onde se pode ler que:
“(…) Sendo certo que a busca da verdade no âmbito de um processo judicial não é um valor absoluto, não sendo admissível que se possa procurar a verdade usando de quaisquer meios, mas tão-só de meios justos, ou seja, através de meios legalmente admissíveis, no caso concreto não tem o Tribunal dividas quanto ao consentimento prestado pela Legal Representante da Autora para a gravação da chamada cuja junção a Autora requer, porquanto é facto notório que quando se liga para uma entidade bancária se é advertido da gravação da chamada e dos procedimentos a adotar caso se discorde de tal gravação.” – realce nosso
Não podemos acompanhar o entendimento do tribunal recorrido.
Como refere a apelante, a eventual advertência, por uma entidade bancária, da gravação de chamadas telefónicas e dos procedimentos a adoptar caso se discorde de tal gravação, não constitui um facto notório.
Nos termos do art. 412º do Código de Processo Civil, “não carece, de prova nem alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral”.
Em anotação a este preceito, esclarecem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2ª edição, pág. 504,: “Não carecem de prova os factos notórios, isto é, os que sejam de conhecimento e de experiência comum, de acordo com os padrões médios da coletividade de um determinado tempo e lugar.”
Luís Filipe Pires de Sousa, in “Prova Por Presunção no Direito Civil”, 2013 2.ª Ed., pág.s 73 e 74, explicita que «a exigência do conhecimento geral atua em vários âmbitos: a) Na esfera pessoal, o facto notório tem de ser verdadeiro ou falso para a generalidade das pessoas de cultura média, entre as quais o juiz; b) Na esfera cognitiva, tal conhecimento deve integrar a cultura média, de acesso geral e não constituir um saber especializado próprio de um número reduzido de pessoas; c) Na esfera espacial, o facto deve ser conhecido no território que integra as instâncias de recurso. Esclarece ainda que: «o juiz não é obrigado a aceitá-los [os factos notórios] se não estiver convencido da verdade da afirmação, não estabelecendo a lei essa imposição ao juiz. Por essa razão, a parte pode litigar em tribunal contra um facto notório, sendo o tribunal soberano mesmo para se impor à vox populi, gozando de liberdade de apreciação. (…) quando o juiz não estiver convencido da veracidade da afirmação notória, admitindo a possibilidade de a afirmação inversa ser verdadeira, deverá inserir esta nos temas de prova (artigo 596.º n.º1 do Código de Processo Civil)».
Volvendo ao caso sub judice, afigura-se-nos evidente que a advertência, por uma entidade bancária, da gravação de chamadas telefónicas e dos procedimentos a adoptar caso se discorde de tal gravação, não constitui um facto notório, no sentido de facto que é do conhecimento geral ou facto que integra a cultura média do cidadão comum que dispõe do acesso aos meios normais de informação, incluindo neste âmbito as partes e o juiz.
A regra geral no processo civil é que todos os factos alegados pelas partes, relevantes para o julgamento da causa, carecem de prova, sendo esse o propósito da instrução (art. 410º do Código de Processo Civil).
Donde, não estando em causa um facto notório, incumbe à ora R. o ónus de alegação e prova de que obteve autorização da legal representante da A. para a gravação da conversa em causa, sendo certo que a R. apresentou prova testemunhal e documental, que será produzida em sede de julgamento, não sendo, pois, a aludida gravação o único meio de prova para o efeito.
Aqui chegados, importa apurar se foi ou não prestado consentimento pela legal representante da A. para a gravação da chamada telefónica de 20/2/24, admitida como meio de prova pela 1ª instância.
A A. sustenta que esse consentimento não existiu.
Como já referimos, resulta da audição da gravação em causa (ref. citius 41860934) que a chamada telefónica foi efectuada (em 20/2/24) pela legal representante da A. e atendida pelo funcionário do banco (CGD) da Caixadirecta, não constando do ficheiro, no início da chamada, qualquer informação de que a chamada iria ser gravada.
O segundo ficheiro áudio junto pela ré é um guia genérico, não demonstrando a R. que o mesmo tenha que ver com o (primeiro) ficheiro áudio junto em 6/2/24. O que significa que não permite concluir que a gravação da chamada da A. para a ré foi obtida com o consentimento ou autorização desta.
No processo civil vigora a regra da livre admissibilidade dos meios de prova, competindo ao juiz a sua livre apreciação, segundo a sua convicção (art. 607º/5 do Código de Processo Civil).
Porém, existem alguns limites àquela regra, entre os quais os que provêm de normas processuais relativas às “provas proibidas”.
A este propósito, escreveu-se no acórdão de 2/2/2021 desta 7ª Secção, P. nº 4348/19.2T8ALM-A.L1-7, relator Carlos Oliveira, sendo adjuntos os adjuntos do presente acórdão (publicado em www.dgsi.pt):
«É certo que, no Código de Processo Civil não existe uma norma idêntica àquela que no âmbito do processo penal define quais os meios de prova cuja utilização é proibida (v.g. Art. 126.º do C.P.P.), mas daí não pode resultar a conclusão de que todos os meios de prova são admissíveis em processo civil independentemente do método utilizado para a respetiva obtenção.
Efetivamente, teoricamente, podem perfilar-se 3 correntes distintas sobre esta matéria da prova ilegítima, fundada na conclusão de que violam normas de caráter processual para a sua admissibilidade (Vide: Isabel Maria Fernandes Branco in “As Gravações e Fotografias Ilícitas como Prova a Valorar no âmbito do Processo Penal e Civil (Tendências jurisprudenciais), disponível in “verbojuridico.net/ficheiros/doutrina/ppenalisabelbranco”):
1.º- Uma tese permissiva, que sustenta a irrelevância da ilicitude da prova quando se refere a provas produzidas em momento anterior ao processo, dando prevalência à descoberta da verdade e ao interesse público da realização da justiça, fazendo prevalecer o dever de dizer a verdade em detrimento da ilicitude material do ato, que assim seria irrelevante (Sendo certo que, não há nota de que na doutrina portuguesa alguém sustente semelhante posição, nem existe jurisprudência publicada que a suporte).
2.º- Uma tese restritiva, que não admite em caso algum a utilização de prova ilícita, sustentando-se no princípio constitucional da inadmissibilidade das provas ilícitas, consagrado no Art. 32.º n.º 8 da C.R.P., e na unidade do sistema jurídico, que implicaria a aplicação analógica do Art. 126.º do C.P.P. ao processo civil, na medida em que assim se conferiria maior eficácia aos direitos fundamentais violados. Assim, se nos termos do Art. 126.º n.º 2 do C.P.P., para o processo penal, são nulas as provas obtidas com intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, sem o consentimento do respetivo titular, e se, nos termos do Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P., pratica um crime quem gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas, então os meios de prova assim obtidos também não podem ser admitidos em processo civil.
3.º- Uma tese intermédia, que admite algumas provas proibidas com base no princípio da proporcionalidade, ponderando a tutela da norma violada com a obtenção da prova ilícita e a utilização dos meios necessários ao alcance do fim pretendido alcançar com a atividade jurisdicional, em respeito pelo disposto no Art. 18.º n.º 2 da C.R.P.. Esta tese continua a sustentar a regra geral da inadmissibilidade das provas ilícitas, mas se esse for o único meio disponível para descobrir a verdade material e se, no caso concreto, o bem jurídico violado, com a prova assim obtida, for menos digno de proteção do que aquilo que se visa provar, admite-se a exceção à inadmissibilidade da prova.
Com efeito, o Código de Processo Civil não é tão claro como o Código de Processo Penal (no citado Art. 126.º), quanto à validade das provas e à sua admissibilidade no processo. Sem prejuízo, é evidente que aquelas normas do processo penal são a expressão legislativa de princípios gerais constitucionais vigentes, devendo conformar todo o ordenamento jurídico de forma coerente (vide: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/04/2010 - Relator Teixeira Ribeiro; de 3/6/2004 – Relatora: Fátima Galante; e do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/02/2012 - Relator: José Rainho, disponíveis em www.dgsi.pt).
Os princípios estruturantes do ordenamento jurídico português, relativos à consagração dos direitos fundamentais dos cidadãos constantes da Lei Constitucional impõem-se no âmbito do processo civil, constituindo limites que o intérprete não pode postergar na aplicação do direito. «Face à nossa lei, determinados valores são em principio intangíveis podendo até justificar uma recusa do dever de colaboração e fundamentar a inadmissibilidade de certos meios de prova que com eles colidam» (cfr. cit. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/06/2004, Relatora: Fátima Galante, disponível em www.dgsi.pt)
O Art. 26.º n.º 1 da C.R.P. estatui que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. Ora, a tutela desses direitos fundamentais do ser humano passa igualmente pela necessária proibição de utilização de meios de prova obtidos com a violação dos bens jurídicos protegidos pela Constituição. O que tem justificado a aplicação analógica ao processo civil das proibições de prova estatuídas no n.º 32º, n.º 8 da CRP para o processo penal (Vide: Isabel Alexandre in “Provas ilícitas em Processo Civil”, 1988, Almedina, pág.s 261 a 278 e Acórdão da Relação do Porto de 15/04/2010, Relator: Teixeira Ribeiro).
Como refere Germano Marques da Silva (in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1993, pág. 101): «A proibição de prova assume desde logo grande importância pelo seu efeito dissuasor. Se os direitos do cidadão são violados, as provas que se obtenham através de tal violação não poderão ser atendidas no processo, são proibidas. Pretende-se com tal proibição evitar sacrifícios de direitos das pessoas por parte das autoridades judiciárias, dos órgãos de polícia criminal ou dos particulares, privando de eficácia as provas proibidas ou produzidas ilegalmente, as provas proibidas não podem ter efeito no processo».
Subscrevemos o entendimento vertido no citado aresto, considerando-se que devem ser importadas para o processo civil as normas do processo penal respeitantes a provas proibidas, designadamente o art. 126º, especialmente o seu nº 3 (“Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”).
Na verdade, não há justificação plausível para que a regra geral da inadmissibilidade das provas ilícitas vigente no processo penal não se aplique em sede do processo civil, ou seja, que se permita aqui o que ali está vedado, sob pena de se postergarem os princípios constitucionais (v.g. art. 26º e 32º/8 da Constituição da República Portuguesa) em que se estriba aquela regra e de ser posta em crise a necessária unidade e coerência do ordenamento jurídico. Acresce que, conforme consta do ponto 4. do sumário do citado acórdão de 2/2/21, “O meio de prova consistente na gravação de conversação telefónica privada, sem consentimento duma das partes nela interveniente, preenche, em abstracto, o crime de “gravações e fotografias ilícitas”, previsto no Art. 199.º n.º 1 al. a) do Código Penal, que pune com pena de prisão quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que essas palavras lhe sejam dirigidas, não podendo ser usado como meio de prova no processo (Art. 167.º n.º 1 do C.P.P), sendo, portanto, prova nula, nos termos do Art. 126.º n.º 2 do C.P.P.”
Nesta linha, discorre o citado aresto que “Se as autoridades ligadas à investigação criminal não podem usar de gravações de conversações telefónicas que não tenham previamente sido autorizadas por juiz, de acordo com os procedimentos legais estabelecidos (v.g. Art.s 187.º e 188.º do C.P.P.), que justificação poderia haver para permitir semelhante procedimento para pessoas privadas, em manifesta violação de direitos pessoais com gozam de tutela civil (Art.s 70.º e ss do C.C.), penal (Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P.) e constitucional (Art. 26.º e 32.º n.º 8 da C.R.P.).” (…) “também não faria qualquer sentido que uma gravação não pudesse servir de meio de prova em processo penal, mas por razões de mera circunstância, pudesse valer em processo civil, relembrando-se aqui que, em abstrato, é possível que os mesmos factos possam ser objeto de julgamento em Tribunal Cível e em Tribunal Criminal, o que poderia conduzir a decisões judiciais contraditórias, que o sistema deve evitar por se traduzirem em situações que causam descrédito para a ação da justiça.”
Sobre a ilicitude das provas, pronuncia-se, seguindo idêntica orientação, Francisco Ferreira de Almeida (in “Direito Processual Civil”, Vol. II, 3.ª Ed., pág. 283 ): «o direito a um processo equitativo (art.s 20º, nº 4 da CRP e 26 nº 3 da LOSJ) implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos. Tal ilicitude pode resultar, quer da violação de direitos fundamentais (ilicitude material), quer por formação (constituição) ou obtenção de meios probatórios em resultado de procedimentos ilícitos (ilicitude formal)». E acrescenta, depois de sublinhar que o art. 32º/8 da Constituição considera nulas todas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, que o art. 26º/1 reconhece a todos o direito à reserva da vida privada, e que os art.s 79º e 80º do Código Civil também protegem o direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada, concluindo que: «Todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade, são, em si, materialmente proibidos». – sublinhado nosso
Neste mesmo sentido, decidiu o acórdão do TRG de 19/12/23, P. 2423/22.5T8BRG-A.G1, relator Jorge Santos (in www.dgsi.pt), em cujo sumário se pode ler:
“ - A junção aos autos pelos Réus de registos áudio de conversação entre si e a Autora, sem autorização ou consentimento desta, constitui prova ilícita.
- A cedência do princípio de proibição de produção e de valoração da prova ilícita não pode bastar-se com a existência de uma situação de necessidade de prova, antes requer que essa necessidade incida sobre factos jurídicos que sejam constitutivos de uma situação jurídica subjectiva ou postulativos de princípios jurídicos objectivos de dignidade e merecimento de tutela superiores aos bens jurídicos sacrificados pela cedência.

- O exercício de um mero direito à indemnização não atende a nenhum valor superior àquele que está em causa quando se trata de assegurar a cada um o respeito pela sua intimidade e reserva da vida privada.”
Seguindo a mesma orientação, veja-se ainda o acórdão do TRP de 15/4/2010, P. 10795/08.8TBVNG-A.P1, Relator Teixeira Ribeiro, com o seguinte sumário:
“I – Não sendo o CPC tão claro como o C. Proc. Pen. (art. 126º) quanto à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo civil, hão-de, todavia, as suas normas conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor (art. 204º da CRP), particularmente, e no que agora releva, às dos arts. 26º, nº1 e 32º, nº8, da CRP.
II – Por isso, a disciplina normativa deste art. 32º, nº 8, apesar de epigraficamente referenciada para o processo penal, tem aplicação analógica ao processo cível, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste art., nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no art. 26º, nº1 da mesma Constituição) serem válidas apenas para o processo penal (art. 126º, nº3 do Cod. Proc. Pen.).
III – Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil.
Sem prejuízo da aplicação das apontadas normas do processo penal acerca das provas ilícitas, importa assinalar que o princípio da inadmissibilidade de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais e de personalidade é aflorado no art. 417º/3 do Código de Processo Civil, relevando, no caso em apreço, de forma mais evidente, a al. b) desta norma.
Flui do que vimos expondo que, constatando-se a inexistência do consentimento da legal representante da ora A./apelante relativamente à gravação da conversação telefónica ocorrida em 20/2/24, não pode este meio de prova ser considerado pelo tribunal, por constituir prova ilícita/proibida e, por conseguinte, nula (art.s 167º e 126º/3 do CPP e arts 26º e 32º/8 da Constituição da República Portuguesa).
Destarte, improcedem as conclusões recursórias apresentadas em sentido diverso, com a consequente revogação do despacho recorrido, não se admitindo o meio de prova apresentado pela ré em 6/2/25 (ref.ª citius 41860934)
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, não se admitindo o meio de prova apresentado pela ré em 6/2/25 (ref.ª citius 41860934).

Custas pela apelada (artigo 527º do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 1 de Julho de 2025
Ana Mónica Mendonça Pavão
Ana Rodrigues da Silva
Diogo Ravara