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ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da relatora - art. 663º/7 CPC): I. O direito de regresso da seguradora, previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 27º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, pressupõe apenas que o condutor do veículo automóvel conduza o veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e que tenha sido ele a dar causa ao acidente de viação, não sendo exigível à seguradora a alegação e prova da existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente; II. Considera-se, assim, que caducou a jurisprudência uniformizadora do AUJ nº 6/2002, que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente. III. Sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, não comportam, assim, ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cf. art.s 627.º/1, 631º/1 e 639.º do CPC).
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
FIDELIDADE - COMPANHIA DE SEGUROS S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que seja o réu condenado a pagar-lhe a quantia de €45.232,45, acrescida de juros vincendos, contados desde a citação até total e efectivo pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado com AA aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-EF-.., sendo que o aludido contrato se encontrava em vigor à data do acidente ocorrido em 18.02.2019, em que o aludido veículo esteve envolvido.
O referido acidente consistiu numa colisão entre veículos, entre o veículo seguro pela Autora e conduzido pelo Réu e o veículo com a matrícula ..-TZ-.., sendo que o embate se ficou a dever à circunstância de o Réu não ter imobilizado o veículo que conduzia à sinalização semafórica de tom encarnado, seguindo a sua marcha e, assim, ocorrendo o embate entre os veículos. O réu apresentava uma TAS de 0,846 g/l, bem como exercia a condução de veículo sem habilitação legal.
Em consequência do sinistro resultaram, para os veículos envolvidos, diversos danos materiais, tendo o veículo terceiro sido considerado perda total económica, pelo que foi a proprietária – Táxis …, Lda. - indemnizada pelo valor de € 13.976,28, já liquidado pela Autora à sua congénere Lusitânia, Companhia de Seguros, SA. Nessa sequência, mais liquidou à proprietária a quantia de € 5.000 relativos ao ressarcimento da paralisação imposta e os custos respeitantes à importação do veículo. Por outro lado, indemnizou o condutor do veículo terceiro pelos danos sofridos no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros) e o ocupante do veículo terceiro das quantias de € 167,40, € 5,75 e € 5.500,00. Ademais, alega que tendo o sinistro sido submetido à arbitragem, tendo em vista esclarecimento e definição de responsabilidade junto da Associação Portuguesa de Seguradores, e consequente decisão desfavorável à Autora, liquidou, a título de custas do processo de arbitragem, o valor de € 583,02, assim suportando com as indemnizações a quantia global € 45.232,45, cujo reembolso peticiona ao Réu, nos termos do artigo 27º, n.º 1, alíneas c) e d) do Decreto-Lei 291/2007 e disposto no artigo 31º alíneas c) e d) das Condições Gerais e Especiais do contrato de seguro.
O réu apresentou contestação assumindo a sua participação no acidente em causa, bem como que exercia a condução com TAS superior à legal e sem ser titular de carta de condução, mas negando ter sido este a desrespeitar a sinalização semafórica com a luz vermelha, imputando tal responsabilidade ao condutor do veículo com a matrícula ..-TZ-.., negando qualquer culpa sua na ocorrência do sinistro.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Em face da argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, julgo a presente acção totalmente improcedente, e em consequência: 6.1. Absolvo o Réu AA de todos os pedidos formulados pela Autora FIDELIDADE - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. nos presentes autos. 6.2. Condeno a Autora FIDELIDADE - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. no pagamento integral das custas processuais. Registe-se e notifique-se.”
Inconformada com a sentença, veio a autora dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Entende a Recorrente que incorreu o Tribunal a quo num erro notório de julgamento da matéria de facto e de direito, o que redunda, primeiramente, numa alteração da matéria de facto dada por provada e não provada. E depois na alteração da solução a dar ao caso, atentas as normas legais aplicáveis.
2. Caso assim não se entenda, resulta da mera análise da sentença em crise que a mesma é também nula por contradição entre a decisão e a fundamentação, mostrando-se esta obscura ou ambígua.
3. Ora, veio a ora Recorrente dar entrada da presente ação de processo comum declarativo contra o Recorrido, condutor do veículo seguro pela Recorrente, com base no direito de regresso que se arroga, previsto no artigo 27º, n.º 1, alíneas c) e d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, no sentido de ser ressarcida da quantia suportada perante os lesados do acidente de viação sub judice.
4. Entende a recorrente que se mostram inequivocamente provados dois dos pressupostos desse direito: a indemnização liquidada pela recorrente aos terceiros lesados e o exercício da condução pelo Réu com uma taxa de álcool no sangue superior ao legalmente permitido (concretamente, 0,84 g/l) e ainda sem ser detentor de carta de condução.
5. A este propósito diga-se que, atualmente, a jurisprudência maioritária vai no sentido de não ser necessária a prova do nexo causal entre a condução sob a influência do álcool ou estado de etilizado e a ocorrência do acidente. De facto, após a redação do art.º 27º, do DL nº 291/2007, encontramos vários acórdãos nesse sentido (cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 9/10/2014, 10/5/18, 10/12/20, 28/4/21, os Acs. Da RL de 13/12/12, 2/5/19, os Acs. da RP de 27/11/14, de 11/10/2016, o qual cita abundante jurisprudência neste sentido, de 16/1/2018, os Acs. da RC de 8/5/2012, 18/2/2014, 23/3/23, 26/9/23 e os Acs. da RE de 26/10/2017, de 20/12/2018, 14/1/20, 14/9/2023, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
6. Assim, exige-se tão só à seguradora que alegue e prove a culpa do condutor na produção do acidente e que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, não sendo necessário que demonstre o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
7. No que toca à matéria de facto dada como provada ou não provada, note-se que grande parte da mesma se traduz em dados objetivos, vertidos nomeadamente na participação de acidente de viação (documento autêntico com força probatória plena quanto à factualidade nela exposta), e ainda na demais prova documental apresentada pela Recorrente, que fica assim excluída da subjetividade que a prova testemunhal apresenta, e que deve ajudar o julgador a formar a sua convicção de uma forma mais certa e segura, ou seja, deve balizar a demais prova.
8. Para a Recorrente assume particular relevo no alcance desse desiderato o local da via de trânsito onde se deu o embate entre os veículos, os danos provocados por aquele, seja os danos materiais (no que toca à sua localização e extensão), como as lesões sofridas pelos intervenientes, a posição final dos veículos, etc.
9. Porém, apoiada fundamentalmente no princípio da livre apreciação da prova e nos critérios de repartição do ónus da prova, acabou a Mma. Juiz por não vislumbrar o alcance e importância de tal prova.
10. Aliás, apesar de reconhecer extensas dúvidas no que toca à dinâmica do acidente (logo da atribuição da culpa no mesmo), determinou a improcedência total da ação, o que não se compatibiliza com a prova produzida no seu todo e regras legais aplicáveis.
11. Desde logo, o princípio da livre apreciação da prova nunca atribuí ao juiz o poder arbitrário de julgar factos sem prova ou contra a prova, mas antes vincula-o a um julgamento de acordo com as regras da experiência e recondução a critérios objetivos, além da sua livre convicção.
12. O grau de coerência da rede proposicional irá colocar em causa o grau de certeza da conclusão inferencial. Assim, a teoria a adotar neste domínio, salvo melhor opinião, será a da probabilidade lógica, apoiada em critérios racionais, utilizando todos os dados empíricos fornecidos pelo processo. Portanto, é necessário que o juiz tenha em conta todos os meios de prova, as máximas da experiência que sejam amplamente consensuais no meio em questão, a coerência interna. Daí que a decisão também deva ser devidamente fundamentada, de forma clara, suficiente e objetiva.
13. Posto isto, entende a Recorrente que a matéria julgada como não provada deveria, ao invés, ser dada como provada, atenta toda a prova produzida nos autos.
14. Cai nesta situação, notoriamente, o vertido no ponto 33) “Após isso, imobilizaram-se os veículos nas imediações do cruzamento entre as supra referidas artérias – Avenida … e Avenida ….
15. Na verdade, decorre da própria fundamentação do julgamento da matéria de facto que os veículos intervenientes no acidente dos autos, após o embate, ficaram imobilizados mais concretamente nos locais apostos no croqui que compõe a participação de acidente de viação (Doc. n.º 2 junto com a P.I.), cujo teor foi integralmente corroborado pelo respetivo participante, a testemunha BB, agente da PSP, o qual mereceu inteira credibilidade do Tribunal. Ou seja, que o veículo seguro ficou imobilizado na ..., quem segue no sentido ..., após o cruzamento com a ..., na faixa da esquerda, com a parte frontal direcionada para o sentido inverso.
Já o veículo terceiro, ficou posicionado quase perpendicular à via, na esquina entre a Avenida … e a Avenida … (junto aos semáforos existentes nesse local), no sentido ...
16. Motivo pelo qual entende a Recorrente que tal matéria deve dada como provada, o que se pede.
17. Acresce que, entende a Recorrente ser relevante para a decisão a alcançar dar-se como provado o demais referido pela testemunha Pedro Pita, atenta a credibilidade do seu depoimento, o que igualmente decorre da fundamentação da decisão em crise, como seja: que o ponto de conflito se situou mais precisamente a meio do cruzamento; não foram deixados rastos de travagem pelos veículos; e a boa visibilidade do cruzamento. Devendo, deste modo, tal matéria ser aditada à matéria de facto dada como provada, o que se pede.
18. O Tribunal a quo fundamentalmente deu a demais matéria de facto como não provada atenta a valoração que fez dos depoimentos dos condutores intervenientes e do passageiro do veículo terceiro.
19. Começa-se por referir que “Perante os depoimentos assim sumariamente apresentados quanto à dinâmica do acidente verifica-se uma frontal incongruência entre todos, sendo que o Tribunal não tem qualquer motivo para valorizar um em detrimento dos demais. Com efeito, ambos os condutores são pessoas interessadas no desfecho na acção (quanto ao condutor terceiro, mais não seja porque reflexamente coloca em causa acções ainda a correr termos), sendo que ademais o depoimento de Aníbal Torres foi o mais ambíguo e titubeante e que, analisado em si mesmo, mereceu menos credibilidade ao Tribunal.”. – sublinhado nosso.
20. Contudo, apesar de apontar incongruências discursivas ao condutor do veículo terceiro, Aníbal Torres, em conjugação com o próprio depoimento do ocupante do veículo, César Castro e Brito, finaliza com o entendimento de que as declarações do Réu são em si mesmas congruentes…
21. O que nos parece contraditório com a matéria dada como provada e demais fundamentação entre si.
22. No que toca ao desfecho da ação, ainda que ambos os condutores possam ter interesse no mesmo, é inegável que é o Réu o direto interessado na presente ação. É a este que vai decair no pedido e não o condutor do veículo terceiro!
23. Além do mais, desconhece o Tribunal a quo concretamente qual a influência que o desfecho desta ação terá noutra ação em que o condutor do veículo terceiro seja parte.
24. Por outro lado, resultou da prova realizada que o Réu acusou uma TAS de, pelo menos, 0,84 g/l.
25. Discorreu, e bem, o Tribunal a quo sobre os efeitos de tal TAS no comportamento do condutor, efeitos esses esmiuçados na extensa literatura científica. Como sabemos, tais achados científicos, aliados a estudos estatísticos, levaram ao estabelecimento de um limite legal a partir do qual se impõe a proibição de condução de veículos, por se considerar que o condutor se encontra sob o efeito do álcool, portanto, que a condução é em si mesma perigosa acima desse limite e o risco de acidente de viação aumenta significativamente (o qual, para a maioria dos condutores, é igual ou superior a 0,5 g/l – vide artigo 81º do Código da Estrada).
26. Com a TAS apurada, o Réu encontrava-se numa fase de excitação psicomotora, causadora de desinibição, euforia superficial alternada com período de tristeza e agressividade, necessidade irresistível de falar e familiaridade excessiva, alterações da memória, do discernimento e da atenção [neste sentido, James e col., 2005, citado por Nádia Costa, ob cit, pág 81]. Mais refere a mesma autora que o álcool é considerado um depressor do sistema nervoso central, pois à sensação inicial de euforia e de desinibição, segue-se um estado de sonolência, turvação da visão, descoordenação muscular, diminuição da capacidade de atenção e compreensão, fadiga muscular, diminuição da capacidade de atenção, etc (ob. cit, pág. 81). – sublinhado nosso.
27. A isto acresce a circunstância de que o Réu igualmente conduzia sem ser titular de carta de condução, o que já havia ocorrido em outras situações anteriormente. Trata-se de comportamento que foi inclusivamente criminalizado, na medida em que o bem jurídico a proteger é a segurança de circulação rodoviária e, indiretamente, a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais. Sendo que, tal comportamento também exponencia a ocorrência de acidentes de viação.
28. Efetivamente, no que toca a este ponto, apesar de o Réu ter reconhecido que circulava à data do acidente sem ser titular de licença para o efeito, tentou que o seu comportamento fosse visto como pontual, mentindo deliberadamente, ao referir ter feito anteriormente trajectos de 200 / 300 metros em Almada, o que foi contrariado pelo teor da gravação do julgamento ocorrido no processo crime com o n.º 39/19.2..., daí decorrendo que era já a quarta situação em que este era condenado pela prática deste mesmo crime!
29. O mero facto de não se tratar de episódio ocasional, mas de uma reiterada conduta contrária ao Direito, demonstra uma não interiorização do desvalor e perigosidade do ato pelo Réu, logo espelha a personalidade e intenções do Réu, nomeadamente o seu grau de culpa.
30. Atento o exposto, não se compreende como o Tribunal a quo pôde considerar o depoimento do Réu como mais congruente (ou idóneo ao fim ao cabo), quando se trata de alguém com interesse direto no desfecho da ação, que mente deliberadamente para menorizar a sua atuação, não interiorizando o desvalor da mesma, colocando assim em perigo, reiteradamente, todos os demais condutores ou transeuntes.
31. E que à data dos factos, pela quantidade de álcool ingerido, estaria num estado propício a alterações da memória, do discernimento e da atenção, estado de sonolência, turvação da visão, descoordenação muscular, fadiga muscular, etc.!
32. É comummente aceite pela jurisprudência e pela doutrina que nas ações de indemnização baseadas em factos ilícitos culposos, mormente decorrentes de acidentes de viação, embora incumba ao lesado a prova da culpa do lesante, tal prova encontra-se amplamente facilitada por intervir a “prova da primeira aparência” (artigo 349º do Código civil), isto é, bastando ao lesado demonstrar factos que, segundo as regras da experiência comum, tornem verosímil a culpa do lesante, que se acentua com a inobservância de disposições legais ou regulamentares, mormente, que assente na prática de uma contraordenação ou crime estradal – cfr. Manuel Andrade, in Noções Elementares de Direito Civil, 1956, pág. 191; Ac. T. R. C., de 21/01/1997, in CJ, ano XXII, tomo I, pág. 24; Ac. T. R. L., de 23/02/2006, in www.dgsi.pt.
33. Destarte, apesar de a condução sob a influência do álcool não constituir, só por si, uma presunção legal de culpa na produção do acidente, todavia, - e ainda que a matéria factual apurada não permita concluir pela culpa efetiva de qualquer condutor na produção do acidente – essa culpa pode ser estabelecida por via do recurso a presunções judiciais/naturais, nas quais se integram ou podem integrar a condução sob o efeito do álcool em conjugação de análise, perante o caso concreto, com os demais factos apurados.
34. Ora, debruçando-nos sobre o caso sub iudice, verificamos a falta de qualquer registo de rastos de travagem ou de execução de qualquer outra manobra de recurso por parte do condutor segurado e a circunstância do veículo por si conduzido ter embatido violentamente na lateral esquerda (com maior incidência sobre a porta traseira) do veículo terceiro, precisamente a meio do cruzamento, sem que existisse qualquer obstáculo visível, estando o piso e o tempo bons. O que é compatível com a perda ou diminuição significativa de capacidades perceptivas, de reacção e de visão, bem como com a fadiga provocadas pela ingestão de bebidas alcoólicas.
35. Aliás, com base na teoria da prova de primeira aparência e nos dados objetivos recolhidos e supra descritos (ao que acresce o facto de no local a velocidade máxima estar limitada a 50 km/hora, já que se trata de cruzamento dentro de localidade), pode concluir-se igualmente que o veículo terceiro teria ingressado primeiro no cruzamento, e que o Réu circulava com velocidade excessiva para o local, o que contribuiu para o deflagrar do acidente.
36. Analisadas as fotografias do veículo terceiro, juntas aos autos sob Doc. n.º 6 e 8 com a P.I. (nas quais o Tribunal a quo sustentou inclusivamente a prova dos danos sofridos por este), conseguimos perceber que o embate se deu mais concretamente a meio da lateral esquerda, com maior incidência sobre a porta traseira. De tais registos fotográficos resulta, aliás, que a violência do embate foi tal que o veículo terceiro ficou completamente deformado/perfurado convexamente, projectando-o vários metros.
37. Assim, não se podia estar mais longe da verdade quando se refere na sentença recorrida que “os danos evidenciados nos veículos bem como o local em que se imobilizaram nada nos diz sobre qual foi surpreendido pela presença do outro.”. Pelo contrário, os danos e posição final dos veículos são dados objetivos preciosos que devem auxiliar o julgador na árdua tarefa de “reconstituir” a dinâmica de um acidente. Muitas vezes são precisamente estes dados que permitem constatar quais depoimentos merecem maior credibilidade!
38. Por sua vez, no que toca às supostas incongruências entre o depoimento do condutor do veículo terceiro e do passageiro transportado, há igualmente que enquadrar os mesmos com os demais dados objetivos.
39. Desde logo analisando o depoimento escrito prestado pela testemunha CC em sede de averiguação (junta aos autos com a certidão do processo administrativo que correu termos na ASF), verificamos que o mesmo referiu ao Sr. Perito que na data do acidente se dirigia para casa (residindo a testemunha na ..., a qual fica na zona de Olaias). Se verificarmos no google maps, um dos possíveis percursos a tomar para alcançar esse destino, para quem está na ..., será precisamente seguir por esta avenida até final e aí virar à esquerda para a Alameda, seguindo até Olaias. O que é compatível com as declarações do condutor do veículo terceiro, parecendo-nos, assim, completamente descontextualiza a direção indicada por tal testemunha em sede de julgamento (que pretendia seguir para os Olivais…).
40. Por outro lado, o facto de referir que não se recorda do acidente, porém recorda-se de estarem parados no sinal vermelho e serem embatidos é em si mesmo contraditório e completamente incompatível com a demais prova supra descrita. Porquanto, o veículo terceiro se encontrava a circular no momento da colisão e esta não se deu junto a qualquer semáforo, mas no meio do cruzamento.
41. Ou seja, existe sim incongruência entre o depoimento prestado pelo condutor do veículo terceiro e pelo passageiro que transportava, mas nem por isso entendemos que possa ser dada mais credibilidade a este em detrimento daquele, pois o próprio contradiz-se.
42. Daí que a tomada de posição por parte do Tribunal a quo não seja compatível com as mais elementares regras da experiência, lógica e normal acontecer. Consubstanciando, antes, um erro notório na apreciação da prova.
43. Entende, assim, a Recorrente que o depoimento do Réu não pode ser considerado idóneo, nem contribuir para colocar em dúvida os demais. Não fazendo operar o disposto no artigo 346º do C.C..
44. Pelo contrário, decorre à saciedade do supra exposto que, da conjugação de toda a prova realizada nos autos, deve ser dada como provada toda a demais matéria dada como não provada, correspondente aos pontos 29) a 37), porquanto:
-- o veículo terceiro já se encontrava a circular no cruzamento quando o Réu surge;
-- o Réu circulava com velocidade excessiva para o local;
-- o Réu não exercia, nessa medida, uma condução prudente, cautelosa e atenta;
-- pelo que será de presumir judicialmente que foi o Réu que não logrou imobilizar o veículo à sinalização semafórica de tom encarnado, conforme se impunha, desrespeitando, portanto, essa imposição estradal.
-- Atenta a inesperada e súbita manobra de atravessamento do cruzamento encetada pelo Réu, não logrou o condutor do veículo terceiro evitar o choque do veículo seguro de matrícula ..-EF-.., com a sua parte frontal, na parte lateral esquerda do veículo terceiro de matrícula ..-TZ-.. (táxi).
-- O acidente se deveu exclusivamente à inobservância, por parte do Réu, das mais elementares regras de circulação rodoviária.
-- Nesta sequência, atendendo às características da via, ao tráfego automóvel, assim como quaisquer outras circunstâncias relevantes, não exerceu o Réu a condução em condições de segurança, de forma a executar as manobras cuja necessidade fosse de prever, designadamente imobilizar o veículo perante a sinalização semafórica (sinal encarnado) que sobre este impendia ou até conseguir imobilizar o seu veículo ou fazer alguma manobra de recurso face a presença do veículo terceiro.
45. Ainda que, por mera hipótese académica, não se entenda dar como provada toda a matéria alegada pela Recorrente, o que redundaria na atribuição da culpa pelo acidente dos autos exclusivamente ao Réu, sempre seria de repartir essa mesma responsabilidade pelos intervenientes.
46. Isto, no pressuposto de que a Recorrente conseguiu preencher os demais pressupostos do seu direito de regresso: o pagamento da indemnização aos lesados (o que resulta da matéria provada sob os pontos 22 a 27); o exercício da condução pelo Réu com uma TAS superior ao legalmente permitido (vide ponto 17) da matéria de facto provada); e não ser portador de habilitação legal para conduzir (vide ponto 18) da matéria de facto provada).
47. Sendo certo que, atualmente, conforme se apontou supra, a jurisprudência maioritária vai no sentido de não ser necessária a prova do nexo causal entre a condução sob a influência do álcool ou estado de etilizado e a ocorrência do acidente.
48. Na verdade, é notório que o Tribunal a quo ficou com sérias dúvidas sobre quem recai a responsabilidade pelo acidente dos autos, ou seja, quem praticou o ato que considera essencial para o deflagrar do acidente (passagem no sinal vermelho), tanto é que o expressou perentoriamente na fundamentação da sentença, onde se lê: “Perante os depoimentos assim sumariamente apresentados quanto à dinâmica do acidente verifica-se uma frontal incongruência entre todos, sendo que o Tribunal não tem qualquer motivo para valorizar um em detrimento dos demais.”. Ou quando questiona em que via circulava o veículo terceiro, qual o sentido que levava, em suma, o que aconteceu efetivamente.
49. Se o Tribunal a quo entendia que a prova produzida e as circunstâncias do caso não permitiam apurar, com segurança, qual o condutor que violou a prescrição estradal de paragem no sinal vermelho, por ausência de factos essenciais que não podiam ser supridos por via de deduções ou inferências, deveria ter seguido o prescrito no art. 506º do CC.
50. Efetivamente, esta norma aplica-se especialmente aos acidentes de viação, já que se debruça sobre a situação de colisão entre veículos. Ditando que, se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção do risco que cada um dos veículos houver contribuído para os danos e que, em caso de dúvida, se considera igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos.
51. Na prática, para a determinação da proporção do risco haverá que lançar mão de um critério de equidade, embora na proporção do respectivo juízo esteja a realidade concreta, ajudando a relatividade do risco a determinar a sua proporção.
52. Dizemos nós que, o facto de o Réu conduzir sob a influência do álcool e sem ser detentor de carta de condução aumenta exponencialmente esse risco, logo, a considerar-se a repartição do risco, a mesma não deverá ser equitativa mas sim recair predominantemente sobre o Réu, na proporção de, pelo menos, 70%.
53. Nessa medida, em última instância, caso não se entenda que a culpa pelo acidente sub judice recai exclusivamente sobre o Réu, pelos motivos supra expostos, sempre deverá ser a sentença proferida anulada e substituída por decisão em que se reparta a responsabilidade entre os intervenientes, em obediência ao disposto no artigo 506º do C.C., o que se pede.
54. Neste sentido, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05/05/2016 (proc. 744/13.7TVLSB.L1-2, in www. dgsi.pt).
55. Por fim, como já vem sendo dito, não se pode deixar também de apontar, pela mera análise à sentença em crise, várias contradições entre a decisão e a fundamentação, que a tornam ininteligível.
56. As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. In casu, entendemos que estamos perante a nulidade da sentença prevista na al. c) do nº. 1 do citado artº. 615º - fundamentos em oposição com a decisão ou ainda obscuridade ou ambiguidade que a tornam ininteligível – que ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final.
57. Concretamente, relativamente aos factos vertidos nos pontos 29 a 37 da matéria dada como não provada, declara a Mma. Juiz na fundamentação, e em síntese, que:
-- “…ante a forma titubeante e absolutamente contraditória como prestou depoimento nesta parte não pôde dar qualquer segurança ao Tribunal” (no que se refere ao depoimento do condutor do veículo terceiro);
-- por sua vez, o depoimento de CC, passageiro do veículo terceiro, é manifestamente contraditório com o depoimento de Aníbal Torres (condutor do veículo terceiro);
-- “só da conjugação destes dois depoimentos, já fica o Tribunal com dúvidas sobre o que efectivamente determinou o embate aqui em discussão, sendo que, dos intervenientes, apenas se ouviu ademais o aqui Réu AA. Este, reconhecendo que conduzia sem ser titular de carta de condução (referindo ter feito anteriormente trajectos de 200 / 300 metros em Almada, o que é contrariado pelo teor da gravação do julgamento ocorrido no processo n.º 39/19.2..., conforme certidão junta aos autos, no âmbito do qual o arguido confessou que estava a exercer a condução sem ser titular de carta de condução, mas igualmente daí decorrendo que era já a quarta situação em que este era condenado pela prática deste mesmo crime, em contradição com o referido no presente julgamento…”;
-- “Perante os depoimentos assim sumariamente apresentados quanto à dinâmica do acidente verifica-se uma frontal incongruência entre todos, sendo que o Tribunal não tem qualquer motivo para valorizar um em detrimento dos demais. Com efeito, ambos os condutores são pessoas interessadas no desfecho na acção (…);
-- “A taxa a que o arguido conduzia é já aquela que se considera ser causadora de desinibição, euforia superficial alternada com período de tristeza e agressividade, necessidade irresistível de falar e familiaridade excessiva, alterações da memória, do discernimento e da atenção. A isto acresce a circunstância de que o Réu igualmente conduzia sem ser titular de carta de condução, o que já havia ocorrido em outras situações antes.”
58. No entanto, ainda que tenha exposto as fundadas dúvidas acerca da dinâmica do acidente com que se viu confrontado, o Tribunal a quo concluiu que “conseguiu o Réu, cujas declarações são em si mesma congruentes, suscitar a existência de uma dúvida razoável acerca da verificação dos factos como enunciados, quanto à dinâmica do acidente, na petição inicial, assim se respondendo de forma negativa à questão colocada, pois que o Réu poderia, não obstante com TAS superior à legal e sem ser titular de carta de condução, não ter sido ele incumpriu o dever de imobilizar o veículo à sinalização semafórica de tom encarnado, mas outrossim o condutor do veículo terceiro. Com efeito, em face da conjugação de todos os elementos mencionados, outra não pode ser a conclusão do Tribunal senão a não prova dos factos enunciados nos incisos em referência.”.
59. Em que elementos se baseia o Tribunal a quo para dar o depoimento do Réu, a final, como mais congruente? Desconhecemos. Pelo contrário, o que vimos foi o Tribunal a enunciar uma série de factos que levam a que o depoimento do Réu levante sérias dúvidas, como o seu estado etilizado e respetivos efeitos sobre o organismo, a mentira e desculpabilização acerca da prática reiterada do crime de condução sem habilitação legal, o afirmar que circularia a uns meros 50 km/hora, quando a extensão dos danos provocados no veículo terceiro demonstram que assim não podia ser segundo as regras da física!
60. Quais os factos que levam a que se possa concluir que foi o condutor do veículo terceiro a violar a sinalização semafórica? Desconhecemos.
61. Por tudo o exposto, entende a Recorrente que os fundamentos vertidos na sentença conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, como seja a repartição da responsabilidade entre os intervenientes, por não apuramento da culpa.
62. A douta sentença de fls. violou, entre outros, o disposto nos artigos 506º do Código Civil e artigo 615º, n.º 1, alínea c) do CPC.
63. Logo, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída, em ordem à procedência do pedido da Autora, mais não seja assente numa repartição de culpas entre os intervenientes no acidente.
Conclui a recorrente que deve o recurso ser julgado procedente e consequentemente:
- ser alterada a matéria de facto apontada pela recorrente;
- em consequência, ser dado inteiro provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência, a douta sentença recorrida, substituindo-a por decisão que julgue totalmente procedente o pedido formulado pela autora, seguindo-se ulteriores termos.
- caso assim não se entenda, ser a sentença recorrida considerada nula, por contradição entre a decisão e a fundamentação, seguindo-se ulteriores termos.
- em última instância, caso assim não se entenda, revogar-se a sentença, substituindo-a por outra em que se proceda à repartição da responsabilidade pelos intervenientes.
O recorrido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
* II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões:
• Nulidade decisória;
• Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
• Verificação dos pressupostos do direito de regresso invocado pela autora.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
Factos provados
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]:
1) A Autora Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a realização de todas as operações referentes à actividade seguradora e, bem assim, a prática de quaisquer actos necessários ou acessórios dessas mesmas operações
2) No exercício desta sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado com AA, titulado pela apólice n.º ... - ramo automóvel - aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-EF-.., marca SKODA e modelo Octavia B. 2.0 TDI 4x4, dentro dos limites legais.
3) A apólice referida em 2) tinha como período de vigência de 24.02.2018 a 23.02.2019.
4) A apólice encontrava-se sujeita às as condições gerais e especiais juntas como Documento 3) com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente, constando do artigo 31º das Condições Gerais, sob a epígrafe Direito de Regresso do Segurador que: Satisfeita a indemnização, o Segurador apenas tem direito de regresso: (…) c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos; d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado; (…)
5) No dia 18 de Fevereiro de 2019, pelas 05h00m, no cruzamento entre a Avenida … e a Avenida …, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação, consistindo em colisão entre veículos.
6) No qual foram intervenientes, o veículo automóvel seguro pela Autora, e conduzido pelo Réu AA, com a matrícula ..-EF-.., e o veículo com a matrícula ..-TZ-.. (marca Dacia, modelo Lodgy), propriedade de Táxis …, Lda.
7) O veículo seguro, de matrícula ..-EF-.., circulava na Avenida …, no sentido ....
8) O veículo terceiro, de matrícula ..-TZ-.., circulava na Avenida …, no sentido Alvalade – Praça de Londres.
9) O local do embate configura um cruzamento, em meio citadino, onde se interceptam as supra referidas artérias Avenida … e Avenida ….
10) A via donde provinha o veículo seguro, na Avenida …, configura-se como uma estrada em piso asfaltado, apresentando o pavimento bom estado de conservação.
11) Ali existindo sinalização semafórica.
12) Por sua vez, a via donde provinha o veículo terceiro, Avenida …, configura-se como uma estrada igualmente em piso asfaltado, apresentando o pavimento bom estado de conservação.
13) Também nesse arruamento existe sinalização semafórica.
14) No momento do sinistro, as condições atmosféricas eram de bom tempo, encontrando-se o piso seco.
15) No local, a velocidade é limitada a 50 Km/hora.
16) Submetido o Réu AA, condutor da viatura ..-EF-.., a exame de pesquisa de álcool expirado (qualitativo), acusou uma Taxa de Alcoolemia Sanguínea (TAS) de 1,05 g/l.
17) Efectuada a contraprova o Réu AA acusou uma (T.A.S.) registada de, pelo menos, 0,92 g/l, correspondente a uma TAS de 0,84 g/l deduzido o erro máximo admissível.
18) O Réu AA exercia a condução, naquele circunstancialismo, sem ser titular de carta de condução.
19) Em face do referido em 18) foi condenado, no processo n.º …/19.2..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, do Juízo Local da Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz …, por sentença de 31.10.2019, já transitada em julgado, pela prática, e, 18 de Fevereiro de 2019, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 1 (um) ano, e (foi decidido) determinar que tal suspensão fique subordinada à condição de que o arguido se mantenha inscrito em escola de condução, frequente as respectivas aulas e se presente a exame, devendo comprová-lo nos autos no termo do período de suspensão fixado.
20) Em consequência deste sinistro resultaram, para os veículos envolvidos, diversos danos materiais.
21) O veículo ..-TZ-.., propriedade de Táxis …, Lda., ficou danificado em toda a sua extensão, com especial incidência na parte lateral direita, nomeadamente, portas, chassis, longarina, colunas, entre outros componentes.
22) Aquele veículo foi considerado perda total económica, tendo sido a proprietária – Táxis …, Lda. - indemnizada pelo valor de € 13.976,28, já liquidado pela Autora à sua congénere Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.
23) A Autora celebrou com a proprietária desse veículo – Táxis …, Lda - acordo de indemnização global, prevendo o ressarcimento da paralisação imposta e os custos respeitantes à importação do veículo, no valor de 5.000,00 € (cinco mil euros), liquidado em 28 de setembro de 2020, 24) O condutor – DD – do veículo terceiro sofreu ferimentos vários, provocados pela colisão no veículo que tripulava, sendo socorrido no local por ambulância do INEM Lisboa 9, havendo, ainda, a necessidade de ser encaminhado ao Hospital ….
25) Motivado pelos ferimentos e lesões sofridas pelo condutor do veículo terceiro, correspondente assistência médico-hospitalar prestada, incapacidade temporária e, bem assim, dano moral complementar, celebrou a Autora com DD acordo de indemnização, liquidando, para o efeito, o valor de 20.000,00€ (vinte mil euros), em 28 de setembro de 2020.
26) A Autora liquidou ao ocupante do veículo terceiro – CC – pela recuperação das lesões sofridas, os seguintes valores:
- 167,40 € (cento e sessenta e sete euros e quarenta cêntimos) em virtude de transportes, hospitalização e honorários médicos, liquidados em 26 de setembro de 2019;
- 5,75 € (cinco euros e setenta e cinco cêntimos) em virtude de hospitalização, liquidado em 7 de novembro de 2019; e,
- 5.500,00 € (cinco mil e quinhentos euros) em virtude de acordo celebrado entre o Sinistrado e a Autora, prevendo a indemnização pelas incapacidades temporária e permanente e dano moral complementar, liquidado em 18 de abril de 2020.
27) O sinistro foi submetido a arbitragem junto da Associação Portuguesa de Seguradores, tendo em vista esclarecimento e definição de responsabilidade, e face à decisão desfavorável à Autora, esta liquidou, a título de custas do processo de arbitragem, o valor de 583,02 € (quinhentos e oitenta e três euros e dois cêntimos), em 28 de maio de 2020.
28) a Autora, por carta datada de 12 de abril de 2020, procedeu à interpelação do Réu, para que este efectuasse o pagamento voluntário da quantia global de € 45.232,45, não tendo aquele, procedido ao pagamento até à presente data.
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Factos não provados
29) No circunstancialismo temporal referido em 5), e quando o Réu fazia circular o veículo seguro de matrícula ..-EF-.. na Avenida …, encontrava-se, para a mencionada pista, a sinalização semafórica exibindo tom encarnado, prescrevendo a todos os condutores que ali cheguem a obrigação de pararem no limite da intersecção das duas vias, como ainda a de ceder a prioridade às outras viaturas que se apresentem ao cruzamento.
30) O Réu não logrou imobilizar o veículo à sinalização semafórica de tom encarnado, conforme se impunha, desrespeitando, portanto, essa imposição estradal.
31) Nessa sequência, seguiu a sua marcha, ingressando no cruzamento e, nesse exacto momento, ingressa também o veículo terceiro, ocorrendo o embate entre os veículos.
32) Atenta a inesperada e súbita manobra de atravessamento do cruzamento encetada pelo Réu, não logrou o condutor do veículo terceiro evitar o choque do veículo seguro de matrícula ..-EF-.., com a sua parte frontal, na parte lateral esquerda do veículo terceiro de matrícula ..-TZ-.. (táxi).
33) Após isso, imobilizaram-se os veículos nas imediações do cruzamento entre as supra referidas artérias – Avenida … e Avenida ….
34) O sinistro ficou a dever-se unicamente ao facto do condutor do veículo seguro, ora Réu, não ter exercido a condução de forma prudente, cautelosa e atenta.
35) O acidente se deveu exclusivamente à inobservância, por parte do Réu, das mais elementares regras de circulação rodoviária.
36) Nesta sequência, atendendo às características da via, ao tráfego automóvel, assim como quaisquer outras circunstâncias relevantes, não exerceu o Réu a condução em condições de segurança, de forma a executar as manobras cuja necessidade fosse de prever, designadamente imobilizar o veículo perante a sinalização semafórica (sinal encarnado) que sobre este impendia.
37) O Réu conduzia de forma desatenta e pouco cautelosa, em excesso de velocidade, não se tendo certificado das condições necessárias e suficientes para realizar o atravessamento do cruzamento em segurança, desde logo, respeitando a sinalização semafórica de tom encarnado que se lhe apresentava, colocando em perigo, como colocou, os demais utilizadores da via.
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III.2. Mérito do recurso
III. 2.1. Nulidade decisória
Invoca a apelante a nulidade da decisão recorrida, por violação do disposto no art. 615º c) do Código de Processo Civil (cf. conclusão 56).
Sob a epígrafe regra da substituição ao tribunal recorrido, dispõe o art. 665º/1 do Código de Processo Civil que: «Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação».
Decorre da regra aqui consagrada que, em princípio, é irrelevante, porque inútil, conhecer da nulidade da decisão impugnada, na medida em que se impõe ao tribunal ad quem o suprimento da nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (arts 665.°, n° 1 e 684.°, n.º 1, do CPC) – neste sentido, v. acórdão do TRC de 27/6/2023, P. 2808/22, Henrique Antunes, in www.dgsi.pt.
Sendo invocados vários fundamentos pelo recorrente, entre os quais a nulidade decisória, a apreciação desta revela-se um acto inútil (art. 130º do Código de Processo Civil), se a decisão sob recurso puder ser confirmada ou revogada com base nos outros fundamentos aduzidos na apelação (v. acórdão do TRP de 25/3/2021, P. 59/21.7T8VCD.P1, www.dgsi.pt.)
Neste conspecto, pode ler-se no acórdão do TRL de 3/12/2024, P. 2844/20.8T8ALM-E.L1, relator Paulo Ramos de Faria, in www.dgsi.pt.: “De todo o modo, sempre se dirá que, logicamente, terão de ser casos em que possa ser afirmada a utilidade das duas pronúncias (em simultâneo), isto é, em que possam conviver com utilidade – o que significa que terão de ser casos em que o conhecimento “do objeto da apelação” não é possível relativamente a todo o objeto da decisão impugnada (tertium non datur)”.
Em face do exposto, conjugando a regra da substituição (art. 665º/1) com os princípios da limitação dos actos (art. 130º) e da prevalência da decisão de mérito (art. 278º/3) e considerando que, no caso vertente, o conhecimento da/s nulidade/s invocada/s não prejudicaria o conhecimento do objecto do recurso, afigura-se inútil o conhecimento da nulidade, pelo que não se aprecia tal questão.
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III.2.2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Pretende a apelante que a matéria de facto julgada não provada seja dada como provada e seja aditado um novo facto ao acervo factual apurado.
Nos termos do disposto no art. 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Dispõe, por sua vez, o art. 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que concerne à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (art. 640º/2 a) do Código de Processo Civil).
Tais ónus são de cumprimento cumulativo, sob pena de imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto (neste sentido, v. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 199; e os seguintes acórdãos: do STJ de 27/10/2016, Ribeiro Cardoso; de 27/09/2018, Sousa Lameira; de 3/10/2019, Maria Rosa Tching; e de 2/2/2022 - revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1-1ª Secção, Fernando Samões; e do TRG de 19/06/2014, Manuel Bargado; de 18/12/2017, Pedro Damião e Cunha; e de 22/10/2020, Maria João Matos – todos acessíveis em www.dgsi.pt.)
Acresce que, a reapreciação do julgamento de facto pela Relação, destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que, atento o preceituado no citado artigo 662º/1 do CPC, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, impondo decisão diversa. Significa que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha.
Por esta razão, a lei exige ao recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
No que tange à rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 200-201, elenca as situações em que deve verificar-se tal rejeição: “a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a)); c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.): d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”
Como sustenta o mesmo autor, estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, sendo “uma decorrência do princípio de autorresponsabilidade das partes, impedindo que a decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (ob. cit. pág. 201).
Conforme se afirmou no acórdão do STJ de 24.04.2018 (P.140/11.0TBCVD.E1, disponível em www.dgsi.pt), «o art. 640º, nº 1 do CPCivil impõe um certo número de ónus à parte que impugne a decisão sobre a matéria de facto. Compreendem-se sem dificuldade estas exigências legais, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não está concebido em termos de reescrutínio indiscriminado ou global da materialidade subjacente à causa, mas sim em termos de aferição de pontuais erros de julgamento (os concretamente identificados pelo recorrente). E, de outro lado, visa a lei o rigor na forma de acusação do mau julgamento dos factos, de modo a obviar a impugnações dilatórias, levianas ou carecidas de fundamento probatório objectivo».
No caso vertente, resulta do corpo das alegações de recurso e respectivas conclusões que a recorrente deu cumprimento aos ónus impostos pelo art. 640º/1 a) e c) do Código de Processo Civil, na medida em que indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, assim como a modificação pretendida.
Porém, o mesmo não se pode afirmar relativamente ao ónus previsto na alínea b) do nº 1 do citado preceito, em conjugação com as alíneas a) e b) do nº 2 da mesma disposição.
Com efeito, na sua motivação (e/ou conclusões) a apelante não mencionou o que concretamente foi declarado pelas testemunhas e réu, nem indicou as passagens das gravações dos depoimentos a que se reportou, não precisando o início e fim das mesmas, não tendo sequer procedido à transcrição das passagens das gravações em que sustenta a sua pretensão de alteração da matéria de facto.
A apelante limitou-se a aludir ao sentido dos depoimentos prestados pelos condutores dos veículos intervenientes no acidente de viacção em causa nos autos (a testemunha Aníbal Torres e o réu/apelado AA), assim como ao depoimento das testemunhas CC (passageiro do táxi conduzido pelo Aníbal Torres) e Pedro Pita (agente da PSP que elaborou a participação do acidente), tecendo considerações genéricas acerca da credibilidade das suas declarações e criticando o juízo de apreciação desses meios de prova efectuado pelo tribunal recorrido, mas sem transcrever ou indicar as passagens da gravação em que funda o recurso.
Toda a impugnação dos factos deduzida se estriba, criticando-a, na incongruência verificada na sentença entre as referidas declarações/depoimentos, não obstante a referência a outros elementos objectivos (v.g. fotografias do local do acidente e dos danos dos veículos após o embate e), concluindo a recorrente que “não se compreende como o Tribunal a quo pôde considerar o depoimento do Réu como mais congruente (ou idóneo ao fim ao cabo), quando se trata de alguém com interesse direto no desfecho da ação, que mente deliberadamente para menorizar a sua atuação, não interiorizando o desvalor da mesma, colocando assim em perigo, reiteradamente, todos os demais condutores ou transeuntes.” (cf. ponto 30 das conclusões recursórias)
De igual forma, o aditamento requerido (cf. ponto 17 da alegação) assenta no depoimento da testemunha Pedro Pita, sem que também aqui a recorrente indique as respectivas passagens da gravação.
No mais, a apelante tece um conjunto de considerações que apenas relevam em sede de apreciação jurídica, como é o caso da influência do álcool na condução por parte do réu.
Importa convocar aqui o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/1/2025, P. 624/20, relator Emídio Santos, com o seguinte sumário: I – Quando o meio de prova que o recorrente diz ter sido incorretamente apreciado for uma prova gravada, não basta ao recorrente, para cumprir o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, alegar que esse meio de prova não tem o sentido e o alcance probatório que lhe foi dado pelo julgador. II - Cabe-lhe indicar as passagens em que se funda o seu recurso ou transcrever os excertos que considere relevantes.
Sobre a mesma questão, embora referindo-se à transcrição dos depoimentos, pode ler-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/3/2016, P. 407/10 que: “Não cumpre o disposto no art. 640º, nº2, al. a), do Novo Código de Processo Civil, o recorrente que, na impugnação da matéria de facto, se limite a juntar a transcrição de todos os depoimentos prestados e a indicar o início e o fim de cada uma delas, ao invés de identificar com exatidão das passagens dos vários depoimentos fundamentadoras das alterações pretendidas.”
Volvendo ao caso sub judice, repete-se, a recorrente não cumpriu minimamente o ónus secundário a que alude o art. 640º/2, nenhuma referência fazendo ao registo da prova, nem apresentando as transcrições, nem indicando os momentos temporais em que foram prestados os depoimentos (início e fim das gravações). Ao violar o prescrito no art 640º/2 – indicação com precisão das passagens da gravação em que funda o recurso – a recorrente impossibilitou este Tribunal ad quem de reapreciar a matéria de facto impugnada.
O incumprimento dos aludidos ónus impugnatórios previstos no art. 640º/1 b) e nº 2 a) e b) do Código de Processo Civil conduz necessariamente à rejeição do recurso nesta parte, o que se decide.
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III.2.3. Apreciação jurídica
Na presente acção a autora Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A. veio exercer o direito de regresso, ao abrigo do disposto no art. 27º/1 c) e d) do Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, reclamando do réu o montante que despendeu em virtude do acidente em causa nos autos, no âmbito e por força do contrato de seguro celebrado e por via do qual havia assumido a responsabilidade pelos danos emergentes da circulação do veículo de matrícula ..-EF-.., conduzido pelo réu.
Resulta quer do corpo da alegação, quer das conclusões do recurso que a apelante faz depender a pretendida revogação da sentença da procedência da alteração da decisão da matéria de facto.
Em face da rejeição da impugnação dos factos, resulta prejudicada a apreciação do recurso quanto às questões de direito que pressupunham a prévia alteração do acervo factual provado (neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/6/22, P. nº 1104/18.9T8LMG.C1.S1, in www.dgsi.pt), o que resulta do disposto no art. 608º/2, aplicável ex vi art. 663º/2 ambos do Código de Processo Civil.
Ainda assim, sempre se dirá que a sentença sob recurso se mostra adequadamente fundamentada do ponto de vista jurídico, tendo em conta a factualidade provada.
O tribunal de 1ª instância partiu da análise dos pressupostos do direito de regresso invocado pela autora/apelante (i) pagamento de indemnização efectuado pela seguradora; ii) culpa do condutor segurado na produção do acidente de viacção, conduzindo sob a influência do álcool e sem habilitação legal), fazendo referência à controvérsia na jurisprudência sobre a questão do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, decidida pelo AUJ nº 6/2002, de 28/5 (DR 164, série A, de 18/6/22) e os efeitos nessa discussão da alteração introduzida pelo DL 291/2007, de 21/8 [cf. art. 27º/1 c)] no art. 19º c) do DL 522/85, de 31/12, considerando o tribunal a quo que em qualquer das interpretações da lei actual, é exigível a prova de que o causador do acidente é o interveniente que conduzia sob influencia do álcool e concluindo nos seguintes termos: «No caso em apreço, porém, em face da factualidade provada, não resulta minimamente demonstrado que a causa do sinistro emergiu da própria etilização, em conjugação com a circunstância de conduzir sem carta e, não resulta igualmente demonstrado que foi o Réu o causador do acidente, na medida em que não se encontra demostrado que foi este que não logrou imobilizar o veículo à sinalização semafórica de tom encarnado, conforme se impunha, desrespeitando, portanto, essa imposição estradal. Ora, não estando demonstrado que foi o Réu o causador (naturalístico) do acidente, a mera circunstância de se encontrar a conduzir com uma TAS superior à legal e sem ser titular de carta de condução, não é suficiente para concluir pela sua responsabilização, pois que o acidente não se ficou a dever a tal, mas antes à não imobilização de um veículo perante a sinalização semafórica de tom encarnado, não tendo a Autora logrado demonstrar que foi o Réu a incumprir tal imposição, o que se lhe impunha. Em face do referido, absolve-se o Réu integralmente dos pedidos (ficando a apreciação do pedido de juros prejudicada).»
Não nos merece censura o decidido.
Ficou demonstrado que, à data do acidente, o réu conduzia com uma taxa de alcoolemia (0,84 g/l – facto provado 17) superior à legalmente admitida (0,5 g/l, conforme disposto no art. 81º/2 do Código da Estrada), para além conduzir sem habilitação legal (facto provado 18).
A questão suscitada pela apelante prende-se com a necessidade de estar ou não verificado o nexo causal entre a condução sob influência do álcool e o acidente para efeitos do exercício do direito de regresso (art. 27º/1 c) Decreto-Lei n.º 291/2007), questão que vem dividindo a doutrina e a jurisprudência.
Como se escreveu no acórdão de 10/10/23, relatado pela ora relatora, no P. 590/22.7T8LSB.L1 desta Secção (e no acórdão de 21/5/24, P. 17679/19.2T8LSB.L2, igualmente relatado pela ora relatora), «Face à revogação do DL nº 522/85, de 21 de Dezembro pelo DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores vem entendendo que já não impende sobre a seguradora o ónus de prova do nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e o acidente, bastando a prova da alcoolemia superior à legalmente admitida e a responsabilidade no acidente, considerando-se, assim, caducada a jurisprudência fixada no acórdão uniformizador de jurisprudência nº 6/2002 (de 18/6/2002). Neste sentido, vejam-se, por todos, os acórdãos do STJ de 10/12/2020, P. nº 3044/18.2T8PNF.P1.S1, Manuel Capelo (acórdão que foi citado na sentença) e de 3/11/2020, P. nº 2490/18.6T8PNF.P2.S1, Fernando Samões. Na mesma linha foi decidido no bem fundamentado acórdão proferido em 24/11/2020, no âmbito do processo nº 11/17.7T8VFX.L1 desta Secção (relatora Cristina Coelho), remetendo-se para a extensa jurisprudência aí citada.
No mesmo sentido, vide acórdão deste TRL de 26/1/2023, P. 8289/20.2T8SNT.L1-6 relatora Ana de Azeredo Coelho (e ampla jurisprudência que é citada), onde se pode ler que: “Assim é que a norma do DL 522/85 previa o direito de regresso quando o condutor tivesse agido sob a influência do álcool enquanto o regime actual, vigente à data do acidente, exige que o condutor se encontre a conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida. Enquanto a primeira norma colocava o acento na acção influenciada pelo álcool, a actual coloca-o na circunstância de o condutor apresentar uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida. Parece-nos assim que se basta com a verificação da taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, aliada à imputação do acidente ao condutor a título de culpa. Assim, são requisitos do direito de regresso (i) a satisfação de indemnização, (ii) por danos resultantes de acidente de viação imputável ao condutor, (iii) apresentando o condutor uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.” (sublinhados nossos)
Seguindo a mesma linha, foi recentemente proferido acórdão nesta 7ª Secção em 8/4/25, no P. 6975/18.6T8LRS.L1, relator Carlos Oliveira.
Na doutrina, é seguida idêntica orientação por França Pitão, in “Seguro Automóvel Obrigatório Anotado, Quid Juris, 2019, pág. 114/115”, na anotação 14. ao art. 27º do Decreto-Lei nº 291/2007 (com vasta indicação de jurisprudência no sentido da tese que acolhemos), onde se pode ler, acerca do AUJ nº 6/2002, que «Este AUJ foi proferido no domínio do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, posteriormente revogado e substituído pelo actual Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto. Ora, este diploma alterou a redacção do preceito, substituindo a expressão “tiver agido sob influência do álcool” por “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”. Muito embora o legislador não tenha sido categórico, deixou suficientes indícios de que não era vontade sua que a situação decorrente do AUJ se mantivesse. Com efeito, enquanto a antiga expressão tem uma carga subjectiva, quase podendo dizer-se que verdadeiramente relevante era, independentemente da taxa de álcool no sangue ser maior ou menor, a influência do álcool sobre a actuação do condutor e daí, sobre a ocorrência do acidente, a nova expressão abandona essa carga subjectiva, retirando importância aos efeitos do álcool sobre o comportamento do condutor e sobre o deflagar do sinistro e bastando-se com a constatação material de que o condutor era portador de uma TAS superior à legalmente permitida. Por outras palavras, o regime anterior preocupava-se com a influência da alcoolemia sobre o concreto condutor em apreciação, enquanto que o regime actual se preocupa com o grau objectivo da alcoolemia, independentemente do efeito que o mesmo tenha sobre o condutor visado.»
Concordantemente, aduz Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro (v. “O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, 2010, p. 212”) - citada no acórdão do TRE de 17/4/2017, P. nº 2078/15.3T8EVR.E1, relatora Albertina Pedroso, acessível em www.dgsi.pt - que “o legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício.»
Nesta matéria, importa ainda atender à jurisprudência firmada pelo acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/2024, de 15 de Julho (DR nº 135/2014, Série I de 15/7/24: «Nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, para que seja reconhecido o direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, terá a mesma de alegar e provar que o condutor conduzia sob influência de substâncias psicotrópicas, diminuindo a aptidão física e mental do condutor para exercer a atividade da condução em condições de segurança, devendo tal “estado de influenciação” ser demonstrado através de exame médico e/ou pericial.»
Flui do que vimos expondo que, para efeitos do direito de regresso invocado pela autora, incumbia a esta a demonstração de que, não só o réu conduzia o veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida (facto que se provou), como que o mesmo deu causa ao acidente (o que não se provou), não sendo, porém, exigível à seguradora a alegação e prova da existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente.
No caso sub judice, como vimos, não podemos extrair dos factos apurados que foi o réu quem deu causa ao acidente, já que apenas resultou provado que existiu um embate (cf. factos 5 e 9) no cruzamento entre a Av. … em Lisboa onde seguia o veículo EF conduzido pelo réu (facto 7) e a Av. …, onde circulava o veículo TZ (facto 8), não se apurando qual deles não parou no semáforo vermelho ou se o réu violou alguma outra regra estradal, nomeadamente se circulava em excesso de velocidade.
Os factos 29 a 37 (relativos à dinâmica do acidente descrita na petição inicial) foram julgados não provados na sentença, sendo rejeitada a sua impugnação no presente recurso.
Assim, conjugando a factualidade provada e não provada, é evidente que não pode ser assacada ao réu a responsabilidade pelo embate do seu veículo no veículo EF. Não havendo responsabilidade do segurado, não assiste à autora o direito de regresso invocado.
Subsidiariamente, no caso de improcedência do recurso sobre a matéria de facto e consequente afastamento da responsabilidade exclusiva do réu no acidente, a recorrente pretende que a responsabilidade seja repartida pelos intervenientes, nos termos do art. 506º do Código Civil.
Ora, a pretensão agora deduzida nas alegações do presente recurso não foi formulada pela autora na petição inicial (nem em sede de articulado subsequente), nem decidida em primeira instância na sentença recorrida.
Donde, o fundamento/pedido recursivo aqui deduzido configura, manifestamente, uma questão nova.
Como é sabido, no nosso sistema processual civil os recursos constituem um mecanismo destinado a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, não sendo lícito invocar questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.
Sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, não comportam, assim, ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cf. art.ºs 627.º/1, 631º/1 e 639.º do CPC).
Tem sido este o entendimento pacífico firmado na doutrina e na jurisprudência, afirmando-se, neste conspecto, no acórdão do STJ de 29/9/2016 (P. 291/12.4TTLRA.C1.S2, relator Ribeiro Cardoso, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj), que «Os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas (salvo se estas forem de conhecimento oficioso), mas impugnar, reapreciar e, eventualmente modificar as decisões do tribunal recorrido sobre pontos questionados e “dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu”» e concluindo-se que «não pode o tribunal de recurso “conhecer de questões que não tenham sido objeto da decisão recorrida ou que as partes não suscitaram perante o tribunal recorrido (arts. 627º, n.º 1 e 635º, n.º 2 e 4 do CPC).»
No mesmo sentido, vide, por todos, o acórdão STJ de 7/7/2016, P. 156/12.0TTCSC.L1.S1, relator Gonçalves Rocha e ampla jurisprudência aí citada; e o acórdão do TRG, de 9-11-2023, P. 2275/14.9T8VNF-B.G1, relator Pedro Maurício.
Não sendo a questão suscitada pelas partes, o tribunal só poderá apreciá-la caso seja de conhecimento oficioso do julgador. A este propósito, escreveu-se no acórdão do STJ de 17-04-2018, P. 1530/15.5T8CSC-C.P1.S1, relator EE: “O julgador, na elaboração da sentença, nos termos do art. 608º, nº 2 apenas pode conhecer das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Sendo as questões levantadas nas conclusões das alegações dos recorrentes que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, há que aplicar a este limite a exceção decorrente da ressalva da parte final do nº 2 do art. 608º.”
Transpondo estas considerações para o caso vertente e não sendo a questão suscitada pela recorrente matéria de conhecimento oficioso, não pode esta Relação pronunciar-se sobre aquela concreta questão, porquanto a mesma, não tendo sido suscitada perante a 1ª instância, não foi objecto de apreciação na decisão recorrida, constituindo, pois, questão nova.
Fica, pois, prejudicada a apreciação do pedido subsidiário formulado pela recorrente, atinente à fixação da responsabilidade pelo risco, pedido este que está fora do objecto do litígio, tal como foi definido no despacho saneador proferido em 2/5/23 (ref. citius 424981228).
Em síntese conclusiva, tendo sido rejeitada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e não merecendo censura a análise jurídica da sentença, impõe-se a sua confirmação.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante (artigo 527º do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 1 de Julho de 2025
Ana Mónica Mendonça Pavão
Diogo Ravara
Edgar Taborda Lopes