CONTRATO DE EXPEDIÇÃO
CONTRATO DE TRÂNSITO
TRANSITÁRIO
RESPONSABILIDADE
CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO
CONHECIMENTO DE CARGA
MERCADORIA
RESERVAS
ÓNUS DA PROVA
Sumário

Sumário:1
I – O contrato de expedição ou contrato de trânsito envolve a concretização das operações de transporte, funcionando o transitário como um intermediário entre o expedidor e o transportador, assumindo-se como um prestador de serviços.
II – O contrato de expedição, em sentido estrito, é um mandato, pelo qual o transitário se obriga a celebrar um contrato de transporte por conta do expedidor-mandante, que pode ser com ou sem representação.
III – O transitário é responsável perante o seu cliente não só pelo incumprimento das suas obrigações (situações gerais de incumprimento lato sensu, incluindo a mora, cumprimento defeituoso ou incumprimento definitivo), mas também pelas obrigações contraídas por terceiros com quem haja contratado, sem prejuízo do direito de regresso, nos termos do disposto na segunda parte do n.º 1 do art.º 15º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho (vinculação del credere legal).
IV - O conhecimento de carga ou bill of lading, nos termos da Convenção de Bruxelas sobre a Unificação de Regras em Matéria de Conhecimentos de Carga de 25 de Agosto de 1924, é um elemento central no contrato de transporte marítimo, constitui um título representativo da mercadoria nele descrita, nele devendo o transportador apor as indicações mencionadas no artigo 3º, n.º 3 da Convenção, designadamente, quanto ao estado aparente da mercadoria, menção que se refere apenas à condição aparente verificável mediante um exame razoável.
V - Ao momento da recepção das mercadorias, o transportador pode inscrever no documento de transporte certas menções relativas às características das mercadorias a transportar, bem como ao estado e condição aparentes em que se encontram. Trata-se da aposição de reservas, ou seja, ressalvas formuladas pelo transportador quanto à caracterização da mercadoria, por constatar avarias ou faltas que não provocou ou por não ser possível a verificação, contagem, pesagem ou medição.
VI - O conteúdo do conhecimento relativamente às características e estado das mercadorias constitui presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo transportador das mercadorias tal como nele descritas (presunção iuris tantum).
VII - As reservas genéricas não identificam desconformidades em concreto. São apostas porque o transportador não pôde inspeccionar a mercadoria, apondo expressões como “disse essere”, “said to contain”, “quantidade desconhecida”,
“peso desconhecido”, “marcas e volumes desconhecidos”,
ou similares, o que sucede, por norma, no caso de contentores selados.
VIII - As reservas afectam a função probatória do documento, invertendo o ónus da prova. Em caso de reservas sobre o estado e condição aparentes da mercadoria deixa de se verificar a presunção de que foi recebida em bom estado e condição aparentes pelo transportador.
IX - Tendo o transportador dos contentores, recebidos fechados e selados (full container load), aposto no conhecimento de embarque a reserva said to contain, caberá ao seu portador provar a desconformidade entre a mercadoria entregue ao transportador e a mercadoria recebida no destino.
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1.Elaborado pela relatora e da sua inteira responsabilidade – cf. art. 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

Texto Integral

I – RELATÓRIO
GREENHAIR CABELEIREIROS &COMPANHIA, LDA.2 intentou contra ABREU – CARGA E TRÂNSITOS, LDA.3; Mediterranean Shipping Company (Portugal), ..., e 100% Great Lakes Insurance SE a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
a) A condenação solidária das rés no pagamento à autora, a título de indemnização por danos patrimoniais, do montante de 157 559,33 € (cento e cinquenta e sete mil quinhentos e cinquenta e nove euros e trinta e três cêntimos), a 1ª ré como transportadora contratada pela autora e a 2ª ré como transportadora subcontratada pela 1ª ré e a 3ª ré como seguradora para a qual a 1ª ré alegadamente transferiu a sua responsabilidade civil pelo exercício da sua actividade comercial, devendo à referida quantia acrescer os juros de mora à taxa legal entre comerciantes desde a citação até integral e efectivo pagamento;
Caso assim se não entenda:
b) A condenação da 1ª ré no pagamento à autora, a título de indemnização por danos patrimoniais, do montante de 157 559,33€ (cento e cinquenta e sete mil quinhentos e cinquenta e nove euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal entre comerciantes desde a citação até integral e efectivo pagamento, por cumprimento defeituoso do contrato celebrado com a autora;
E se ainda assim se não entender:
c) A condenação da 2ª ré no pagamento à autora, a título de indemnização por danos patrimoniais, do montante de 157 559,33€ (cento e cinquenta e sete mil quinhentos e cinquenta e nove euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal entre comerciantes desde a citação até integral e efectivo pagamento, como armadora e transportadora da mercadoria danificada.
Alega, para tanto, muito em síntese, o seguinte4:
• A autora dedica-se ao comércio a retalho de cosméticos e outros produtos de higiene pessoal, no contexto do que comprou à sua fornecedora brasileira – a Higibras Cosmética do Brasil – 252 mil unidades de kits descartáveis de manicura e pedicure,
tendo cada kit no seu interior uma luva ou uma meia emoliente, embalados hermeticamente em embalagem plástica e uma lima e um palito embalados hermeticamente noutra embalagem em plástico;
• A autora contratou com a ré Abreu - Carga e Trânsitos, Lda. todo o processo de transporte, com seguro da mercadoria, do Brasil para Portugal, com saída a 7 de Agosto de 2020, incluindo os procedimentos de importação e o seu posterior armazenamento em armazém da 1ª Ré;
• Os kits foram embalados nas instalações da ...e
transportados para o porto de Santos, a partir de onde o transporte foi contratado pela autora à 1ª ré;
• A mercadoria foi transportada em navio contratado pela 1ª ré à 2ª ré, que aquela recebeu em Sines e transportou para o seu armazém, em Santa Iria de Azóia, onde ficou armazenada desde o dia 25/09/2020;
• Em Maio de 2021 foi expedida parte da mercadoria para um cliente da autora, em Itália, que detectou que a mercadoria se encontrava danificada (humidade e bolor nas limas e palito), que regressou ao armazém da 1ª ré, momento em que tomou conhecimento dos danos;
• A 1ª ré participou à seguradora e à segunda ré, que declinou qualquer responsabilidade e nunca comunicou à autora danos na mercadoria, sendo aquela quem tinha a obrigação de verificar o estado em que chegou ao porto de Sines, tendo sido quem ali a recebeu;
• Não foi alegada pelas rés a verificação de caso fortuito no decurso da travessia por mar;
• Da análise da mercadoria resulta que esta foi sujeita a água, em algum momento do transporte, sendo a responsabilidade do ocorrido da 1ª ré ou da 2ª ré, proprietária dos navios e quem executou de facto o transporte;
• No dia 13 de Julho de 2021, chegou um outro contentor a Portugal, com mercadoria igual, comprada ao mesmo fornecedor, tendo igualmente sido a 1ª ré a tratar do processo de importação, transporte marítimo e recolha para o seu armazém, tendo a autora estado presente no desembarque, verificando, aquando da abertura da porta do contentor, que duas paletes junto à porta estavam molhadas, tendo sido efectuado o reembalamento de 700 caixas;
• Foi participado à seguradora que declinou a responsabilidade;
• No entanto, durante o transporte, a certa altura, a mercadoria foi sujeita a água, pelo que é responsável a 1ª ré, com quem a autora contratou e, eventualmente, a 2ª ré, como armadora e transportadora;
• Foram danificados diversos produtos, quer no primeiro transporte, quer no segundo, para além de a autora ter suportado o custo do transporte para o cliente em Itália, armazenamento e reembalamento;
• Tendo a 1ª R assumido perante a autora as obrigações típicas do contrato de transporte deve ser directamente responsável pelos prejuízos decorrentes do incumprimento ou cumprimento defeituoso dessa prestação;
• Mesmo que se entenda que actuou como empresa transitária, sempre responderá pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas contraídas por terceiros com quem haja contratado;
• No caso, os danos verificaram-se no decurso do transporte marítimo, tendo a autora suportado danos patrimoniais no montante de 154 554,44 €, relativamente ao primeiro transporte e 3 004,89 € relativamente ao segundo;
• A mercadoria foi entregue à 1ª R em perfeitas condições, não sendo por defeito da própria mercadoria que se verificaram os danos provados.
Em 10 de Janeiro de 2022, a autora veio desistir da instância relativamente à ré 100% Great Lakes Insurance Se, desistência que foi homologada por decisão proferida em 8 de Fevereiro de 2022.5
A ré Abreu – Carga e Trânsitos, Lda. veio contestar, tendo excepcionado a prescrição do direito de acção e alegado o seguinte6:
• A ré foi contratada na qualidade de transitária e forneceu à autora a prestação de serviços de natureza logística e operacional que incluíram o planeamento, coordenação e direcção de operações relacionadas com a expedição internacional de unidades de carga por via marítima, com origem no Brasil e destino em Santa Iria da Azóia, em Portugal;
• A autora celebrou com a ré Abreu dois contratos de transitário identificados com os processos n.ºs P20054737 e P21041121, com as mesmas condições e Incoterm FOB e um contrato de armazenagem e logística;
• A ré recorreu a empresas terceiras para o transporte marítimo entre a origem e o destino acordados e repartido em dois momentos: desde o porto de Santos, no Brasil para a gestão de terminais na Bobadela, pela MSC; e para o trajecto da Bobadela para o armazém em Santa Iria da Azoia, pela Paço Rápido;
• O fornecedor da autora foi responsável por todas as operações e custos locais na origem, como o carregamento/enchimento da unidade de transporte, seu transporte para o porto e obrigações alfandegárias na origem, e quando a unidade de transporte passou para bordo do navio, a responsabilidade quer do transporte quer dos custos passaram a ser por conta da autora, como importador;
• Os serviços da Abreu apenas incidiram – e iniciaram – com a unidade de transporte já carregada a bordo do navio na origem: 1º. P20054737 – iniciada a prestação de serviços da ré Abreu em 7 de Agosto de 2020 e término a 25 de Setembro de 2020; 2º. P21041121 – iniciada a prestação de serviços da ré Abreu em 30 de Maio de 2021 e término a 13 de Junho de 2021;
• Todo o seu acondicionamento, carga e estiva a bordo foi efectuado directamente pelo fornecedor da autora na origem, a ...;
• Para a realização do transporte por via marítima de tal unidade de carga (um contentor com alegada mercadoria indicada pela Autora) contratou a Mediterranean Shipping Company7;
• Desconhece qual o real conteúdo da unidade de carga transportada;
• Aquando da chegada do contentor a autora solicitou à ré Abreu que a mercadoria ficasse armazenada no seu armazém de logística e informou que iria estar presente no dia 28 de Setembro de 2020 para acompanhar a descarga e desconsolidação da mercadoria, não tendo nesse dia registado qualquer reserva na guia de transporte, tal como o fez a 13 de Julho de 2021, no segundo transporte, ou seja, P21041121, nem enviado para a ré reclamação de avaria;
• A mercadoria ficou armazenada desde 28 de Setembro de 2020 no armazém de logística da ré Abreu, tal como outras mercadorias da autora, embalada em paletes;
• A mercadoria referente ao processo P21041121 chegou ao armazém da ré Abreu no dia 13 de Julho de 2021, tendo a autora assistido à descarga e desconsolidação e registado avarias;
• No dia 13 de Julho 2021 foram realizados os relatórios de peritagem pela SGS e Abaco;
• A ré desconhece o conteúdo das unidades de carga, que já estavam embaladas e os alegados danos não se encontram sustentados, nem documentados e grande parte da mercadoria não foi objecto de avaria e a autora pode comercializá-la;
• Considera ainda os pedidos ininteligíveis e não fundamentados, invocando a ineptidão da petição inicial;
• Uma eventual responsabilidade da Abreu nas expedições em causa estará sempre limitada, nos termos do nº 5 do artº 4 da Convenção de Bruxelas, nº 2 do artº 15º do Decreto-Lei N.º 255/99, de 7 de Julho, ex vi “Condições Gerais”, ao montante de 498,80 €, por cada processo.
Concluiu pela procedência das excepções, assim se não entendendo, pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.
A ré deduziu ainda incidente de intervenção provocada acessória chamando a intervir a seu lado, a Axa Versicherung Ag., para quem transferiu a responsabilidade civil decorrente da sua actividade transitária e a Victoria – Seguros, S.A., com quem a autora celebrou um seguro de mercadorias.
Contestou também a ré Mediterranean Shipping Company (Portugal) – Agentes de Navegação, S. A.8 e suscitou a sua ilegitimidade passiva por não ter sido parte em quaisquer contratos de transporte marítimo, tendo por objecto o exercício da actividade de agente de navegação, sendo o agente em Portugal do armador suíço “Mediterranean Shipping Company, S.A.”, por conta de quem actua, não sendo responsável por eventual incumprimento defeituoso
Suscitou, ainda, em todo o caso, a limitação da sua eventual responsabilidade, ao abrigo da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25 de Agosto de 1924 e conforme cláusula 5.1 b) – Cláusula Paramount - dos conhecimentos de embarque, ao montante previsto no art.º 4º/5 da referida Convenção, sendo que os contentores foram recebidos fechados e selados e não foi verificado o seu conteúdo nem os elementos fornecidos pelo carregador.
No mais, impugnou a factualidade alegada na petição inicial e concluiu pela procedência das excepções e, assim não se entendendo, pela sua absolvição do pedido.
Na sequência do convite que lhe foi dirigido, a autora, por requerimento de 27 de Setembro de 20229, pronunciou-se sobre as excepções deduzidas pugnando pela sua improcedência e nada opondo às intervenções provocadas acessórias deduzidas.
Em 1 de Fevereiro de 2023 foi proferido despacho que julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva e absolveu da instância a ré Mediterranean Shipping Company (Portugal) – Agentes de Navegação, S. A. e improcedentes as excepções de prescrição e ineptidão da petição inicial. Mais foram deferidos os pedidos de intervenção provocada, sendo ordenado o chamamento de Victoria Seguros, S. A. e Axa Versicherung AG.10
A interveniente Victoria Seguros, S. A. contestou a acção admitindo que celebrou com a 1ª ré um contrato de seguro do ramo de transportes - mercadorias transportadas -, titulado pela apólice n.º 11375084; o sinistro foi participado e efectuada averiguação que concluiu que se tratava de um problema provocado na origem e não no transporte, aderindo, no mais, à defesa da 1ª ré.11
A Axa Versicherung AG veio aderir à defesa da ré Abreu – Carga e Trânsitos, Lda.12
Em 3 de Outubro de 2023 teve lugar a audiência prévia, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.13
Realizada a audiência de julgamento, no dia 11 de Dezembro de 2024 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré Abreu – Carga e Trânsitos, Lda. do pedido.14
Inconformada com esta decisão, a autora veio interpor o presente recurso de apelação, cuja motivação concluiu do seguinte modo15 16:
[…]
C) Como se deixou dito, o presente recurso visa, entre o mais, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, concretamente dos factos provados 20, 23, 25, 28, 31, 32, 33, 39 e 43, nos seguintes termos; […]
E) Para a formação da convicção do Tribunal a quo foram considerados sobretudo os depoimentos testemunhais de AA, BB, CC, DD e de EE, os quais devidamente ajuizados impunham, claramente, uma decisão distinta da recorrida:
F) Por referências aos pontos 20 e 23 dos factos dados como provados importa desde já fazer constar o seguinte:
G) Desde logo, a guia de transporte junta aos autos pela Recorrida em 13.10.2023 – apenas após notificação pelo Tribunal recorrido para o efeito – constitui a única, num universo de mais de meia centena de transportes efetuados pela Recorrida, que não se encontra assinada pelo representante legal da Recorrente ou por pessoa por esta indicada;
H) Não obstante as demais guias de transporte se encontrarem assinadas e na posse da Recorrida, o Tribunal recorrido indeferiu o pedido da Recorrente para que esta apresentasse nos autos os referidos documentos, uma vez que a Recorrente nunca teve acesso aos mesmos – cfr. requerimento datado de 01.03.2024, com a Ref. 48152716;
I) Ademais, no mesmo requerimento, a Recorrente requereu igualmente que a Recorrida fosse notificada para juntar aos autos os registos de entrada no seu armazém, bem como as imagens de videovigilância desse espaço, pedido que, de forma inexplicável, foi indeferido pelo Tribunal a quo;
J) Ora, caso a Recorrente estivesse a faltar à verdade ao afirmar que não esteve presente no desembarque do primeiro contentor – como parece sugerir o Tribunal recorrido –, não teria tomado a iniciativa de requerer tais diligências probatórias. O que torna a situação ainda mais curiosa – para não dizer irónica – é que, apesar de todos os indícios em sentido contrário, a decisão acabou por ser tomada sem que tais elementos fossem sequer considerados;
K) A tudo isto acresce que, como resulta da respetiva Motivação, a prova destes factos baseou-se, no essencial, no depoimento de testemunhas que nem sequer estiveram presentes no desembarque de nenhum dos contentores, nem do primeiro, nem do segundo;
L) Acresce que, da análise do Doc. 3 junto à Contestação da Ré – correspondente a uma troca de emails entre os funcionários da Recorrida, da qual não consta qualquer endereço de email pertencente à Recorrente – resulta evidente que, às 10:00 horas do dia 28/09/2020, suposta hora em que a Recorrente deveria estar presente para acompanhar a descarga, esta não se encontrava no local, uma vez que, às 10:23 horas, FF, presumivelmente funcionária da Abreu, dirigiu um email a GG nos seguintes termos: “Antonio, 25/09?? As 10? HOJE?!”; Mais,
M) No Doc. 3 da Petição Inicial, que se refere a outro e-mail redigido pela testemunha GG e este sim enviado à Recorrente, confirma-se que o primeiro contentor foi descarregado em Sines e que, alegadamente, seria enviado para a Bobadela durante o fim de semana, no dia 24. No entanto, essa comunicação não menciona a data em que o contentor chegou aos armazéns da Ré;
N) Neste contexto, não se pode considerar provado que a Recorrida tenha comunicado à Recorrente, por email ou telefonicamente, que a data de chegada do contentor seria 28/09/2020, em vez de 25/09/2020;
O) Pois que, por um lado não existe qualquer comunicação escrita que o confirme; e por outro, apesar da testemunha GG afirmar que telefonou à A., aqui Recorrente, a testemunha HH – chefe de escritório da Recorrente – relatou não ter sido informado da data de chegada do contentor aos armazéns da Recorrida, tendo o mesmo sido corroborado por II, representante da Recorrente. Logo, existem depoimentos contraditórios que merecem ou pelo menos deveriam merecer a mesma valoração;
P) Ademais, o Tribunal a quo refere que, o facto 23 resultou provado do depoimento de CC, a qual sendo testemunha comum à Recorrente e à Recorrida, alegadamente “depôs com total credibilidade, isenção e conhecimento da factualidade em causa atentas as funções que exerce na Ré Abreu.”;
Q) À semelhança das testemunhas GG e BB, a testemunha JJ também não esteve presente na descarga do primeiro contentor, uma vez que, estava em teletrabalho e portanto não sabe se a Recorrente esteve presente nos armazéns da Recorrida no dia 28 de setembro de 2020, data da chegada primeiro contentor;
R) Assim como referiu e repetiu não saber como é que a Recorrente foi avisada acerca da chegada do contentor, afirmando mesmo que, neste caso, não tinha qualquer conhecimento a esse respeito;
S) Mais ainda, importa sublinhar que a única testemunha que efetivamente esteve presente em ambos os desembarques – KK (operador logístico da Recorrida entre 2019 e 2021) – declarou, sem margem para dúvidas, que a Recorrente apenas acompanhou um dos desembarques. Não obstante, e num exercício que se revela, no mínimo, peculiar, o Tribunal a quo optou por ignorar por completo o depoimento desta testemunha, que, reitere-se, foi a única a presenciar ambos os desembarques;
T) E esta testemunha, ao contrário das demais, não tem qualquer interesse pessoal, direto ou indireto na causa, uma vez que, diferentemente das outras testemunhas, que à data dos factos e do julgamento eram e continuam a ser trabalhadores da Recorrida, já não exerce qualquer função na mesma. Assim, o seu depoimento – indevidamente omitido pelo tribunal a quo na motivação da decisão sob recurso – deveria ter sido valorado como isento, imparcial e desprovido de qualquer interesse!;
U) A referida testemunha demonstrou segurança ao afirmar que a Recorrente esteve presente apenas num dos desembarques, posição esta que foi corroborada pela testemunha HH, chefe de escritório da Recorrente e ainda pelas declarações de parte prestadas pelo representante da Recorrente, que igualmente confirmou que a Recorrente esteve presente apenas num dos desembarques; Além do mais, não se pode ignorar que esta testemunha possui um conhecimento direto dos factos, uma vez que foi para si que foram enviados os e-mails a que acima se aludiu;
V) Do mesmo modo, como já se disse, o representante da Recorrente, II, esclareceu, com total transparência e honestidade, que o período da chegada do primeiro contentor coincidiu com o início da pandemia, circunstância que dificultou significativamente o acesso ao armazém da Recorrida;
W) Assim, é evidente que a Autora, ora Recorrente, não se encontrava presente aquando da descarga do primeiro contentor. No entanto, quando acompanhou a descarga do segundo contentor, constatou que a mercadoria apresentava danos, o que torna particularmente curioso que, justamente na sua ausência, a mercadoria tenha sido armazenada já danificada;
X) Para além disso, reitera-se que o desembarque do primeiro contentor ocorreu durante o período da pandemia de Covid-19, uma circunstância que impunha, como é do conhecimento geral, severas restrições à circulação de pessoas, sendo certo que são factos notórios quer a existência da pandemia quer a noção de que a mesma conduziu a períodos de confinamento e de encerramento de serviços e estabelecimentos e, como tal, não carecem de prova nem de alegação, pois são como que factos já provados, já esclarecidos (cfr. n° 1 do art.° 412° do CPC).
Y) Deste modo, impunha-se que o Tribunal a quo fundamentasse as razões pelas quais atribuiu em exclusivo valor probatório ao depoimento de GG, BB e de JJ, em detrimento do depoimento das testemunhas KK e HH e bem assim das declarações de parte da própria Recorrida, omitindo todos estes depoimentos na motivação da decisão recorrida, circunstância que causa até alguma perplexidade!
Z) Acresce que, se efetivamente a Recorrente tivesse sido realizado qualquer pagamento relativo aos alegados dias de paralisação a que aludiu a testemunha JJ – o que, note-se, apenas se concede por mera hipótese académica –, seria de esperar que a Recorrida tivesse junto aos autos a correspondente fatura ou, pelo menos, qualquer outro documento contabilístico que atestasse tal pagamento! Afinal, como é sobejamente sabido, o ónus da prova recai sobre quem alega, pelo que, ao decidir como o fez, o Mmo. Juiz a quo violou o princípio estabelecido no art 342º do Código Civil;
AA) Acresce que a testemunha que se pronunciou sobre o tema foi JJ, a qual se limitou a afirmar que "pensa" ou “acha” que tal ocorreu – formulação que, por razões óbvias, está longe de constituir uma declaração assertiva e convicta sobre a matéria em questão;
BB) Como tal, a prova indicada é manifestamente insuficiente para se considerar provado o que o Tribunal a quo fez constar naqueles pontos (22 e 23) e ao assim decidir, incorreu em erro de julgamento, pelo que, a decisão que recaiu sobre os referidos pontos 22 e 23 deve ser alterada e em consequência, passar os referidos pontos a ter a seguinte redação: - Facto 20: A Abreu comunicou à Autora a data da chegada do primeiro contentor a 28.09.2020, já após o descarregamento do mesmo; - Facto 23: A Autora não assistiu ao descarregamento do primeiro contentor, não tendo, assim, confirmado o estado em que a mercadoria foi armazenada pela Ré Abreu;
CC) Adicionalmente, tendo ficado demonstrado que a Recorrida procedeu à abertura do primeiro contentor na ausência da Recorrente, o ponto 31 da motivação de facto deverá ser eliminado;
DD) Agora por referência a ponto 25 dos factos dados como provados o Tribunal a quo assenta a sua convicção de que o facto em apreço está provado, com base no "depoimento sempre credível de BB".
EE) Ora, desde logo é de toda a relevância destacar que a referida testemunha foi a única a mencionar tal facto, embora tenha, por sua vez, afirmado, que "não se recorda" da data em que, segundo a sua versão, teriam sido realizados os alegados ensaios de temperatura; Além de que, nenhuma outra testemunha corroborou a sua versão, nomeadamente GG – também este trabalhador da Recorrida – o qual, inquirido sobre o tema, não prestou qualquer confirmação nesse sentido;
FF) Mais ainda, a testemunha LL não foi capaz de verificar a presença de qualquer sistema de controlo da temperatura;
GG) Consequentemente, ao incluir tal facto no elenco dos factos provados, o Tribunal a quo incorreu, uma vez mais, em erro de julgamento. Assim, impõe-se a sua correta qualificação, devendo o ponto 25 passar a integrar os factos não provados;
HH) No ponto 28 dos factos dados como provados desde já, com o devido respeito, importa salientar que o facto em causa não se afigura de forma alguma inteiramente correto, nem reflete, de maneira adequada, a realidade dos acontecimentos;
II) Na verdade, a Recorrente, na sua boa-fé, procedeu à substituição das caixas de embalamento exclusivamente por indicação da Recorrida, na legítima expectativa de que esta última assumiria, como de resto seria expectável, a responsabilidade pelos prejuízos derivados dos danos eventualmente verificados na mercadoria. A Recorrente não só seguiu as instruções da Recorrida como, também, agiu com base no pressuposto de que a responsabilidade pelos danos recairia sobre quem indicou e sugeriu a ação a ser tomada;
JJ) Assim, o sentido que deve ser dado ao facto 28 é o de que a Recorrente não fez a substituição das caixas de forma independente ou por mera decisão sua, mas como resultado da sugestão da Recorrida, que gerou uma expectativa legítima de que os custos seriam suportados por esta.
KK) Por ponto 32 dos factos dados como provados começa-se por esclarecer que não foi realizada qualquer peritagem, muito menos aos dois contentores em questão;
LL) O que se encontra nos autos são pareceres técnicos e não perícias, sendo certo que, como é amplamente sabido, se as opiniões dos técnicos forem expressas em diligência judicial valem como meio de prova, se forem expressas por via extra judicial valem como pareceres; Portanto, os pareceres técnicos expressos por via extra judicial representam apenas uma opinião sobre a solução a dar a determinado problema, tendo apenas, a autoridade que o seu autor lhe dá e nada mais;
MM) Isto tudo para dizer que os pareceres técnicos junto aos autos não servem como meio de prova mas apenas para ajudar o julgador a encontrar uma solução justa para o caso que tem para decidir. […]
OO) Os técnicos elaboraram relatório exclusivamente sobre o primeiro contentor, sendo certo que, apesar de terem estado presentes na data da chegada do segundo contentor, não foi elaborado qualquer relatório relativo à mercadoria ali presente. Por conseguinte, o Tribunal a quo, não poderia, sem mais, generalizar;
PP) Sendo certo que, relativamente ao segundo contentor, a única conclusão possível é que “houve alguma mercadoria, junto à porta do contentor que se encontrava visivelmente molhada” – tal como resulta e bem do ponto 27 do elenco de factos provados.
QQ) Além do mais, a “perícia” realizada à mercadoria contida no primeiro contentor não permite concluir que a humidade e o mofo identificados tenham tido origem no momento do seu embalamento, desde logo porque os técnicos não assistiram ao embalamento, não conhecem as condições em que o mesmo foi realizado, não conhecem as condições do local onde a mercadoria foi embalada e tão pouco os procedimentos utilizados na sua execução;
RR) Note-se que, a análise da mercadoria do primeiro contentor foi feita oito meses depois do bem embalamento, o que coloca sérias dúvidas quanto ao rigor das considerações tecidas no relatório da ABACO. Na verdade, de tal relatório não se retirar nenhuma conclusão!
SS) O referido relatório técnico - longe de oferecer uma conclusão inequívoca - admite expressamente a impossibilidade de determinar com certeza o que ocorreu durante o percurso entre o Brasil e Portugal (cfr. Doc. junto aos autos com o requerimento com a Ref. Citius, devidamente traduzido);
TT) Diante dessa incerteza, não se pode concluir, de forma definitiva - como fez o Tribunal a quo - que a responsabilidade pelos danos recai sobre a fase de embalamento, desonerando a transportadora de qualquer responsabilidade, ainda para mais desvalorizando as declarações juntas aos autos de fls. Do fabricante ... e da transportadora Ultramar, agente da Abreu no Brasil, relativas ao estado da mercadoria na data do embalamento e do início do transporte;
UU) Veja-se que, curiosamente, a declaração da ... não foi sequer mencionada na fundamentação da decisão ora impugnada, o que leva a Recorrente a questionar o motivo pelo qual o Tribunal ignorou tanto a sua existência quanto o seu conteúdo;
VV) Já quanto à argumentação do Tribunal a quo para desconsiderar a segunda declaração, esta não encontra qualquer respaldo no depoimento da testemunha MM, como afirmado na decisão recorrida. Na verdade, quando é sugerido que a testemunha não viu a mercadoria, esta prontamente refuta tal afirmação;
WW) Adicionalmente, resulta expressamente do relatório da ABACO o seguinte: "não estamos em posição de concluir o que aconteceu na realidade durante o percurso entre Brasil e Portugal, que tenha provocado os danos na mercadoria transportada". Ora, tal declaração é suficiente para demonstrar que a atribuição da causa do dano ao embalamento é apenas uma hipótese, e não um facto provado;
XX) No caso em apreço, a transportadora não demonstrou, como lhe competia, que tomou todas as precauções necessárias para evitar a formação de humidade, nem no contentor, nem no armazém – artigo 342.º do CC. Assim, não pode ser afastada a possibilidade de que tenha havido falhas no transporte que resultaram nos danos verificados;
YY) Foi apresentado também pela Recorrente um relatório elaborado pela empresa SGS, que, tal como o outro, não chega a uma conclusão sobre a responsabilidade pelos danos causados à mercadoria, sendo certo que este relatório não foi objeto de impugnação pela Recorrida;
ZZ) E, pese embora o Tribunal recorrido afirmar que “do relatório de inspecção constante de fls. 102v. e ss realizado pela SGS a pedido da Autora não se pode concluir que a humidade detetada proveio do transporte ou do armazenamento da mercadoria.”, a verdade é que daqui também não se pode concluir que proveio do embalamento! Mais importante ainda, o técnico responsável por este relatório afirmou expressamente em audiência que desconhecia a causa dos danos, não conseguindo ir mais avante;
AAA) Assim, nenhum dos relatórios juntos aos autos, nem a testemunha NN afirmam, com a segurança que se exige para uma decisão judicial, que os danos da mercadoria transportada no primeiro contentor tiveram origem no embalamento; pode ter sido, mas também pode não ter sido
BBB) Em suma, nenhum dos relatórios é conclusivo, facto que deveria ter sido devidamente considerado pelo Tribunal a quo, o qual errou, na medida em que considerou como provado que os danos tiveram origem no embalamento, sem o respaldo de provas suficientes que o confirmem e com muitas outras que o infirmam, pelo que o facto 32 deverá ser alterado no sentido de ficar a constar que - Facto 32: “Da análise efetuada à mercadoria do 1º contentor não foi possível concluir o que aconteceu na realidade durante o percurso entre Brasil e Portugal”.
CCC) Por referências aos pontos 33 e 43 dos factos dados como provados jamais, como se demonstrará, poderia a decisão recorrida ter dado como provado tais factos nos termos em que o fez, porquanto:
DDD) Resultou demonstrado da prova produzida que os cantos das caixas de cartão do primeiro contentor se mostravam bastante enrugados, facto que era visível, sendo certo que esta argumentação é corroborada pelos depoimentos das testemunhas LL, responsável pelo relatório da SGS; pela testemunha OO, que, no dia 13.07.2021, esteve presente durante a análise da mercadoria do primeiro contentor e ainda pela testemunha PP, igualmente presente naquele dia;
EEE) Todas aquelas testemunhas confirmaram que os danos nas paletes eram visíveis;
FFF) O depoimento das testemunhas indicadas revela, assim, que os sinais de humidade nas caixas de cartão eram visíveis “a olho nu”, pese embora mais evidentes nos cantos e, inclusivamente, sem necessidade de retirar o filme que envolvia as caixas de cartão;
GGG) Mas, mesmo admitindo que os cantos enrugados das paletes não fossem imediatamente visíveis – o que não se concede em face dos depoimentos supra transcritos – questiona-se: poderia, ainda assim, a Recorrida limitar-se a uma análise superficial, especialmente considerando o longo período em que as mercadorias permaneceram armazenadas?
HHH) A Recorrida, ao assumir a responsabilidade pelo armazenamento da mercadoria em questão, detinha um dever especial de guarda e diligência na preservação e conservação da mesma, sendo certo que dos documentos juntos aos autos e não impugnados pela Recorrida, nomeadamente as faturas juntas com a Petição Inicial (cfr. Doc. 32 a 42), resulta que esta cobrou à Recorrente, que pagou, para além do armazenamento, os seguintes serviços, manuseamento, paletização; handling e paletização;
III) Logo, tendo a mercadoria sido mantida no seu armazém durante um período considerável (oito meses!), tal implicava o mínimo de diligência na sua vigilância, sendo certo que este dever de cuidado não se restringe a uma simples guarda física das mercadorias, até porque outros serviços foram cobrados e pagos, pelo que a Recorrida incumpriu as obrigações a que estava vinculada (artigo. 762.º, n.º 1 do Código Civil);
JJJ) Sendo certo que a testemunha KK, à semelhança da testemunha QQ, admitiu que os trabalhadores da Recorrida só começaram a realizar inspecções mais minuciosas após a reclamação de danos apresentada pela Recorrente, o reforça a responsabilidade da Recorrida, especialmente tendo em conta que estava em causa mercadoria que, além de estar armazenada durante meses, ia ser enviada a um cliente e que o armazém onde se encontrava armazenada não era distante do rio, conforme expressamente confirmado pela testemunha OO;
KKK) Veja-se que a testemunha PP, à qual o Tribunal a quo atribuiu grande credibilidade, confirmou que, caso a Ré tivesse realizado uma inspecção mais atenta, poderia ter detetado os danos; […]
MMM) Forçoso é concluir que, mesmo que os produtos não tenha sido danificados durante o transporte marítimo e que a origem do problema estivesse no embalamento da mercadoria, o que também não se aceita, a dimensão da deterioração verificada nos produtos transportados no primeiro contentor é objetivamente imputável à Recorrida, uma vez que a sua atuação se afigura, no mínimo, negligente, por ser exigível e possível o cumprimento de deveres de cuidado que poderiam ter circunscrito a dimensão dos danos se, quando fizeram o manuseamento da mercadoria, por exemplo no mês de outubro – o que a Recorrida fez, conforme demonstrado e provado pelo Doc. 33 da PI – esta tivesse alertado a Recorrente para a existência de humidade nas caixas de cartão;
NNN) Ao não decidir assim o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento; Por esse motivo, a decisão que recaiu sobre os pontos 33 e 43 deve ser alterada e em consequência, passar os referidos pontos a ter a seguinte redação: - Facto 33: “No que se refere ao primeiro contentor enviado do porto de Santos, constatou-se que as limas e palitos (kits) que se encontravam dentro de bolsas de plástico, apresentavam sinais de bolor; as embalagens dos kits não apresentavam humidade ou danos, mas os cantos das caixas de cartão estavam visivelmente enrugados, o que era visível a olho nu”; - Facto 43: “Pelos serviços de manuseamento, armazenamento, handling e paletização entre Setembro de 2020 a Julho de 2021 a Autora pagou à Ré o valor de €2884,41.”;
OOO) No ponto 39 dos factos dados como provados o Tribunal a quo baseou-se mais uma vez no depoimento da testemunha JJ para dar o facto 39 como provado;
PPP) Contudo, o referido facto, para além de manifestamente falso, jamais poderia constar da matéria de facto provada, uma vez que se trata de um facto novo que a Autora não teve oportunidade de contraditar, dado que o facto em questão não foi alegado pelas partes nos articulados;
QQQ) Logo, sendo indiscutível que tal facto influi no exame e decisão da causa e sendo obviamente indevida a sua inclusão no composto fáctico provado da sentença, tem o mesmo de ser eliminado;
RRR) Face ao que ficou dito supra, quanto aos pontos 20, 23, 25, 28, 31, 32, 33, 39 e 43 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, resulta que o Tribunal a quo não poderia dar como provado que “A humidade verificada no 1º e 2º contentor tenha tido origem no transporte marítimo ou na armazenagem efetuadas nos armazéns da Ré Abreu” (alínea a) da matéria de facto não provada);
SSS) E, muito menos o poderia fazer quanto ao 2º contentor; quanto a este sustenta-se a sentença recorrida, não em factualidade provada, mas em meros juízos conclusivos não sustentados em factos e, nessa medida, sem qualquer elemento probatório que tenha sido apresentado;
TTT) Na verdade, o Tribunal a quo não cuidou de distinguir entre o primeiro e o segundo contentor, fazendo uma apreciação genérica da prova, sem considerar as especificidades de cada um deles;
UUU) De facto, a decisão recorrida não considerou as diferenças entre os dois contentores, nomeadamente que: o primeiro contentor apresentava alegadamente humidade dentro dos sacos selados; o segundo contentor apresentava caixas molhadas junto à porta, mas a mercadoria no interior dos sacos encontrava-se intacta;
VVV) Se o problema estivesse no embalamento – isto é, se a humidade já estivesse presente no interior dos sacos selados desde a sua origem –, o tempo de armazenamento não deveria fazer diferença – sendo expectável que os danos se manifestassem desde o início.
WWW) E por que razão apenas os caixotes que se encontravam junto à porta do contentor estavam afetados?
XXX) Na verdade, se apelarmos ao senso comum, podemos facilmente dizer que apenas uma infiltração de água, que tende a ocorrer primeiro nas áreas mais expostas, poderia justificar tal situação. E, claro, é bastante lógico que, se a água entrou pelo topo ou pelas laterais do contentor, as paletes localizadas nos cantos são as mais afetadas, enquanto as paletes mais centrais, à margem dessa exposição direta, são menos afetadas — como, aliás, aconteceu neste caso;
YYY) O Tribunal a quo não só não fundamentou a sua decisão à luz das questões concretamente aqui colocadas, como tratou os dois contentores de forma indistinta, apesar de estar demonstrado que os contentores tinham diferenças relevantes quanto ao estado da mercadoria, pelo que incorreu em omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC), o que gera a nulidade da sentença;
ZZZ) E, pese embora as o Tribunal a quo argumente que as testemunhas RR e OO referiram que “nem o armazém nem os contentores apresentavam quaisquer defeitos que tivessem permitido a entrada de água”, o depoimento das mesmas não pode valer como verdade absoluta, não só porque tal facto é contrariado pelas declarações de parte da Recorrida, mas, também, porque, objetivamente não foi feita perícia a nenhum dos contentores;
AAAA) Quanto à alínea b) da matéria de facto não provada, surpreende que o Tribunal a quo tenha considerado que não se provou “qual o destino dado à mercadoria proveniente no 1º dos contentores e que chegou a Santa Iria da Azóia em 25/09/2020.”;
BBBB) Pois que, a decisão do Tribunal recorrido de ordenar o desentranhamento da declaração que comprova a destruição da mercadoria danificada e, consequentemente, indeferir o requerido pela Recorrente, não se revela correta, pois que, o direito processual rege-se, entre outros princípios fundamentais, pelo da descoberta da verdade material, que impõe ao tribunal o dever de averiguar os factos relevantes para a decisão da causa;
CCCC) A declaração apresentada pela Recorrente constitui um meio de prova essencial para esclarecer um ponto que o próprio Tribunal veio agora considerar não provado: o destino da mercadoria. Como tal, ao ter rejeitado a junção de tal documento, o Tribunal limita a sua própria capacidade de alcançar uma decisão justa e fundamentada;
DDDD) Mas, ainda que, por mera hipótese académica, se admitisse a não valoração da referida declaração – o que, desde já, se rejeita –, a verdade é que a testemunha HH prestou um depoimento claro, confirmando, sem hesitações, que os kits danificados foram integralmente destruídos;
EEEE) Face ao exposto, impõe-se que tal facto seja considerado na matéria de facto provada, porquanto não só resulta da prova testemunhal, como também encontra respaldo na própria lógica dos factos provados, pois o Tribunal deu como provado que os kits tinham bolor, logo, outro destino não poderiam ter que não a sua destruição; […]
GGGG) Ainda que se entendesse, por referência ao 1º contentor, que a Recorrida afastou a presunção constante do nº 4 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924 (o qual refere que o conhecimento de carga constituirá presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo armador das mercadorias tais como foram descritas naquele documento), circunstância que apenas se admite por mero dever de patrocínio – é inquestionável que não o fez quanto ao segundo contentor, sendo certo que impendia sobre si o ónus da prova de demonstrar que tais danos não foram causados no transporte, para o que poderia, por exemplo, ter solicitado que fosse efetuada perícia ao contentor, o que não fez, sendo que, conforme já referido, era sobre si que pendia o ónus da prova – artigo 342.º do Código Civil.
HHHH) Para além disso, cumpre salientar que da prova produzida nos autos, resultaram factos provados que deveriam ter sido considerados pelo douto tribunal a quo porque relevantes para a decisão final e não o foram;
IIII) Ficou devidamente demonstrado que as caixas de cartão apresentavam cantos enrugados, os quais seriam visíveis a olho nu;
JJJJ) Da mesma forma, resultou demonstrado que a relação comercial entre a Recorrente e a empresa ... perdura há dez anos, verificando-se que, até ao ano de 2020, era enviado, no mínimo, um contentor por mês proveniente do Brasil;
KKKK) Ademais, ficou igualmente demonstrado que a Recorrente adquire sempre produtos da mesma espécie àquele fornecedor brasileiro e nunca os mesmos apresentaram qualquer dano, nomeadamente humidade/bolor;
LLLL) E, mais importante, ficou comprovado que o processo de embalamento dos kits sempre decorreu em idênticas condições ao longo do tempo;
MMMM) Assim como ficou demonstrado que o processo de embalamento e contentorização da mercadoria é acompanhado por um técnico de qualidade;
NNNN) Sendo que o Mm. Juiz a quo se absteve de se pronunciar sobre as questões em apreço, tal como lhe competia, pelo que a decisão recorrida é nula, sendo certo que, de acordo com o disposto no disposto no art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC que: “É nula a sentença quando: (...) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, o que aqui se argui para os devidos e legais efeitos.
OOOO) Veja-se que, tendo a sentença recorrida considerado que os danos na mercadoria resultaram do embalamento, deveria ter feito menção à técnica ou procedimento utilizado no processo de embalamento, uma vez que foi ouvida uma testemunha que esteve presente no momento do embalamento e que acompanhou todo o processo, sendo portanto este um aspeto que, como é óbvio, constitui uma questão fundamental para a correta apreciação da causa e a subsequente decisão judicial;
PPPP) Até porque, como se disse, foi ouvida uma testemunha que esteve presente no momento do embalamento e que acompanhou todo o processo, como tal, tem a competência e o conhecimento direto sobre o procedimento de embalamento utilizado, visto que estava presente e observou cada fase do processo; Trata-se do depoimento da testemunha SS, que, de forma clara e inequívoca, afirmou ter estado presente em todos os carregamentos efetuados pela fornecedora, o que atribui grande relevância ao seu depoimento;
QQQQ) No entanto, o Tribunal refere-se ao depoimento de SS, representante da ..., como sendo “credível”, fundamentando-se nessa apreciação para dar como provados os factos 14 e 15 constantes do elenco de factos provados;
RRRR) Mas, por outro lado, desconsidera integralmente as declarações prestadas por esta mesma testemunha no que concerne ao processo de embalamento, nomeadamente no que respeita à existência de um técnico de qualidade responsável pela inspeção das mercadorias antes do envio, o que foi reiterado pela testemunha mais do que uma vez;
SSSS) Ora, sobre tal factualidade, a sentença é totalmente omissa, nomeadamente em sede de fundamentação de facto;
TTTT) Assim como é omissa quanto ao facto de não se vislumbrar nenhuma razão que afaste a normalidade do procedimento da ... quanto às condições de embalagem e temperatura do produto, no contexto da sua prática e experiência habitual de exportadora;
UUUU) De tudo o que vem exposto, parece evidente que, em face da impugnação dos factos aqui feita e bem assim dos factos provados, o Tribunal que proferiu a decisão sob recurso jamais poderia ter concluído que “a Autora não demonstrou o bom estado na origem da mercadoria transportada, aquando do seu embarque no Brasil.”;
VVVV) Para além de que aplicou incorretamente as regras sobre a distribuição do ónus da prova, assumindo que a Autora tinha de demonstrar que os danos não resultavam de defeito na embalagem, quando, na verdade, um conhecimento de carga sem qualquer registo inverte essa presunção em desfavor do transportador;
WWWW) E mesmo que se entendesse que o problema teve origem no embalamento – o que frise-se, não ficou demonstrado, sendo o ónus da prova da Recorrida – nem por isso resulta demonstrado que a esta não conseguiria ter detetado os danos durante todo o período em que a mercadoria esteve ao seu cuidado, i.e., durante 8 (oito) meses;
XXXX) De facto, e com o mais elevado respeito, a Sentença recorrida trata-se de uma decisão que, para além de errada, é profundamente injusta, sendo claramente tendenciosa em favor da Recorrida, na medida em que o Tribunal recorrido não valorou certos aspetos nos termos em que o devia ter feito, ou seja, tal Tribunal deu sobretudo credibilidade às testemunhas que trabalham para a Recorrida e não deu credibilidade às restantes, que a mereciam;
YYYY) Resta dizer que é evidente que o Tribunal recorrido formulou logo no início do julgamento uma convicção - o que naturalmente não poderia ter feito – e, consequentemente, limitou-se a selecionar os elementos que corroboravam a decisão que pretendia alcançar, desconsiderando, sem qualquer critério, de forma infundada e até incoerente todo o material probatório que contrariasse a convicção que entretanto formulou a respeito dos factos, omitindo aspectos essenciais à correta decisão da causa;
ZZZZ) A sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 154.º, n.ºs 1, 607.º, n.ºs 4 e 5, 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil e os artigos 342º e 762.º, n.º 1 do Código Civil.
Termina pedindo a procedência do recurso e a anulação da sentença ou a sua revogação, que deve ser substituída por outra que julgue a acção procedente e condene a recorrida nos termos peticionados.
A ré/recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e requereu a ampliação subsidiária do objecto do recurso, conforme o seguinte segmento das suas conclusões17:
44. Contentores esses, selados, repete-se, que foram entregues ao dito transportador marítimo, contratado pela Ré no âmbito da sua atividade transitária, com a expressa cláusula “said to contain” - ver docs: 9 com a Petição Inicial e Docs. 1 e 2 com o requerimento da Ré de 13 de novembro de 2023 acompanhados de tradução.
45. Estes dois aspetos – contentor selado e cláusula “said to contain” - não constam particularmente especificados no probatório, mas resultam blindadamente da prova produzida e não são, na verdade, sequer disputados pelas partes.
46. Ou seja, a dita MCS, e por inerência, a primeira Ré, no âmbito da sua potencial responsabilização como transitária pelos atos do transportador marítimo, não intervieram na colocação da mercadoria dentro dos contentores, na sua selagem e, primordialmente para o que aqui interessa, não faziam a mínima ideia do estado em que a mercadoria neles contida se encontrava.
47. A cláusula “said to contain”, de uso comum no transporte marítimo e noutros, utilizasse precisamente no caso de contentores selados em que o transportador não tem como verificar o conteúdo do contentor, ignorando por completo o que o que neles vem e portanto limita-se a declarar que recebeu um contentor relativamente ao qual o expedidor lhe declarou o que nele estará contido sem que haja qualquer verificação por parte desse transportador e, claro está, sem que este possa alguma vez ser responsabilizado pela incorreção da mercadoria nele contida face à referida declaração do expedidor.
48. Relativamente às cláusulas “said to contain” acima mencionadas, as referidas constam da prova documental (junta, aliás, pela própria Autora).
49. Quanto à circunstância de os contentores não serem da transportadora ou da Ré, terem sido entregues à dita transportadora pela ... já carregados e selados para assim serem transportados por esta, como acima se referiu, tal brota indiscutivelmente da prova produzida.
50. Desse modo, à cautela, a título de ampliação subsidiária do objecto do recurso - artigo 636º do Código de processo Civil - requer-se que seja aditada à matéria de facto provada os seguintes pontos:
51. “Em ambos os casos dos primeiro e segundo transportes entre o Brasil e Portugal mencionados no probatório, o objecto do transporte consistiu em contentores (um em cada caso) entregues no Porto de Santos à transportadora MCM, contentores esses que já provinham da ..., já vinham carregados, fechados e selados, tendo a respectiva transportadora sujeitado os conhecimentos de embarque à cláusula “said to contain” no respeita à descrição da mercadoria nele contida.”
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil18 é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação.19
Assim, perante as conclusões da alegação da autora/recorrente há que apreciar as seguintes questões:
a) A nulidade da sentença;
b) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
c) A responsabilidade da ré Abreu – Carga e Trânsitos, Lda. pelo pagamento dos valores atinentes à mercadoria danificada.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
1. A Autora tem como objecto social “Actividades de corte, lavagem, penteação, pintura, ondulação, desfrizagem, estética computorizada, extensão de unhas e cabelos, aplicação de madeixas e actividades similares do cabelo. Actividades de massagem facial, maquilhagem, manicura, pedicura, limpeza de pele, depilação e similares. Comércio a retalho de cosméticos (incluindo de origem natural) e outros produtos de higiene pessoal. Comércio de veículos automóveis ligeiros. Compra de bens mobiliários para revenda e revenda dos adquiridos para esse fim”.
2. A Autora comprou à sua fornecedora brasileira – Higibras Cosmética do Brasil -, na encomenda datada de 29/07/2020, 252 mil unidades de kits descartáveis de manicura e pedicura, tendo cada kit uma luva ou uma meia emoliente, embalados hermeticamente em embalagem plástica e uma lima e um palito, também embalados hermeticamente noutra embalagem em plástico, pelo valor de 28 324,80 € e na encomenda datada de 19/05/2021, 121 mil unidades e vinte desses mesmos kits, pelo valor de 16 987,51 €.
3. A Ré ‘Abreu – Carga e Trânsitos, Lda.’ exerce a actividade de transitária.
4. A Autora pediu à Ré Abreu que desenvolvesse todo o processo de natureza logística e operacional com vista ao transporte e posterior armazenamento dos 252 mil kits de manicura e pedicura, do Brasil para Portugal.
5. A Autora acordou com o seu fornecedor ... que a expedição da mercadoria seria realizada de acordo com o Incoterm FOB.
6. Em 7 de Agosto de 2020 foi carregada a mercadoria no porto de Santos com destino a Portugal, tendo sido o expedidor a Higibras Cosmética do Brasil, o destinatário a ora Autora, Greenhair, a transportadora a MSC, o despachante a Ré Abreu e o agente do despachante no Brasil, a Comissária Ultramar.
7. A mercadoria foi recebida nos armazéns da Ré Abreu em 25/09/2020.
8. Em 20/05/2021 uma palete, de 140 caixas, armazenada foi enviada para Itália e foi detectada humidade em alguns kits.
9. Em 31/05/2021 foi enviada uma nova palete, de 140 caixas, tendo-se verificado também humidade em alguns kits.
10. Em 25 de Junho de 2021 as duas paletes retornaram devolvidas aos armazéns da Ré Abreu.
11. Cada kit é comprado à Autora por €0,46 e €0,48 e vendido em Itália por €1,40.
12. A mercadoria quando chegou a Itália estava em paletes envoltas numa película protectora preta e só após a retirada dessa película é que se viu o estado das caixas molhadas e o bolor dentro dos kits.
13. O cliente de Itália ainda conseguiu aproveitar cerca de 40 caixas e essa mercadoria foi paga.
14. A Autora é a única cliente em Portugal da ....
15. Estes kits de pedicura e manicura podem estar embalados por 3 anos.
16. O transporte da mercadoria das instalações da ... para o porto de Santos, no Brasil foi tratado por aquela com um agente – a Ultramar.
17. A intervenção da Ré Abreu apenas se iniciou com a colocação da carga no navio.
18. A agente Ultramar também colabora com a Ré Abreu, sendo um dos seus agentes.
19. O valor da mercadoria era de 28 324,80 €.
20. A Abreu comunicou à Autora por mail e telefonicamente a data da chegada do contentor a 28/09/2020, ao invés de 25/09/2020.
21. A Ré Abreu subcontratou um transportador terrestre para levar a mercadoria do cais de Sines para Santa Iria da Azóia, não tendo ali sido aposta qualquer anomalia da mercadoria – Paço Rápido.
22. A mercadoria chegou a 25/09/2020 a Santa Iria da Azóia.
23. Pelo facto de a Autora não poder estar presente nesse dia 25, foram pagos 2 ou 3 dias de paralisação do contentor e dia 28 a Autora assistiu ao descarregamento do mesmo.
24. A mercadoria esteve sempre nos armazéns da Abreu em Santa Iria da Azóia entre Setembro de 2020 e Maio de 2021.
25. O armazém da Abreu tem sempre aparelhos que medem a temperatura e humidade, fazendo regularmente medições.
26. A seguradora e o armador recusaram pagar indemnização pelos danos da mercadoria, devido ao tempo decorrido entre a recepção daquela e a data da participação.
27. No segundo transporte efectuado houve alguma mercadoria, junto à porta do contentor, que se encontravam visualmente molhadas.
28. A Autora substituiu as caixas de embalamento e pagou um valor que se situa entre de 2 338,00 € e 2 977,00 €.
29. A Seguradora também entendeu que, à semelhança do transporte anterior, o problema esteve no embalamento na origem e não procedeu ao pagamento da indemnização.
30. O segundo contentor proveniente da ... chegou a Santa Iria da Azóia em 13/07/2021.
31. A Abreu não abre os contentores sem que a Autora esteja presente ou sem que esta os autorize previamente.
32. A peritagem efectuada à mercadoria da Autora concluiu que a humidade e mofo detectado, tiveram origem no momento do embalamento da mercadoria.
33. No que se refere ao primeiro contentor enviado do porto de Santos, constatou-se que as limas e palitos (kits) que se encontravam dentro de bolsas de plástico, apresentavam sinais de bolor, mas as embalagens dos kits não apresentavam humidade ou danos.
34. A Autora manifestou vontade de devolver as mercadorias ao seu fornecedor, mas a Ultramar referiu que o Brasil tinha regras muito rígidas quanto a isso.
35. A remessa da mercadoria que sai do armazém da Ré Abreu para os clientes da Autora (picking) é efectuada por indicação desta, a qual refere o número da palete que pretende que seja remetida.
36. A Ré Abreu efectuou uma proposta de contrato de armazenagem à Autora e esta aceitou.
37. O segundo contentor provindo da ... chegou a 13/07/2021 e a Autora no dia 14/07/2021 envia mail à Ré Abreu, na pessoa de TT a informar que havia 2 paletes com caixas molhadas e caixas amolgadas.
38. A mercadoria deste segundo contentor foi reembalada e distribuída.
39. Em Março de 2022 chegou outro contentor a Palmela provindo da ..., com transporte efectuado por terceiro, cuja carga apresentava o mesmo tipo de problema de condensação e cujas caixas não se encontravam junto à porta daquele.
40. Os contentores foram transportados, por via terrestre, pela ‘Ultramar’, do armazém da ... até ao porto de Santos.
41. A ... ficou de enviar mercadoria em substituição da avariada.
42. A Ré aceitou proceder aos serviços de transporte a troco do pagamento da quantia de 2 953,41 € pelo 1º contentor (fls. 82v) e de 2 618,49 € pelo 2º contentor (fls. 83).
43. Pelo serviço de armazenamento entre Setembro de 2020 a Julho de 2021 a Autora pagou à Ré o valor de 2 884,41 €.
44. A Autora pagou à Ré o valor de 402,50 € para o transporte da 1ª palete para Itália.
45. A Autora pagou à Ré o valor de 165,87 € para o transporte da 2ª palete para Itália.
46. A Autora pagou à Ré o valor de 325,95 € pela devolução das paletes de Itália para Portugal.
47. A Autora pagou à Ré o valor de 195,00 € para o transporte da 3ª palete para Itália.
48. A Autora pagou à Ré o valor de 3 382,50 € para o transporte aéreo de duas paletes para Itália.
49. Para reembalamento das caixas molhadas provenientes do segundo contentor a ‘Cartonarte’ apresentou um orçamento de 2 338,00 €.
50. Pelo transporte destas caixas a Ré Abreu apresentou um orçamento de 105,00 €.
*
O Tribunal recorrido deu como não provados os seguintes factos:
a. a) A humidade verificada no 1º e 2º contentor tenha tido origem no transporte marítimo ou na armazenagem efectuada nos armazéns da Ré Abreu.
a. b) Qual o destino dado à mercadoria proveniente no 1º dos contentores e que chegou a Santa Iria da Azóia em 25/09/2020.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
No contexto da impugnação que dirigiu à decisão sobre a matéria de facto, a apelante apontou à decisão recorrida o vício de nulidade por entender que incorreu em omissão de pronúncia por, ao dar como não provado o vertido na alínea a) da enunciação da matéria não provada, não ter distinguido os dois transportes em discussão nos autos e os danos verificados nas mercadorias, imputando a causa, em ambas as situações, às condições do respectivo embalamento, quando, relativamente ao segundo transporte, o produto, no interior das embalagens, estava em bom estado, sendo que apenas as caixas de cartão estavam molhadas, o que tem de significar que o problema não estava na origem, pelo que não tratou das questões concretamente colocadas.
Mais à frente, já em sede do segmento do seu recurso que designou de “erro de julgamento de direito”, mas invocando a falta de enunciação de factos que resultaram provados com relevo para a decisão final - como sejam as caixas de cartão apresentarem cantos enrugados, visíveis a olho nu e que a relação comercial entre a autora e a ... perdura há 10 anos e que nunca os produtos apresentaram qualquer dano, sendo o processo de embalamento e contentorização acompanhado por um técnico de qualidade – a apelante considera faz corresponder essa falta à verificação do vício de nulidade, por omissão de pronúncia.
A recorrida contra-alegou sustentando que não ocorre a apontada nulidade, para além de a recorrente tentar convocar meios de prova que não foram admitidos pelo tribunal recorrido.
A senhora juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso interposto20, mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, n.º 1 e 617º do CPC.
A omissão de despacho do juiz a quo sobre as nulidades arguidas não determina necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito, cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
Nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, d) do CPC, é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as de conhecimento oficioso, mas não exige que se apreciem todos os argumentos (que são coisa diversa de “questões”).
O juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do art. 608º, n.º 2 do CPC, o que não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias soluções plausíveis de direito para a solução do litígio, tenham sido deduzidos pelas partes ou possam ter sido inicialmente admitidos pelo juiz.21
Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2005, 05S213722 esclarece-se que:
“[…] a nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 660.º do CPC, nos termos do qual "[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras" e "[n]ão pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras". É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes. […] o julgador não tem que analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas.”
Aquilo que a apelante vem suscitar é, por um lado, a circunstância de não ter o tribunal recorrido, na análise da prova, distinguido os factos apurados relativamente aos danos verificados na primeira mercadoria daqueles que ocorreram na mercadoria deslocada no segundo transporte, apreciando a causa que os originou indistintamente, o que, naturalmente, não corresponde a falta de apreciação de uma questão, mas, eventualmente, a um erro de julgamento, porquanto o Tribunal pronunciou-se sobre a questão colocada, qual seja a origem ou possível origem dos danos verificados e, em sede de apreciação do mérito, concluiu pela falta de responsabilidade da ré em ambas as situações.
Por outro lado, não tendo o Tribunal atendido a factos que resultaram demonstrados e que são relevantes para a decisão a proferir, tal equivale, do mesmo modo, a um eventual erro de julgamento, mas não se traduz numa omissão de pronúncia.
Com efeito, “[…] o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC. Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis: «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-03-2017, 7095/10.7TBMTS.P1.S1.
Como tal, não se verifica o vício apontado à decisão recorrida, pelo que se julga improcedente a nulidade suscitada.
*
3.2.2. Da Impugnação da Matéria de Facto
Dispõe o art.º 640º do CPC:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. […]”
Em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escrito – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que se integra no ónus de alegação e destinada a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a imposição da síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente.23
O vertido no art.º 640º do CPC torna possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, que visa não tanto fundamentar e delimitar o recurso, mas possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – cf. acórdão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2015, 233/09.4TBVNG.G1.S1.
A recorrente impugna os factos provados sob os pontos 20. 23., 25., 28., 31., 32., 33., 39. e 43., propondo a decisão que pretende que recaia sobre eles e os factos considerados não provados sob as alíneas a) e b), que considera que deveriam ter sido dados como provados, aduzindo ainda a pretensão de serem aditados factos que, no seu entender, resultaram da prova produzida.
Ora, como se retira do acima expendido, os requisitos do ónus impugnatório cingem-se à especificação dos pontos de facto impugnados, dos concretos meios de prova convocados, da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, com expressa indicação das passagens dos depoimentos gravados em que se funda o recurso.
Em face do conteúdo das alegações e conclusões da recorrente deve reconhecer-se que esta cumpriu o ónus impugnatório, sem prejuízo de, em relação a cada um dos pontos impugnados se analisar a eventual utilidade ou inutilidade da sua apreciação
Pontos 20., 23. e 31. dos Factos Provados
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“20 – A Abreu comunicou à Autora por mail e telefonicamente a data da chegada do contentor a 28/09/2020, ao invés de 25/09/2020.
23 – Pelo facto de a Autora não poder estar presente nesse dia 25, foram pagos 2 ou 3 dias de paralisação do contentor e dia 28 a Autora assistiu ao descarregamento do mesmo.
31 -A Abreu não abre os contentores sem que a Autora esteja presente ou sem que esta os autorize previamente.”
O Tribunal fundamentou a sua convicção formulando a seguinte introdução:
“Consigna-se que se desconsiderou o doc de fls. 91, pois a guia de transporte encontra-se rasurada e a testemunha JJ apenas referiu parecer ser a sua assinatura, mas no mais não ser a sua letra e tendo ainda adiantado que qualquer pessoa poderia escrever no documento e que a informação referente aos danos ali aposta apenas poderia ter sido ali colocada após a desconsolidação da mercadoria, pois que esta vem fechada em papel craft e filmadas, não dando para verificar o conteúdo.”
E aduziu ainda:
“O facto 20 resultou da conjugação dos depoimentos de GG e BB, os quais explicaram o lapso na comunicação efectuada à Autora, mas que II tinha referido pretender estar presente na abertura do contentor a 28/09/2020. […]
O facto 23 resultou provado do depoimento de CC, a qual sendo testemunha comum à Autora e à Ré depôs com total credibilidade, isenção e conhecimento da factualidade em causa atentas as funções que exerce na Ré Abreu.
Diversamente do que a Autora tentou demonstrar, tal depoimento não é contrariado pelos mails juntos a fls. 30, designadamente o de 24/09/2020, o qual apenas informa a Autora de que o contentor tinha chegado a Sines e que durante esse fim de semana seguiria para Bobadela. […]
O facto 31 resultou provado atentas as declarações de BB.”
A apelante discorda do assim decidido e pretende que os factos em causa passem a ter a seguinte redacção: “20 – A Abreu comunicou à autora a data da chegada do primeiro contentor a 28/09/2020, já após o descarregamento do mesmo”; “23 – A autora não assistiu ao descarregamento do primeiro contentor, não tendo, assim, confirmado o estado em que a mercadoria foi armazenada pela ré Abreu” e o ponto 31. deve ser eliminado.
Para o que aduz o seguinte:
- a guia de transporte junta aos autos a 13 de Outubro de 2023 é a única, num universo de mais de meia centena de transportes efectuados pela recorrida, que não se mostra assinada por pessoa da autora, mas o tribunal indeferiu o pedido para que a ré apresentasse os demais documentos, os registos de entrada no armazém e as imagens de vídeo vigilância;
- a convicção do tribunal baseou-se em testemunhas que não estiveram presentes no desembarque dos contentores, como GG e BB;
- o documento n.º 3 junto com a contestação – troca de mensagens de correio electrónico entre os funcionários da ré – não mostra qualquer endereço de correio electrónico da recorrente e revela que às 10 horas do dia 28/09/2020 não estava no local ninguém da autora; além disso não menciona a data em que o contentor chegou aos armazéns da ré;
- a testemunha HH, chefe de escritório da autora, disse não ter sido informado da data de chegada do contentor aos armazéns, o que foi corroborado por II;
- a testemunha JJ também não esteve presente e não sabia como a recorrente teria sido avisada;
- a testemunha KK, que esteve presente em ambos os desembarques, declarou que a recorrente apenas acompanhou um deles, o que foi também referido pela testemunha HH e pelo representante da recorrente, II, que apontou o facto de o primeiro desembarque ter ocorrido no início da pandemia causada pela Covid-19;
- não foram juntos aos autos documentos que comprovem o pagamento de dias de paralisação, sendo insuficiente para o dar como provado o depoimento de JJ.
Quanto ao ponto 23. a recorrida sustentou, em contra-alegação, que se deve manter, referindo que em documento algum, além dos articulados da autora, consta qualquer queixa desta quanto a não ter estado presente na chegada do primeiro contentor ou de a desconsolidação ter ocorrido à sua revelia, acrescentando que devolvida a primeira remessa expedida para o cliente em Itália, a autora expediu uma segunda sem verificar o estado da mercadoria, mais convocando o depoimento de KK para demonstrar que a autora esteve presente na desconsolidação do primeiro contentor.
O primeiro argumento trazido pela recorrente consiste no facto de não ter sido valorado o documento n.º 4 junto com o requerimento da ré de 13 de Outubro de 2023, que constitui uma guia de transporte da Empresa Transportadora do Paço Rápido, Lda., com a data aposta de 25/09/2020 e local de carga Bobadela, sendo destinatária a Abreu, Santa Iria de Azóia, relativa ao contentor n.º …492 – ou seja, o contentor que foi objecto do primeiro transporte, embarcado em 7 de Agosto de 2020, conforme conhecimento de embarque MEDUST…85524 -, sendo antecedida de uma “folha de serviço” onde consta a menção “No destino”, com duas opções: “Enchimento” e “Esvaziamento”, tendo sido apostas cruzes em ambas as opções, que se mostram rasuradas, e depois aposta uma cruz à frente do espaço rasurado relativa a “Esvaziamento”, com o que pretende demonstrar que o contentor chegou e a mercadoria foi descarregada no dia 25 de Setembro de 2020 e não no dia 28, conforme dado como provado no ponto 20., sem a presença da autora.
Sustenta a recorrente que esta é a única guia que não está assinada porque todas as outras o foram, sendo que efectuou pedido de junção pela ré desses documentos, registos de entrada no armazém e imagens de videovigilância, o que foi indeferido pelo tribunal recorrido, pelo que não poderia este ter decidido como decidiu sem considerar tais elementos.
A ré/recorrida refere nas suas contra-alegações que a autora não recorreu desse despacho de indeferimento, o que deveria ter feito no prazo referido no art.º 544º, n.º 2 do CPC, pelo que, nessa parte, a sua alegação tem de ser desconsiderada.
Já no decurso da audiência de julgamento e realizadas diversas sessões, a autora apresentou o requerimento de 1 de Março de 202425, na sequência do depoimento da testemunha CC (prestado na sessão de 20 de Fevereiro de 2024), em que pretendeu juntar um documento (uma declaração emitida por Transucatas Soluções Ambientais, S. A., com data de 19 de Abril de 2023, onde se refere que os kits manicura/pedicura foram destruídos) e, visando provar que a descarga do contentor, a 25 de Setembro de 2020, não foi por si presenciada, porque a guia de transporte não está assinada, sendo a única em que tal sucedeu (devido à pandemia), solicitou a notificação da ré para juntar as guias de transporte referentes a todas as descargas de contentores relativas a transportes entre o Brasil e Portugal, de onde se aferiria que todas elas foram assinadas pela autora e, bem assim, para juntar o registo de entradas e saídas do armazém sito em Santa Iria de Azóia, no dia 25 de Setembro de 2020, para comprovar que ninguém da autora ali esteve.
Por despacho de 21 de Março de 202426, o tribunal recorrido indeferiu a junção desse documento e, bem assim, a pretendida notificação da ré para juntar os elementos mencionados.
A autora foi notificada deste despacho por ofício com certificação Citius de 26 de Março de 202427, dele não tendo vindo interpor recurso de apelação autónoma, vindo apenas, no âmbito deste recurso interposto da sentença, impugnar o que então foi decidido.
Tratando-se, como parece claro, de uma decisão que não admitiu um meio de prova, pretendendo a autora impugnar o assim decidido, estava obrigada a interpor recurso de apelação autónoma, nos termos do disposto no art.º 644º, n.º 2, d) do CPC, devendo fazê-lo no prazo de 15 dias, conforme decorre do estatuído no art.º 638º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
Não o tendo feito, essa decisão transitou em julgado (art.º 620º), pelo que não pode a recorrente suscitar essa questão em sede de apelação da decisão final.
Como tal, não há que atender a este concreto argumento convocado pela autora, o que significa que não é possível considerar elementos que não foram admitidos nos autos nem ordenada a sua junção, para efeitos de infirmação dos factos dados como provados.
Subsistem, assim, como elementos de prova, toda a documentação junta anteriormente aos autos, os depoimentos das testemunhas e as declarações de parte do legal representante da autora.
Conjugado todo este acervo probatório e tendo-se procedido à audição da prova testemunhal e por declarações de parte não se vislumbra que a redacção visada pela recorrente quanto ao que resultou consignado nos pontos 20. e 23 dos factos provados deva merecer provimento.
No que diz respeito ao ponto 20. e à data da chegada do primeiro contentor, cujo transporte está em discussão nos autos e sua comunicação à autora e eventual erro quanto à data do seu descarregamento, sustenta a apelante que as testemunhas GG e BB não tinham conhecimento directo do que sucedeu no desembarque e apenas relataram a existência de um lapso na comunicação, sendo que o documento n.º 3 junto com a contestação constitui apenas uma troca de mensagens de correio electrónico entre os funcionários da ré e não qualquer comunicação à autora, tanto mais que à hora da descarga (10 horas) esta não se encontrava no local, como resulta da mensagem de UU, não existindo, assim, nenhuma comunicação escrita da informação à autora da chegada do contentor, sendo que a testemunha HH, negou ter sido informado dessa chegada, o que foi confirmado pelo legal representante da autora, II.
O documento n.º 3 junto com a contestação da ré/recorrida constitui uma sequência de mensagens de correio electrónico trocadas entre funcionários da Abreu e a Empresa Transportadora do Paço Rápido, Lda., que efectuou o transporte terrestre do contentor desde a Bobadela para os armazéns da Abreu, em Santa Iria de Azóia, em que, no dia 25 de Setembro de 2020, às 17h46 min., GG (AA, funcionário da ré desde Abril de 2005) comunica à empresa Paço Rápido, com conhecimento a outros funcionários da ré, que o contentor MSCU…492 deve ser recolhido na Bobadela e ser entregue em Santa Iria, no dia 25 de Setembro, às 10 horas, dando conta que “o pessoal da Greenhair vai assistir à descarga 25/09 às 10h00”, a que UU, sua colega, responde, por mensagem de 28 de Setembro de 2020, às 10h23 min.: “Antonio, 25/09?? As 10? HOJE?”. Neste seguimento, GG responde: “UPS É para hoje 28/09…que eles vão assistir à descarga….o Paço Rápido ( Lurdes) deixou ainda na 6ª (25/09) no armazém ) ….foi o que ela disse. Obrigado”.
Certo é que a testemunha VV, chefe de escritório, que trabalha para a autora como Chef Operation Options (chefe de escritório) desde Junho de 2020 disse que não esteve, nem ninguém da empresa, na descarga do primeiro contentor, que chegou a 28 de Setembro de 2020, porque não foram informados da data em que ia chegar, embora normalmente fossem avisados, mas, neste caso, como era altura das restrições causadas pela pandemia do Covid-19, era difícil assistir às descargas – cf. minuto 9.37 e seguintes do seu depoimento prestado na sessão de 6 de Fevereiro de 2024. No entanto, não deixou de mencionar que sabia que o contentor ia ser transferido da Bobadela, no fim-de-semana anterior e só foram informados que a mercadoria já estava descarregada, no dia 28 de Setembro, o que reafirmou mais adiante, a instâncias do ilustre mandatário da interveniente acessória, referindo que a regra era ser a Abreu a efectuar a descarga dos contentores, mas com a presença da autora, mas que no primeiro contentor não estava ninguém, não sabendo por que razão não estiveram presentes – cf. minuto 2h.09.05 e seguintes do seu depoimento.
Também o legal representante da autora, II, relatou que a mercadoria do primeiro contentor foi recepcionada por um funcionário da Abreu, que não deu conta de qualquer anomalia na carga e declarou no documento de recepção tê-la recebido em perfeitas condições, invocando as dificuldades de circulação na altura de pandemia como razão para não terem estado presentes – cf. minutos 12.00 e seguintes e 1h18.20 e seguintes das suas declarações, prestadas no dia 17 de Outubro de 2024.
Portanto, efectivamente, estas testemunhas declararam não lhes ter sido comunicada a data para a descarga do contentor.
No entanto, necessário é compaginar esses depoimentos com o teor do documento n.º 3 junto com a petição inicial, onde se constata que, por mensagem de 24 de Setembro de 2020, GG comunica a HH, funcionário da autora, que o contentor descarregou em Sines e será enviado durante o fim-de-semana para a Bobadela e que logo que possível informaria a data para a entrega no armazém.
Tal permite afirmar que a ré observou o procedimento seguido anteriormente aquando da chegada dos contentores da autora, como referiram as testemunhas mencionadas, ou seja, que a regra era que a descarga só deveria ocorrer na presença de representantes da autora, como mencionaram GG e JJ, não havendo ali notícia de que a ré não poderia estar presente na descarga, até porque seria informada da data para a sua entrega no armazém, ou seja, necessariamente, a data em que tal descarregamento ali ocorreria.
Certo é que, como refere a apelante, não há nenhuma indicação nesta mensagem, ou noutra que tenha sido junta aos autos, que demonstre que foi comunicada à autora a descarga do contentor agendada para o dia 28 de Setembro, às 10 horas. Além disso, neste dia existiu a falha de comunicação que se detecta na troca de mensagens constante do documento n.º 3 junto com a contestação da ré.
Quanto a este aspecto, a testemunha GG explicou de forma consistente, assertiva e credível que avisou a autora da chegada do contentor, referindo ter contactado com o funcionário daquela, indicando que terá sido o HH, embora sem certeza absoluta, a quem comunicou a data exacta em que o contentor iria ser colocado à disposição para ser descarregado, embora, efectivamente, não tenha assistido à sua chegada – cf. minuto 29.40 e seguintes do seu depoimento prestado no dia 8 de Fevereiro de 2024.
E quanto ao lapso de datas na mensagem de 25 de Setembro referiu: “Foi um lapso meu, na altura, a escrever a data que estava indicada e combinada com a Greenhair para assistir à descarga e por isso a minha colega questionou o porquê daquela data e diz «hoje?» e por isso respondo “ups” a data estava incorrecta”, esclarecendo ainda: “foi solicitado ao transportador para assegurar a retirada do contentor do terminal de rail na Bobadela para o nosso armazém e foi colocado no nosso armazém ainda a 25, mas estava combinada a descarga para o dia 28; o contentor ficou no nosso armazém a aguardar o dia 28, que foi a data combinada para os funcionários da Greenhair assistirem à descarga do mesmo. […] Informei a minha colega da data errada de descarga do contentor e depois corrigi […] à Greenhair não informei a data errada porque estava combinado com o dia 28 […] Se estavam lá não sei, mas não tenho informação contrária, que não estivessem. Eu não estava lá, eu estou no departamento marítimo na Maia […] o que estava combinado era que iriam fazer a descarga e os funcionários iriam assistir, não tenho nenhuma informação em contrário que não estiveram”. E acrescentou: “se eventualmente não têm assistido, os meus colegas com certeza me informariam a dizer que não esteve ninguém a assistir porque havia instruções para não descarregarem sem estarem presentes da Greenhair e o mais certo seria os meus colegas não fariam descarga sem estar alguém da Greenhair, tanto que não o fizeram no dia 25, altura em que o contentor chegou às instalações […] Estamos a falar do fim-de-semana, é acordado entre a Abreu e o transportador, deixar o contentor num parque partilhado e aguardar a descarga” – cf. minuto 38.56 e seguintes do seu depoimento.
Também a testemunha WW, funcionária da ré, responsável do departamento de reclamações e qualidade desde 2004, apesar de não ter estado presente no descarregamento do contentor foi assertiva ao afirmar que a autora foi avisada que a mercadoria ia ser descarregada, até porque aquela sempre foi cuidadosa com a mercadoria e gostava de assistir a todas as descargas; explicou também o mal-entendido ocorrido quanto à data, apenas internamente, corroborando que o contentor chegou a uma sexta-feira, dia 25 de Setembro de 2020, mas a autora apenas poderia assistir à descarga no dia 28 seguinte, daí que tenha ficado nas instalações, porque havia essa indicação; disse, é certo, não ter visto nenhuma mensagem de correio electrónico a avisar a autora do dia da descarga, mas aponta para a troca de mensagens internas que indica precisamente que o contentor seria descarregado no dia 28 com a presença da autora, admitindo que esta que foi avisada, porque era esse o procedimento, não podendo, porém, afirmar se alguém da autora lá esteve ou não – cf. minuto 10.01 e seguintes do seu depoimento prestado no dia 8 de Fevereiro de 2024. E mais à frente, já a instâncias da ilustre mandatária da ré, a testemunha referiu ainda, que a autora fazia questão de estar presente na descarga e havendo a indicação que o cliente vai estar presente, o contentor não é aberto sem ali chegarem; para o fazerem sem a sua presença teria de existir uma autorização interna a autorizar a abertura do contentor, que não tem conhecimento de ter havido, dizendo ainda, já a instâncias do ilustre mandatário da interveniente acessória, que nunca foi do seu conhecimento que a autora tivesse reclamado de a descarga ter sido feita sem a sua presença ou o seu conhecimento, o que saberia se tal reclamação tivesse existido – cf. minutos 52.44 e seguintes e 1h20.06 e seguintes do seu depoimento.
Por sua vez, CC, funcionária da ré desde o ano de 2019, responsável comercial desde o ano de 2021, tendo começado a acompanhar a conta da cliente Greenhair no ano de 2020 corroborou os procedimentos da empresa ré, referindo que apenas abrem o contentor com o importador presente, por serem essas as instruções internas que possuem, tendo, aliás, reportado que, neste caso, houve que pagar ao transportador dois ou três dias de paralisação (o contentor fica parqueado na galera, ou seja, em estrado, porque não pode ser descarregado no chão) porque a autora não podia assistir ao descarregamento no dia 25 e só o poderiam fazer no dia 28. Mais disse desconhecer como o cliente foi avisado, mas que, por norma, é por mensagem de correio electrónico ou por telefone, embora não intervenha nesse processo operacional; referiu também que era usual a comunicação com II ser por telefone, adiantando que o cliente estava avisado, até porque pediu para que o descarregamento fosse no dia 28, não tendo existido qualquer confusão de datas com o cliente – cf. minutos 5.30 e seguintes do seu depoimento prestado no dia 20 de Fevereiro de 2024.
A testemunha XX, que foi funcionário da ré desde Agosto de 2019 até Fevereiro de 2022, tendo estado colocado no armazém de Santa Iria de Azóia, apesar da confusão inicial quanto às datas em que entrou e saiu da empresa ré e altura em que esteve na recepção de cargas, disse que apenas assistiu a duas descargas ou seja dois contentores que chegaram ao armazém sendo importador a aqui autora, o primeiro, que situou no final do ano de 2020 e o segundo, em meados do ano seguinte, referindo que a autora assistiu a uma delas, que teria sido a primeira (e não a segunda, como refere a apelante) - cf. minuto 10.45 e seguintes do seu depoimento prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de Fevereiro de 2024.
Do depoimento desta testemunha, aquilo que se retira de relevante para este ponto é que, ao contrário do afirmado pelo legal representante da autora, na altura da chegada do contentor, em Setembro de 2020, os responsáveis da autora não estavam impedidos de circular no armazém da ré, tanto mais que eles andavam por ali, porque a ré tratava também do envio das encomendas para os clientes da Greenhair saídas da mercadoria armazenada em Santa Iria de Azóia e a separação das paletes e o seu embalamento para exportação eram efectuados pelos funcionários da ré, com a presença e auxílio de funcionários da autora, o que significa que a eventual ausência da autora no momento da descarga não teria sido resultado desse eventual impedimento, até porque em Setembro não se estava no início da pandemia (verificado em Março de 2020, como é do conhecimento geral) – cf. minuto 49.02 e seguintes do seu depoimento.
Assim, no que diz respeito ao facto vertido no ponto 20. não é possível afirmar, como pretende a recorrente, que a ré não lhe comunicou a chegada do primeiro contentor ou que o fez após o seu descarregamento, porquanto a prova produzida de modo algum suporta essa convicção.
Certo é que não foi apresentado documento que comprove o envio de mensagem de correio electrónico – que, a existir, poderia ter sido junta aos autos, mas é possível afirmar que existiu contacto telefónico, pela conjugação dos depoimentos atrás referidos e respectiva assertividade, o que está em consonância com os procedimentos internos seguidos e, bem assim, com a prática usual com o legal representante da autora, em concreto, no que diz respeito a comunicações via telefone.
De todo o modo, quanto ao ponto 23., sobra a dúvida, efectivamente, se a autora ou algum seu funcionário ou representante, esteve presente aquando do descarregamento do contentor. Ainda que fosse esse o procedimento e tendo existido, de facto, informação à autora sobre o momento em que a descarga iria ter lugar, na realidade, a única testemunha que refere a presença da autora no descarregamento do primeiro contentor foi KK, que pela confusão evidenciada nas datas correctas, desde logo, quanto ao período em que trabalhou no armazém e quanto à chegada do primeiro e segundo contentores, levanta a dúvida se foi, precisamente, no primeiro que autora esteve presente, até porque a testemunha disse que a autora só esteve num deles, sendo seguro que no segundo estava presente porque, como referiram as testemunhas indicadas, a chegada do segundo contentor ocorreu a 13 de Julho de 2021, precisamente no dia e momento em que se encontravam presentes os peritos e os representantes das partes para realizarem a peritagem à mercadoria descarregada em Setembro de 2020, não havendo dúvidas que a autora esteve presente nesse segundo descarregamento.
Acresce que, apesar da credibilidade do depoimento da testemunha JJ e sendo claro que o descarregamento do contentor não ocorreu no dia 25 de Setembro de 2020, mas apenas no dia 28, e que esta data foi acordada com a autora, na verdade afigura-se insuficiente esse depoimento para dar como provado o pagamento de dias de paralisação do porta-contentores e, conforme se referiu, para dar como provado que a autora assistiu ou não assistiu a esse descarregamento, pois, em rigor, ninguém confirmou com segurança bastante que lá tenha estado. Com base ainda nestes depoimentos, ao contrário do visado pela recorrente, o ponto 31. dos factos provados deve manter-se inalterado, por resultar de modo cristalino dos depoimentos supra referidos, que o procedimento interno da ré observa a regra de os contentores não serem abertos sem que a autora esteja presente ou sem que esta o autorize previamente, pois desconhecendo-se se esteve ou não presente neste concreto descarregamento, tal não invalida que a regra fosse essa.
Em face disto, o ponto 23. deve ser dado como não provado, o ponto 31. mantém-se inalterado e, embora a prova produzida não autorize a redacção proposta pela autora, o ponto 20. deve passar a ter a seguinte redacção:
20. Aquando da chegada do contentor MSCU…492, a Abreu comunicou à autora que este seria enviado durante o fim-de-semana subsequente ao dia 24 de Setembro de 2020 para a Bobadela e logo que possível seria informada a entrega no armazém, tendo posteriormente sido combinado com esta que o seu descarregamento ocorreria no dia 28 de Setembro de 2020.
Ponto 25. dos Factos Provados
O Tribunal a quo julgou provado o seguinte facto:
“O armazém da Abreu tem sempre aparelhos que medem a temperatura e humidade, fazendo regularmente medições.”
E fundamentou nos seguintes termos:
“Os factos 24 a 26 resultaram provados atento o depoimento sempre credível de BB.”
A recorrente pretende colocar em crise este facto referindo que nenhuma outra testemunha, para além de BB, confirmou esta versão, pelo que deve ser dado como não provado.
Para além do ónus impugnatório que recai sobre o recorrente que pretende colocar em crise a decisão sobre a matéria de facto, importa ter presente que o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste por si, mas assume um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2014, 1024/12.0T2AVR.C1 – “Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada”.
É sabido que a identificação da acção ou a determinação do objecto do pedido afere-se em função da identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir (cf. art. 581º, n.º 1 do CPC).
O art.º 552º do CPC, nas alíneas d) e e) do respectivo n.º 2, impõe ao autor o ónus de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e o de formular o pedido.
Ora, “[] o processo civil é há muito regido pelo princípio dispositivo (sendo manifesto e incontroverso que, apesar de o novo CPC o não enunciar explicitamente nas disposições introdutórias, ele continua a estar subjacente aos regimes estabelecidos em sede de iniciativa e de delimitação do objecto do processo pelas partes, não sendo postergado pelos regimes de maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes): é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem – e continuam inquestionavelmente a incumbir - às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida.” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-04-2016, 842/10.9TBPNF.P2.S1.
O pedido corresponde ao efeito jurídico que se pretende obter com a acção e, como tal, circunscreve o âmbito da decisão final pois que desenha “o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir” (cf. art. 609º, n.º 1 do CPC).28
Quem dirige uma pretensão ao Tribunal terá ainda de expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”, que assume uma função individualizadora do pedido e, como tal, do objecto do processo – cf. artº. 581º, n.º 4 do CPC.
A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram (nomeadamente se abrange todos os necessários à procedência da acção ou apenas aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal), cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo. Por isso, há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido.29
In casu, o objecto do processo, tal como a autora o configurou, radica, como se afigura cristalino da leitura da petição inicial, num contrato de transporte e/ou de expedição ou trânsito que alega ter celebrado com a ré, em cujo objecto se incluía o assegurar ou tratar da execução do transporte via marítima de um contentor com mercadoria que adquiriu a um seu fornecedor no Brasil, tendo-se verificado que esta chegou a Portugal danificada, pelo que pretende responsabilizar a ré pelos prejuízos que teve de suportar em virtude da mercadoria estar danificada e não poder ser objecto de comercialização.
A imputação da responsabilidade à ré Abreu - Carga e Trânsitos, Lda. assentou, precisamente, na execução desse transporte, no decurso do qual, segundo alegou a autora, terá ocorrido entrada de água no contentor onde a mercadoria foi transportada, o que originou os danos que nesta foram observados (manchas de humidades e bolores). Que assim é pode-se, aliás, constatar da leitura do vertido nos artigos 32º, 37º, 48º, 109º e 118º da petição inicial, onde se refere o seguinte:
“32.º
Da análise à mercadoria em causa resulta que a mesma, em algum momento do transporte, foi sujeita a água;
33.º
Ora como ressalta à evidência a mercadoria não terá sido sujeita a água nos 75 km percorridos por terra entre o fornecedor e o porto de Santos;
37.º
Dúvidas não restam que em alguma altura do transporte entre o Brasil e Portugal a mercadoria apanhou água e mesmo tendo chegado molhada ao porto de Sines foi recebida sem reservas pela 1ª R e por esta armazenada sem que tenha informado a A dos danos verificados na mesma;
48.º
A A desconhece em que altura em concreto a mercadoria foi sujeita a água; mas não tem dúvidas que em algum momento do transporte, desde o porto de Santos ao armazém da 1ª R, quanto à primeira situação e do porto de Santos ao de Sines na segunda situação, a mercadoria foi sujeita a água, tenha ela entrado por furos no contentor no teto, de lado, ou por baixo, pela porta do contentor, tenha havido uma vaga, um tsunami, tenha o contentor caído ao mar, tenham-lhe aberto a porta e feito a viagem de porta aberta, tenham-lhe andado a mandar baldes de água… enfim, a A não conhece obviamente em que condições a mercadoria foi sujeita a água nem porquê, o que sabe e isso resulta claro da peritagem feita à primeira mercadoria e cujo relatório se junta como Doc 25 e daquilo que o próprio gerente e funcionários da A viram na segunda mercadoria – as 700 caixas que se encontravam nas duas paletes junto à porta do contentor estavam molhadas – que em ambos os casos a mercadoria foi sujeita a água;
109.º
No caso, não podem restar dúvidas que os danos se verificaram no decurso do transporte marítimo, estando em causa a aplicação do regime jurídico resultante da Convenção de Bruxelas de 1924 (publicada no Diário do Governo, I.ª Série, n.º 128, de 25 de junho de 1932 e retificada no Diário do Governo I.ª Série de 11 de julho de 1932) e os DL 37.748 de 1 de fevereiro de 1950 e 352/86 de 21/10;
118.º
E dúvidas não podem haver que a mercadoria foi entregue à 1ª R em perfeitas condições, não sendo por defeito da própria mercadoria que verificaram os danos provados, prevalecendo aqui as presunções legais emergentes da Convenção de Bruxelas de 1924 no seu Art. 3.º decorrentes relativos à ausência de reservas no conhecimento de carga, relativos ao estado da mercadoria;”
Estes são os factos jurídicos alegados que suportaram o pedido deduzido pela autora, responsabilizando a ré pela desconformidade das mercadorias à chegada ao destino, com a consequente pretensão indemnizatória.
A causa de pedir e pedido nesta acção assentam na versão de que os danos na mercadoria ocorreram no transporte marítimo, por em algum momento do seu percurso aquela ter sido sujeita a água, o que significa que nunca esteve em causa, nem tal foi alegado pela autora, que a mercadoria tenha estado indevidamente acondicionada no armazém da Abreu, em Santa Maria de Azóia ou que devesse permanecer a uma determinada temperatura ou com uma concreta percentagem de humidade e que tais instruções não tenham sido respeitadas pela depositária.
Portanto, em nenhum momento a ré alegou ou imputou à ré a responsabilidade pelo sucedido em razão de eventual incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de depósito, mas sim em função do contrato de transporte via marítima.
Certo é que o juiz pode proceder livremente à qualificação jurídica da factualidade invocada pelas partes como fundamento das suas pretensões, uma vez que não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. art.º 5º, n.º 3 do CPC).
No entanto, uma coisa são as várias possíveis configurações ou qualificações, situadas num plano puramente normativo, dos factos concretos alegados e outra é a configuração distinta dos próprios factos que fundamentam o pedido.
De igual modo, a identidade e individualidade da causa de pedir não será atingida por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir.30
Apenas será viável apreciar a pretensão da recorrente sob a perspectiva de um eventual incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de depósito se se puder entender que os factos que subjazem a tal pretensão são ainda aqueles que foram alegados na petição inicial, ainda que aditados por outros que deles sejam meramente complementares ou secundários, circunstanciais ou acessórios, não contribuindo para transformar a causa de pedir invocada numa outra causa de pedir – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016, 219/14.7TVPRT-C.P1.S1.
Ora, a pertinência da medição da temperatura e humidade no armazém apenas existiria se a pretensão deduzida assentasse nesse pressuposto, o que não sucede, constituindo antes uma via jurídica estruturalmente diferenciada para alcançar a tutela jurídica dos interesses patrimoniais da autora e assenta num pressuposto perfeitamente autónomo face àquele que foi invocado na petição inicial, qual seja, um incumprimento do segmento da relação contratual estabelecida com a ré atinente ao armazenamento da mercadoria, que não o da deslocação da mercadoria do Brasil para Portugal.
Na verdade, a qualificação jurídica dos factos, sendo de conhecimento oficioso, como se disse, não pode deixar, contudo, de ser conjugada com outras limitações, “designadamente daquelas que obstam a que seja modificado o objecto do processo (integrado tanto pelo pedido como pela causa de pedir) ou daquelas que fazem depender um determinado efeito como o da anulabilidade […], da prescrição ou da caducidade da sua invocação pelo interessado.”31
Assim, por não corresponder a facto alegado pela recorrente, nem, por outra via, ainda que tenha respaldo na prova produzida, poder ser tido como mero facto instrumental ou complementar dos anteriormente alegados, não pode ser atendido para apreciação do mérito da causa, pelo que nenhuma utilidade tem a apreciação da impugnação da matéria de facto no que a este ponto de facto diz respeito, daí que não se proceda à respectiva apreciação.
Ponto 28. dos Factos Provados
O Tribunal a quo julgou provado o seguinte facto:
“28. A Autora substituiu as caixas de embalamento e pagou um valor que se situa entre de €2338,00 e €2.977,00.”
O Tribunal fundamentou a sua convicção do seguinte modo:
“O facto 28 resultou provado não só do que referiu BB como também da proposta junta a fls. 121 e do teor da informação de fls. 91.”
Refere a apelante que procedeu à substituição das caixas de embalamento apenas por indicação da ré/recorrida e na expectativa de que esta assumiria a responsabilidade pelos prejuízos que se verificassem na mercadoria, para o que convoca as declarações do seu legal representante, pelo que neste ponto deve ser dado o sentido de que o recorrente não fez a substituição de modo independente mas como resultado da sugestão da ré.
Não obstante a recorrente indicar o sentido que o ponto 28. deveria adoptar, certo é que se absteve de indicar qual a redacção que, no seu entender, lhe deveria ser conferida em face dos meios de prova que convocou, não tendo proposto a decisão que considera correcta em face destes.
Ora, a ausência de indicação da decisão proposta determina a rejeição da impugnação da matéria de facto.
Com efeito, a recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a decisão a proferir sobre cada um dos pontos impugnados, limitando-se a discorrer sobre os meios de prova, com afloramentos de resultados probatórios que entende terem sido logrados na produção da prova.
O ónus imposto ao recorrente na alínea b) do n.º 1 do art.º 640º do CPC não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa ou que deveria reflectir um determinado sentido, antes exige que se afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto ao concreto ponto da matéria de facto controvertida e impugnado, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objectiva questão para apreciar – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-03-2017, 48/16.3T8LSB.L1; ainda neste sentido, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2021, 4925/17.6T8OAZ.P1.S1 e de 3-11-2020, 294/08.3TBTND.C3.S1.
Assim, face a uma impugnação do ponto 28. da matéria de facto provada sem indicação concreta da decisão que, segundo a apelante, deveria ser proferida, deve concluir-se pelo não cumprimento do ónus impugnatório cumulativo que resulta do n.º 1 do art. 640º do CPC, o que conduz à rejeição da impugnação da matéria de facto, nesta parte.
Pontos 32. e 33. dos Factos Provados e alínea a) dos factos Não provados
O Tribunal a quo julgou provado o seguinte:
“32. A peritagem efectuada à mercadoria da Autora concluiu que a humidade e mofo detectado, tiveram origem no momento do embalamento da mercadoria.
33. No que se refere ao primeiro contentor enviado do porto de Santos, constatou-se que as limas e palitos (kits) que se encontravam dentro de bolsas de plástico, apresentavam sinais de bolor, mas as embalagens dos kits não apresentavam humidade ou danos.”
E como não provado:
a) A humidade verificada no 1º e 2º contentor tenha tido origem no transporte marítimo ou na armazenagem efectuada nos armazéns da Ré Abreu.
O Tribunal fundamentou a sua convicção do seguinte modo:
“Os factos 32 e 33 resultaram do depoimento de EE e do relatório da Abaco, cuja tradução se encontra a fls. 264, subscrito por esta testemunha, a qual com total clareza, experiência e formação, explicou com credibilidade e isenção que encontrando-se os sacos selados, a humidade não poderia ter entrado durante a viagem. Mais referiu que foi no embalamento que a humidade terá entrado, tendo o mesmo sucedido com a 2ª mercadoria, só que a humidade afectou apenas as embalagens.
Tal também foi referido pelas testemunhas DD, da SGS e ainda por RR, as quais mereceram credibilidade tendo relatado o estado das mercadorias que se encontravam nas instalações da Ré Abreu e esclareceram que ambos os contentores estavam em bom estado, sem quaisquer furos, pelo que a humidade terá entrado nos produtos em momento anterior à da contentorização. […]
O facto a) resultou não provado, pois que as testemunhas RR e OO, com total credibilidade referiram que nem o armazém nem os contentores apresentavam quaisquer defeitos que tivessem permitido a entrada de água, pelo que a humidade ter-se-ia instalado em momento anterior à da consolidação da mercadoria. Estes depoimentos foram totalmente corroborados pelos relatórios de Abaco juntos aos autos e que supra já foram referidos, como também foi referido pelo Engº perito EE.”
A recorrente discorda do decidido com a seguinte argumentação:
= não foi realizada perícia, constando dos autos apenas pareceres técnicos, que não servem de meio de prova, mas apenas para ajudar o julgador a encontrar uma solução justa;
= os técnicos apenas elaboraram relatório exclusivamente sobre o primeiro contentor e quanto ao segundo apenas se pode concluir que “houve alguma mercadoria, junto à porta do contentor, que se encontrava visivelmente molhada”, como resulta do ponto 27.:
= quanto ao primeiro contentor, os técnicos não assistiram ao embalamento e não conhecem as condições em que foi realizado ou o local, para além de a análise ter sido feita oito meses depois do embalamento, não tendo existido uma conclusão segura sobre o que ocorreu;
= o tribunal desconsiderou a declaração da Higibras32 e o depoimento da testemunha MM, que afirmou que quando fizeram o transporte terrestre para o porto de Santos a mercadoria estava em boas condições, tendo negado que não tenha visto a mercadoria, apesar de partes desse depoimento ser imperceptível;
= a conclusão do relatório da Abaco é apenas uma hipótese;
= o relatório apresentado pela autora, elaborado pela empresa SGS, também não chega a conclusão sobre a responsabilidade pelos danos causados à mercadoria, como foi confirmado pela testemunha LL;
= as testemunhas LL, OO e PP confirmaram que os danos nas paletes eram visíveis, que tinha humidade e caixas deformadas, estando a recorrida obrigada a um dever de vigilância enquanto a mercadoria permaneceu no seu armazém e a testemunha KK disse que só começaram a fazer inspecções mais minuciosas após a reclamação de danos.
Propõe, assim, a recorrente, que os pontos 32. e 33. passem a ter a seguinte redacção: “32. Da análise efectuada à mercadora do 1º contentor não foi possível concluir o que aconteceu na realidade durante o percurso entre Brasil e Portugal” e “33. No que se refere ao primeiro contentor enviado do porto de Santos, constatou-se que as limas e palitos (kits) que se encontravam dentro de bolsas de plástico, apresentavam sinais de bolor; as embalagens dos Kits não apresentavam humidade ou danos, mas os cantos das caixas de cartão estavam visivelmente enrugados, o que era visível a olho nu.”
A este propósito refere a recorrida que, conforme decorre do depoimento da testemunha PP, a humidade foi progressiva, por se encontrar aprisionada dentro das paletes, com caixas que foram filmadas com plástico, levando à sua condensação no interior, o que significa que umas caixas podiam estar mais danificadas que outras, daí não ter sido notada a deformação aquando da descarga do primeiro contentor, que se agravou com o passar do tempo.
Cumpre deixar claro, desde logo, que nos presentes autos estão em causa dois transportes por via marítima, conforme conhecimentos de embarque, devidamente traduzidos, documentos n.ºs 1 e 2 juntos com o requerimento da ré de 13 de Outubro de 202333:
• Um primeiro transporte via marítima de mercadoria adquirida pela autora à fornecedora Higibras Cosmética do Brasil – kits descartáveis de manicura e pedicura – acondicionada no contentor MSCU…492, de 40 pés, embarcado no porto de Santos em 7 de Agosto de 2020 e desembarcado a 22 de Setembro de 2020, em Sines, transportado por via ferroviária para a Bobadela e entregue à ré em 25 de Setembro de 2020;
• Um segundo transporte via marítima de mercadoria adquirida pela autora à fornecedora ... – o mesmo tipo de produto -, acondicionada no contentor TEMU…256, de 20 pés, embarcado no porto de Santos em 30 de Maio de 2021 e desembarcado no dia 8 de Julho de 2021, no porto de Sines, transportado por via ferroviária para o terminal da Bobadela e entregue à ré em 13 de Julho de 2021.
Aquilo que a apelante vem colocar em crise quanto ao ponto 32. tem que ver, precisamente, com o facto determinante dos danos que foram constatados nas mercadorias transportadas por via marítima, nas referidas datas, sendo certo que, como resulta do ponto 4. dos factos provados, a autora, importadora e adquirente da mercadoria (cf. ponto 2.) solicitou à ré Abreu – Carga e Trânsitos, Lda., que exerce a actividade transitária (cf. ponto 3.), todo o processo de natureza logística e operacional com vista ao transporte – e posterior armazenamento – dos 252 mil kits de manicura e pedicura, adquiridos à fornecedora ....
No ponto 32. considerou-se que a peritagem efectuada à mercadoria concluiu que a humidade e mofo detectados tiveram origem no momento do embalamento da mercadoria, visando a recorrente alcançar a modificação da redacção deste ponto, para que se passe a afirmar que não foi possível concluir o que se passou durante o percurso entre Brasil e Portugal.
Em primeiro lugar, o facto que consta do ponto 32., tal como dele emerge, tem que ver com aquela que foi a conclusão da «peritagem» ou análise que foi efectuada à mercadoria.
Em segundo lugar, tal como resulta do atrás expendido, a causa de pedir que fundamenta o pedido deduzido pela autora na presente acção assenta na execução dos dois transportes de mercadoria via marítima, para cuja concretização solicitou os serviços necessários à ré Abreu, tendo vindo a constatar a existência de danos na mercadoria, que pretende imputar à ré por a mercadoria ter sido afectada por água no decurso desse transporte marítimo. Deste modo, qualquer situação estranha a esta causa de pedir, nomeadamente, com as condições do contentor ou características que devesse ter e não tinha - não alegadas – ou com as condições de armazenagem, adequadas ou não adequadas à mercadoria em apreço – também não alegadas –, nenhum relevo terá para a apreciação da causa ou da impugnação dirigida à matéria de facto provada e não provada, pelo que a ela não se atenderá.
Em terceiro lugar, tal como resulta do ponto 5. dos factos provados, a aquisição da mercadoria à ... foi efectuada com a estipulação do Incoterm FOB (Free on Board ou Franco a Bordo), ou seja, o vendedor entrega a mercadoria a bordo do navio indicado pelo comprador, no porto de embarque acordado; a partir desse ponto, todos os riscos e custos relacionados à mercadoria são transferidos para o comprador. A embalagem e identificação da mercadoria, carga e transporte dentro do país de origem, o seguro no país de origem (opcional), o desembaraço aduaneiro para exportação e as despesas com o embarque e estiva ficam a cargo do vendedor.34
Quando estão em causa contratos internacionais – como é o caso – as partes recorrem muitas vezes aos denominados INCOTERMS®35, ou seja, cláusulas contratuais de compra e venda que são identificadas por sigla, cujo conteúdo é definido pela Câmara de Comércio Internacional36 e que dispõem sobre a entrega das mercadorias, a transferência dos riscos, repartição de custos e formalidades de documentação relativas à passagem das fronteiras.
O contrato de compra e venda internacional de mercadorias e o contrato de transporte marítimo, sendo negócios independentes, estão naturalmente conexionados, sendo o primeiro a causa do segundo, de tal modo que algumas cláusulas daquele irão influenciar o contrato de transporte, desde logo, quanto a saber quem paga o preço deste, pelo que há que olhar à operação económica no seu conjunto.
Assim, neste caso, a responsabilidade da ..., enquanto expedidora, abrangia o processo de embalamento, colocação no contentor, transporte até ao porto, formalidades para a exportação e colocação a bordo na embarcação, que foi aquilo que sucedeu, como explicou a testemunha YY, comercial na empresa ..., que confirmou a saída da mercadoria em boas condições, nunca tendo tido problemas anteriormente, esclarecendo que há um controlo sobre todas as mercadorias que saem para exportação e afirmando que o contentor chega às instalações da ... e são os funcionários deste quem o carrega, as caixas são paletizadas e as paletes envolvidas com papel kraft e um filme de plástico, para não ganhar humidade, tendo dito ser impossível ficar humidade dentro - cf. minuto 13.30 e seguintes do seu depoimento, prestado na sessão da audiência final de 1 de Fevereiro de 2024.
Também HH confirmou que é o fornecedor, a ..., quem, na origem, procede ao embalamento da mercadoria, enche o contentor, colocada a carga lá dentro, fecha e põe o selo - cf. minuto 1h39.10 e seguintes do seu depoimento.
A testemunha ZZ, analista de exportação, que exerce funções na Comissário Ultramar de Despachos Internacionais, Lta., que é a despachante aduaneira da ..., mencionou também que fornecem o contentor à ... e que esta acompanha todo o processo de carregamento do contentor, que é fechado e lacrado, seguindo depois para o porto de Santos, referindo, é certo, que a mercadoria enviada no primeiro transporte estava em boas condições, embora não seja perceptível – trata-se de um depoimento prestado por via Microsoft Teams, encontrando-se a testemunha no Brasil, cuja gravação é, em inúmeras partes, inaudível – qual a razão de ciência da testemunha para asseverar esse facto.
Portanto, o processo de embalamento da mercadoria, colocação em paletes, filmagem e colocação no contentor é assegurado ou controlado na origem, pelo exportador, no qual o transportador ou o transitário que o contratou não teve qualquer intervenção.
Em quarto lugar, diversamente do que a apelante vem sustentar, ambas as mercadorias – ou seja, as embarcadas no dia 7 de Agosto de 2020 e as embarcadas no dia 30 de Maio de 2021 – foram objecto de análise por parte de técnicos/peritos indicados pelas partes nesta causa.
Com efeito, a autora apresentou com a petição inicial um relatório técnico produzido pela empresa Abaco – International Loss Adjusters Portugal, Lda., com data de peritagem de 13 de Julho de 2021, com tradução junta em 27 de Junho de 202237, que lhe foi solicitado pela Abreu – Carga e Trânsitos, Lda., sendo inspector PP, e que incidiu sobre a mercadoria transportada no contentor MSCU…492, que saiu do porto de Santos no dia 7 de Agosto de 2020; por sua vez, a interveniente acessória Victoria Seguros, S. A. juntou com a sua contestação38 um relatório final, também elaborado pela Abaco - International Loss Adjusters Portugal, Lda., por si requerido, com data de intervenção de 27 de Julho de 2021, referente ao sinistro detectado a 13 de Julho de 2021 e atinente à mercadoria expedida pela ... para a autora, no contentor TEMU…256, carregado a bordo a 30 de Maio de 2021.
Além destes dois relatórios, consta ainda dos autos o documento n.º 25 junto com a petição inicial39, que constitui um “Relatório de Inspecção para o Cliente”, solicitado pela autora à SGS Portugal, S. A., inspecção realizada no dia 13 de Julho de 2021, pelo inspector LL, referente à mercadoria com a ordem de compra 04/2020, ou seja, a mercadoria transportada no primeiro transporte acima referido, tratando-se, porém, como referiu a testemunha AAA, de um relatório que reporta a análise efectuada à mercadoria com vista a efectuar constatações de como estava o produto no dia em que lá esteve (e não para aferição da causa da avaria).
Tal como a apelante argumenta, não estão em causa meios de prova periciais, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 388º do Código Civil, não tendo sido ordenada qualquer a realização de perícia para apreciação de factos por meio de peritos, nos termos do art.º 467º e seguintes do CPC, ou seja, de modo a transmitir ao juiz informações de facto por uma entidade – um perito – especialmente encarregada de as recolher.
De todo o modo, tais documentos, enquanto pareceres técnicos, não deixam de constituir um meio de prova, pois que exprimem o testemunho de pessoa que, solicitada extrajudicialmente para verificar determinados factos, narra o que viu e observou. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa referem que, em rigor, equivalem a prova testemunhal, sendo que a sua eficácia probatória não pode ser superior à da prova pericial ou à da prova testemunhal.40
Assim, podia o Tribunal recorrido atender ao seu conteúdo, em conjugação com a demais prova produzida, para fundamentar os factos em referência.
Ademais, confrontados ambos os documentos em referência, é possível aferir que, em ambas as situações – aliás, como disso se dá expressa nota no relatório de 27 de Julho de 2021 – foi identificado um problema na origem, o que é evidenciado pela circunstância de a humidade existente nas caixas armazenadas (primeiro contentor) e nas caixas chegadas em 13 de Julho de 2021 (segundo contentor) se encontrar entre o papel pardo que as envolvia e o filme plástico exterior que acondicionava toda a palete, filme que aprisionou a humidade já existente nas caixas de cartão, de modo que, durante o transporte, com o aquecimento do contentor e variações de temperatura e até de pressão barométrica, terá originado o aparecimento de gotículas, por condensação, que afectaram as embalagens, ou seja, a conclusão foi a de que esteve em causa um vício na embalagem.
Note-se que no relatório da Abaco de 13 de Julho de 2021 refere-se o acondicionamento das paletes nas mesmas circunstâncias, ou seja, estavam envolvidas com película plástica com interior em papel pardo, havendo nas extremidades cantos em papelão, evidenciando-se que as caixas estiveram húmidas, porque o papel pardo estava seco, mas ondulado, o que contribuiu para que a caixa ficasse rugosa e tinham sinais de mofo.
Embora em ambos os relatórios seja referida uma causa provável, deles se extrai um dado seguro que é o de que a causa da humidade não residiu no armazém, após a entrada da mercadoria e que os danos não eram susceptíveis de serem detectados dentro das paletes, porque estavam envolvidas com papel kraft e película plástica, admitindo-se que foi no momento da embalagem, estando o ambiente húmido e, depois durante a viagem, que ocorreu condensação dentro da palete, danificando a mercadoria.
Aliás, a testemunha PP, inspector que redigiu o primeiro desses relatórios, relatou, precisamente, as condições em que estava a mercadoria paletizada, quer a armazenada nas instalações da ré desde Setembro de 2020, quer a que chegou em 13 de Julho de 2021, quando lá se encontrava, juntamente com outros técnicos, a efectuar a peritagem à primeira mercadoria, descrevendo a colocação das caixas de cartão sobrepostas nas paletes, o seu envolvimento com papel pardo e filme de plástico, tendo sido mais assertivo do que aquilo que foi consignado nos relatórios, dizendo que a humidade verificada consistia em gotículas de água, pontos de fungo ou bolor, e que, tendo em conta que os sacos do produto são selados, a humidade não podia ter ocorrido durante a viagem, mas sim durante a produção do saco, ou seja, a humidade que entrou foi durante a produção, quando selaram o saco, explicando que se o produto estiver num ambiente húmido, a humidade vai ficar dentro do saco, pelo que ao momento da expedição o vício já teria de existir – cf. minutos 11.20 e seguintes e 23.15 e seguintes do seu depoimento prestado na sessão de 23 de Setembro de 2024.
No mesmo dia da peritagem, conforme referiram esta e outras testemunhas, chegou ao armazém o segundo contentor, onde detectaram a humidade nas caixas, que estavam molhadas e amassadas, mas os sacos não estavam contaminados, daí que a embalagem tenha sido substituída e o produto distribuído.
Também a instâncias do ilustre mandatário da interveniente acessória Axa, a testemunha foi muito clara ao referir que o produto estava embalado em material/estojo plástico, selado, sem abertura, sendo necessário cortar com tesoura e que havia dentro humidade e bolor, que têm de ter sido gerados dentro da embalagem, não podendo ter vindo de fora.
Indagada a testemunha sobre como pode afirmar que não foi a água exterior que afectou o produto, quando se sabe que nem todas as caixas foram afectadas e se o problema fosse na origem teriam todas de estar danificadas, PP esclareceu, de modo perceptível, que o cartão húmido perde resistência mecânica e o peso das caixas que estão em cima faz com que as outras se vão deformando, dizendo que chegaram à conclusão de o problema estar na origem, por, embora não tendo estado presentes, ao analisarem a mercadoria vão eliminando hipóteses, de modo que, se o contentor não apresenta furos ou danos, como não apresentava, não havia por onde a água entrar durante a viagem, logo a humidade que está no produto tem de ter entrado quando a mercadoria foi embalada ou colocada dentro do contentor. Explicou também que teve acesso a fotografias da fábrica onde o produto foi produzido, situado numa zona húmida no Brasil, num armazém que não é fechado, logo em ambiente aberto, o que permitia essa entrada de humidade; mais esclareceu que nem todas as caixas sofrem da mesma maneira, podendo uma ter mais ou menos humidade do que outra e, ao aquecer a temperatura dentro do contentor, a evaporação da humidade da caixa condensa junto desta e a caixa recebe a humidade de volta, ficando molhada e quando molha demais, deforma, tratando-se de um processo progressivo, que se vai agravando com o tempo; o filme plástico tem a função de acondicionar e proteger da água externa, mas não protege de água interna.
Explicou ainda que, aquando da reclamação da carga molhada, no segundo contentor, a cuja chegada assistiu, a humidade estava por dentro do filme e não por fora, sendo uma situação idêntica à que aconteceu na primeira carga – cf. minuto 36.30 e seguintes do seu depoimento; e ao minuto 52.51 e seguintes: “A carga está húmida quando colocada no contentor; quando vejo humidade no filme plástico, por dentro do filme plástico e não por fora, eu tenho a certeza que a caixa está húmida e a água evaporou e condensou no filme plástico e o papel […] vai absorvendo humidade; está húmida, o ambiente fica quente, evapora, condensa, e com o passar do tempo passa para várias caixas, uma caixa muito húmida numa palete contamina todas as caixas da palete […]”.
E ainda que ZZ tenha referido que a mercadoria saiu em condições, certo é que, estando em causa uma situação progressiva, tal como PP explicou, o estado em que a mercadoria foi encontrada em Julho de 2021, cerca de 10 meses depois da sua chegada, em Setembro de 2020, poderia não ser o seu estado seja à saída do Brasil, seja à saída do armazém da ré, quando foi expedida para Itália e depois retornou, pois os danos causados pela humidade podem se ter agravado entretanto.
Também a testemunha BBB, gestora de reclamações e apoio ao cliente, na Abreu - Carga e Trânsito, Lda. desde Janeiro de 2021, disse ter recebido os peritos nas instalações da ré, no dia da peritagem, tendo relatado as conclusões que estes verteram no relatório, e que as paletes que chegaram no segundo contentor, nesse dia (como também disse a testemunha HH), apresentavam evidência de estarem molhadas, esclarecendo que a humidade constatada estava entre o filme de plástico das paletes e o papel que envolvia as caixas e fora do filme não havia água41, o que corrobora o relato da testemunha PP – cf. minuto 7.27 do seu depoimento prestado na sessão de 23 de Setembro de 2024.
Note-se que a própria autora, na sequência da peritagem realizada à primeira mercadoria, manifestou a intenção de devolver à fornecedora ... dezassete paletes, referindo tratar-se de “material defeituoso”, conforme foi referido pela testemunha CCC (cf. minuto 1h.07.10 e seguintes do seu depoimento) e se retira da mensagem de correio electrónico enviada pelo funcionário HH a DDD, no dia 15 de Julho de 2021, conforme documento apresentado por aquela testemunha no decurso do seu depoimento e cuja junção aos autos foi ordenada.42
Por sua vez, a testemunha CC disse que o segundo contentor chegou no momento em que os peritos estavam a fazer a peritagem à primeira mercadoria, estando presentes representantes da autora e que foi chamada ao armazém para ver as paletes danificadas, tendo constatado que as paletes vinham com condensação interior e não molhadas por fora, ou seja, não as viu molhadas por fora, mas sim o papel enrugado por dentro e o filme de plástico, por dentro, com gotículas de águas. Mais acrescentou que, depois de toda esta situação, chegou um contentor a Palmela (para onde, entretanto, a logística foi passada), cujo transporte não foi tratado pela Abreu e que apresentava as mesmas condições, paletes molhadas e não eram as que vinham junto à porta do contentor, tendo a autora, nesse caso, informado que era para reembalar, retirando o cartão molhado, não tendo originado da parte de II outra pretensão – cf. minutos 38.06 e seguintes e 44.50 e seguintes do seu depoimento prestado na sessão de 20 de Fevereiro de 2024.
Por fim, a desconsideração da guia de transporte relativa ao segundo contentor, que constitui o documento n.º 23 junto com a petição inicial, foi justificada pela senhora juíza a quo, o que se percebe pela circunstância de se mostrar rasurada e pelo facto de a testemunha EEE, ter afirmado que, aquando da recepção, colocava sempre uma anotação de faltas ou avarias, porque era esse procedimento do armazém e que se não anotaram nada é porque as paletes vinham em condições, sendo usual inscrever: “ignoramos faltas ou avarias” e, confrontado com o mencionado documento, onde se indica “palete 6 recepcionada completamente molhada; paletes com caixas molhadas e amassadas”, referiu não ser a sua letra, dizendo que aquilo que escreveu foi o que está em está em baixo rasurado: “Paletes filmadas; impossibilita verificação do seu conteúdo, ignoramos faltas ou avarias”, que foi rasurado não sabendo por que motivo, não tendo sido ele quem o rasurou – cf. minuto 22.45 e seguintes do seu depoimento.
Do conjunto da prova documental e testemunhal produzida e da conjugação dos elementos que delas emerge, como atrás se deu nota, é seguro afirmar, por um lado, que nenhum dos relatórios da Abaco asseverou expressamente a causa ou origem da humidade existente nas caixas e bolor constatado nos produtos embalados, embora, eliminando hipóteses, tenham concluído que a humidade terá entrado nas caixas ao momento da sua preparação, o que originou condensação durante a viagem, dando lugar à humidade e deformação das caixas de cartão e, quanto à primeira mercadoria, a humidade causou bolor no produto, estando, por outro lado, excluída a possibilidade de os danos terem sido causados pela entrada de água a partir do exterior do contentor.
Assim, excluída esta última hipótese, não pode proceder a pretensão da recorrente quanto à redacção que propõe para o ponto 32., que, porém, deve passar a ser a seguinte:
32. As peritagens efectuadas à mercadoria adquirida pela autora que chegou ao armazém da Abreu- Carga e Trânsitos, Lda. nos dias 25 de Setembro de 2020 e 13 de Julho de 2021, concluíram que a humidade e mofo existentes nas caixas de cartão do primeiro transporte e a humidade das caixas de cartão do segundo transporte, esta última evidenciada por gotículas de água entre o papel pardo e o filme plástico que envolvia as paletes, terá sido causada por condensação, decorrente das condições de humidade e calor ao momento do embalamento, no Brasil, afastando a hipótese de ter sido causada por água a partir do exterior do contentor.
Em face do que se deixou explanado, naturalmente o vertido na alínea a) dos factos não provados deve permanecer inalterado.
Parece claro que, no ponto 33. o Tribunal está a reportar-se às embalagens de plástico de cor, seladas, onde se encontravam os kits de manicura e pedicura, por sua vez acondicionados em bolsas de plástico transparente e não às caixas de cartão que, como resulta à evidencia, quer no primeiro contentor, quer no segundo contentor mostraram sinais de humidade e deformação, como decorre claramente do depoimento de PP, HH e JJ, tendo sido amplamente explicado por estas e outras testemunhas, designadamente pela testemunha YY, que os kits estavam dentro dessa embalagem de plástico mais resistente, com cor e selada, que por sua vez foram colocados dentro das caixas de cartão, noventa unidades por caixa e 140 caixas por paletes, umas sobrepostas sobre as outras, numa altura de oito caixas (cf. minuto 38.22 e seguintes do seu depoimento), sendo essa embalagem de plástico mais forte, a que não apresentava sinais de humidade, como claramente foi referido pela testemunha, que disse que os sacos não estavam contaminados e que foram substituídas as caixas de cartão, embalagens externas (cf. minuto 16.10 e seguintes do seu depoimento), assim como a testemunha LL foi muito clara ao referir que o interior da embalagem de plástico não apresentava bolor e que estava na lima e no palito de madeira – cf. minuto 11.20 e seguintes do seu depoimento.
Embora conste do ponto 12. que algumas caixas de cartão do primeiro transporte estavam molhadas, nada obsta a que se clarifique as condições de transporte e o estado de algumas das embalagens exteriores, em conformidade com a prova já atrás enunciada.
Assim, o ponto 33. passa a ter a seguinte redacção:
33. Os kits de cosmética adquiridos pela autora à ... e enviada do porto de Santos, no Brasil, em 7 de Agosto de 2020, encontravam-se colocados no interior de bolsas de plástico transparente (lima e palito e luvas), por sua vez colocados numa embalagem de plástico mais forte, selada, sendo as unidades colocadas dentro de caixas de cartão, paletizadas, envolvidas por papel kraft e filmadas com plástico, tendo-se constatado que muitas dessas caixas de cartão apresentavam humidade e estavam enrugadas e as limas e palitos apresentavam sinais de bolor, mas não as respectivas embalagens de plástico.
Ponto 43. dos Factos Provados
O Tribunal recorrido deu como provado:
43 - Pelo serviço de armazenamento entre Setembro de 2020 a Julho de 2021 a Autora pagou à Ré o valor de €2884,41.
O que baseou com o teor da factura junta a fls.115v. a 120v.
A apelante pretende que este ponto passe a ter a seguinte redacção: “Pelos serviços de manuseamento, armazenamento, handling e paletização, entre Setembro de 2020 a Julho de 2021, a Autora pagou à Ré o valor de 2 884,41 €”, referindo resultar das facturas juntas como documentos n.ºs 32 a 42 que foram cobrados valores referes a outros serviços que não apenas armazenamento, mas também de manuseamento, paletização e handling in.
Na verdade, as facturas em referência juntas com a petição inicial43 contêm na sua descrição serviços de armazenamento, paletização e handling in, tendo as testemunhas HH e KK explicado que os serviços de handling in têm que ver com a chegada das paletes com mercadoria da autora ao armazém da ré, que é necessário acondicionar; a paletização, tem que ver com a preparação de paletes com mercadoria ali armazenada para depois ser transportada para os clientes da autora, trabalho a que os funcionários da ré procedem no âmbito do contrato de armazenagem celebrado com esta.
Assim, a redacção do ponto 43. deve passar a ser a seguinte:
43. Pelos serviços de armazenamento, paletização e handling in, entre Setembro de 2020 e Julho de 2021, a Autora pagou à Ré o valor de 2 884,41 €.
Ponto 39. dos Factos Provados
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
39 – Em Março de 2022 chegou outro contentor a Palmela provindo da ..., com transporte efectuado por terceiro, cuja carga apresentava o mesmo tipo de problema de condensação e cujas caixas não se encontravam junto à porta daquele.
O que fundamentou do seguinte modo:
“O facto 39 resultou também provado do teor do depoimento da testemunha CC.”
A recorrente entende que este facto não deve constar dos factos provados por se tratar de um facto novo, que não teve oportunidade de contraditar, não tendo sido alegado pelas partes nos articulados, pelo que, influindo na decisão da causa, tem de ser eliminado.
O art.º 5º, n.º 1 do CPC impõe às partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, quanto aos primeiros, devem ser alegados os factos essenciais à procedência do pedido, aqueles que são constitutivos do direito do autor.
Distingue-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, o núcleo essencial, constituído pelos factos principais, ou seja, os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares, aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência (processualmente, são aqueles que integram a causa de pedir mas não individualizam a causa nem a sua omissão determina a ineptidão da petição), sendo, como aqueles, decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.
Distintos dos factos principais e dos complementares, são os factos instrumentais, que não integram a causa de pedir, ou seja, são factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da causa de pedir, são meros factos probatórios, que, como tal, estão fora do ónus de alegação.44
Tendo presente esta distinção importa atentar na norma vertida no n.º 2 do art. 5º do CPC que estatui deste modo:
“Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Atenta a questão aqui em apreço – em que se discute a atendibilidade pelo tribunal de um facto não alegado pelas partes e que a recorrente considera que influi na decisão da causa (embora não esclareça se o tem por facto essencial ou constitutivo da defesa) -, torna-se útil convocar a distinção que o Professor Miguel Teixeira de Sousa efectua quanto aos factos necessários à procedência da acção, que qualifica de factos principais e que abrangem os factos essenciais e os factos complementares, sendo que os primeiros permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção ou na excepção e os segundos são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.45
Assim, os factos essenciais são os necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e que, como tal, relevam na viabilidade da acção ou da excepção. Deste modo, se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que se pretende fazer valer em juízo, existe um vício que afecta a viabilidade da acção ou da excepção.
Já os factos complementares não são necessários à identificação da situação jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da acção ou da excepção.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa sustentam que a consideração dos factos complementares ou concretizadores em resultado da instrução tem agora natureza oficiosa, não sendo exigida a concordância da parte para a sua atendibilidade, mas sempre com a exigência de que sobre eles seja garantido o exercício do contraditório, o que passa, designadamente, pelo anúncio às partes pelo juiz, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto (com a possibilidade de requererem a produção de novos meios de prova).46
É assim que na enunciação dos factos provados e não provados o juiz terá de efectuar “uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa) sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a exceção proceda.”47
Na situação sub judice, porém, o facto inscrito sob o ponto 39. não é um facto essencial, não integrando, como parece claro, a causa de pedir invocada pela autora e, por outro lado, também não o é em sede de eventual excepção. Com efeito, saber se em Março de 2022 chegou um outro contentor, com mercadoria adquirida à ..., transportada por entidade terceira que apresentava o mesmo tipo de problema, não interfere directamente com o apuramento daquilo que se passou, em concreto, com a mercadoria em discussão nestes autos e respectivo transporte. Poderá, eventualmente, ter a virtualidade de indiciar circunstâncias que permitam conduzir à afirmação do que se passou, pelo que se está perante um facto instrumental, que poderá permitir a presunção de factos integrantes da acção ou da defesa, um facto probatório que não carece de alegação.
Por outro lado, tendo tal facto sido, efectivamente, mencionado pela testemunha JJ, seguro é que ambas as partes tiveram a oportunidade de o sindicar, pelo que não se detecta razão para o eliminar do elenco dos factos provados, indeferindo, neste ponto, a impugnação que lhe foi dirigida.
Alínea b) dos factos Não Provados
O Tribunal recorrido considerou não provado o seguinte:
b) Qual o destino dado à mercadoria proveniente no 1º dos contentores e que chegou a Santa Iria da Azóia em 25/09/2020.
Que fundamentou nos seguintes termos:
“O facto b) resultou não apurado, pois ninguém referiu o destino dado às paletes avariadas do 1º contentor, sendo que a própria JJ referiu que 3 paletes foram enviadas para clientes da Autora, mas que desconhecia o destino das demais, as quais foram saindo do armazém gradualmente e que ficaram apenas 5 paletes até a relação comercial ter terminado.”
Entende a recorrente que este facto deve ser considerado provado, convocando a declaração que apresentou em 1 de Março de 2024 para demonstrar que a mercadoria do primeiro contentor foi encaminhada para destruição, para além de tal ter sido referido pela testemunha HH.
Sucede que a apelante não indica qual a decisão que deveria ser proferida a este propósito, limitando-se a concluir que o facto deve ser dado como provado.
Ora, aquilo que foi consignado na alínea b) dos factos não provados foi apenas que não se provou qual o destino dado à mercadoria que chegou no primeiro contentor, sendo que conferir esta redacção como provada nada de novo introduziria nos autos. A falta de indicação da concreta decisão que deveria ser proferida implica, como disso já se deu nota, o não cumprimento do ónus impugnatório cumulativo que resulta do n.º 1 do art. 640º do CPC, o que conduz à rejeição da impugnação da matéria de facto nesta parte.
De todo o modo, sempre se dirá, também como já acima explicitado, que não pode a recorrente louvar-se no documento não admitido pela 1ª instância, quando tal decisão de não admissão transitou já em julgado, pelo que são inócuas todas as considerações efectuadas a esse propósito.
Por outro lado, a testemunha HH referiu, é certo, que procederam à destruição da mercadoria sobrante do primeiro contentor e que não foi vendida a ninguém, no entanto, como resulta do seu depoimento, não foi a testemunha que tratou da destruição, a documentação não passou por si e apenas o afirmou referindo ter sido essa a informação que lhe foi dada por II, o que se revela, na conjugação com os restantes depoimentos, insuficiente para afirmar que o destino da mercadoria foi a sua destruição.
A testemunha CCC referiu que as paletes que ficaram do primeiro contentor foram recolhidas pela autora, não sabendo qual o seu destino, sendo que, por regra, as mercadorias não utilizadas têm de ser destruídas, enviadas para empresa de resíduos, com emissão de um auto de destruição, porque se não for destruída pode manter-se em circulação, e que, neste caso, na Abreu não tiveram conhecimento desse auto de destruição, tendo ainda mencionado ter tido conhecimento da intenção da autora de proceder à sua devolução à ..., não sabendo se tal aconteceu.
Por sua vez, a testemunha JJ mencionou, também, a necessidade de ser elaborado um auto de destruição, de que não teve conhecimento, mais aditando que as dezassete paletes sobrantes do primeiro contentor foram saindo a solicitação da autora, tendo, no final da relação com a autora, cinco paletes no armazém, que em Março de 2022 foram retiradas, não sabendo explicar o que lhes sucedeu, acrescentando não fazer sentido, se for para destruição, que a mercadoria seja retirada gradualmente e não de uma vez, porque tal implica maiores custos.
Neste contexto probatório, sempre se tornaria inviável – a ser essa a pretensão da recorrente – dar como provado que a mercadoria foi destruída, pelo que se mantém inalterado o vertido na alínea b) dos factos não provados.
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Já em sede daquilo que intitulou como “No que toca ao erro de julgamento de direito”, a apelante alude a factos que resultam demonstrados da prova produzida e que são relevantes para a decisão final e que não constam da sentença, procedendo a uma descrição de afirmações atinentes a elementos factuais que terão resultado da prova - tais como, as caixas de cartão com cantos enrugados, a duração da relação comercial entre a autora e a empresa ...s, a aquisição do mesmo tipo de mercadorias, que nunca apresentaram humidade/bolor e o processo de embalamento acompanhado por um técnico de qualidade -, sobre as quais o tribunal não se pronunciou, invocando o depoimento da testemunha SS, que sobre elas se terá pronunciado.
Sucede que a recorrente não indicou, em concreto, quais os factos que foram alegados por si ou pela ré, nos respectivos articulados e sobre os quais o tribunal não se teria pronunciado, sendo que as afirmações mencionadas neles não encontram respaldo, assim como não explicitou se tais dados factuais surgiram no decurso da instrução da causa e, mais do que isso, não apresentou a decisão que pretenderia que fosse proferida quanto a cada uma dessas questões de facto suscitadas.
Ademais, nas conclusões do recurso, a apelante nada aduziu quanto à factualidade adicional que reputa provada, limitando-se a tecer as mesmas considerações vertidas no corpo da alegação, sem enunciar, especificamente, os factos que pretende ver aditados, ou seja, não efectuou uma síntese dos pontos que pretendia que fossem dados como provados, como se lhe impunha.
Ora, na senda do anteriormente explanado, a recorrente, não obstante convocar elementos de prova para sustentar uma série de afirmações fácticas que produziu, não enunciou, de forma concretizada e especificada, quais os concretos factos que deveriam ser julgados provados, não satisfazendo o ónus impugnatório acima especificado, razão pela qual se rejeita, nesta parte, o recurso atinente à impugnação da matéria de facto tida como provada pelo tribunal a quo.
*
Da ampliação do objecto do recurso deduzida pela ré/recorrida
A apelada requereu a ampliação do objecto do recurso pretendendo que seja aditado à matéria de facto provada o seguinte ponto: “Em ambos os casos do primeiro e segundo transportes entre o Brasil e Portugal mencionados no probatório, o objecto do transporte consistiu em contentores (um em cada caso), entregues no porto de Santos à transportadora MSC, contentores esses que já provinham da ..., já vinham carregados, fechados e selados, tendo a respectiva transportadora sujeitados os conhecimentos de embarque à cláusula “said to contain” no que respeita á descrição da mercadoria nela contida.”
Baseia-se no depoimento da testemunha PP para demonstrar que a mercadoria vinha em invólucros de plástico selados, em caixas paletizadas, com uma película de plástico à volta, não podendo a humidade ter entrado no decurso da viagem.
Conforme decorre da prova produzida e já amplamente referida e apreciada supra, não sobram dúvidas – e a própria autora não o refuta – que o embalamento da mercadoria esteve a cargo da vendedora brasileira, que se encarregou de a ele proceder e, bem assim, de colocar a mercadoria nos respectivos contentores, tal como foi claramente mencionado pelas testemunhas SS, ZZ e HH (cf. minuto 1h39.10 e seguintes).
Resulta ainda de toda a prova testemunhal e documental produzida – sobremaneira dos conhecimentos de embarque – que a mercadoria foi transportada dentro de contentores selados, tendo ficado a cargo da expedidora a sua contentorização.
Assim, porque se tem por relevante para a apreciação da causa e tendo em conta que nos termos do art.º 662º, n.º 1 do CPC, a Relação pode/deve corrigir, mesmo a título oficioso, patologias que afectem a decisão da matéria de facto, sem prejuízo, como é evidente, do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente (cf. art.º 640º do CPC), o que sucederá, sobremaneira, quando se limite a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, caso em que a alteração não depende da iniciativa da parte48, com base no documento n.º 2 junto com a petição inicial e conhecimentos de embarque traduzidos juntos com o requerimento da ré de 13 de Outubro de 202349, aditam-se os seguintes factos à enunciação da matéria de facto provada:
51. O embalamento da mercadoria foi efectuado pela fornecedora ..., nas suas instalações na origem, no Brasil, tendo sido esta empresa quem diligenciou pelo seu acondicionamento dentro das caixas de cartão, a paletização destas e pela sua colocação em contentor fechado e selado, posteriormente transportado para o porto de Santos.
52. A mercadoria adquirida pela autora à ... em Julho de 2020 foi acondicionada no contentor MSCU…492, de 40 pés, embarcado no porto de Santos, em 7 de Agosto de 2020 e desembarcado a 22 de Setembro de 2020, em Sines, tendo sido emitido o conhecimento de embarque n.º MEDUST…55, assinado pela agente da transportadora MSC, figurando como carregador a Comissario Ultramar de Despachos Internacionais Ltda. e consignatário a Abreu – Cargas e Transitários, Lda. tendo sido consignado, no espaço situado sob o número do título, o seguinte: “[…] Carregamento, contagem e selagem efectuadas pelo carregado. FLCFLC” e ainda, quanto à mercadoria: “Detalhes fornecidos pelo carregador – não confirmados pela transportadora – transportadora não é responsável (ver cláusula 14)”, figurando sob a designação número de contentor, selo e números: “MSCU…492 Contentor 40`Dry Van” e na descrição de embalagens e bens: “20 paletes de 1 contentor 40`Dry que diz conter50: 20 paletes de plástico contendo […]”.
53. A mercadoria adquirida pela autora à ... em Maio de 2021 foi acondicionada no contentor TEMU…256, de 20 pés, embarcado no porto de Santos, em 30 de Maio de 2021 e desembarcado no dia 8 de Julho de 2021, no porto de Sines, tendo sido emitido o conhecimento de embarque n.º MEDUST…280, assinado pela agente da transportadora MSC, figurando como carregador a Comissario Ultramar de Despachos Internacionais Ltda. e consignatário a Abreu – Cargas e Transitários, Lda., tendo sido consignado, no espaço situado sob o número do título, o seguinte: “[…] Carregamento, contagem e selagem efectuadas pelo carregado. FLCFLC” e ainda, quanto à mercadoria: “Detalhes fornecidos pelo carregador – não confirmados pela transportadora – transportadora não é responsável (ver cláusula 14)”, figurando sob a designação número de contentor, selo e números: “TEMU…256 Contentor 20`Dry Van” e na descrição de embalagens e bens: “10 paletes de 1 contentor 20`Dry que diz conter51: 10 paletes de plástico contendo […]”.
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Considerando as alterações introduzidas à matéria de facto e procedendo esta Relação à enunciação por ordem cronológica da sucessão dos acontecimentos, para uma melhor percepção dos actos praticados - considerando que na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz deve usar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que se considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção52 –, os factos provados a considerar são os seguintes:
1. A Autora tem como objecto social “Actividades de corte, lavagem, penteação, pintura, ondulação, desfrizagem, estética computorizada, extensão de unhas e cabelos, aplicação de madeixas e actividades similares do cabelo. Actividades de massagem facial, maquilhagem, manicura, pedicura, limpeza de pele, depilação e similares. Comércio a retalho de cosméticos (incluindo de origem natural) e outros produtos de higiene pessoal. Comércio de veículos automóveis ligeiros. Compra de bens mobiliários para revenda e revenda dos adquiridos para esse fim”.
2. A Autora comprou à sua fornecedora brasileira ..., conforme encomenda datada de 29/07/2020, 252 mil unidades de kits descartáveis de manicura e pedicura, tendo cada kit uma luva ou uma meia emoliente, embalados hermeticamente em embalagem plástica e uma lima e um palito, também embalados hermeticamente noutra embalagem em plástico, pelo valor de 28 324,80 € e na encomenda datada de 19/05/2021, 121 mil unidades e vinte desses mesmos kits, pelo valor de 16 987,51 €.
3. O embalamento da mercadoria foi efectuado pela fornecedora ..., nas suas instalações na origem, no Brasil, tendo sido esta empresa quem diligenciou pelo seu acondicionamento dentro das caixas de cartão, a paletização destas e pela sua colocação em contentor fechado e selado, posteriormente transportado para o porto de Santos.
4. O transporte da mercadoria das instalações da ... para o porto de Santos, no Brasil foi tratado por aquela empresa com um agente, a Comissário Ultramar de Despachos Internacionais Ltda.
5. Os contentores foram transportados, por via terrestre, pela Comissário Ultramar, do armazém da ... até ao porto de Santos.
6. A Autora acordou com o seu fornecedor ... que a expedição da mercadoria seria realizada de acordo com o Incoterm FOB.
7. A Ré ‘Abreu – Carga e Trânsitos, Lda.’ exerce a actividade de transitária.
8. A Autora pediu à Ré Abreu que desenvolvesse todo o processo de natureza logística e operacional com vista ao transporte e posterior armazenamento dos 252 mil kits de manicura e pedicura, do Brasil para Portugal.
9. Em 7 de Agosto de 2020 foi carregada a mercadoria no porto de Santos, com destino a Portugal, tendo sido o expedidor a Higibras Cosmética do Brasil, o destinatário a ora Autora, Greenhair, a transportadora a MSC, o despachante a Ré Abreu e o agente do despachante no Brasil, a Comissária Ultramar.
10. A mercadoria adquirida pela autora à ... em Julho de 2020 foi acondicionada no contentor MSCU…492, de 40 pés, embarcado no porto de Santos, em 7 de Agosto de 2020 e desembarcado a 22 de Setembro de 2020, em Sines, tendo sido emitido o conhecimento de embarque n.º MEDUST…255, assinado pela agente da transportadora MSC, figurando como carregador a Comissario Ultramar de Despachos Internacionais Ltda. e consignatário a Abreu – Cargas e Transitários, Lda. tendo sido consignado, no espaço situado sob o número do título, o seguinte: “[…] Carregamento, contagem e selagem efectuadas pelo carregado. FLCFLC” e ainda, quanto à mercadoria: “Detalhes fornecidos pelo carregador – não confirmados pela transportadora – transportadora não é responsável (ver cláusula 14)”, figurando sob a designação número de contentor, selo e números: “MSCU…492 Contentor 40`Dry Van” e na descrição de embalagens e bens: “20 paletes de 1 contentor 40`Dry que diz conter53: 20 paletes de plástico contendo […]”.
11. A intervenção da Ré Abreu apenas se iniciou com a colocação da carga no navio.
12. A agente Ultramar também colabora com a Ré Abreu, sendo um dos seus agentes.
13. A mercadoria foi recebida nos armazéns da Ré Abreu em 25/09/2020.
14. A Ré Abreu subcontratou um transportador terrestre – a empresa .... - para levar a mercadoria do cais de Sines para Santa Iria da Azóia, não tendo ali sido aposta qualquer anomalia da mercadoria.
15. A mercadoria chegou a 25/09/2020 a Santa Iria da Azóia.
16. Aquando da chegada do contentor MSCU…492, a Abreu comunicou à autora que este seria enviado durante o fim-de-semana subsequente ao dia 24 de Setembro de 2020 para a Bobadela e logo que possível seria informada a entrega no armazém, tendo posteriormente sido combinado com esta que o seu descarregamento ocorreria no dia 28 de Setembro de 2020.
17. Em 20/05/2021 uma palete, de 140 caixas, armazenada, foi enviada para Itália e foi detectada humidade em alguns kits.
18. Em 31/05/2021 foi enviada uma nova palete, de 140 caixas, tendo-se verificado também humidade em alguns kits.
19. Em 25 de Junho de 2021 as duas paletes retornaram devolvidas aos armazéns da Ré Abreu.
20. A mercadoria quando chegou a Itália estava em paletes envoltas numa película protectora preta e só após a retirada dessa película é que se viu o estado das caixas molhadas e o bolor dentro dos kits.
21. O cliente de Itália ainda conseguiu aproveitar cerca de 40 caixas e essa mercadoria foi paga.
22. Cada kit é comprado à Autora por 0,46 € e 0,48 € e vendido em Itália por 1,40 €.
23. A Ré Abreu efectuou uma proposta de contrato de armazenagem à Autora e esta aceitou.
24. A mercadoria esteve sempre nos armazéns da Abreu, em Santa Iria da Azóia, entre Setembro de 2020 e Maio de 2021.
25. A remessa da mercadoria que sai do armazém da Ré Abreu para os clientes da Autora (picking) é efectuada por indicação desta, a qual refere o número da palete que pretende que seja remetida.
26. O armazém da Abreu tem sempre aparelhos que medem a temperatura e humidade, fazendo regularmente medições.
27. A seguradora e o armador recusaram pagar indemnização pelos danos da mercadoria, devido ao tempo decorrido entre a recepção daquela e a data da participação.
28. A Autora é a única cliente em Portugal da ....
29. Estes kits de pedicura e manicura podem estar embalados por três anos.
30. O valor da mercadoria era de 28 324,80 €.
31. A Autora manifestou vontade de devolver as mercadorias ao seu fornecedor, mas a Ultramar referiu que o Brasil tinha regras muito rígidas quanto a isso.
32. A ... ficou de enviar mercadoria em substituição da avariada.
33. A mercadoria adquirida pela autora à ... em Maio de 2021 foi acondicionada no contentor TEMU…256, de 20 pés, embarcado no porto de Santos, em 30 de Maio de 2021 e desembarcado no dia 8 de Julho de 2021, no porto de Sines, tendo sido emitido o conhecimento de embarque n.º MEDUST…280, assinado pela agente da transportadora MSC, figurando como carregador a Comissario Ultramar de Despachos Internacionais Ltda. e consignatário a Abreu – Cargas e Transitários, Lda., tendo sido consignado, no espaço situado sob o número do título, o seguinte: “[…] Carregamento, contagem e selagem efectuadas pelo carregado. FLCFLC” e ainda, quanto à mercadoria: “Detalhes fornecidos pelo carregador – não confirmados pela transportadora – transportadora não é responsável (ver cláusula 14)”, figurando sob a designação número de contentor, selo e números: “TEMU14673256 Contentor 20`Dry Van” e na descrição de embalagens e bens: “10 paletes de 1 contentor 20`Dry que diz conter54: 10 paletes de plástico contendo […]”.
34. O segundo contentor proveniente da ... chegou a Santa Iria da Azóia em 13/07/2021.
35. O segundo contentor provindo da ... chegou a 13/07/2021 e a Autora no dia 14/07/2021 envia mail à Ré Abreu, na pessoa de TT, a informar que havia duas paletes com caixas molhadas e caixas amolgadas.
36. No segundo transporte efectuado houve alguma mercadoria, junto à porta do contentor, que se encontravam visualmente molhadas.
37. A mercadoria deste segundo contentor foi reembalada e distribuída.
38. A Autora substituiu as caixas de embalamento e pagou um valor que se situa entre de 2 338,00 € e 2 977,00 €.
39. A Seguradora também entendeu que, à semelhança do transporte anterior, o problema esteve no embalamento na origem e não procedeu ao pagamento da indemnização.
40. A Abreu não abre os contentores sem que a Autora esteja presente ou sem que esta os autorize previamente.
41. As peritagens efectuadas à mercadoria adquirida pela autora que chegou ao armazém da Abreu- Carga e Trânsitos, Lda. nos dias 25 de Setembro de 2020 e 13 de Julho de 2021, concluíram que a humidade e mofo existentes nas caixas de cartão do primeiro transporte e a humidade das caixas de cartão do segundo transporte, esta última evidenciada por gotículas de água entre o papel pardo e o filme plástico que envolvia as paletes, terá sido causada por condensação, decorrente das condições de humidade e calor ao momento do embalamento, no Brasil, afastando a hipótese de ter sido causada por água a partir do exterior do contentor.
42. Os kits de cosmética adquiridos pela autora à ... e enviados do porto de Santos, no Brasil, em 7 de Agosto de 2020, encontravam-se colocados no interior de bolsas de plástico transparente (lima e palito e luvas), por sua vez colocados numa embalagem de plástico mais forte, selada, sendo as unidades colocadas dentro de caixas de cartão, paletizadas, envolvidas por papel kraft e filmadas com plástico, tendo-se constatado que muitas dessas caixas de cartão apresentavam humidade e estavam enrugadas e as limas e palitos apresentavam sinais de bolor, mas não as respectivas embalagens de plástico.
43. Em Março de 2022 chegou outro contentor a Palmela provindo da ..., com transporte efectuado por terceiro, cuja carga apresentava o mesmo tipo de problema de condensação e cujas caixas não se encontravam junto à porta daquele.
44. A Ré aceitou proceder aos serviços de transporte a troco do pagamento da quantia de 2 953,41 € pelo 1º contentor (fls. 82v) e de 2 618,49 € pelo 2º contentor (fls. 83).
45. Pelos serviços de armazenamento, paletização e handling in, entre Setembro de 2020 e Julho de 2021, a Autora pagou à Ré o valor de 2 884,41 €.
46. A Autora pagou à Ré o valor de 402,50 € para o transporte da 1ª palete para Itália.
47. A Autora pagou à Ré o valor de 165,87 € para o transporte da 2ª palete para Itália.
48. A Autora pagou à Ré o valor de 325,95 € pela devolução das paletes de Itália para Portugal.
49. A Autora pagou à Ré o valor de 195,00 € para o transporte da 3ª palete para Itália.
50. A Autora pagou à Ré o valor de 3 382,50 € para o transporte aéreo de duas paletes para Itália.
51. Para reembalamento das caixas molhadas provenientes do segundo contentor a ‘Cartonarte’ apresentou um orçamento de 2 338,00 €.
52. Pelo transporte destas caixas a Ré Abreu apresentou um orçamento de 105,00 €.
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3.2.3. Da responsabilidade da ré Abreu – Carga e Trânsitos, Lda.
No que diz respeito à apreciação do mérito da causa, a apelante insurge-se contra o decidido pela 1ª instância invocando a presunção decorrente da previsão do art.º 3º, n.º 4 da Convenção de Bruxelas - Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos, assinada em Bruxelas a 25 de Agosto de 192455, que entende não ter sido afastada pela recorrida, sendo a esta que incumbia o ónus de demonstrar que os danos verificados na mercadoria não foram causados durante o transporte, considerando ainda que o Tribunal recorrido aplicou incorrectamente as regras de distribuição do ónus da prova ao fazer recair sobre a ela o ónus de demonstrar que os danos não resultavam de defeito da embalagem, quando o conhecimento de embarque sem qualquer registo inverte a presunção em desfavor do transportador.
A ré/recorrida sustenta nas suas contra-alegações que, tendo a mercadoria sido transportada em contentores selados, não tendo a ré ou a transportadora marítima tido qualquer intervenção na colocação da mercadoria dentro dos contentores e na sua selagem, tendo sido aposta a cláusula “said to contain” nos conhecimentos de embarque, o transportador não pode verificar o conteúdo do contentor, ignorando o estado em que a mercadoria ali se encontra, pelo que, nestes casos, a presunção do art.º 3º, n.º 4 da Convenção de Bruxelas não pode actuar, daí que a prova desse bom estado aquando da entrega do contentor caiba à autora, por ser facto constitutivo do seu direito, prova que a recorrente não efectuou.
O Tribunal recorrido concluiu que entre as partes foi celebrado um contrato de expedição, no qual a ré interveio como transitária, para além de um contrato de depósito, quanto ao armazenamento da mercadoria e que, tendo a venda sido submetida ao Incoterm FOB, o risco de perda ou danos na mercadoria se transferiu para o comprador ao momento em que a mercadoria transpôs a amurada do navio no porto de embarque, mas esse risco é referente a acontecimentos fortuitos, não abrangendo perda ou dano causado pelo vendedor devido, por exemplo, a embalamento inadequado ou vício pré-existente; mais considerou que a autora não produziu prova suficiente dos factos constitutivos do seu direito, isto é, que a mercadoria se encontrava em bom estado na origem.
A recorrente não colocou em crise a qualificação jurídica do negócio celebrado entre ela e a ré ... quanto ao transporte da mercadoria, ou seja, que se está perante um contrato de expedição, sendo certo que, tal como consta do ponto 8. dos factos provados, foi acertado entre ambas que a ré desenvolveria todo o processo logístico e operacional com vista ao transporte da mercadoria do Brasil para Portugal, transporte que foi efectuado pela transportadora MSC – cf. pontos 10. e 33.
Subscreve-se, no essencial, o entendimento do Tribunal recorrido no que concerne à qualificação jurídica do contrato celebrado entre a autora e a ré – que a apelante tão-pouco colocou em crise -, tendo presente, designadamente, a definição de actividade transitária, tal como consta do n.º 2 do art.º 1º do DL 255/99, de 7 de Julho, que regula o acesso e exercício da actividade transitária:
“A actividade transitária consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção:
a) Gestão dos fluxos de bens ou mercadorias;
b) Mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte;
c) Execução dos trâmites ou formalidades legalmente exigidos, inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal.”
A fronteira entre o contrato de transporte e o contrato de expedição ou contrato de trânsito nem sempre é de fácil destrinça, sendo seguro que o segundo envolve a concretização das operações de transporte, funcionando o transitário como um intermediário entre o expedidor e o transportador, que, além disso, se assume como prestador de serviços, cada vez mais numerosos e complexos.56
O contrato de expedição, em sentido estrito, configura um mandato, que pode ser com ou sem representação, pelo que esta não é um elemento típico da figura; não existindo representação, tratar-se-á de uma situação regulada pelo regime geral do mandato – cf. art.ºs 1180º a 1184º do Código Civil.
Como refere Francisco Costeira da Rocha, no contrato de trânsito, o transitário assume a obrigação de celebrar um contrato de transporte, com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, pelo que o fundamental é o mandato, não a ausência de poderes representativos.57
E o Professor Januário Gomes esclarece: “Naquilo que constitui um desenvolvimento e uma concretização do disposto no n.º 1. o artigo 13/2 permite ao transitário celebrar contratos com terceiros em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria, bem como receber em nome próprio ou por conta do cliente, as mercadorias que lhe são entregues pelo transportador e actuar como gestor de negócios.”58
Transcorrida a matéria de facto provada é evidente que a ré se obrigou a promover o transporte marítimo dos contentores contendo as mercadorias mencionadas, a partir do porto de Santos, no Brasil, com destino a Portugal, tendo o contrato de transporte sido contratado junto da transportadora MSC.
No entanto, nada se apurou quanto às condições estabelecidas para a vigência da relação contratual entre a autora e a ré, pelo que a segunda, ao abrigo do mandato que corporiza o contrato de expedição ou trânsito, se obrigou, nos termos gerais, a efectuar o transporte solicitado, por conta da autora, mas sem poderes de representação (ou pelo menos, sem que tenha sido demonstrada a conferência de tais poderes pela autora), o que significa que o contrato de transporte posteriormente celebrado com a MSC produziu, inicialmente, os seus efeitos entre esta e a ré.59
Apesar das especificidades decorrentes de o transitário ter evoluído das suas funções clássicas de intermediação entre o expedidor ou carregador e o transportador para poder, ele próprio, assumir as funções de transportador contratual (actual carrier), o que releva é a sua importância enquanto auxiliar do expedidor ou carregador, ora assumindo funções típicas de intermediário, quer enquanto representante do expedidor ou carregador, celebrando o contrato de transporte de que passa a ser parte, quer enquanto mandatário sem representação do expedidor.
Para além da responsabilidade do transitário perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações (situações gerais de incumprimento lato sensu, incluindo a mora, cumprimento defeituoso ou incumprimento definitivo), decorre do disposto na segunda parte do n.º 1 do art.º 15º do DL 255/99, que aquele é ainda responsável pelas obrigações contraídas por terceiros com quem haja contratado, sem prejuízo do direito de regresso.
Trata-se de uma situação paralela à responsabilidade del credere do comissário (art.º 269º do Código Comercial) e do agente comercial (art.º 10º do DL 178/86, de 3 de Julho), com a diferença que, ao contrário destas, que possuem uma base convencional, o transitário tem uma responsabilidade del credere legal, que está intrinsecamente associada às situações em que celebra contratos de transporte, ou seja, situações de contrato de expedição ou trânsito, em sentido estrito.
“O transitário surge, assim, como um garante legal do cumprimento das obrigações por parte do terceiro, parecendo que a garantia em causa funciona em termos de acessoriedade: não faria sentido que o transitário garante respondesse em termos mais gravosos do que o próprio terceiro - conclusão esta que, de resto, surge confirmada pelo disposto no artigo 15/2. Trata-se, portanto, de uma situação de responsabilidade de tipo fidejussório, de origem legal, funcionando a responsabilidade do transitário nos moldes da fiança comercial.”60
Tendo a ré, transitária, ficado encarregada de organizar a deslocação das mercadorias do Brasil para Portugal e, através do seu agente, celebrado o contrato de transporte via marítima com a MSC, responderá pelo incumprimento ou pelo cumprimento defeituoso do transportador a quem foi confiada a execução material do transporte, aplicando-se-lhe os limites estabelecidos, por lei ou convenção (cf. art.º 15º, n.º 2 do DL 255/99).
Assim, para aferir da responsabilidade da ré, enquanto transitária, pelos danos constatados nas mercadorias transportadas, importa determinar se o transportador deve responder por tais danos.
O contrato de transporte pode ser definido como o contrato mediante o qual uma das partes (o transportador) se compromete/obriga perante outrem (o carregador/expedidor) a fazer deslocar fisicamente de um lugar para outro coisas ou mercadorias em contrapartida de uma retribuição pecuniária.
A Convenção de Bruxelas – também conhecida como as Regras de Haia - constitui ainda actualmente o normativo mais relevante em sede de contrato de transporte marítimo de mercadorias. Sofreu duas alterações: uma pelo Protocolo de 23 de Fevereiro de 1968 (Protocolo de Visby) e outra pelo Protocolo de 21 de Dezembro de 1979 (Protocolo SDR - Special Drawing Right), a que Portugal não aderiu e que, como tal, não podem ser directamente aplicáveis pelos tribunais portugueses.
Atento o cariz de internacionalidade do Direito Marítimo há que ter sempre presente o regime internacional (o que implica, por exemplo, averiguar a convenção que seja aplicável a um determinado instituto) e o regime interno (no caso, o regime interno sobre o transporte marítimo de mercadorias, aprovado pelo DL 352/86, de 21 de Outubro).
No caso de uma matéria que é regulada pelos dois regimes, há que apurar, em primeiro lugar, se a Convenção é aplicável ou não na situação concreta, para o que se impõe interpretá-la e verificar o seu perímetro de aplicação. Sendo caso de aplicação da Convenção (regime internacional) não se aplica o regime interno.
Como esclarece o professor Luís Lima Pinheiro61, “quando a situação caia dentro do âmbito de aplicação de uma Convenção internacional de unificação do Direito material, o seu regime é definido pelas normas convencionais não sendo necessário, em princípio, recorrer ao Direito de Conflitos geral para determinar a lei aplicável.”
Em conformidade com a interpretação maioritariamente adoptada relativamente ao art.º 10º da Convenção de Bruxelas, mesmo tendo em conta a sua redacção original - “As disposições da presente Convenção aplicar-se-ão a todo o conhecimento criado num dos Estados contratantes” -, única directamente aplicável a Portugal, mas também sob influência da alteração introduzida nesta norma pelo Protocolo de Visby62, o âmbito espacial de aplicação da Convenção implica:
i. a internacionalidade do transporte63; e
ii. a emissão do conhecimento de embarque64 num Estado contratante.
O DL 37 748, de 1 de Fevereiro de 1950 incorporou no Direito interno os art.ºs 1º a 8º da CB, traduzindo-se numa “extensão” do seu regime aos transportes internos.65
Posteriormente, o DL 352/86, de 21 de Outubro instituiu o regime do “contrato de transporte marítimo de mercadorias por mar”, revogando uma parte do livro III do Código Comercial.
A introdução deste regime legal específico nacional sobre o transporte marítimo de mercadorias exige, assim, que se efectue a delimitação do campo de aplicação da Convenção de Bruxelas face ao Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.
Dado que ambos os transportes aqui em discussão se reportam a deslocação de mercadoria do Brasil para Portugal, com emissão de conhecimento de embarque no Brasil, não sobram dúvidas que se está perante um transporte marítimo internacional (transporte entre portos de Estados diferentes).
A Convenção de Bruxelas não é aqui directamente aplicável porque o Brasil não é parte desta Convenção.
No entanto, a cláusula 5.1 (b) do conhecimento de embarque estipula que este estará sujeito às Regras de Haia, pelo que será esta a lei aplicável – cf. ainda art.º 3º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Junho de 2008 sobre lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), que determina que o contrato se rege pela lei escolhida pelas partes.
No geral, o contrato de transporte marítimo é um contrato consensual66, sobressaindo o princípio da liberdade de forma. No entanto, está, quase sempre, ligado a um documento de transporte, sendo que na Convenção de Bruxelas o regime está estruturado em função do conhecimento de carga (Bill of Lading).
O conhecimento de carga ou bill of lading é central neste tipo de contrato, pois uma vez emitido e entregue pelo transportador ao carregador constitui um título representativo da mercadoria nele descrita - podendo ser nominativo, à ordem e ao portador - e é transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito – cf. art.º 1, b) da Convenção de Bruxelas e, a nível interno, os art.ºs 3.° e 11.° do DL n.º 352/86, de 21 de Outubro.
O conhecimento de embarque ou de carga desempenha uma tríplice função: serve de recibo de entrega ao transportador de uma determinada mercadoria nele descrita; prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e respectivas condições; e representa a mercadoria nele descrita, sendo negociável e transmissível, de acordo com o regime geral dos títulos de crédito.
A emissão do conhecimento de carga constitui uma importante obrigação do transportador. Com efeito, depois de receber as mercadorias e a pedido do carregador, o transportador marítimo deverá, nos termos da Convenção de Bruxelas (pessoalmente ou através do capitão ou do destinatário no porto em que este se encontre) expedir e entregar àquele um conhecimento de carga que descreva a mercadoria e o seu estado. Ademais, depois de receber e carregar as mercadorias, o transportador deverá, a pedido do carregador, entregar a este um conhecimento contendo, entre outros elementos (cf. art.º 3º, n.º 3):
a) as marcas necessárias à identificação das mercadorias, “tais quais foram indicadas por escrito pelo carregador antes de começar o embarque dessas mercadorias, contanto que essas marcas estejam impressas ou apostas claramente, de qualquer outra maneira, sobre as mercadorias não embaladas ou sobre as caixas ou emba­lagens que as contêm, de tal sorte que se conservem legíveis até ao fim da viagem”;
b) o número de volumes, ou de objectos, ou a quantidade, ou o peso, segundo os casos, “tais como foram indicados por escrito do carregador”;
c) o estado e a acondicionamento aparentes das mercadorias.
Quanto ao estado e acondicionamento aparentes das mercadorias, esta menção refere-se apenas à condição aparente verificável mediante um exame razoável.
A execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga desdobra-se em três operações: (i) a recepção da mercadoria por parte do transportador, (ii) a sua deslocação (ou transporte em sentido estrito) e (iii) a sua entrega ao destinatário no local de destino.67
O transportador apenas será responsável pelos danos que surjam dentro do arco temporal do transporte abrangido por estas distintas fases e por actos que lhe sejam imputáveis e logo na primeira fase – a da recepção das mercadorias - poderá inscrever no documento de transporte certas menções relativas às características das mercadorias a transportar, bem como ao estado e condição aparentes em que se encontram, ou seja, trata-se da aposição de reservas.
O documento de transporte – o conhecimento de embarque - prova a existência/celebração do contrato e respectivas condições contratuais; a recepção das mercadorias por parte do transportador; e ainda as condições e as características das mercadorias no momento em que o transportador as recepcionou.
A função de recibo de entrega das mercadorias visa atestar a recepção das mercadorias por parte do transportador, mas também as características e o estado/condição em que foram recebidas.
As reservas do transportador – à partida, portanto – “são ressalvas formuladas pelo transportador quanto à caracterização da mercadoria (nomeadamente sobre a natureza, quantidade e qualidade da mercadoria, o número de volumes ou respetivas marcas de identificação), seja por constatar avarias ou faltas que não provocou, seja por não ser possível a verificação, contagem, pesagem ou medição. As reservas do transportador (à partida) podem ainda ser classificadas em (i) reservas específicas e reservas genéricas; e (ii) reservas sobre marcas, número, quantidade ou peso das mercadorias e reservas sobre o estado e condição aparente das mercadorias.”68
Nas reservas específicas o transportador identifica especificamente as desconformidades existentes face às declarações do carregador/expedidor, detectadas mediante o seu exame ou verificação/inspecção das mercadorias.
Diversamente, as reservas genéricas não identificam desconformidades em concreto. São apostas, “precisamente, em virtude de o transportador não poder inspeccionar a mercadoria, apondo expressões como “disse essere”, “said to contain”,
quantidade desconhecida,peso desconhecido,marcas
e volumes desconhecidos”, ou similares. São, no fundo, “cláusulas de desconhecimento”.”69
Este tipo de reservas (genéricas) está, as mais das vezes, conexionado com o fenómeno da contentorização, desde logo porque tais reservas (tal como todas as demais) devem ter uma sustentação ou uma motivação fundada, sendo comummente utilizadas quando o transportador não pode verificar o conteúdo do contentor selado.70
Catarina Baptista Gomes refere que “a doutrina e a jurisprudência têm admitido, face à CB 1924, a aposição de reservas genéricas ao abrigo do citado artigo 3.º, n.º 3, mediante a aposição de cláusulas tais como (recorde-se) “said to contain”, “weight measure quality quantity condition content and value unknown”, ou a referência à expressão “FCL” (“full container load”) − indicando que
o contentor foi entregue ao transportador já selado e que o transportador não está por isso ciente do seu conteúdo. A sua validade […] estará dependente da existência ou não do dever de verificação do transportador in concreto e da aferição da razoabilidade de meios para o efeito.”71
De acordo com o regime da Convenção de Bruxelas, o conteúdo do conhecimento relativamente às características e estado das mercadorias constitui presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo transportador das mercadorias tal como nele descritas. Vale o princípio geral da presunção de veracidade do conhecimento, salvo prova em contrário (presunção iuris tantum).
Como dá conta Catarina Baptista Gomes, “as reservas aos conhecimentos de carga servem para “amenizar” os seus efeitos probatórios. Funcionam como uma advertência aos interessados no tráfego comercial de que a mercadoria descrita no conhecimento não está isenta de defeitos (v.g., peso, quantidade, danos) e que quem a adquirir poderá confrontar-se com um carregamento de valor inferior ao que se pretendeu evitar. […] caracteriza, por isso, o conhecimento de carga como um meio de prova qualificado, em virtude do qual interessará ao transportador “destruir” o seu valor probatório com a finalidade de “excluir” o mais possível a sua responsabilidade.”72
A admissibilidade das reservas pressupõe que sejam claras, precisas e susceptíveis de motivação, não podendo o transportador socorrer-se de expressões ambíguas que não permitam descortinar o real alcance das desconformidades ou estado e condição. E devem ter um fundamento bastante (susceptíveis de motivação), como é o caso característico da impossibilidade de meios de verificação.
Não basta uma mera reserva para inverter o ónus da prova. Do conhecimento de embarque deve constar o seu motivo ou fundamento, sendo que este será evidente quando, sem necessidade de referência expressa, o facto comprove a alegação (fundamentação in re ipsa), como sucede no caso de contentor FCL (full container load).
Com efeito, a validade de uma reserva depende da existência ou não do dever de verificação in concreto, sendo que este apenas existe na medida da verificabilidade das características da mercadoria, em termos de razoabilidade.
No que às reservas genéricas diz respeito, estas serão admissíveis ou não com recurso ao critério da existência ou não, em concreto, do dever de verificação: se não existir o dever de verificação em concreto, o transportador encontra-se legitimado quanto à aposição de reservas genéricas; se existir o dever de verificação em concreto, o transportador não poderá apor tais reservas. Por norma, quando estão em causa contentores selados, dificilmente poderá aceitar-se a existência de uma verificabilidade in re ipsa do estado aparente da mercadoria e sua embalagem.
Se o transportador recebeu um contentor selado e arrumado pelo expedidor/carregador dificilmente será verificável o estado da mercadoria.
Quanto aos contentores FCL (full container load), que são contentores arrumados pelo expedidor/carregador e entregues ao transportador já fechados e selados, em princípio, serão admissíveis reservas genéricas, por existir motivação, embora, por regra, o transportador possa verificar o peso. Tendo o transportador aposto reservas genéricas (“said to contain”), não funcionará, à partida, a presunção. O valor probatório dos documentos de transporte nestas situações em que são apostas reservas genéricas é, assim, bastante limitado.
As reservas não constituem causa de exclusão da responsabilidade do transportador. Antes afectam a função probatória do documento, tendo o alcance de inverter o ónus da prova, ou seja, anula-se o valor probatório do documento relativamente às características da mercadoria nele descritas, sendo certo que, em caso de reservas sobre o estado e condição aparentes da mercadoria, deixa também de se verificar a presunção de que foi recebida em bom estado e condição aparentes pelo transportador.
Com a aposição de reservas, o portador do título fica advertido que toda a matéria objecto de reservas é apenas imputável ao carregador, pois que aquela retira eficácia probatória ao conhecimento. Em caso de litígio, terá de ser o portador do conhecimento a provar a desconformidade entre a mercadoria entregue ao transportador e a mercadoria recebida no destino.73
Como decorre do atrás expendido, a ré, enquanto empresa transitária, responde perante a autora, sua cliente, não só pelo incumprimento das suas obrigações, enquanto tal, mas também pelas obrigações contraídas pelo terceiro com quem outorgou o contrato de transporte, sem prejuízo do direito de regresso sobre ele. Ou seja, responde perante a autora como se fosse ela própria a transportadora que tivesse incorrido em incumprimento.
A responsabilidade do transportador, como se viu, deve ser aferida à luz da Convenção de Bruxelas, que regula o transporte marítimo de mercadorias, uma vez que esta é condição para a responsabilidade do transitário, atento o disposto no art.º 15.º n.º 1 do diploma referido.
Assim, há que determinar a responsabilidade do transportador para se saber qual a medida da responsabilidade do transitário – cf. neste sentido, acórdão do Tribuna da Relação do Porto de 23-01-2025, 4421/22.0T8PRT.P1.
Em face do que atrás se expendeu, importa considerar os seguintes factos relevantes para o apuramento da responsabilidade da transportadora pelos prejuízos verificados na mercadoria:
• O embalamento da mercadoria foi efectuado pela ..., nas suas instalações, no Brasil, sendo quem diligenciou pelo seu acondicionamento dentro das caixas de cartão, a paletização destas e pela sua colocação em contentor fechado e selado, posteriormente transportado para o porto de Santos;
• A mercadoria adquirida pela autora à ... em Julho de 2020 foi acondicionada no contentor MSCU…492, de 40 pés, tendo sido emitido o conhecimento de embarque n.º MEDUST…255, tendo sido consignado, no espaço situado sob o número do título, o seguinte: “[…] Carregamento, contagem e selagem efectuadas pelo carregado. FLCFLC” e ainda, quanto à mercadoria: “Detalhes fornecidos pelo carregador – não confirmados pela transportadora – transportadora não é responsável (ver cláusula 14)”, figurando sob a designação número de contentor, selo e números: “MSCU…492 Contentor 40`Dry Van” e na descrição de embalagens e bens: “20 paletes de 1 contentor 40`Dry que diz conter: 20 paletes de plástico contendo […]”;
• A mercadoria adquirida pela autora à ... em Maio de 2021 foi acondicionada no contentor TEMU14673256, de 20 pés, tendo sido emitido o conhecimento de embarque n.º MEDUS…280, tendo sido consignado, no espaço situado sob o número do título, o seguinte: “[…] Carregamento, contagem e selagem efectuadas pelo carregado. FLCFLC” e ainda, quanto à mercadoria: “Detalhes fornecidos pelo carregador – não confirmados pela transportadora – transportadora não é responsável (ver cláusula 14)”, figurando sob a designação número de contentor, selo e números: “TEMU…256 Contentor 20`Dry Van” e na descrição de embalagens e bens: “10 paletes de 1 contentor 20`Dry que diz conter: 10 paletes de plástico contendo […]”;
• As peritagens efectuadas à mercadoria adquirida pela autora que chegou ao armazém da Abreu- Carga e Trânsitos, Lda. nos dias 25 de Setembro de 2020 e 13 de Julho de 2021, concluíram que a humidade e mofo existentes nas caixas de cartão do primeiro transporte e a humidade das caixas de cartão do segundo transporte, esta última evidenciada por gotículas de água entre o papel pardo e o filme plástico que envolvia as paletes, terá sido causada por condensação, decorrente das condições de humidade e calor ao momento do embalamento, no Brasil, afastando a hipótese de ter sido causada por água a partir do exterior do contentor;
• Os kits de cosmética adquiridos pela autora à ... e enviados do porto de Santos, no Brasil, em 7 de Agosto de 2020, encontravam-se colocados no interior de bolsas de plástico transparente (lima e palito e luvas), por sua vez colocados numa embalagem de plástico mais forte, selada, sendo as unidades colocadas dentro de caixas de cartão, paletizadas, envolvidas por papel kraft e filmadas com plástico, tendo-se constatado que muitas dessas caixas de cartão apresentavam humidade e estavam enrugadas e as limas e palitos apresentavam sinais de bolor, mas não as respectivas embalagens de plástico;
• Em Março de 2022 chegou outro contentor a Palmela provindo da ..., com transporte efectuado por terceiro, cuja carga apresentava o mesmo tipo de problema de condensação e cujas caixas não se encontravam junto à porta daquele.
Com base nestes factos é possível afirmar o seguinte:
i. o processo de embalamento da mercadoria adquirida à ... foi da responsabilidade desta;
ii. a ... foi responsável pelo seu acondicionamento dentro das caixas de cartão, paletização e pela colocação da mercadoria em contentor fechado e selado, posteriormente transportado para o porto de Santos;
iii. em ambos os transportes a mercadoria foi entregue à transportadora em contentor fechado FCL (full container load), o que, conforme se extrai do acima explanado, impedia a verificação do seu conteúdo pela transportadora, pois que, conforme se apurou, os contentores foram arrumados pelo expedidor/carregador e entregues ao transportador já fechados e selados;
iv. na descrição das embalagens e bens a transportadora, referindo que os dados inscritos no conhecimento de embarque foram fornecidos pelo carregador, consignou a cláusula “said to contain”, o que constitui uma reserva genérica que, por existir motivo – não é possível a verificação da mercadoria – afasta o valor probatório do conhecimento de embarque quanto às características da mercadoria nele descritas e, bem assim, afasta a presunção de que foi recebida em bom estado e condição aparentes pelo transportador (cf. art.º 3º, n.º 4º da Convenção de Bruxelas);
v. afastada tal presunção, cabia à autora provar a desconformidade entre a mercadoria tal como foi entregue à transportadora e a mercadoria que foi recebida no destino, o que esta não logrou fazer;
vi. além disso, estando afastada como possível causa da humidade e bolor verificados a existência de água a partir do exterior do contentor, ganha prevalência a hipótese de tal humidade ter sido causada por condensação decorrente das condições de humidade e calor ao momento do embalamento, o que sempre conduziria à exclusão da responsabilidade do transportador por insuficiência de embalagem (cf. art.º 4º, n.º 2º, n) da Convenção de Bruxelas).
Como tal, ao contrário do propugnado pela recorrente, incumbia-lhe, de facto, provar que a mercadoria se encontrava em perfeitas condições – no próprio produto e/ou na embalagem – ao momento do início do transporte, tendo chegado ao destino em desconformidade com aquilo que apresentava na origem, o que não logrou demonstrar.
Não estando demonstrada a responsabilidade da transportadora, afastada resulta também a responsabilidade da ré transitária, razão pela qual a pretensão trazida a juízo pela autora está necessariamente votada ao insucesso.
Improcede, pois, a presente apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A apelante decai integralmente quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
*
Lisboa, 1 de Julho de 202574
Micaela Sousa
Ana Mónica Mendonça Pavão
José Capacete
_______________________________________________________
2. Pessoa colectiva número ....
3. Pessoa colectiva número ....
4. Ref. Elect. 149792.
5. Ref. Elect. 150890 e 504738.
6. Ref. Elect. 150979.
7. Adiante designada pela sigla MSC.
8. Ref. Elect. 152711.
9. Ref. Elect. 157102.
10. Ref. Elect. 537150.
11. Ref. Elect. 160036.
12. Ref. Elect. 160188.
13. Ref. Elect. 553656.
14. Ref. Elect. 588842.
15. Ref. Elect. 173881.
16. Suprimiram-se as alíneas que se mostram irrelevantes para a apreciação do objecto do recurso.
17. Ref. Elect. 174567.
18. Adiante designado pela sigla CPC.
19. Cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135.
20. Ref. Elect. 604958.
21. Cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pp. 713 e 737.
22. Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP, em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
23. Cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 201, nota 345.
24. Cf. Documento nº 2 junto com a contestação da MSC (Portugal) – Agente de Navegação, S. A., com a Ref. Elect. 153711, com tradução junta aos autos pela ré ... em 13 de Outubro de 2023, Ref. Elect. 163671.
25. Ref. Elect. 166552.
26. Ref. Elect. 568738.
27. Ref. Elect. 569064.
28. Cf. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág. 201.
29. Cf. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, 3ª edição, 1981, pág. 351.
30. O Professor Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 71 alude aos factos necessários à procedência da acção, que qualifica de factos principais e que abrangem os factos essenciais e os factos complementares, sendo que os primeiros permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção ou na excepção e os segundos são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.
31. Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, pág. 727.
32. Crê-se que será a declaração junta pela autora no seu requerimento de 27 de Novembro de 2023, com a Ref. Elect. 164670.
33. Ref. Elect. 163671.
34. A testemunha AA, funcionário da ré Abreu desde 2005, referiu precisamente que a mercadoria foi transportada em contentor marítimo, embalada em caixas de cartão paletizadas, com o Incoterm FOB – cf. minuto 7.55 e seguintes do seu depoimento.
35. Significa, literalmente, termos (“TERMS”) comerciais (“CO”) internacionais (“IN”).
36. Um esquema com o significado das siglas pode ser consultado na página da Câmara Internacional de Comércio – Delegação em Portugal em https://www.icc-portugal.com/images/WallChart_Incoterms2020.pdf.
37. Ref. Elect. 155921.
38. Documento n.º 2, Ref. Elect. 160036.
39. Ref. Elect. 149887.
40. Cf. Op. cit., pág. 503.
41. Embora a testemunha HH, que também estava presente nesse dia, tenha afirmado o contrário, referindo que as caixas molhadas no exterior estavam nas paletes junto à entrada do contentor, o que, porém, não foi corroborado por outras testemunhas, tendo CCC confirmado a participação da reclamação relativa ao segundo contentor, sem mencionar se a humidade era interior ou exterior.
42. Ref. Elect. 564957 e 564990.
43. Ref. Elect. 149889.
44. Cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 48-54; Professor Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 70 - “[…] os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da excepção e cuja falta determina a inviabilidade da acção ou da excepção; - os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos; - finalmente, os factos complementares ou concretizadores são aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da acção ou da excepção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção.”
45. Cf. Op. cit., pág. 71.
46. Cf. Código de Processo Civil Anotado, op. cit., pp. 28- 29; em sentido diverso, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1ª, 3ª edição, pp. 17-18, onde se reconhece a possibilidade de qualquer uma das partes manifestar-se no sentido de integrar o facto na matéria da causa, não sendo de dispensar uma atitude positiva das partes nesse sentido, atento o princípio do dispositivo que emana do n.º 1 do art. 5º do CPC.
47. Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipes Pires de Sousa, op. cit., pág. 719.
48. Cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pp. 333-336; Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pág. 468.
49. Ref. Elect. 163671.
50. Said to contain no original.
51. Said to contain no original.
52. Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit. pág. 718.
53. Said to contain no original.
54. Said to contain no original.
55. Publicada no Diário de Governo I Série n.º. 128 de 2/6/1932; adiante designada pela expressão Convenção de Bruxelas.
56. Cf. Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias – Contributo para o Estudo da Posição Jurídica do Destinatário no Contrato de Transporte de Mercadorias, pág. 77.
57. Cf. op. cit., pág. 82.
58. Cf. Sobre a Vinculação Del Credere, in Estudos de Direito das garantias, Volume II, pág. 228.
59. Cf. Duarte Lynce Faria, O Transporte Marítimo de Mercadorias, pág. 70, in Revista do CEJ 2º Semestre
2018 Número 2 – “[…] “expedidor” deverá ser entendido como a parte que contrata com um “transportador” (que, acrescentamos nós, pode ser um transitário a contratar em nome próprio) e esta obriga-se a transportar as mercadorias, independentemente de efectuar ele próprio o transporte”.
60. Cf. Januário Gomes, op. cit., pág. 231.
61. Temas de Direito Marítimo – I. Direito Aplicável ao Contrato de Transporte Marítimo de Mercadoria.
62. Segundo a alteração introduzida nesta norma pelo Protocolo de Visby, a CB é aplicável a conhecimento de embarque relativo a transporte de mercadorias entre portos de dois diferentes Estados se este foi emitido num Estado contratante, ou se a mercadoria parte de um Estado contratante, ou se o BL contém cláusula a regular o contrato pelas regras da CB, independentemente da nacionalidade do navio, do transportador, do expedidor, do consignatário ou outra pessoa interessada.
63. Veja-se, no mesmo sentido, Mário Raposo, Transporte Marítimo de Mercadorias: Hoje e Amanhã (Comunicação destinada às 3.ªs Jornadas de Direito Marítimo (Faculdade de Direito de Lisboa).
64. Título de transporte, pelo qual o capitão reconhece que foi posta a bordo uma certa mercadoria, destinada a certa pessoa, em certo lugar; documento contratual que define as obrigações e os direitos de cada uma das partes; com três funções: prova do contrato; prova da recepção das mercadorias, título representativo dos direitos sobre as mercadorias.
65. I.e., estabeleceu uma regulação de fonte interna que recebeu este conteúdo normativo (sendo que já então a doutrina anterior à Constituição de 1933 admitia que vigorava o sistema da incorporação automática global do Direito Internacional).
66. Porém, no contrato de transporte marítimo interno de mercadorias (diferentemente do internacional) exige-se a forma escrita (cf. artigo 3.º do DL n.º 352/86, de 21 de Outubro).
67. Catarina Baptista Gomes, As Reservas do Transportador no Contrato de Transporte de Mercadorias, Temas de Direito dos Transportes V, Coordenação de M. Januário da Costa Gomes, Novembro 2020, pág. 53.
68. Cf. Catarina Baptista Gomes, op. cit., pág. 59.
69. Idem, pág. 61.
70. Cf. Francisco Costeira da Rocha, op. cit., p. 131.
71. Cf. Op. cit., pág. 75.
72. Cf. Op. cit., pág. 77.
73. Francisco Costeira da Rocha, op. cit., pp. 130-131.
74. Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.