Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INSTRUÇÃO
FACTOS
Sumário
Sumário: I - O nº 1 do art. 286º do Cód. Proc. Penal não exige que o arguido, requerente da instrução, questione a totalidade dos factos por que vem acusado para que o respetivo requerimento de abertura de instrução seja legalmente admissível. Nem se antevê razão para uma interpretação restritiva de tal norma.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
Relatório
No âmbito da Instrução com o nº 645/23.0JAPDL, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, e na sequência de despacho liminar proferido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, veio o arguido AA interpor o presente recurso pedindo que se declare aberta a instrução, para que seja (ou não) comprovada a acusação e serem praticados os actos de instrução requeridos.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem: 1. O Ministério Público acusou o arguido/recorrente da prática de dois crimes de abuso sexual, dois crimes de pornografia de menores, um crime de fotografias ilícitas, previstos e punidos pelos artigos 171º nº 3 al. b), artigo 176º nº 1 al. b) e artigo 177º nº 7 e 8 e 199º nº 2 al. b) do Código Penal, respetivamente. 2. O recorrente requereu a abertura de instrução alegando que não lhe podia ser imputado quatro dos cinco crimes de que vem acusado. 3. O tribunal recorrido rejeitou o requerimento de abertura de instrução por legalmente inadmissível. 4. O recorrente considera errada a decisão de rejeitar o requerimento de abertura de instrução por legalmente inadmissível, impugnando expressamente a decisão acerca da matéria de direito. 5. O sentido que o tribunal recorrido deu às normas do nº 1 do artigo 286º e 3 do artigo 287º do CPP, foi que, o processo necessariamente prosseguiria para julgamento já que o recorrente referiu que apenas lhe podia ser indiciariamente imputado o crime de abuso sexual quanto a uma das ofendidas e, nessa medida, a instrução seria inútil face à sua finalidade, ou seja, a de evitar a submissão da causa a julgamento. 6. O recorrente defende que o objetivo da fase da instrução prende-se com a confirmação do acerto da decisão tomada pelo Ministério Público no sentido de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, sendo diferente ser pronunciado por cinco crimes ou apenas por um crime. 7. O recorrente não aceita a acusação dos crimes que lhe são imputados, pelo menos quanto à ofendida BB, pois tem plena consciência que não praticou qualquer ilícito contra esta. 8. Salvo o devido respeito por outro entendimento, o tribunal recorrido não permitiu que o recorrente contraditasse a decisão do Ministério Público de o acusar pelos cinco crimes e obter a confirmação judicial dessa decisão. 9. Não permitiu também ao recorrente fazer uso dos direitos que lhe assistem, como sendo o de ser ouvido pelo juiz de instrução e o de intervir na instrução (artigo 61º nº 1 alíneas b) e g). 10. O que se pretendia com o pedido de abertura de instrução era tão somente averiguar da decisão de acusar o recorrente quanto a estes cinco crimes, tendo o recorrente cumprido com requisitos formais do requerimento de abertura de instrução conforme estipulado no nº 2 do artigo 287º do CPP. 11. O recorrente poderia ser pronunciado quanto a um crime e não pronunciado quanto aos outros daí que não se entenda e nem se concebe a decisão de rejeição do RAI. 12. Foram violadas as normas constantes dos artigos 61º nº 1 alíneas b) e g), 286º nº 1, 287º nº 3 e 290º nº 1, todos do Código de Processo Penal.
*
A Digna Procuradora da República junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e apresentando as seguintes conclusões: I - O arguido AA interpôs recurso do despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução (adiante RAI), porquanto, entendeu o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, uma vez que não requereu a abertura de instrução quanto a todos os crimes imputados pelo Ministério Público na acusação deduzida, pelo que sempre teriam os autos de ser remetidos para julgamento. II- O recorrente nas suas conclusões refere que (transcrição a itálico nossa): “8. Salvo o devido respeito por outro entendimento, o tribunal recorrido não permitiu que o recorrente contraditasse a decisão do Ministério Público de o acusar pelos cinco crimes e obter comprovação judicial desse decisão. 9… 10. O que se pretendia com o pedido de abertura de instrução era tão somente averiguar da decisão de acusar o recorrente quanto a estes cinco crimes, tendo o recorrente cumprido com requisitos formais do requerimento de abertura de instrução conforme o estipulado no nº2 do artigo 287ºdo CPP11. O recorrente poderia ser pronunciado quanto a um crime e não pronunciado quanto aos outros daí que não se entenda e nem se concebe a decisão de rejeição do RAI.” III- Todavia, entendemos que a decisão do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal não merece qualquer reparo. IV- O Ministério Publico imputou a AA a prática (artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal), como autor material (artigo 26.º do Código Penal), na forma consumada, e em concurso efectivo (artigo 30.º do Código Penal): - 2 (dois) crimes de abuso sexual, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, al. b) do Código Penal; - 2 (dois) crimes de crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, al. b), e 177.º, n.º 7 e 8, do Código Penal. - 1 (um) crime de fotografias ilícitas, previsto e punido pelo artigo 199.º, n.º 2, al. b), do Código Penal nos termos dos factos narrados naquela peça processual, cujos aqui se dão como integralmente reproduzidos. V- O recorrente requereu a abertura da instrução quanto a um crime de abuso sexual, os dois crimes de pornografia de menores e o crime de fotografias ilícitas de que vem acusado. VI- Quanto a um dos crimes de abuso sexual sempre teriam os autos de seguir para julgamento. VII- Na fase de instrução está em causa a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório demonstrativo da existência de crime e do seu autor e pela formulação do juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do arguido suspeito. VIII- Assim, no requerimento de abertura de instrução, terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacerto do juízo indiciário que foi consequente na decisão de deduzir acusação, i.e., as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (…), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (…), de harmonia com o disposto no art. 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. IX- O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal. X- O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do nº 2 do artigo 287º com o nº 4 do artigo 288º ambos do CPP. XI- Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido não serve as finalidades da instrução. XII- Assim, e pelos fundamentos expostos, entende-se que o requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido é legalmente inadmissível – artigo 287º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código de Processo Penal. XIII- Ora, quando o requerimento é apresentado pelo arguido - e por força das referidas finalidades legais da instrução deverá ele apresentar um conjunto de razões, encurtando agora argumentos e exposições, de onde resulte, se verificadas e atendidas, a sua não submissão a julgamento, ou seja, e em uma frase só: na procedência das razões apresentadas não haverá, pura e simplesmente, julgamento. XIV- Mas em conformidade com o RAI do arguido, haverá sempre submissão a julgamento por esta acusação, pois que sem a necessária e prévia reação quanto ao crime de abuso sexual fica vedada qualquer intervenção (oficiosa) do Juiz de Instrução. Com efeito, ao não ter sido oferecida qualquer discordância vinculada sobre a factualidade vertida na acusação que configura o crime supra referido, está vedado ao Juiz, em consequência da vinculação temática operada pelo conteúdo do requerimento de abertura da instrução, cf. artigos 287.º, n.º 1, al. a) e 2 e 288.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, ir averiguar, sponte sua, da existência de quaisquer questões (relevantes) conexas com os pressupostos de facto e de direito dessa acusação com a qual, sublinhe-se, o arguido se conformou. XV- De facto, mantem-se, em coerência com a economia intrínseca do requerimento de abertura de instrução, a acusação pela prática do crime de abuso sexual pois só o arguido poderia reagir também quanto a este e não o fez. XVI -Vem aqui inteiramente a propósito o Acórdão da Relação de Évora datado de 08/05/2012 e 14/07/2015, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. «Como começámos por referir, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de (no que agora nos interessa) deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Parece-nos, deste modo, que a conceção legal da instrução repousa numa perspetiva processual utilitarista, ou seja, trata-se de uma fase processual que se justifica quando existe a possibilidade de extinguir o processo, evitando o julgamento; caso contrário, ou seja, quando o objeto da discussão não é suscetível de produzir esse resultado, apenas se refletindo em qualquer modo específico do seu prosseguimento, a mesma não é admissível, dada a sua inutilidade e eventual redundância face ao julgamento subsequente». E mais adiante no aresto exarou-se: «(…) Só que o critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível. XVII - É o que se passa nos presentes autos: mesmo que a decisão instrutória fosse inteiramente favorável ao arguido ora recorrente, sempre a causa (o processo) transitar(á)ia para julgamento». Pelo exposto, o conteúdo do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido nunca terá por efeito a sua não submissão a julgamento, porquanto a sua discordância foi “limitada”, pois deixou incólume o imputado crime de abuso sexual. XVIII- A ausência de instrução não limita os direitos de defesa do arguido, que os pode exercer em pleno na audiência de julgamento, fase fulcral do processo penal, em que mantém todas as garantias e direitos que lhe estão assegurados. Pelo que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido deve ser rejeitado, por inadmissível legalmente, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não tendo a decisão do Meritíssimo Juiz de instrução violado as normas constantes do disposto no artigo 61º/1alinea b)e g), 286ºnº1, 287ºnº3 e 290ºnº1 todos do Código de Processo Penal, mantendo-se a decisão recorrida.
*
Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta, emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância ao recurso interposto pelo recorrente e remetendo, na íntegra, para a fundamentação inserta nessa peça processual por uma questão de economia processual.
Efectuado o exame preliminar, cumpre agora apreciar e decidir.
* * *
Fundamentação
A decisão recorrida é a seguinte: Vem o arguido AA, em tempo e tendo legitimidade e interesse em agir para tal, requerer a abertura de instrução relativamente à acusação pública deduzida pelo Ministério Público, de 31.01.2025, que lhe imputa a prática, em autoria material e em concurso real, de dois crimes de abuso sexual, p. e p. pelo art. 171º/ 3/ b), de dois crimes de crime de pornografia de menores, p. e p. pelos arts. 176º/ 1/ b) e 177º/ 7 e 8, e de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º/ 2/ b), todos do Código Penal. Subjaz ao requerimento para a abertura da instrução que, do universo dos cinco mencionados ilícitos criminais, «apenas pode ser indiciariamente imputado ao arguido o crime previsto no artigo 171º e somente em relação à ofendida CC» (independentemente da questão da divergência de declarações entre as menores relativo ao período das conversações mantidas entre o arguido e a menor CC), tendo o arguido sindicado o desacerto da decisão do Ministério Público relativamente a todos os demais quatro crimes. Ora, considerando que a instrução visa a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação (…) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” [art. 286º/ 1 do Código de Processo Penal (CPP)], a circunstância de o arguido não ter requerido a abertura da instrução quanto a todos os imputados crimes, importa que, independentemente do desfecho desta fase processual, os autos seguiriam, inevitavelmente, para aquela fase de julgamento, ainda que tivesse apenas por referência o crime que, reconhecidamente, considera que indiciariamente lhe pode ser imputado. Significa isto, pois, que a presente instrução não é apta à finalidade legal, qual seja, evitar a submissão da causa a julgamento. Dito de outra forma: haverá sempre a submissão a julgamento pelo crime excluído da sindicância do RAI. Neste figurino, a instrução não é legalmente admissível por não se enquadrar dentro da previsão legal da finalidade desta fase facultativa do processo (art. 287º/ 3 in fine do CPP), isto é, pela «(…) circunstância de os termos do requerimento do arguido serem em si mesmos insuficientes para obstarem a introdução do feito em julgamento (…)». Na jurisprudência, vide, a este respeito, de entre muitos, o Ac. TRE de 06.12.2016, o Ac. TRE de 08.10.2019 e (por maioria de razão, embora o aresto verse apenas sobre a abertura da instrução para a discussão de qualificação jurídica que não obsta à não pronúncia) o Ac. TRC de 30.06.2021. Em face do exposto, rejeito o RAI por motivo de inadmissibilidade legal. (…)
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em causa está a admissibilidade legal, ou não, da instrução quando o arguido, requerente, não questione a totalidade dos factos por que vem acusado.
*
A instrução, de acordo com o preceituado no nº 1 do art. 286º do Cód. Proc. Penal, “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
A instrução pode ser requerida pelo arguido (relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação) ou pelo assistente (se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação) – cfr. o nº 1 do art. 287º do mesmo Código.
Estabelece o nº 2 do citado art. 287º que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, (…)” e, nos termos do nº 3 do mesmo normativo, “o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.
O despacho recorrido indeferiu liminarmente o requerimento de abertura de instrução, apresentado pelo arguido, com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução, porquanto entendeu que:
- considerando que a instrução visa a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação (…) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, a circunstância de o arguido não ter requerido a abertura da instrução quanto a todos os crimes que lhe são imputados na acusação pública sempre determinaria que os autos seguissem para a fase de julgamento, ao menos pelo crime excluído da sindicância do RAI.
Conclui, por isso, que a requerida instrução não é apta à finalidade legal: evitar a submissão da causa a julgamento, entendida como o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento.
Cremos, contudo, que a ratio da fase instrutória não é saber se os autos devem prosseguir para a fase de julgamento, mas a apreciação, por um Juiz, do mérito da acusação ou do arquivamento proferido pelo Ministério Público (após a fase investigatória que caracteriza o inquérito) relativamente aos factos investigados. Repare-se, para o que agora importa, que nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 287º do Cód. Proc. Penal, a instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factospelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.
A remissão expressa que a norma faz a factos, tem sido fundamento para considerar inadmissível um requerimento de abertura de instrução em que o arguido apenas pretenda, por exemplo, que lhe seja aplicada a suspensão provisória do processo ou apenas pretenda discutir a liquidação do património incongruente.
Mas já não se intui, da redacção do preceito, que a instrução tenha que ser, necessariamente, relativa a todos os factos pelos quais tenha sido deduzida acusação, sob pena de ser legalmente inadmissível – como defende o despacho recorrido.
Afirma Pedro Soares de Albergaria (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, p. 1199 e 1200) que “a possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução configura um direito de defesa do mesmo sustentado na CRP (art. 32º) em termos de poder sujeitar a comprovação por um terceiro imparcial (o JI) a acusação que contra ele foi deduzida. A mais de ter por pressuposto essencial a dedução de uma acusação (do MP ou do assistente) e de por força dirigir-se ao escrutínio dela, a factualidade de o arguido requerer a abertura da instrução está expressamente limitada à hipótese de, pela procedência da pretensão, o feito não vir a ser introduzido em juízo (art. 286º) – do que decorre que o requerimento de instrução que não seja autossuficiente neste desiderato não será admissível (…) é permitido ao arguido requerer a abertura da instrução para com ela obter a rejeição apenas de parte da acusação – mas parece então que essa possibilidade há de limitar-se às situações em que, ocorrendo conexão objectiva de vários ilícitos, se pretenda apenas a rejeição por um ou alguns deles”.
Ora esta referência à rejeição por um ou alguns deles apenas pode reportar-se a uma rejeição por um ou alguns desses ilícitos, pelo que a conexão objectiva a que se alude tem de ser necessariamente entendida como conexão entre ilícitos objectivamente autonomizáveis.
Tal como Pedro Daniel dos Anjos Frias (“Com o Sol e a Peneira: um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”, in Revista Julgar, 19, Jan.-Abr. 2013, p. 124 e 125), entendemos que “quando o requerimento apresentado pelo arguido não contenha um conjunto de razões vinculadas de discordância com raízes no inquérito e no que aí ocorreu fica irremediavelmente impossibilitada a concretização das finalidades legais da instrução. Tal sucederá (…) quando o requerimento se esgota na negação pura e simples dos factos vertidos na acusação (contestação simples) seja quando se resume a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada), seja quando se limite à alegação de factualidade exógena ou exterior que apenas por meio de requerimento entra no procedimento em curso. Em qualquer destas situações, tal requerimento não é apto à realização das finalidades da instrução”.
Coisa diversa é a imposição de que o arguido tenha que requerer a abertura de instrução sobre o bloco da acusação, nomeadamente naqueles casos em que a decisão de acusar seja cindível em episódios perfeitamente autonomizáveis.
De facto, não é exigível que estando em causa uma multiplicidade de factos e de crimes, o arguido esteja impedido de requerer a abertura de instrução quanto a um ou alguns deles, só porque, por exemplo, houve uma apensação de inquéritos, ainda que tal lhe fosse permitido se o Ministério Público tivesse optado por fazer a investigação autonomamente em processos distintos e com diversas acusações.
A tese vertida nos autos, a ser acolhida pela jurisprudência, é susceptível a levar a que um arguido venha a impugnar toda uma acusação, ainda que intimamente se conforme com parte dela, apenas porque pretende que seja apreciada uma parte determinada.
Ou seja, sendo verdade que a teleologia da instrução é evitar a submissão do caso a julgamento, esse desiderato também se alcança nos casos em que o arguido vê reduzido o objeto do julgamento por via de uma decisão de não pronúncia quanto a uma parte dos crimes pelos quais foi acusado.
Não se defende, com esta interpretação, que o arguido tenha sempre direito a não ser submetido a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. Como supra referimos, casos há em que a instrução, mesmo que formalmente admissível, não o é materialmente.
Mas já não se pode conceder que se diga que uma instrução não é apta à finalidade legal de evitar a submissão da causa a julgamento quando o RAI apresentado pelo arguido não sindique todos os crimes constantes da acusação. O estipulado no nº 1 do art. 286º do Cód. Proc. Penal não exige que o arguido, requerente da instrução, questione a totalidade dos factos por que vem acusado para que o respetivo requerimento de abertura de instrução seja legalmente admissível. Nem se antevê razão para uma interpretação restritiva de tal norma.
Pelo que a tese acolhida no despacho recorrido não pode vingar.
* * *
Decisão
Pelo exposto acordam em conceder provimento ao recurso e determinam o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Lisboa, 10.07.2025
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Rui Coelho
Rui Poças