INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário

Sumário:
I. A fase de instrução não é uma antecipação do julgamento, mas apenas um instrumento de controlo judicial da decisão com que a investigação é encerrada;
II. O requerimento para a abertura de instrução não se confunde com a contestação, nem a instrução não se traduz num simulacro de julgamento ou na sua antecipação;
III. Caso o arguido, no requerimento para abertura de instrução que apresente, não descreva, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação, ou não precise os factos que pretenda provar com os meios de prova que indique, impedindo o juiz de instrução de proceder ao escrutínio da decisão de deduzir acusação, com vista à submissão, ou não, da causa a julgamento, que é a finalidade da instrução (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.), a decisão terá que ser a de rejeição daquele, por inadmissibilidade legal da instrução (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.);
IV. Nesse caso, não se impõe prévio convite ao aperfeiçoamento daquele requerimento, sem que daí resulte qualquer violação dos direitos de defesa do arguido.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório:
I.1. Da decisão recorrida:
No âmbito dos autos n.º 133/18.7JAFUN, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, em 03-02-2025, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal da instrução, dado que aquele não indica os factos que se espera provar através da inquirição das testemunhas que requereu como ato de instrução a realizar.
I.2. Do recurso:
Inconformado com a decisão, o arguido AA dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
I. O despacho recorrido violou o disposto no artigo 287.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.
II. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido cumpria, no essencial, os requisitos estabelecidos no artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
III. Ainda que se entendesse que o requerimento de abertura de instrução padecia de alguma insuficiência, tal não constitui fundamento para a sua rejeição, mas sim para a notificação do requerente para o aperfeiçoar.
IV. Ao rejeitar liminarmente o requerimento de abertura de instrução, sem dar oportunidade ao assistente de o aperfeiçoar, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório e o direito de acesso à justiça.
Terminou pedindo que o despacho recorrido fosse revogado e, em consequência, concedido ao arguido prazo para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, nos termos do art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P.
O referido recurso foi admitido por despacho de 10-03-2025.
I.3. Das respostas:
Ao dito recurso respondeu a Digna Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluindo da seguinte forma:
1. A fase de instrução destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (cfr. artigo 286º, nº1, do Código de Processo Penal).
2. Estabelece o nº 2 do citado art. 287º que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º”.
3. O requerimento para a abertura da instrução define o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
4. A estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução é uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal, prevenido no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
5. No caso dos autos, da análise do RAI, parece-nos que o mesmo não se encontra perfeitamente delimitado, visto que não existe uma indicação concreta dos factos a provar.
6. O acórdão n.º 7/2005 do STJ fixou jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
7. Assim, e ao abrigo do princípio da igualdade de armas, também não há lugar a convite ao aperfeiçoamento do RAI apresentado pelo arguido.
8. "(...) o convite dirigido às partes, pelo juiz, para a correção de peças processuais, implica uma cognoscibilidade prévia, ainda que perfunctória, da solução do pleito, interfere nas funções atribuídas às partes e seus mandatários e pode criar falsas convicções quanto aos caminhos a seguir por forma a obter uma decisão favorável da causa". Ac. da Relação Lisboa nº 10685/2001, rel. Dr. Trigo Mesquita.
9. No caso de o requerimento de abertura de instrução não cumprir os requisitos fixados no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, deverá ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no nº3 do artigo 287º do CPP.
10. Pelo exposto, a decisão da Mma. Juiz não merece censura.
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
I.4. Do parecer:
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela improcedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância.
I.5. Da tramitação subsequente:
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (C.P.P.), nada foi acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.3).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
II.2. Das questões a decidir:
A esta luz, são as seguintes as questões a conhecer, pela ordem da prevalência processual sucessiva que revestem:
A. Se é fundada a rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal, uma vez que não continha as razões de discordância relativamente à acusação e, no que concerne à inquirição das testemunhas que requereu como atos de instrução a realizar, era omisso quanto aos factos que, através deles, se esperava provar (cfr. II.4.A.); e
B. Se o recorrente deveria ter sido convidado previamente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução (cfr. II.4.B.).
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Do despacho de acusação e pedido de indemnização civil (cfr. ref.ªs 55551499, 55551680, 55551724, 55551737, 55551803, 55551860, 55551886, 55551896, 55551907 de 20-06-2024, 55570808, 55570825 de 25-06-2024 e 5865695 de 15-07-2024 do processo principal):
No âmbito do inquérito n.º 133/18.7JAFUN, que correu termos no Departamento de Investigação e Ação Penal – 1.ª Secção do Funchal, em 20-06-2024 o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e perante tribunal coletivo, contra AA, imputando-lhe a prática, em coautoria, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 1 crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 202.º, als. a) e b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), do C.P., de 1 crime de falsificação e contrafação de documento, p. e p. pelos arts. 255.º, al. a), 256.º, n.º 1, als. a), d) e f), do C.P. e de 1 crime de falsidade informática, p. e p. pelos arts. 2.º, als. a) e b), e 3.º, n.ºs 1 e 3, da Lei do Cibercrime.
O Ministério Público, em representação do Estado Português (Direção-Geral do Tesouro e das Finanças) deduziu pedido de indemnização civil pedindo que os demandados, entre os quais AA, fossem condenados a pagar ao Estado Português (Direção-Geral do Tesouro e das Finanças) a quantia de EUR 2 508 149,08 acrescida de juros moratórios, desde a data da prática dos factos e até efetivo e integral pagamento.
O referido arguido foi notificado do despacho de acusação e pedido de indemnização civil deduzido, mediante via postal simples, por meio de carta que se mostra depositada em 27-06-2024, e a sua ilustre defensora foi notificada do mesmo, mediante via postal registada, por meio de carta registada enviada em 25-06-2024.
II.3.B. Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente (cfr. ref.ª 5913965 de 05-09-2024 do processo principal):
Inconformado com tal despacho de acusação, em 03-09-2025, o arguido AA apresentou requerimento de abertura de instrução com o seguinte teor:
AA, arguido nos autos referidos à margem, discordando integralmente da acusação particular deduzida pelo Ministério Público, vem, ao abrigo do disposto no art. 287º/1, a) do CPP, Requerer a Abertura da Instrução, nos termos e com os seguintes fundamentos:

O arguido vem acusado da prática, em coautoria na forma consumada, dos crimes de burla qualificada, pelos arts. 217º/1, 218º/1 e 2, a) e b) do C.P.; falsificação e contrafação de documento, pelos arts. 256º/1, a), d), e) e f) do C.P.; e de falsidade informática, pelos arts. 3º/1 e 3 da Lei do Cibercrime.

Em tal acusação, o Ministério Público formulou um pedido de indemnização no valor de € 2.508.149,08, acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal.

Ora, não se compreende a proveniência de tal valor, visto que ao somar todas as quantias em causa, chegamos ao valor de € 1.685.644,60 e não de € 2.508.149,08.

Estando assim a pedir € 822.504,48 a mais do que o valor correto.

Relativamente a todo o esquema por detrás da burla, o arguido nega que tenha praticado os factos referidos da acusação.

Acontece que, o arguido BB, garantiu ao arguido e requerente que as regras da mobilidade aérea entre a Ilha da Madeira e Portugal continental teriam sido alteradas, sendo possível, deste modo, pagar apenas a tarifa de € 86 antes da viagem.

Assim, e mesmo sob alguma reserva inicial, o arguido convencido de que tal estaria correto e começou a pagar antecipadamente apenas o valor de € 86.

Porém, em nenhum momento o arguido e requerente entregou ao arguido BB, qualquer valor de subsídio de mobilidade depois de o receber junto dos CTT Correios de Portugal.

Algumas das viagens que o arguido necessitou fazer, marcou-as com a ajuda do irmão, também arguido, CC, que trabalha na ... tendo direito a viagens aéras tipo I.D.Z e não "SPDH" como é referido na acusação.
10º
Ora, as viagens aéreas tipo I.D.Z., podem também ser marcadas apenas para os familiares diretos e em 1º grau dos funcionários, ou seja, pais e irmãos.
11º
Nestas circunstâncias, o arguido entregava ao irmão o valor das taxas aeroportuárias e outras que se mostrassem devidas, que, por sua vez, os entregava à sua entidade patronal, à ....
12º
Era o irmão do arguido que solicitava e pedia à ... a emissão dos bilhetes, entregando-os diretamente em mão ao arguido.
13º
Sendo impossível ao arguido BB aceder ao sistema informático da ... para obter bilhetes eletrónicos qualificados como "SPDH" – erradamente qualificados pelo Ministério Público.
14º
O arguido BB convenceu o arguido e requerente de que as viagens tipo I.D.Z., devido a alterações anteriores, teriam direito a receber um valor de subsídio de mobilidade.
15º
Justificando saber dessa informação no facto do seu pai também ter sido funcionário da ....
16º
Ao notar alguma desconfiança por parte do arguido e requerente, o arguido BB referiu ao arguido e requerente que se quisesse continuar a perder e não receber o que tinha direito, o problema é seu e quem fica a ganhar seria o Estado.
17º
Posteriormente, o arguido BB voltou a insistir com o arguido e requerente acerca deste assunto, voltando a reforçar que o arguido e requerente estava a perder subsídios de mobilidade aéria a que tinha direito.
18º
Após muita insistência, o arguido acabou por aceitar e acreditar em tais factos ditos pelo arguido BB.
19º
Estando sempre convencido de que tais práticas eram legais e lícitas.
20º
O arguido, contrariamente ao acusado pelo Ministério Público, nunca viajou propositada e intencionalmente em classes de voos e em locais de origem e destino não elegíveis.
21º
O arguido admite que viajou diversas vezes em primeira classe e/ou executiva, porém tais viagens ocorreram após situações de overbooking.
22º
Nestas situações, é permitido aos passageiros viajar em classe executiva pagando a tarifa económica.
23º
Tal aconteceu recentemente, dia ... de ... de 2024, em que o arguido viajou de Lisboa para o Funchal na classe executiva depois de inicialmente ter o bilhete da viagem na classe económica. - Doc 1.
26º
Nesta situação, foi oferecido ao arguido, à porta do avião, o lugar na classe executiva, por motivos de conveniência da ... e/ou overbooking.
27º
O arguido e requerente nunca recebeu cartões de embarque ou qualquer outro documento relacionado com as suas viagens por parte do arguido BB.
28º
Tal como nunca recebeu de qualquer outro coarguido.
29º
Os pagamentos das viagens marcadas com o arguido BB eram feitos, maioritariamente, pessoalmente e em numerário, sem prejuízo de também tê-lo feito por transferência bancária quando tal fosse necessário.
30º
Devido a um processo de execução do arguido BB, alguns dos pagamentos feitos por transferência bancária tiveram de ser remetidos para a conta do arguido DD que trabalhava com o primeiro. - Doc. 2.
Da Nulidade por insuficiência de inquérito
31º
O arguido, na data de ... de ... de 2019, requereu uma consulta aos presentes autos para assegurar a sua defesa. - requerimento esse presente no processo.
32º
Acontece que, o Ministério Público até à presente data, nada respondeu ao arguido.
33º
O arguido, posteriormente, requereu ao Ministério Público a nulidade do seu interrogatório junto da Polícia Judiciária, com a Srª Inspetora EE, que lhe negou o direito ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade, direito esse referido no art. 61º/1, alínea c) do C.P.P. - requerimento esse presente no processo.
34º
Após pedir confrontação das provas e factos da acusação, a Srª Inspetora respondeu-lhe que como não presta declarações e/ou se não prestar declarações, não tenho que mostrar-lhe e/ou confrontá-lo com documentos e prova documental que temos ali. Sou, e estou, somente obrigada a fazer uma súmula dos factos indiciários que temos contra si.
35º
Violando, também, o disposto no art. 61º/1, alínea g) do C.P.P., pois negou ao arguido a diligência de mostrar as provas e meios de prova ao arguido que lhe requereu verbalmente.
36º
Assim, estamos perante uma nulidade por insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados os atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar- se essenciais para a descoberta da verdade, nos termos do art. 120º/2, alínea d) do C.P.P.
37º
O arguido quis tomar conhecimento não só dos factos, como também das provas substanciadoras dos factos criminais que lhe eram imputados.
38º
Perante estas violações dos direitos do arguido, o Ministério Público não se pronunciou.
39º
Não se pronunciou nem notificou o arguido da pronúncia - se é que houve - nem se pronunciou sobre o pedido do arguido de devolução ao Ministério Público e/ou à Direção-Geral do Tesouro e das Finanças de qualquer valor que tenha sido recebido ilegalmente.
40º
O arguido quer e deseja, sem embargo de tudo o que foi supra explicado, proceder à restituição imediata do valor de € 9.723,71, que admite ter recebido.
Da errada qualificação jurídica dos factos, a título de burla qualificada imputada ao arguido
41º
O Ministério Público imputa ao arguido o crime de burla qualificada com referência às alíneas a) e b) do art. 218º do C.P.
42º
Porém, ao arguido não pode ser imputada a pena de dois a oito anos por não estarmos perante um prejuízo patrimonial de valor consideravelmente elevado, ou seja, com valor superior a € 20.400 - estando aqui em causa apenas o avlor de € 9.723,71.
43º
Sendo também incorreto afirmar que o arguido faz da burla o seu modo de vida.
44º
O arguido tem a profissão de Advogado e tem a inscrição em vigor, vivendo da sua profissão.
45º
Pelo exposto, o arguido não praticou os crimes de que vem acusado.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer a V. Exª seja declarada: a abertura de instrução e, consequentemente, proferido despacho de arquivamento do mesmo por não ter cometido qualquer um dos crimes que lhe são imputados, declarando-se, também, a sua nulidade.
Testemunhas:
1. FF - ... .... ....
2. GG; ..., ....
3. HH - ...
4. II - ...
5. JJ. - ...
6. KK - ...
7. LL - ... ....
8. MM - ...
9. NN - .... ...
10. OO - ... ....
11. PP - ...
Primeiro Requerimento: a coberto do disposto no art. 340º do C.P.P. ex vi art. 432º do C.P.C. se digne a notificar a T..., para informar, atento o alegado neste articulado, se as viagens realizadas em classe executiva eram e foram de pagamento tarifado e de venda ao público, ou ao invés, foram up grades ou transferências a coberto do comandante do voo ou por conveniência da empresa ..., assim como informar se os bilhetes tipo SPDH, no dizer do Ministério Público, erradamente, mas sim os IDZ, eram e são transmissíveis e comunicáveis aos membros da família e/ou agregado familiar. (Artigo 292º/ 1 C.P.P.)
Segundo Requerimento: a coberto do disposto do art. 340º C.P.P. ex vi art. 432º C.P.P. se digne a notificar os ..., correios de Portugal S.A., para informar os autos, se é possível, no âmbito do sistema informático vigente e que preside ao pagamento do atual subsídio social de mobilidade, introduzir um destino nacional para viagem aérea, que não esteja informaticamente pré determinado. (Art. 292º/1 C.P.P.)
Terceiro Requerimento: a coberto do disposto no art. 3410º/1 CPP ex vi art. 432º CPC, notificar a Direção Geral do Tesouro e Finanças, para informar e comunicar aos presentes autos, tendo em vista a descoberta da verdade material, e por referência, ao ora arguido, titular do cartão de cidadão nº ..., válido até ...-...-2029, NIF ..., quanto e/ou qual o real valor é que pagou ao ora arguido, a título de subsídio de mobilidade, através do CTT, Correios SA, por conta e referência aos 51 levantamentos referidos nos autos, e no referido período temporal, pois muitos desses valores foram pagos pelo arguido a título de taxas, acrescidamente aos €86, pagos ao arguido BB, isto tendo em vista apurar o exato valor pago e recebido pelo arguido, descontando as taxas pois essas eram pagas diretamente à ..., como supra se alegou. (Art. 292º/2 CPP).
Quarto Requerimento: a coberto do disposto no art. 340ª/1 CPP ex vi art. 432º CPC, notificar, tambem e ainda, a ..., para informar se as viagens de avião feitas pelo arguido, nomeadamente as 51 referidas e identificadas nos autos, foram feitas com reservas, códigos de reserva, bilhetes e cartão de embarque, etc., feitos diretamente e presencialmente pelo arguido junto da ... e seus balcões de check-in ou se foram feitos por interposta pessoa, nomeadamente através do arguido BB ou outrém. (Art. 292º/1 CPP)
Quinto Requerimento: notificar a ... e a ... e a ..., a coberto dos arts. 340/1 CPP e 432º CPC, para informarem e comunicarem aos autos o número de voos feitos entre Funchal-Lisboa-Funchal e Funchal-Porto-Funchal, que o arguido e impetrante deste requerimento realizou, a bordo dos seus aviões, nos últimos cinco anos, indicando-se o número de passageiro da ... (...) e o da ... (...), para efeitos de melhor procura e identificação das viagens. (Art. 292º/1 CPP).
Sexto Requerimento: ante o disposto no art. 292º/2 CPP, roga-se a V. Exª se digne inquirir e interrogar o arguido, sobre toda a matéria ora invocada, pois, somente de uma forma unificada e incindível, se poderá exercer e garantir a defesa do mesmo, o que se requer, também, para todas as testemunhas supra oferecidas e identificadas, pois, somente de forma incindível e não compartimentada se poderá entender na globalidade o ocorrido e vertido no presente RAI.
Sétimo Requerimento: notificar o Ministério Público para indicar N.I.B. e/ou forma de pagamento e devolução para a quantia de € 9.723,71, identificada na fls 3670, f) da acusação pública e, ainda, atento do disposto no art. 307º/2, in fine, do CPP, o que se requer e suplica também.
Oitavo Requerimento: roga-se a V. Exª se digne, ante o disposto no art. 292º/1 C.P.P. ex vi art. 432º CPC, a notificar a ..., SA e a ... , para informar os autos se, por conta dos 51 levantamentos, foram feitos pagamentos pela empresa do arguido e/ou por este próprio e/ou outrém às referidas companhias aéreas e, caso a resposta seja positiva, que valores e quantos montantes de € 86 foram pagos, sob pena de não terem sido feitos e concretizados pelo arguido BB e/ou sua representada, o arguido lhe intentar e apresentar uma queixa crime por burla e abuso de confiança o que se antolha e começa a vislumbrar e a lucubrar.
Junta: 3 documentos.
II.3.C. Da decisão recorrida (cfr. ref.ª 56585327 de 03-02-2025 do processo principal):
Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, em 03-02-2025 foi proferida a seguinte decisão:
Requerimento de fls. 3863 a 3900:
Ainda dentro do prazo legal para a sua interposição, apresentou o arguido AA segundo RAI, desta vez subscrito pela sua Ilustre Defensora.
No nosso entender, deve este segundo RAI ser admitido a análise pois não conhecemos, nesta sede, qualquer regime de preclusão decorrente da apresentação do referido primeiro (e irregular) RAI.
*
Neste RAI o arguido vem requerer que seja “proferido despacho de arquivamento do mesmo por não ter cometido qualquer um dos crimes que lhe são imputados, declarando-se, também, a sua nulidade”.
Arrola 11 testemunhas, faz 8 requerimentos probatórios e junta 3 documentos.
*
A instrução não é nem um julgamento antecipado e nem uma investigação ao retardador, mas sim uma fase processual autónoma (e facultativa) lógica e teleologicamente orientada e constitucionalmente amparada – no mencionado sentido da instrução como “mera” comprovação da decisão do Ministério Público e/ou do assistente, vai expressa a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente sufragada (artigo 32.º, nº 5, CRP). Essa estrutura postula, por sua vez, um princípio acusatório que implica uma clara distinção entre quem acusa e quem julga. Por isso que a instrução não é uma fase de investigação autónoma nem um julgamento antecipado, mas tem um fim mais modesto – aquele de comprovar ou não a decisão do Ministério Público e/ou do assistente.
Com efeito, essa fase de discussão tem o seu âmbito limitado pela lei devendo, para tanto, atender ao objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança. Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do Ministério Público de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do Ministério Público de existência de indícios suficientes.” (aut. Cit., in Comentário do CPP, 2ª ed. Actualizada, pág. 750).
Por seu turno como decorre do disposto no Artigo 287.º do Código de Processo Penal:
Requerimento para a abertura da instrução
1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Nos casos em que é requerida pelo arguido, a fase da instrução corresponde a uma garantia processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação; entre as garantias constitucionais de defesa em processo criminal conta-se, assim, «a de não sujeitar o arguido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que tenha praticado o crime» (Acórdão do TC n.º 691/1998).
A referida e supra transcrita norma estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação. A esta exigência acrescerá, apenas caso o requerente o pretenda, a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz promova, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, espera provar, exigências que aderem forçosamente à própria natureza da fase de instrução, cosidas com a definição do respectivo objecto.
Daí que lhe seja exigido que enuncie as razões que o opõem à decisão de deduzir acusação e para além disso, também lhe exigido que se pretende refutar os indícios que determinaram a produção de uma acusação contra si, através da produção de prova que não considerada na fase de inquérito ou que não foi adequadamente produzida, o ónus de especificação dos actos instrutórios a praticar (requerimentos probatórios e prova testemunhal) e da finalidade a que todos eles se destinam.
Efectivamente sem o cumprimento destes requisitos o objecto da instrução não ficaria definido, sendo certo que esta fase se destina exclusivamente à comprovação judicial do acerto da decisão de deduzir acusação.
Aqui chegados, resta determinar qual a consequência da omissão dos requisitos no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
Tais requisitos não correspondem, a qualquer formalidade mais ou menos útil, antes consubstanciam o objecto da pronúncia exigida ao juiz de instrução criminal e não podem ter outra consequência que não seja a. imediata rejeição da instrução requerida pelo arguido.
Sendo eles ou algum deles omisso, há lugar a convite ao aperfeiçoamento do RAI?
Desde já diremos que entendemos que não.
Na verdade, a possibilidade de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução traduzir-se-ia na concessão de um novo prazo para a prática do acto, sendo certo que os prazos processuais decorrem da natureza do próprio processo, não se afigurando que o prazo fixado na lei para a apresentação do requerimento de abertura de instrução seja desrazoável.
Dai que o Ac do TC nº 46/2019 já tenha decidido que não há, qualquer razão para supor que o alargamento desse prazo, pela via travessa da possibilidade de aperfeiçoamento de um requerimento inepto seja uma exigência constitucional. Acresce que a própria decisão que aprecia a observância das exigências impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, e que rejeita o requerimento de abertura da instrução, é passível de recurso ordinário, o que dá ao arguido toda a garantia de defesa contra uma decisão eventualmente injusta.
Mais se prenunciou ainda este aresto no sentido de que tendo em conta a impossibilidade de aperfeiçoamento do requerimento, é a rejeição definitiva do pedido de abertura de instrução e, em função disso, a transição imediata do processo para a fase de julgamento. Apesar da sua aparente gravidade, uma análise cuidada revela que esta cominação não comprime significativamente as possibilidades de defesa do arguido.
Tenha-se em conta que a imediata rejeição da instrução requerida pelo arguido, sem prévia formulação de convite ao aperfeiçoamento, não constitui uma restrição irreversível das suas possibilidades de defesa. Assim é porque a inobservância do ónus atinge unicamente o direito à comprovação judicial da decisão de acusar, não limitando em medida alguma a possibilidade de os argumentos e meios de prova que o arguido pretendia levar ao conhecimento do juiz de instrução influírem no desfecho do processo, designadamente para a determinação da eventual responsabilidade criminal. Ora, se é certo que se não podem eliminar as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento de que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente (Acórdão do TC n.º 54/2000), não é menos verdade que a graduação das consequências é sensível a essa circunstância. Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, é muito relevante os elementos que pretendia carrear para a fase de instrução poderem ser mobilizados na fase de julgamento. Com efeito, a norma sindicada interfere apenas na decisão de sujeitar o arguido a julgamento, não determinando a sua condenação ou absolvição, pelo que a proteção imposta pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição é naturalmente menos exigente do que a devida aos direitos que se exercem numa fase processual decisiva, como o julgamento ou o recurso.
Formulou assim o Tribunal Constitucional:
a) Não julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 4 da Constituição, e do princípio da proporcionalidade, a norma do artigo 287.º, n.os 2 e 3, do Código de Processo Penal, com o sentido de que não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo arguido, que não contenha algum ou alguns dos requisitos previstos no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
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Assim, de acordo com o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Proc 39/16.4TRGMR, de 21.06.2017:
“Enquanto a falta ou omissão das exigências previstas na 1.ª parte do n.º 2 do art. 287.º do CPP faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em mera irregularidade (art. 118.º, n.º 2, do CPP), a falta ou omissão das exigências previstas na 2.ª parte daquele dispositivo faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em nulidade (2.ª parte do n.º 2 do art. 287.º, als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º e 118.º, n.º 1, todos do CPP).”
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No caso dos autos, verifica-se que relativamente às 11 testemunhas cuja audição se requer, nada se especifica relativamente àquele meio de prova (não foram considerados no inquérito ou não foram adequadamente produzidos?), quais os factos a que através dos seus depoimentos se espera provar? A que finalidade se destinam?
Ora, obrigando o art. 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, à taxativa indicação dos factos a provar, a fim de que o magistrado instrutor possa aquilatar da sua utilidade à decisão da causa, em termos de evitar a prática de actos inúteis, conducentes à dilação processual, como deixámos supra referido e nada disso foi concretizado pelo arguido, a omissão daquela exigência enquadrando-se na 2.ª parte do nº2 do artigo 287 do Código de Processo Penal, determina a nulidade do RAI..
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, nº 1, alínea a), nº 2 e nº 3, in fine, todos do Código de Processo Penal, rejeito o requerimento para abertura da instrução de fls. 3863 a 3900, deduzido pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal da instrução.
*
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC, nos termos do artigo 8º, nº 5 e Tabela III, do RCP.
Notifique.
Em reação ao despacho recorrido, o referido arguido apenas interpôs o recurso em apreço.
II.4. Da apreciação das questões objeto do recurso:
Cumpre agora analisar as já elencadas questões suscitadas pelo recorrente (cfr. II.2.):
II.4.A. Da rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal:
A possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução tem por pressuposto essencial a dedução de uma acusação, por parte do Ministério Público ou do assistente (cfr. art.º 287.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.), estando limitada à hipótese de, pela procedência da sua pretensão, aquela não vir a ser introduzida em juízo (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.).
É certo que, nesse caso, a instrução tutela o interesse legítimo do arguido em não ser submetido a julgamento (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 610/96, de 17-04-19964). Contudo, este não se confunde com o reconhecimento de um qualquer direito a não ser levado a julgamento, que não tem guarida constitucional, o que bem se compreende dado que “o facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, por si só, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação” (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 551/98, de 29-09-19985).
Assim, na apontada hipótese, a instrução tem que ser desencadeada por iniciativa do arguido (cfr. art.º 286.º, n.º 2, do C.P.P.) e visa a comprovação, por parte de um juiz de instrução (cfr. art.º 288.º, n.º 1, do C.P.P.), da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.). Ou seja, consubstancia-se no controlo judicial do preenchimento da condição de que a lei faz depender o dever do Ministério Púbico de deduzir acusação, nos termos do artigo 283.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P., qual seja, de durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, considerando-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.
Daí logo decorre que a atividade a desenvolver na instrução não se pode desligar da levada a cabo no inquérito, visando verificar se a acusação é uma decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito (pressupostos de facto) e se a mesma se incrusta validamente no ordenamento jurídico penal (pressupostos de direito) (cfr. FRIAS, Pedro Daniel dos Anjos, in “Com o sol e a peneira”: um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução, Julgar, n.º 19, 2013, pág. 103).
Deste modo, em caso de acusação, por referência a esta e ao inquérito que a antecedeu, em ordem à finalidade legal da instrução, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido terá forçosamente que conter a distinta perspetiva deste sobre a matéria de facto ou sobre a questão de direito em causa e, de forma autónoma, os factos que pretende provar com os meios de prova que indique (cfr. art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P.), assim delimitando o sentido da impugnação da decisão proferida pela entidade acusadora e, nessa medida, vinculando o escrutínio, por parte do juiz de instrução, da decisão prolatada no final do inquérito, com vista à introdução, ou não, da causa em juízo (cfr. art.º 288.º, n.º 4, do C.P.P.).
Deste modo, bem se compreende que o requerimento para abertura de instrução seja rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.), caso o arguido nele não descreva, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação, ou não precise os factos que pretenda provar com os meios de prova que indique, e dessa forma impeça o juiz de instrução de proceder ao escrutínio da decisão de deduzir acusação, com vista à submissão, ou não, da causa a julgamento (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 1206; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-05-2025, processo n.º 631/23.0PILRS-A.L1-56; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-01-2014, processo n.º 1878/11.8TAMAI.P17).
Mesmo que se entendesse que o despacho recorrido é omisso quanto aos vícios processuais invocados no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido (cfr. pontos 31 a 40 – II.3.B.), a eventual invalidade processual da sua não apreciação no despacho recorrido, não estando cominada como nulidade (cfr. arts. 119.º e 120.º do C.P.P.), a verificar-se, consubstanciaria apenas numa irregularidade (cfr. arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º do C.P.P.) que estaria sanada, por não ter sido invocada no prazo estabelecido na lei de processo para o efeito (cfr. art.º 123.º, n.º 1, do C.P.P. e II.3.C.).
É certo que “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado” (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do C.P.P.). Contudo, tal pressupõe que a irregularidade ainda não esteja sanada, sob risco de, a admitir-se reparação de irregularidades já sanadas, se introduzir grave entorse no sistema qual seja a de, relativamente ao menos solene dos vícios formais se admitir, afinal, um regime de reparação não só mais permissivo do que o das nulidades relativas (cfr. art.º 120.º do C.P.P.), como equiparável, até, ao das nulidades insanáveis (cfr. art.º 119.º do C.P.P.) (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-01-2022, processo n.º 303/12.1JACBR.P1-B.P1.S18).
No requerimento para abertura de instrução que apresentou o arguido pugna pela verificação de um erro no valor peticionado pelo Estado Português a título de indemnização civil, considerando que o valor correto seria EUR 1 685 644, 60 e não de EUR 2 508 149, 08 (cfr. pontos 2 a 4 – II.3.B.).
Pugna também pela não verificação das duas qualificativas do crime de burla imputado pelo Ministério Público previstas no art.º 218.º, n.º 2, als. a) e b), do C.P., sem contudo afastar a prevista no art.º 218.º, n.º 1, do C.P., por referência ao art.º 202.º, al. a), do C.P. (cfr. pontos 41 a 44 – II.3.B.).
Ora, mesmo na hipótese de procederem essas pretensões, nunca as mesmas constituiriam obstáculos à introdução da causa em juízo, o que logo evidencia não consubstanciarem razões demonstrativas do desacerto da decisão de acusar.
Por outro lado, no aludido requerimento, o arguido nega ainda os factos vertidos na acusação (cfr. pontos 5 a 30 e 45 – II.3.B.), chegando a fazer referência a uma situação que, temporalmente, ocorreu após o período em causa na acusação (cfr. ponto 23 – II.3.B.).
Ora, como é evidente, tendo esta ocorrido posteriormente, não tem a idoneidade para abalar os pressupostos dos crimes imputados, cometidos anteriormente. Seja como for, o arguido não alicerça a sua posição de negação dos factos imputados no despacho de acusação no inquérito que o antecedeu, ainda que criticando-o, surgindo a mesma desgarrada da atividade aí levada a cabo, nada dizendo sobre o que aí se passou, ou deveria ter passado, pretendendo converter a instrução na fase de julgamento, antecipando esta fase processual. Na verdade, pretende substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento por toda uma outra ideia que se concretiza em apreciar se deve ou não ser condenado pelos crimes que lhe foram imputados. Contudo, nem o requerimento para a abertura de instrução se confunde com a contestação, nem a instrução não se traduz num simulacro de julgamento.
Deste modo, sendo evidente que do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido não consta a indicação autónoma dos factos que se esperava provar com as testemunhas cuja inquirição foi requerida (cfr. II.3.B.), dele também não constam razões de discordância relativamente à acusação suficientes para obstarem à introdução da causa em juízo.
Deste modo, não possuindo o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido a aptidão de fazer desencadear a atividade inerente à finalidade da instrução, mostra-se fundada a rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal desta (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.), dado que não pode existir instrução para finalidade distinta da estabelecida na lei de processo para tal fase processual.
Improcede, pois, neste segmento, o recurso interposto.
II.4.B. Do falta de convite para aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução:
Subsidiariamente, o recorrente entende que o requerimento para abertura de instrução que apresentou não deveria ter sido rejeitado sem lhe ser dada a oportunidade de o aperfeiçoar.
Contudo, afigura-se que não merece qualquer reparo a imediata rejeição da instrução, perante um requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido que não obedeça integralmente às exigências de conteúdo impostas pelo art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P., sem prévia formulação de convite ao aperfeiçoamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-01-2025, processo n.º 118/24.4GBLGS.E19).
Estando apenas em causa a decisão de submeter ou não o arguido a julgamento, não se poderá ignorar que a instrução tem carácter facultativo (cfr. art.º 286.º, n.º 2, do C.P.P.) e possui uma bem delimitada finalidade (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.) para o que impõe a lei de processo, por parte do sujeito processual que a desencadeie, a observância de determinados requisitos de conteúdo aptos a permitir que aquela se cumpra (cfr. art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P.), o que não se afigura constituir ónus particularmente oneroso.
Na verdade, tais requisitos não correspondem a uma mera formalidade mais ou menos útil, antes consubstanciam o pressuposto da própria inteligibilidade da pretensão deduzida e elementos essenciais do objeto da fase processual que se pretende desencadear. De facto, como resulta do já exposto (cfr. II.4.A.), sem a indicação das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação e, nos casos em que o arguido pretenda a realização de diligências instrutórias, a indicação dos atos pretendidos, dos meios de prova não considerados na fase anterior e dos factos que com os mesmos se pretende demonstrar, impossibilita que se apreenda e delimite o sentido da impugnação da decisão proferida pela entidade acusadora, que é o objeto da pronúncia exigida ao juiz de instrução criminal.
Acresce que inexistindo qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, a imediata rejeição da instrução requerida pelo arguido, sem prévia formulação de convite ao aperfeiçoamento, não o impede de carrear para a fase de julgamento os elementos que pretendia mobilizar para a fase de instrução.
Por fim, a possibilidade de aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido que apresente semelhante vício de conteúdo traduzir-se-ia na concessão de um novo prazo para a prática do ato quando o mesmo decorre da lei de processo, não se afigurando desrazoável o fixado (cfr. art.º 287.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.).
Deste modo, afigura-se não ter sido atingido qualquer direito de defesa do arguido.
Finalmente, cumpre referir que o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de não julgar inconstitucional, por violação do art.º 32.º, n.ºs 1 e 4 da C.R.P., e do princípio da proporcionalidade, a norma do art.º 287.º, n.ºs 2 e 3, do C.P.P., com o sentido de que não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido, que não contenha algum ou alguns dos requisitos previstos no art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P. (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 46/2019, de 23-01-201910).
Improcede, pois, também neste segmento o recurso interposto.
II.5. Das custas:
Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso (cfr. art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.), sendo o arguido condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo (cfr. art.º 513.º, n.º 2, do C.P.P.), devendo a condenação em taxa de justiça ser sempre individual e o respetivo quantitativo ser fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais (R.C.P.) (cfr. art.º 513.º, n.º 3, do C.P.P.).
Assim, nos termos do art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III a ele anexa, tendo o recorrente decaído totalmente no recurso que interpôs, deve ser condenado entre 3 UC e 6 UC a título de taxa de justiça, tendo em vista a complexidade da causa.
Ora, tendo em conta a mediana complexidade das questões em causa, bem como o seu número, julga-se adequado fixar a taxa de justiça em 4 UC.
III. Decisão:
Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.
Condena-se o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça devida pelo mesmo em 4 UC.

Lisboa, 10-07-2025
Pedro José Esteves de Brito
Ana Cristina Cardoso
Paulo Barreto
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1.https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf
2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument
3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf
4. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960610.html
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7. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/095178c7b892300780257c7f0032d88f?OpenDocument
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10. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190046.html%5Ch