RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
INSTRUÇÃO
CRIME
Sumário

Sumário:
I - O objecto da reclamação para a conferência é a oportunidade de decisão reclamada e não a questão por esta julgada.
II - É legalmente inadmissível a instrução sequente a acusação que apenas vise alguns dos crimes acusados, seguindo-se necessariamente a fase de julgamento mesmo na procedência do requerimento de abertura de instrução.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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AA veio reclamar para a conferência da decisão sumária que rejeitou o recurso por si interposto.
Alega para tanto e em resumo que a decisão reclamada não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade arguida, repetindo a sua posição quanto à admissibilidade de instrução sequente a acusação, visando decisão de não pronúncia apenas quanto a parte dos crimes imputados.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A decisão sumária reclamada reza o seguinte:
“A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«(...) O artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, prevê que o requerimento de abertura de instrução só possa ser rejeitado por extemporaneidade; por incompetência do juiz; ou por inadmissibilidade legal da instrução.
No que concerne a este último fundamento, podem conceber-se diversas realidades que o preencham, como, inter alia, quando perante formas de processo especial (artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal); quando não haja legitimidade por, e.g., não ter o arguido sido acusado da prática de qualquer crime, ou não ter o assistente legitimidade para ocupar essa função; ser uma instrução que vise unicamente suspensão provisória do processo impossível; falta de subscrição do requerimento de abertura de instrução por advogado, etc.
Uma outra causa de inadmissibilidade legal da instrução prende-se com a inadequação do requerimento de abertura de instrução às finalidades da instrução.
As exigências legais do requerimento de abertura de instrução alicerçam-se na necessidade de, por um lado, esse articulado, quando precedido de um despacho de arquivamento do Ministério Público, ter de comportar os requisitos essenciais de uma acusação, cuja função passará a desempenhar no processo, e só assim permitindo o desenvolvimento de ulteriores trâmites, o exercício de um efectivo direito de defesa ao arguido, e a compatibilidade com um sistema penal com estrutura acusatória; e, em qualquer caso, mas também quando precedido de uma acusação, o requerimento de abertura de instrução ter de ser consentâneo com os propósitos desta fase facultativa do processo.
A instrução é uma fase eventual e facultativa do processo penal, que, existindo, ocorrerá entre a fase de inquérito e a fase de julgamento, a requerimento, quer do arguido, quer do assistente, no prazo de vinte dias da notificação da decisão relativa à fase de inquérito (artigo 287.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal), se outro não existir pela excepcional complexidade do processo, e visa a comprovação judicial da decisão de submeter, ou de não submeter, uma causa a julgamento (286.º, n.º 1 e n.º 2, do mesmo diploma).
Nesta fase não se pretende o conhecimento do mérito da causa, como que antecipando a fase de julgamento, visando-se, meramente, a verificação da (in)existência de indícios suficientes de que foram praticados determinados factos que poderão preencher um tipo crime e de que o arguido foi o seu agente.
Ao abrigo do artigo 291.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o juiz indefere os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo. De igual modo, ao abrigo do número 3 do mesmo artigo, «os actos e diligências de prova praticados no inquérito só são repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais ou quando a repetição se revelar indispensável à realização das finalidades da instrução».
Ao abrigo do artigo 291.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, não são inquiridas, em sede de instrução, testemunhas que devam depor sobre aspectos referidos no artigo 128.º, n.º 2, do mesmo diploma, i.e., testemunhas de cariz meramente abonatório, que deponham sobre a personalidade e carácter do arguido, suas condições pessoais e conduta anterior.
Por fim, o artigo 301.º, n.º 3, do mesmo diploma, é expresso ao ditar que o juiz de instrução recusa requerimentos ou diligências de prova que ultrapassem a natureza indiciária da fase instrutória.
É, por isso, manifesto que a fase de instrução tem regras muito próprias e que não se confunde nem com o inquérito, nem com o julgamento.
Também por isso o próprio requerimento de abertura de instrução tem de ser dirigido às finalidades da fase, o que nos remete para o artigo 286.º, n.º 1, i.e., a sindicância da decisão de submeter, ou não, uma causa a julgamento, como um todo, ou seja, por referência ao objecto do processo que, nesta fase, é enformado pela acusação e pelo requerimento de abertura de instrução se o mesmo vier a ser admitido.
O Ministério Público deduziu acusação AA imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de um crime de associação criminosa, em co-autoria com BB, CC, DD, EE e FF; de vinte crimes de corrupção activa com prejuízo para o comércio internacional, em co-autoria com BB, CC, DD, EE e FF; dezanove crimes de branqueamento, em co-autoria com BB, CC, DD, EE e FF; um crime de branqueamento, em co-autoria com BB, CC, DD, EE e FF e um crime de branqueamento em co-autoria com BB, CC, DD, EE, FF e GG.
O arguido requereu a abertura da instrução e nos pontos 30 e 31 do requerimento de abertura de instrução consignou o seguinte:
«30. Embora também não se conformando com a acusação contra si proferida por crimes de branqueamento de capitais, o Requerente remete (desde logo pela imensidão destes autos e pela complexidade da defesa de um crime de branqueamento no âmbito da prestação de serviços fiduciários a partir de uma jurisdição que nem sequer é a nossa) a defesa referente a este segmento da acusação para momento posterior mais adequado a uma defesa detalhada face a cada uma das situações que lhe são imputadas nessa sede e que configurariam, na tese da acusação, esse crime.
Assim, nesta fase, o Requerente apresenta a sua defesa com vista a ser não pronunciado pelo crime de associação criminosa e pelos 20 (vinte) crimes de corrupção activa com prejuízo no comércio internacional.».
Assim, na óptica do arguido, o objecto da presente instrução deve excluir os crimes de branqueamento de que também foi acusado, reservando a sua defesa para o único momento que se segue a esta fase facultativa, a fase de julgamento.
Por tal, é manifesto que não obstante ter requerido a abertura da instrução, o arguido pretende ser submetido a julgamento, nomeadamente por crimes de branqueamento.
O legislador ao instituir esta fase processual pretendeu que a mesma fosse determinante para a ponderação da sujeição ou não a julgamento de um arguido.
Pode ocorrer que, findo o debate instrutório e proferida decisão, se venha a concluir que o objecto do requerimento de abertura de instrução é totalmente improcedente ou até apenas parcialmente procedente, não sendo, na prática, a fase de instrução uma forma de obviar ao julgamento.
No entanto, é necessário que, para que a instrução tenha utilidade ao que não é indiferente o princípio da proibição dos actos inúteis, artigo 130.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, em abstracto, a fase ab initio fosse capaz de gerar a hipótese de alternativa à sujeição do arguido a julgamento.
No mesmo sentido, inter alia, acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08-10-2019, processo n.º 1003/17.1...-A.E1, relatado pelo Desembargador Carlos Berguete Coelho «é de rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido se ele não visa evitar o julgamento por todos os crimes que lhe são imputados na acusação, nem contém as concretas razões da sua discordância em relação à acusação pública»; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 30-06-2021, processo n.º 538/19.6JACBR.C1, relatado pela Desembargadora Elisa Sales «(…) o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido não pode extravasar o pretendido escopo de não ser submetido a julgamento. O critério definidor da submissão (ou não) da causa a julgamento funda-se num juízo valorativo abrangente de todo o processo e não apenas incidente sobre fragmentos do mesmo. Deste modo, a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamentação da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como objectivo a não pronúncia do arguido quanto a todos os crimes que lhe são imputados na acusação. Dito de outro modo, se a diversa qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não é passível de produzir aquele resultado (não pronúncia do arguido), mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento, sendo, em consequência, a instrução legalmente inadmissível», disponíveis in: www.dgsi.pt.
O arguido nem pugna pela sua não pronúncia quanto aos crimes de branqueamento, nem põe em causa que deva ser julgado por esses mesmos crimes, sendo uma inevitabilidade a sua sujeição a julgamento, momento em que poderá, igualmente, ser apreciada a sua defesa quanto aos demais, mas que torna inútil a presente instrução.
Dessarte, e atento o arrazoado supra, o presente requerimento de abertura de instrução do arguido AA comporta uma instrução legalmente inadmissível, por não ser consentâneo com os fins da fase instrutória, impondo-se a sua rejeição, ex vi artigos 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.»
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Cumpre apreciar.
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Atendendo às conclusões apresentadas é questão a resolver a de saber se a instrução sequente a acusação é legalmente admissível quando apenas são sindicados os indícios relativos a alguns dos crimes acusados, seguindo-se necessariamente a fase de julgamento mesmo na procedência do requerimento de abertura de instrução.
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Na esteira do Ac RP de 29.1.2014 (procº 1878/11.8TAMAI.P1), seguindo de perto o ensinamento de Pedro Daniel dos Anjos Frias, em “Com o Sol e a Peneira: um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução” (Revista Julgar, 19, Jan. – Abr. 2013), seguida uniforme e pacificamente pela jurisprudência (Ac RE de 8.5.2012 - procº 226/09.1PBEVR.E1, Ac RE de 11.3.2014 – procº 80/13.9PBSTB-A.E1, Ac RE de 14.7.2015 – procº 752/14.0PAPTM-A.E1, Ac RG de 19.11.2018 - procº 41/17.9GCBRG‑E.G1 e Ac RL de 4.5.2021, desta 5ª Secção - procº 471/19.1T9LNH.L1), segundo a qual é firme o juízo sobre a inadmissibilidade de instrução quando, precedida de acusação, da sua procedência resulte ainda a submissão do caso a julgamento, é patente a improcedência do recurso, nos seus próprios termos.
No caso, pretende-se que o arguido apenas seja sujeito a julgamento por alguns dos crimes de que se encontra acusado.
E tanto basta para que caia sobre aquele entendimento, já que a seguir aquela pretensão a instrução funcionaria como uma parcial antecipação do julgamento, sendo o requerimento de abertura de instrução uma espécie de contestação deslocada e relativa apenas a indícios e tendo em vista a finalidade primeira da instrução em casos semelhantes (não submissão a julgamento) uma pura inutilidade.
Se é claramente perceptível para a comunidade a valia e o empenho de meios na fase judicial de instrução que vise evitar a sujeição a julgamento de um dos seus membros, já será de todo incompreensível a pretensão de para tanto servir apenas quanto a parte daquele, posto que o principal escopo daquela não é, de todo, passível de ser atingido. De resto, é indubitavelmente essa a finalidade daquele género de actividade processual nas palavras da lei – “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação... em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – nº 1 do artº 286º do Código de Processo Penal.
Desconforme à Constituição é pois a interpretação que lhe subjaz, já que objectivamente orientada no sentido do retardamento da acção penal, chocando de frente com o princípio constitucional da Justiça (artos 1º, 20º, nos 4 e 5 e 32º, nº 2, todos da Constituição da República Portuguesa).
É pois manifesta a improcedência do recurso, nos seus próprios termos, implicando a correspondente rejeição - alínea a) do nº 1 do artº 420º do Código de Processo Penal.”
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Cumpre apreciar em conferência.
Da leitura da decisão reclamada claro é que a mesma se pronunciou sobre a inconstitucionalidade arguida no recurso, ademais apontando-a à interpretação pretendida pelo recorrente.
Inexistindo por isso omissão de pronúncia, quanto ao mais a reclamação apenas repisa o que já havia sido alegado.
Posto que o objecto legal da reclamação para a conferência é a decisão reclamada e não a questão por ela julgada, mais não haverá do que indeferir aquela, uma vez que a decisão visada já é, ela mesma, decisão recursiva.
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Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 10 de Julho de 2025
Manuel Advínculo Sequeira
Ester Pacheco dos Santos
Pedro José Esteves de Brito