CONTRATO DE ACÇÃO PROMOCIONAL
NULIDADE
Sumário

I – Como os contratos de acção promocional não têm por objecto acções promocionais e deles não consta a menção a qualquer outro acordo e suas cláusulas entre as partes, são nulos por falta de objecto.
II – Não pode o tribunal ordenar a produção de prova sobre factos não alegados.

Texto Integral

Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
Sociedade de Pesca Foz da Nazaré, Lda instaurou acção declarativa comum contra Pingo Doce- Distribuição Alimentar, Sa em 17/05/2023 pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 1.905.519,65 € acrescida de juros de mora à taxa de juros comercial já vencidos no montante de 1.059.110 € e vincendos até integral pagamento, e bem assim juros de 5% a título de sanção pecuniária compulsória até integral pagamento.
Alegou, em síntese:
- exerce a actividade de pesca e comércio de pescado,
- fornecia pescado à ré por ter celebrado com esta ré um Contrato de Condições Gerais de Fornecimento de pescado com início em 23/03/2009;
- a partir de 2013 e até Julho de 2020 a ré passou a emitir facturas através das quais cobrava indevidamente valores à autora com a indicação «campanhas promocionais» e «penalidades por falta de qualidade» que anulavam total ou parcialmente o seu lucro;
- devido à sua dependência comercial e económica a autora aceitou essas facturas porque a ré ameaçou que deixaria de lhe solicitar pescado e revogaria o contrato;
- com essa actuação, a ré coagiu a autora apropriou-se indevidamente do montante de 1.905.519,65 €.
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A ré contestou, invocando, em resumo:
- caducou o alegado direito da autora pois o prazo para a arguir a anulabilidade do negócio já tinha expirado antes da instauração a acção;
- à relação comercial entre ambas foram acordados e aplicados os seguintes descontos: rappel sobre o valor, desconto sobre a quantidade, ajustes ao preço inicialmente acordado e facturado, penalidades de qualidade e quantidade,
- pelo que são válidas as notas de débito e facturas emitidas pela ré,
- que não retaliou nem forçou a autora a negociar;
- a autora actua com abuso do direito,
- e deve ser condenada como litigante de má fé.
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A autora apresentou resposta.
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A excepção de caducidade foi julgada improcedente no despacho saneador, com esta fundamentação:
«Não há dúvida que a Autora alega ter assinado coagida os documentos que legitimaram a Ré a operar a compensação de créditos com os débitos que tinha perante a Autora pelos fornecimentos por esta efectuados.
Observa-se, porém, que o pedido apresentado não é o de anulação de um ou vários negócios jurídicos, com base em tal vício. A Autora apresenta um pedido de pagamento de um determinado valor coincidente com os supostos créditos da Ré, qualificando o comportamento negocial desta como abusivo.
Do que vem alegado pela Autora pode concluir-se que a causa de pedir da presente acção se centra na imputação à Ré de práticas negociais abusivas, alegando que esta, fazendo uso de um poder negocial superior ao da Autora ameaçou rescindir unilateralmente o contrato de fornecimento celebrado e assim a levou a aceitar os descontos que entendeu fazer sobre os preços acordados.
O que está em causa na acção é averiguar se a Ré levou a cabo tais práticas negociais abusivas e se inseriu nos contratos cláusulas que a lei comina com a nulidade
Ora, é bem sabido que a nulidade do negócio jurídico é invocável a todo o tempo (art.º 286.º do CC), diversamente da anulabilidade, que está sujeita, por regra, a arguição no prazo de um ano (art.º 287.º, n.º 1, do CC).
Acresce que a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal ainda que não tenha sido apresentado expressamente pedido nesse sentido.
Tanto é quanto basta para se concluir, pela improcedência da exceção de caducidade do direito de acção.».
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Realizada a audiência final foi proferida sentença com este dispositivo:
«Pelo exposto, declaro nulos os contratos designados por Acção Promocional – Extra Investimento a que se reportam os pontos 14 a 19 dos factos provados e, em consequência, condeno a Ré a restituir à Autora os valores cobrados com base em tais contratos, no montante de 1.902.390,19 euros, acrescidos de juros, à taxa legal de 4%, desde 17.02.2022 até integral pagamento.
Absolvo a Ré do mais peticionado»
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Inconformada, apelou a ré, terminando a alegação com estas conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto da sentença que condenou a Recorrente ao pagamento à Recorrida de € 1.902.390,19, acrescido de juros à taxa de 4%, desde 17.02.2022 até integral pagamento.
B. A Recorrida fundamenta a sua pretensão no pedido de devolução dos montantes faturados pela Recorrente e vertidos em documentos designados “Tipo de Contrato: Ação Promocional (Extra Investimento)”, documentos esses que, não obstante terem sido aceites e assinados pela Recorrida entre 2014 e 2019, a Recorrida alega que os mesmos lhe foram impostos “dada a posição dominante [da Recorrente] no mercado e o grau de dependência económica” da Recorrida em relação à Recorrente.
C. A sentença recorrida deu como não provada a alegada posição dominante da Recorrente no mercado e como não provada a dependência económica. Não foi igualmente dada como provada a alegada “coação” da Recorrida em assinar as faturas “Ação Promocional”.
D. A sentença recorrida condenou a Recorrente na quase integralidade do pedido, com base num alegado “temor” da Recorrida em perder a Recorrente como sua cliente, caso não aceitasse e assinasse as faturas de Ação Promocional. A sentença declarou, assim, a nulidade das faturas Ação Promocional por indeterminabilidade do objeto.
E. O presente recurso versa, em suma, sobre a decisão da matéria de facto a qual, com o devido respeito, deveria ter sido diversa.
F. Impõe-se a revogação da sentença e sua substituição por outra que absolva a Recorrente do pedido, na medida em que, quanto à decisão da matéria de facto, o tribunal a quo (i) valorou apenas o depoimento de uma testemunha, indicada pela Recorrida, e cuja isenção e credibilidade não foi e deveria ter sido colocada em causa; (ii) não valorou o depoimento isento e objetivo das testemunhas indicadas pela Recorrente; (iii) não valorou um documento admitido aos autos em 17.09.2024, data da 1.ª sessão de audiência de discussão e julgamento; e, por fim, (iv) padece a sentença de contradição entre a matéria dada como provada e a decisão final, criando e validando uma situação de enriquecimento sem causa da Recorrida, o que não é solução admissível à luz da justa aplicação do Direito.
G. Alterando-se a matéria de facto, nos termos propostos no presente recurso, impunha-se, igualmente, ao tribunal a quo, uma decisão diversa sobre a matéria de direito, não cominando com o desvalor da nulidade por indeterminabilidade do objeto (art. 280.º n.º 1 do CC), documentos que as partes utilizaram de forma estável ao longo de vários anos, para regular a sua relação comercial de fornecimento. Nestes termos, o presente recurso versará também sobre tal decisão da matéria de direito, a qual deverá ser alterada e substituída por outra que confirme a validade de tais documentos.
H. O tribunal a quo deveria, com o devido respeito, valorado cum grano salis o depoimento da testemunha AA, trabalhador na Recorrida há mais de trinta anos, o seu gestor de facto [min 02:10] e filho dos dois sócios da empresa. A relação parental com os sócios da Recorrida e a gestão de facto da empresa familiar, por mais de trinta anos, por um lado, e o facto de a sentença assentar num pré-juízo de valor, que coloca a Recorrente numa posição de suposta superioridade comercial, conexa a uma presunção de “ilicitude da conduta” no âmbito da relação comercial, leva-nos a colocar em questão a necessária isenção que deverá estar subjacente à apreciação da prova produzida o que, s.m.o., não se verifica na sentença recorrida.
I. Entende a Recorrente que deveriam passar a constar do elenco de factos não provados os factos provados n.ºs 21 e 22, onde se lê: “21. A Ré comunicou à Autora que, caso não aceitasse a emissão e assinatura das facturas e contratos referidos, deixaria de fornecer pescado à Ré. 22. A Autora apenas assinou e aceitou os documentos referidos por temer que a Ré deixasse de lhe comprar pescado.”
J. Com o devido respeito, impunha-se ao tribunal a quo valorar as declarações de BB, CC e de DD, as quais evidenciam que (i) não ficou demonstrada a alegada dependência económica que “obrigava” a Recorrida a aceitar quaisquer condições comerciais – vide FNP3 e FNP8; (ii) não ficou demonstrada a alegada “imposição” da aceitação das campanhas promocionais; (iii) não ficou demonstrada a intenção de a Recorrente deixar de comprar pescado à Recorrida, até no momento a partir do qual a Recorrida passou a não aceitar os documentos; (iv) não ficou provado qualquer temor da Recorrida perante a Recorrente, tampouco tal temor resulta devidamente alegado e demonstrado pela Recorrida.
K. Para fundamentar a sua decisão quanto aos factos n.ºs 21 e 22, concretamente o alegado “temor” da Recorrida, o tribunal a quo valora declarações – não circunstanciadas nem devidamente alegadas – proferidas por testemunhas não ouvidas no julgamento, tampouco indicadas na p.i. e conclui que a “ausência de reclamações da Recorrida” pressupõe a ausência de negociação. Salvo o devido respeito, tal presunção não poderia ser feita, dado que a mesma não assenta em regras da experiência nem de labor jurisprudencial. A este respeito, a testemunha EE, um fornecedor de pescado Pingo Doce, foi claro a afirmar que nunca existiu uma “imposição” de descontos aplicados ao pescado, tampouco que tais descontos eram condição necessária à colocação de encomendas pela Recorrente.
L. Uma palavra para o “temor” dado como provado no facto n.º 22: sentimentos e emoções não têm, por si só, relevância jurídica, a menos que seja demonstrada a sua gravidade, o que, não foi nem alegado nem demonstrado nos presentes autos. Com efeito, o tribunal a quo introduziu na sentença este substantivo abstrato, sem qualquer matéria factual que o sustente, pelo que um qualquer “temor” – o qual não era, em todo o caso, do conhecimento da Recorrente – não deveria ter a relevância jurídica que lhe é concedida na sentença, ao declarar a nulidade de dezenas de contratos que regularam uma relação comercial estável entre as partes ao longo de vários anos, num abalo injustificado e desproporcionado da segurança jurídica.
M. Impõe-se a alteração da decisão da matéria de facto provado n.º 24 onde se lê que “a partir desse momento [Agosto de 2020] a Ré deixou de solicitar encomendas à Autora”, o qual deve passar a constar do elenco de factos não provados. Por seu turno, deverá o FNP 22 “A Autora deixou de aceitar encomendas da Ré a partir de Agosto de 2020” passar a constar do elenco de factos provados.
N. As testemunhas AA e BB esclareceram o tribunal que a nota de encomenda só era colocada após contacto telefónico com o gestor de categoria (i.e., BB) – cfr.,(…) – e a testemunha DD foi clara ao afirmar que a Recorrente jamais perdeu o interesse na manutenção da relação comercial com a Recorrida, tentando o contacto com a Recorrida, sem sucesso – cfr.(…)
O. Consequentemente a tal alteração à decisão da matéria de facto, impõe-se também considerar e aditar ao elenco de factos provados o alegado pela Recorrente no art. 251.º da contestação, onde se afirma que “A R. nunca deixou de ter interesse na manutenção da relação comercial”.
P. A sentença deu como factos não provados que “FNP10: “As notas de débito “acção promocional” emitidas pela Ré reflectem os ajustes de preço e também os já mencionados descontos rappel, descontos quantidade e ainda as penalidades por falta de qualidade ou quantidade.”
FNP11: “As facturas são enviadas pela R. ao fornecedor, acompanhadas das notas de débito “ação promocional” que sustentam a fatura”.
Q. O tribunal fundamentou a sua decisão no facto de a seu ver a Recorrente não ter junto quaisquer “notas de débito”, desconsiderando, porém, os esclarecimentos prestados pelas testemunhas e a própria documentação junta aos autos, a este respeito. Com efeito, a testemunha FF, pertencente ao departamento de contabilidade da Recorrente, clarificou o tribunal que, não obstante a infeliz designação de “Campanha Promocional” (e não “nota de débito”), eram estes os documentos utilizados pela Recorrente, e aceites pela Recorrida para justificar os débitos à conta corrente da Recorrida – vide (…) A testemunha reiterou, por diversas vezes, que os débitos não eram lançados sem a aceitação e assinatura da Recorrida o que, aliás, encontra reflexo nos documentos 13 a 74 juntos à p.i..
R. Ora, não estando as partes adstritas a qualquer forma para a celebração de tais contratos, que decidiu designar de “Campanhas Promocionais”, não choca nem merece censura que as partes qualifiquem tais acordos como campanhas promocionais, de forma a englobar a tipologia de descontos acordados entre as partes, a saber, nos presentes autos, sobrepreço, rappel, desconto de quantidade e penalidades por falta de qualidade.
S. Devem, assim, passar a constar dos factos dados como provados os FNP10 e FNP11 os quais relevarão, necessariamente, para efeitos de alteração do desfecho da sentença, i.e., a absolvição da Recorrente do pedido.
T. Do confronto entre os factos provados 12, 13, 14 e 41. e o FNP 18, resulta uma contradição evidente, que carece de reforma, devendo o FNP18 passar a constar do elenco de factos provados, o que desde já se requer.
U. Com efeito, o tribunal a quo deu como provado a forma de determinação do preço em dois momentos distintos – Facto Provado n.º 41 –, no entanto, deu como não provado que “[p]elo menos desde o ano de 2013, que A. e R. acordaram na formação de preço em dois momentos distintos, tendo a Autora emitido facturas referentes aos fornecimentos dos anos de 2014 e 2019, inserindo nas mesmas o valor ficcionado acordado com a R..”
V. A dinâmica da formação do preço com recurso ao sobrepreço, não só está devidamente provada como é descrita e assumida pela testemunha AA (…) como é demonstrada pelos documentos 13 a 74, pelo que se impõe dar como provado o FNP18, sob pena de contradição insanável da decisão da matéria de facto neste ponto.
W. Atenta à prova produzida, devem passar a constar do elenco de factos provados: FNP19: “A Autora sabe e não pode desconhecer que as campanhas promocionais são antes notas de débito destinadas a acertar preço e aplicar descontos previamente acordados”.
FNP23: “Os documentos intitulados “campanhas promocionais” reflectem notas de débito de descontos e ajustes de preço, conforme acordado entre as partes”
FNP24: “as notas de débito emitidas pela R. e faturadas à A., espelhavam o acordo das partes quanto à dinâmica da determinação do preço do produto”
X. Para tal, deverá ser suprida a falta de valoração, por parte do tribunal a quo, do documento junto aos autos e admitido em 17.09.2024, contendo um e-mail de AA a BB e um anexo contendo uma tabela onde são discriminadas pela Recorrida as seguintes variáveis: “Valor faturação; Valor
(s/ diferença de preços); Quantidade; Rappel (5%); Rappel (0,05c/kg); Diferença de preços; Descontos; Saldo”.
Y. Do referido documento resultam as seguintes conclusões que deveriam ter sido valoradas pelo tribunal a quo, impondo-se dar como provados os FNP 19, 23 e 24:
• Que AA, i.e., a Recorrida, recebeu um débito por parte da Recorrente;
• Que a Recorrida não compreendeu o teor do débito, tendo solicitado esclarecimentos ao gestor de categoria, BB;
• Que os valores da Recorrida são diferentes dos da Recorrente: “os nossos valores são diferentes”.
• Que as variáveis relativamente às quais existirá diferença de valores, encontram-se indicadas na tabela elaborada pela Recorrida.
Z. Porém, no seu depoimento, AA faltou à verdade, afirmando que não havia descontos de quantidade nem de rappel (…) numa clara contradição com o conteúdo do documento. Resulta claro do documento que o valor devido pela Recorrida à Recorrente a título de sobrepreço era controlado pela Recorrida, no entanto, em sede de depoimento prestado sob juramento, AA afirmou que sabia quais eram as facturas emitidas a preço ficcionado, sabia qual era o preço real e que faziam o controlo dos valores internamente – vide (…)
AA. Em suma, atento o documento admitido aos autos e as declarações das testemunhas AA, CC, DD e BB, resulta que (i) a Recorrida recebeu débitos da Recorrente; (ii) a Recorrida reconhecia a aplicação de descontos rappel, de quantidade e de sobrepreço aos fornecimentos realizados; e (iii) a Recorrida fazia controlo dos débitos a realizar por parte da Recorrente, impondo-se a alteração da decisão da matéria de facto, devendo os factos n.ºs 19, 23 e 24 passar a constar do elenco de factos não provados.
BB. Em caso de improcedência do recurso, na parte em que requer a absolvição da Recorrente no pedido, o que por mero dever de patrocínio se admite, sem conceder, ao aceitar o sistema de determinação do preço de overprice (facto provado n.º 41) e, simultaneamente condenar a Recorrente a devolver todos os
valores faturados através das campanhas promocionais, a sentença reconhece um benefício da Recorrida, que recebeu da Recorrente uma vantagem, vulgo, um incremento financeiro indevido.
CC. Não se compreende que a sentença aceite que, com o sistema de overprice, se gerou um crédito na esfera jurídica da Pesca Foz da Nazaré e ignore, em absoluto, os documentos emitidos pela Recorrente, juntos aos autos, justamente no mesmo período em que o overprice começou, de forma a compensar esse
crédito.
DD. Por outro lado, ao desconsiderar em absoluto os documentos que a Recorrente utilizou para fazer os débitos, a sentença cria e cristaliza na ordem jurídica uma vantagem patrimonial da Recorrida, não obstante dispor dos meios ao seu dispor para conhecer e averiguar a situação que oficiosamente deu causa, i.e., o enriquecimento sem causa da Recorrida.
EE. Com efeito, não deveria o tribunal a quo reconhecer um crédito da Recorrente e abster-se de, oficiosamente, conhecer o valor de tal crédito, crédito esse, confessadamente controlado pela Recorrida.
FF. A Recorrente cumpriu o seu ónus probatório, i.e., demonstrou não ser devedora
de quaisquer montantes à Recorrida. Se o tribunal entendeu, por sua vez, qualificar os factos de forma diversa, cabia-lhe, ao abrigo do artigo 411.º do CPC, realizar as diligências probatórias necessárias ao apuramento do tal crédito da Recorrente, logo, competia-lhe ordenar, oficiosamente, atenta a confissão de AA, que o mesmo demonstrasse que valores são devidos à Recorrente.
GG. A omissão da atuação da juiz a quo atenta a configuração da decisão tal como explanada na sentença – a criação de uma situação de enriquecimento sem causa – deverá agora ser sanada pelo douto Tribunal ad quem, nos termos do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, ordenando-se a produção de novos meios de prova, por parte da Recorrida, quanto ao controlo dos valores devidos à Recorrente a título de sobrepreço, controlo esse que a testemunha AA admitiu ter feito em sede de audiência de discussão e julgamento
HH. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, aceitando a sentença a existência de um crédito da Recorrente, mas não aceitando o documento que titularia o respetivo débito, não existem elementos para fixar o objeto ou a quantidade, devendo o tribunal a quo apenas condenar no que vier a ser liquidado, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do CPC.
II. Assim, na hipótese de improcedência do presente recurso na parte em que requer a alteração da sentença quanto à decisão da matéria de facto e de direito, nos termos enunciados, e consequente absolvição da Recorrente no pedido – o que por mera cautela de patrocínio se admite, sem conceder – deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que condene a Recorrente no que vier a ser liquidado pela Recorrida, em sede de execução de sentença, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do CPC.
JJ. Para além da errada decisão da matéria de facto quanto aos pontos enunciados nas presentes Conclusões, o tribunal a quo interpretou de forma errada o documento Contrato Geral de Fornecimento e respetivos Anexos, o que fez com que a sentença entendesse, incorretamente, que os acordos estabelecidos entre as partes quanto a descontos e sobrepreço carecessem de forma.
KK. Senão vejamos: o Anexo I ao Contrato, regulador das Condições Específicas do Fornecimento determina que quaisquer alterações devem constar de documento escrito, inclusivamente cópia de documentos digitais ou eletrónicos, desde que validados ou inequivocamente aceites por ambas as partes. Ora, os documentos “campanhas promocionais” e faturas são (i) documentos escritos; (ii) enviados digital e eletronicamente; (iii) validados e inequivocamente aceites por ambas as partes, termos em que não merece qualquer censura a forma de operar pelas partes ao recorrerem aos documentos campanhas promocionais para titularem os descontos e sobrepreço aplicados à relação de fornecimento.
LL. Dando-se como não provado o alegado “temor” e “coação” na assinatura das campanhas promocionais por parte da Recorrida e dando-se como provados os descontos e sobrepreço acordados entre as partes, impõe-se a conclusão de que a Recorrida, ao longo de seis anos, assinou e aceitou os documentos “campanhas promocionais”, fê-lo livremente, sabendo que os mesmos se referiam aos débitos acordados realizados pela Recorrente a título de descontos por sobrepreço, rappel e de quantidade.
MM. Pelo que, vir agora reclamar mais de dois milhões de euros da Recorrente, valendo-se da informalidade da relação comercial, fruto da própria “celeridade diária do processo de negociação e colocação de encomenda” (cfr. Facto provado 41), sabendo perfeitamente que tal valor não lhe é devido, enquadra-se, tal conduta, num exercício abusivo de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o que não é admissível na ordem jurídica.
NN. Requer-se, assim, ao douto Tribunal ad quem a revogação da sentença na parte em que declara improcedente o pedido de condenação da Recorrida em indemnização por abuso de direito e por litigante de má-fé, substituindo-a por outra que condene a Recorrida na referida indemnização, nos termos conjugados do artigo 542.º n.º 2, alíneas b) e d), devendo ser condenada em indemnização nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, conjugado com o artigo 543.º, todos do CPC.
OO. O presente recurso versa também sobre a decisão da matéria de direito. Com efeito, andou bem o tribunal a quo ao não acolher a tese da Recorrida e determinar inaplicáveis aos presentes autos, as normas constantes dos artigos 4º, 7º e 17º do DL 166/2013, de 27 de dezembro, que estabelece o Regime Aplicável às Práticas Individuais Restritivas do Comércio e o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais. Já não podemos acompanhar a decisão do tribunal a quo ao ter declarado oficiosamente a nulidade dos documentos “campanhas promocionais”, por indeterminabilidade do negócio jurídico, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do CC.
PP. A par dos contratos “campanhas promocionais” respeitarem os termos do contrato de fornecimento, conforme já demonstrado, não deveria o tribunal a quo atentar-se, somente, no nomem iuris que as partes apuseram naqueles contratos. Com efeito, as partes estão de acordo de que não existiram campanhas promocionais no âmbito da sua relação comercial, no entanto, foi este o nome aposto nos documentos que titulavam os débitos a realizar à conta corrente – correção ao preço e descontos – por ser esse o mecanismo que, apesar de imperfeito, se adequava, à data, à frenética dinâmica comercial do fornecimento de pescado.
QQ. As campanhas promocionais corporizam um mecanismo de correção ao preço e à aplicação de descontos, determinado entre as partes, sendo que a única condição existente para a emissão de tais documentos e faturas é, precisamente, a necessidade de correção de preço pago em excesso pela Recorrente – dado como provado nos autos – e a aplicação de descontos acordados entre as partes.
RR. Sucede que, atenta a prova produzida quanto à existência de sobrepreço, descontos de rappel e de quantidade, o objeto está determinado, seja no tempo (vide indicação nos contratos do período a que os mesmos dizem respeito:
“Data de Início / Data de Fim), seja no objeto (descontos e overprice), simplesmente não está discriminado, ipsis verbis, nos documentos campanhas promocionais.
SS. No momento em que os documentos são assinados pela Recorrida e rececionados pela Recorrente, validam-se e concretizam-se os débitos a imputar à conta corrente da Recorrida, atestando a Recorrida com tal validação, a própria determinabilidade dos débitos.
TT. A cadência diária da relação comercial, atestada pelas testemunhas e confirmada pela sentença, os termos da relação acordados, a opção pela uniformização dos vários descontos, penalidades por falta de qualidade e sobrepreço num único documento intitulado genericamente como “campanhas promocionais” e a escrupulosa verificação da Recorrente da aceitação dos débitos por parte da Recorrida (vide declarações de FF, já transcritas), são factos praticados voluntariamente pelas partes no âmbito da sua autonomia contratual mas que a sentença vem subverter a uma obrigatoriedade de forma e a um nomem iuris não previsto na lei, decisão essa com a qual a Recorrente não pode concordar e deve ser alterada, sob pena de se aceitar uma limitação injustificada da liberdade contratual das partes, permitindo e aceitando que, sem qualquer evidência de facto, se desfaçam os termos de relações comerciais duradouras e estáveis ao longo do tempo, num claro e injustificado atentado à segurança do negócio jurídico.
Nestes termos e nos melhores de Direito que o Venerando Tribunal ad quem suprirá,
Deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que julgue integralmente improcedente a presente ação e absolva e Recorrente do pedido.
Subsidiariamente, deverá o douto Tribunal ad quem suprir a omissão de que padece a sentença recorrida e ordenar a produção de meios de prova, pela Recorrida, aptos a sanar a situação de enriquecimento sem causa criada pela sentença.
Subsidiariamente, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que condene a Recorrente no valor que vier a ser liquidado em execução de sentença.»
*
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, terminando a alegação nestes termos:
«Em face desta factualidade todas as facturas emitidas pela Ré/Recorrente são NULAS nos termos do artigo 280º, nº 1 do Código Civil, incluindo-se nessas precisas facturas aquelas que fazem referência a penalidades por falta de qualidade, porquanto o documento idóneo e legal seria a emissão de cada nota de débito com referência à correspondente factura emitida pela Autora/Recorrida, a fim de ser objecto de correcção e de conciliação do acto do comércio, assim homenageando a formalidade exigível pelo CIVA.
Assim sendo, falece qualquer razão jurídica ao recurso da Ré/Recorrente, pelo que, deve manter-se a decisão da Primeira Instância quanto à nulidade das facturas e dos contratos com a descrição de “Campanhas Promocionais” e “Acção Promocional – Extra Investimento “Campanhas Promocionais”, respectivamente, desde a data das suas emissões, mas devendo, também, serem consideradas NULAS as facturas emitidas com Penalidades por Falta de Qualidade, porquanto tal descrição da acção deveria revestir a forma legal de nota de débito com referência às factura(s) emitida(s) pela Recorrida e, assim decidindo, farão Vossas Excelências, como sempre,»
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- se os contratos não são nulos
- se deve ser ordenada a produção de prova por parte da apelada quanto aos valores de sobrepreço
- se a apelante deve ser condenada no que vier a ser liquidado nos termos do nº 2 do art. 609º do CPC
- abuso do direito e litigância de má fé
- nulidade das facturas emitidas com penalidades por falta de qualidade
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III – Fundamentação
A) Na sentença recorrida vem dado como provado:
1. A Autora exerce a actividade comercial de pesca costeira e comércio de pescado;
2. A A. está certificada pelo IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, IP, como Pequena Empresa desde 2014 a 2022.
3. O risco empresarial da actividade desenvolvida pela A. é muito grande, dado que depende das incertezas das condições meteorológicas, a que se associam as condições de boa navegabilidade e às incertezas dos processos biológicos, agravados pelas características do maior ou menor grau de perecibilidade do pescado.
4. A Autora, operadora na cadeia alimentar de abastecimento através de produtos agrícolas primários, onde se incluem produtos da pesca e da aquicultura, na qualidade de produtora, forneceu pescado à Ré, operadora na cadeia alimentar na qualidade de distribuidora de pescado e de produtos alimentares, desde Março de 2009 até ao mês de Julho de 2020.
5. Em 23 de Março de 2009 foi celebrado entre Autora e Ré o Contrato de Condições Gerais de Fornecimento de pescado, com início nessa mesma data e termo em 22 de Março de 2010, renovando- se automaticamente, por períodos sucessivos de um ano, caso não fosse denunciado por qualquer das partes, por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 60 dias relativamente ao termo do prazo em vigor.
6. Nos termos da cláusula décima desse contrato, qualquer alteração ao seu clausulado deveria constar de documento escrito e assinado pelas partes.
7. Dispõe-se na cláusula quarta ponto 4.1.2 em conjugação com o ponto 8.1 do anexo I ao mesmo contrato, que a Ré obrigou-se a efectuar o pagamento do preço acordado para cada encomenda a 65 dias do resumo mensal de facturas com 1% de desconto financeiro, sem prejuízo do direito à compensação total ou parcial com créditos de que seja titular sobre a Autora.
8. O Anexo II ao contrato geral de fornecimento, referente a “Penalizações” dispõe que:
«constitui direito da(s) primeira(s) contraente(s), ao abrigo do presente contrato, ser(em) indemnizada(s) procedendo à emissão das correspondentes notas de débito, sempre que se verificarem as seguintes situações abaixo descritas:
1. Qualidade
Em caso de não conformidade do produto com as normas em vigor ou com o que contratualmente tiver sido estabelecido, a segunda contraente indemnizará a primeira contraente em causa, podendo esta emitir a correspondente nota de débito, de acordo com a seguinte fórmula:
(preço de compra x 0,2) x (quantidade rejeitada)
2. Quantidade
A segunda contraente obriga-se a indemnizar a primeira contraente em causa, podendo este emitir notas de débito por insatisfação total ou parcial de encomendas efectuada para entrega em dias pré-determinados e não satisfeitas, sendo o valor da indemnização calculado da seguinte forma:
(preço de compra x 0,2) x (quantidade não entregue)
O disposto neste número é aplicável em caso de atraso na entrega do produto encomendado, desde que
a sua recepção seja recusada com esse motivo.
Excepcionam-se as encomendas não entregues por causa imputável à Ré ou por impossibilidade determinada por motivos de força maior, desde que tal circunstância seja comunicada, por escrito, no
prazo de 24 horas sobre a colocação da encomenda.»
9. Em 19 de Abril de 2012 as partes celebraram um aditamento ao contrato, com efeitos a partir de 1 de Maio de 2012 e termo em 30 de Abril de 2013, alterando as condições de pagamento que passaram a ser as seguintes:
a) As facturas emitidas de 1 a 7 de cada mês, seriam agrupadas e apresentadas a pagamento no primeiro dia útil após o dia 7 e pagas no dia 15
b) as facturas emitidas de 8 a 15 de cada mês, seriam agrupadas e apresentadas a pagamento no primeiro dia útil após o dia 15 e pagas no dia 22
c) as facturas emitidas de 16 a 22 de cada mês, seriam agrupadas e apresentadas a pagamento no primeiro dia útil após o dia 22 e pagas no dia 30
d) as facturas emitidas de 23 ao último dia de cada mês, seriam agrupadas e apresentadas a pagamento no primeiro dia útil do mês seguinte e pagas no dia 7 desse mês seguinte.
10. Nos termos da cláusula segunda do mesmo aditamento ficou exarado que as restantes condições de pagamento, designadamente, as respeitantes aos descontos financeiros, se mantinham inalteradas.
11. Autora e Ré desenvolveram as suas relações comerciais de acordo com o teor do contrato de condições gerais de fornecimento de pescado, desde a data do seu início até ao final do ano de 2012.
12. A partir de 2013 e até julho de 2020 a Ré passou a emitir facturas com o seguinte texto/descrição: - “Descrição da Acção” mencionando, nomeadamente, o seguinte: «Tipo de Contrato: Acção Promocional (Extra Investimento)» e indicando como «Descrição da Acção – Campanhas Promocionais» e «Penalidades por falta de qualidade».
13. Neste período o relacionamento entre Autora e Ré passou a desenvolver-se da seguinte forma:
a) A Autora emitia facturas sempre que fornecia pescado à Ré;
b) No final de cada mês a Ré emitia os seguintes documentos:
- Factura datada do final do mês correspondente ao fornecimento, mencionando o Tipo de Contrato:
«Acção Promocional (Extra Investimento)»;
- «Contrato de Acção Promocional – Extra Investimento», datado em média 10 dias após o final do mês, com data início do primeiro dia do mês de fornecimento, final do último dia do mês de fornecimento
- comunicação através de correio electrónico, solicitando o envio do(s) contrato(s) datado(s), assinados e carimbados;
c) A Autora enviava por correio electrónico os documentos/contratos atrás mencionados, devidamente assinados e carimbados.
d) A Ré lançava as facturas por si emitidas cuja descrição mencionava «Contrato de Acção Promocional - Extra Investimento|Campanhas Promocionais» – «Penalidades por falta de qualidade» - em conta corrente e após esse acto, pagava o valor mensal facturado pela A. à Ré pelo fornecimento de pescado, deduzido do montante das suas facturas.
14. A Ré debitou à Autora, nos termos supra descritos, no ano de 2014 as seguintes facturas (Acção Promocional, Extra-Investimento - Campanhas Promocionais):
a) Ft. nº ..., datada de 31.01.2014, do montante de €1.512,92, referente ao contrato nº ...; Doc. nº 13
b) Ft. nº ..., datada de 28.02.2014, do montante de €2.073,89, referente ao contrato nº. ...; Doc. nº 14
c) Ft. nº ..., datada de 31.03.2014, do montante de €3.379,77, referente ao contrato nº. ...; Doc. nº 15
d) Ft. nº ..., datada de 30.04.2014, do montante de €3.229,32, referente ao contrato nº ...; Doc. nº 16
e) Ft. nº ..., datada de 31.05.2014, do montante de €5.743,21, referente ao contrato nº ...; Doc. nº 17
f) Ft. nº ..., datada de 30.06.2014 do montante de €48.131,12, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 18
g) Ft. nº ..., datada de 31.07.2014 do montante de €89.799,96, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 19
h) Ft. nº ..., datada de 31.08.2014 do montante de €63.605,01, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 20
i) Ft. nº ..., datada de 30.09.2014 do montante de €39.941,09, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 21
j) Ft. nº ..., datada de 31.10.2014 do montante de €3.912,63, referente ao contrato nº ...; Doc. nº 22
l) Ft. nº ..., datada de 30.11.2014 do montante de €59.480,32, referente aos contratos nºs. ..., ... e ..., Doc. nº 23,
tudo perfazendo a quantia total de €320.809,24 (trezentos e vinte mil oitocentos e nove euros e vinte e quatro cêntimos).
15. A Ré debitou à Autora, nos termos supra descritos, no ano de 2015, as seguintes facturas (Acção Promocional, Extra-Investimento - Campanhas Promocionais):
a) Ft. nº ..., datada de 31.01.2015, do montante de €4.473,44, referente ao contrato nº ...; Doc. nº 24
b) Ft. nº ..., datada de 28.02.2015, do montante de €41.751,64, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 25
c) Ft. nº ..., datada de 31.03.2015, do montante de €33.854,46, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 26
d) Ft. nº ..., datada de 30.04.2015, do montante de €68.375,64, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 27
e) Ft. nº ..., datada de 31.05.2015, do montante de €24.296,09, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 28
f) Ft. nº ..., datada de 30.06.2015, do montante de €81.222,18, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 29
g) Ft. nº ..., datada de 31.07.2015, do montante de €33.704,14, referente aos contratos nºs. ..., ..., ... e ...; Doc. nº 30
h) Ft. nº ..., datada de 31.08.2015, do montante de €71.810,73, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 31
i) Ft. nº ..., datada de 30.09.2015, do montante de €35.588,36, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 32
j) Ft. nº ..., datada de 31.10.2015, do montante de €53.969,41, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 33
l) Ft. nº ..., datada de 30.11.2015 do montante de €25.636,12, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 34
m) Ft. nº ..., datada de 31.12.2015 do montante de €18.696,47, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 35,
tudo perfazendo a quantia total de €493.378,68 (quatrocentos e noventa e três mil trezentos e setenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos).
16. A Ré debitou à Autora, nos termos supra descritos, no ano de 2016, as seguintes facturas (Acção Promocional, Extra-Investimento - Campanhas Promocionais):
a) Ft. nº ..., datada de 31.01.2016, do montante de €24.084,94, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 36
b) Ft. nº ..., datada de 29.02.2016, do montante de €36.101,61, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 37
c) Ft. nº ..., datada de 31.03.2016, do montante de €29.572,26, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 38
d) Ft. nº ..., datada de 30.04.2016, do montante de €32.725,42, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 39
e) Ft. nº ..., datada de 31.05.2016, do montante de €63.335,27, referente aos contratos nºs ..., ... e1000116322; Doc. nº 40
f) Fts. nº ..., datada de 30.06.2016, do montante de €963,09 e nº ... de 30.06.2016 do montante de €63.957,18 referente aos contratos nºs ... e ... e ..., totalizando €64.920,27; Doc. nº 41
g) Ft. nº ..., datada de 31.07.2016, do montante de €65.255,36, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 42
h) Ft. nº ..., datada de 31.08.2016, do montante de €89.809,63, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 43
i) Ft. nº ..., datada de 30.09.2016, do montante de €64.743,07, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 44
j) Ft. nº ..., datada de 31.10.2016, do montante de €37.742,00, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 45
l) Ft. nº ..., datada de 30.11.2016 do montante de €60.420,24, referente aos contratos nºs. ..., ... e .... Doc. nº 46;
m) Ft. nº ..., datada de 31.12.2016 do montante de €32.410,56, referente aos contratos nºs. ..., ... e .... Doc. nº 47,
tudo perfazendo a quantia total de €601.120,63 (seiscentos e um mil cento e vinte mil e sessenta e três cêntimos).
17. A Ré debitou à Autora, nos termos supra descritos, no ano de 2017, as seguintes facturas (Acção Promocional, Extra-Investimento - Campanhas Promocionais):
a) Ft. nº ..., datada de 31.01.2017, do montante de €9.782,81, referente aos contratos nºs. ... e .... Doc. nº 48
b) Ft. nº ..., datada de 28.02.2017, do montante de €45.205,21, referente aos contratos nºs. ..., ... e ... e Ft. nº ..., datada de 28.02.2017 do montante de €111,93 referente ao contrato nº ..., totalizando o valor de €45.317,14; Doc. nº 49
c) Ft. nº ..., datada de 31.03.2017, do montante de €18.145,58, referente aos contratos nºs. ... e ...; Doc. nº 50
d) Ft. nº ..., datada de 30.04.2017, do montante de €31.405,91, referente aos contratos nºs. ..., ..., ..., ... e ...; Doc. nº 51
e) Ft. nº ..., datada de 31.05.2017, do montante de €26.463,18, referente aos contratos nºs ... e ...; Doc. nº 52
f) Ft. nº ..., datada de 30.06.2017, do montante de €18.284,60, referente ao contrato nº ...; Doc. nº 53
g) Ft. nº ..., datada de 31.07.2017, do montante de €12.406,70, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 54
h) Ft. nº ..., datada de 31.08.2017, do montante de €13.084,60, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 55
i) Ft. nº ..., datada de 30.09.2017, do montante de €18.585,46, referente aos contratos nºs. ..., 1000153647e ...; Doc. nº 56
j) Ft. nº ..., datada de 31.10.2017, do montante de €15.570,08, referente aos contratos nºs. ..., ..., ... e ...; Doc. nº 57
l) Ft. nº ..., datada de 30.11.2017 do montante de €8.153,06, referente aos contratos nºs. ..., ... e ...; Doc. nº 58
m) Ft. nº ..., datada de 31.12.2017 do montante de €2.563,63, referente aos contratos nºs. ..., ... e ..., Doc. nº 59,
tudo perfazendo a quantia total de €219.762,75 (duzentos e dezanove mil setecentos e sessenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos).
18. A Ré debitou à Autora, nos termos supra descritos, no ano de 2018, as seguintes facturas (Acção Promocional, Extra-Investimento - Campanhas Promocionais):
a) Ft. nº ..., datada de 31.01.2018, do montante de €1.632,03, referente aos contratos nºs ... e ...; Doc. nº 60;
b) Ft. nº ..., datada de 30.06.2018, do montante de €2.173,20, referente ao contrato nº. ...; Doc. nº 61;
c) Ft. nº ..., datada de 31.07.2018, do montante de €2.348,70, referente aos contratos nºs. ... e .... doc. nº 62;
d) Ft. nº ..., datada de 30.08.2018, do montante de €1.073,46, referente aos contratos nºs. ... e .... doc. nº 63;
e) Ft. nº ..., datada de 30.09.2018, do montante de €2.229,99, referente ao contrato nº .... doc. nº 64;
f) Ft. nº ..., datada de 31.10.2018, do montante de €5.102,04, referente aos contratos nºs. ... e ... doc. nº 65;
g) Ft. nº ..., datada de 30.11.2018, do montante de 1.034,71, referente aos contratos nºs. ... e .... (doc. nº 66, que se dá por integrado),
tudo perfazendo a quantia total de €15.594,13 (quinze mil quinhentos e noventa e quatro euros e treze cêntimos).
19. A Ré debitou à Autora, nos termos supra descritos, no ano de 2019, as seguintes facturas (Acção Promocional, Extra-Investimento - Campanhas Promocionais):
a) Ft. nº ..., datada de 31.03.2019, do montante de €9.273,72, referente ao contrato nº. ... - doc. nº 67, que se dá por integrado;
b) Ft. nº ..., datada de 30.04.2019, do montante de €12.101,73, referente aos contratos nºs. ... e ... (este por Penalidades por falta de Qualidade no valor de 745,20 euros) - doc. nº 68;
c) Ft. nº ..., datada de 31.05.2019, do montante de €3.432,88, referente ao contrato nº .... doc. nº 69;
d) Ft. nº ..., datada de 30.06.2019, do montante de €35.602,11, referente ao contrato nº ... e ... (este por Penalidades por falta de Qualidade no montante de 127,50 euros) - doc. nº 70;
e) Ft. nº ..., datada de 31.07.2019, do montante de €55.304,19, referente ao contrato nº. ... (que inclui Penalidades por falta de Qualidade no valor de 1.071,36 euros). - doc. nº 71;
f) Ft. nº ..., datada de 31.08.2019, do montante de €36.900,00, referente ao contrato nº... - doc. nº 72;
g) Ft. nº ..., datada de 30.09.2019, do montante de €65.339,59, referente aos contratos nºs ... e ... (este por Penalidades por falta de Qualidade no valor de 1.184,40 euros) - doc. nº 73;
h) Ft. nº ..., datada de 31.10.2019, do montante de €36.900,00, referente ao contrato nº .... (doc. nº 74, que se dá por integrado),
tudo perfazendo a quantia total de €254.854,22 (quinze mil quinhentos e noventa e quatro euros e treze cêntimos).
20. O valor da facturação da Autora à Ré durante os anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 ascendeu a €5.042.767,62 (cinco milhões quarenta e dois mil setecentos e sessenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos), com IVA incluído.
21. A Ré comunicou à Autora que, caso não aceitasse a emissão e assinatura das facturas e contratos referidos, deixaria de fornecer pescado à Ré.
22. A Autora apenas assinou e aceitou os documentos referidos por temer que a Ré deixasse de lhe comprar o pescado.
23. Em Agosto de 2020, a Autora recusou-se a assinar os contratos mencionados.
24. A partir desse momento a Ré deixou de solicitar encomendas à Autora.
25. A Autora moveu acção judicial contra a Ré requerendo a devolução dos pagamentos efectuados desde 1 de Janeiro de 2020 até Agosto de 2020, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 3 Processo n.º 87513/20.2YIPRT, a qual foi definitivamente decidida por Acórdão da Relação de Lisboa, 2.ª Secção Cível, tendo a R. sido condenada a pagar à A. o montante de € 59.128,86, com juros de mora à taxa comercial legal, vencidos e vincendos até integral pagamento
26. Em 17 de Fevereiro de 2022 a A. notificou a Ré - através de Notificação Judicial Avulsa – que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Cível - Juiz 3, sob o Processo nº 3515/22.6T8LSB, requerendo o pagamento dos valores pagos a título de «Campanhas promocionais» e de «Penalidades por falta de qualidade», referentes aos anos de 2014 a 2019.
27. Em 24 de Novembro de 2022 a A. enviou uma carta interpelatória à Ré, registada e com aviso de recepção (RL ... PT), assinada pelo seu Mandatário, recepcionada pela Ré em 25.11.2022, a solicitar a atenção para o pagamento dos valores pagos indevidamente a título de Campanhas Promocionais.
28. A Pingo Doce integra-se no Grupo Jerónimo Martins, que conta com mais de dois séculos de história
29. No Código de Conduta constante do site www.jeronimomartins.pt pode ler-se que: «O Grupo Jerónimo Martins apoia todas as atividades que tendam a proibir a existência de atividades restritivas do livre comércio, práticas injustas ou abuso de posição negocial. O Grupo Jerónimo Martins opera de forma leal, em pleno respeito das condições contratuais acordadas, com todos os seus fornecedores e parceiros e espera o mesmo comportamento da parte destes.».
30. Também disponível no site oficial do Grupo Jerónimo Martins se encontra o Código de Conduta de Fornecedores, que estabelece os princípios base fundamentais a qualquer relação comercial das empresas do Grupo com os fornecedores, aos quais é exigido que «mantenham elevados padrões de comportamento, pelo que, o Grupo Jerónimo Martins procura, de forma activa, relacionar-se com entidades que partilhem o mesmo quadro de princípios e valores éticos por si seguidos, designadamente em matéria laboral, ambiental e que possam ter impacto na qualidade e segurança dos produtos colocados ao dispor dos clientes.».
31. A Pingo Doce explora mais de 470 Lojas em Portugal, contando com mais de 30 mil trabalhadores, procurando servir os seus clientes com produtos de qualidade, aos melhores preços, apostando fortemente em sucessivas e constantes campanhas promocionais, sendo inclusivamente o seu slogan “Pingo Doce… Sabe bem pagar tão pouco”.
32. Para entregar os preços mais competitivos aos seus clientes, a R. procura o preço mais baixo junto dos seus fornecedores.
33. A imprevisibilidade da disponibilidade do produto pescado fresco, por vezes sazonal e sempre fortemente influenciado pelas condições meteorológicas e marítimas, é uma das razões pelas quais a R. necessita dos seus fornecedores para comprar todas as quantidades de pescado pedidas pelas suas Lojas, sob pena de não conseguir comprar toda a quantidade de pescado que necessita colocar à venda nas suas lojas.
34. À data dos factos em causa nos presentes autos, a Ré negociava e mantinha a sua relação comercial com a maioria dos fornecedores de pescado em termos semelhantes àqueles que mantinha com a Autora.
35. Em termos práticos a R. lida com os seus fornecedores de pescado fresco nos seguintes termos:
• As Lojas Pingo Doce submetem centralmente os pedidos de tipos e quantidades de peixe que pretendem vender na secção de peixaria das Lojas;
• A direcção comercial de peixaria centraliza os pedidos e procura as quantidades pretendidas junto dos seus fornecedores;
• Os fornecedores confirmam se têm ou não disponibilidade de produto e se o aceitam vender a determinado preço;
• O preço acordado com o fornecedor é facturado por este.
36. No sector do pescado fresco e para determinadas espécies de pescado, a facturação do preço acordado com os fornecedores pode ter associados descontos rappel sobre o valor, descontos sobre a quantidade, ajustes ao preço inicialmente facturado e penalidades por falta de quantidade ou de qualidade.
37. O Rappel Comercial é um desconto concedido a um cliente, sempre que este atinja um determinado volume de compras.
38. Na prática, é acordado com o fornecedor que, mediante determinado volume de compras, é aplicada determinada percentagem de desconto sobre o valor.
39. O desconto comercial sobre a quantidade depende do número de produto adquirido, ou seja, perante uma maior quantidade de produto o fornecedor oferece ao cliente um desconto associado.
40. O mercado do pescado é volátil, dependente das condições atmosféricas, marítimas e de navegação e, consequentemente, este produto é especialmente sensível a oscilações de preço.
41. Dada a celeridade diária do processo de negociação e colocação da encomenda, a R. propõe e o fornecedor aceita facturar determinada espécie de pescado, a um determinado preço por kg – o preço ficcionado - que passa a constar da factura emitida pelo fornecedor que a Ré paga; num segundo momento, as partes acordam o preço exacto por Kg de pescado, sendo o valor pago em excesso pela Ré abatido à conta corrente através da emissão duma nota de débito.
42. Na relação comercial entre Autora e Ré foi aplicada esta modalidade de formação de preço.
43. No âmbito do processo n.º 87513/20.2YIPRT.L1 supra mencionado, foram julgados provados, entre outros, os seguintes factos:
«(…) 12. Autora e ré acordaram que o preço/kg da sardinha seria fixado em 5€, viabilizando a imediata emissão da nota de encomenda pela ré e a emissão da correspondente factura pela autora.
13. A ré procedia ao pagamento das facturas referentes a sardinha nos termos acordados e posteriormente procedia ao respectivo acerto de preço, de acordo com o preço efectivo da sardinha.
14. O valor excedente facturado pela Autora e pago pela Rè era convertido em nota de débito, emitida pela Ré.
15. A autora recebia a nota de débito, assinava-a, devolvia-a à ré, que abatia o valor do débito ao valor a pagar àquela.
16. O valor fixado de 5€ por kg foi sempre superior ao valor de custo suportado pela Autora.
17. A relação comercial existente entre a autora e a ré desenrolou-se dessa forma, pelo menos, nos anos de 2018 e 2019, tendo sempre a autora assinado notas de débito referentes ao ano de 2018 e 2019».
44. O modelo de negócio de fixação de preço acordado entre A. e R. aplicava-se à sardinha, carapau, cavala, sarda, safio e verdinhos.
45. Tanto os descontos rappel e de quantidade, como o valor de sobrepreço eram controlados e validados internamente pela Ré.
46. Aquando da recepção da mercadoria nos seus armazéns, a R. procede a uma inspecção do pescado fresco por técnicos qualificados.
47. A mercadoria é inspecionada de modo a obedecer a rigorosos critérios de frescura, aspecto e consistência.
48. Caso a mercadoria não cumpra tais critérios, a mesma é rejeitada e é dado conhecimento ao fornecedor das razões da rejeição, podendo este solicitar a sua devolução ou destruição.
49. A quantidade rejeitada, as razões da rejeição e eventuais fotografias das desconformidades do produto são carregadas na plataforma informática QMS, à qual A. e R. têm acesso.
50. Não sendo aceite a mercadoria por falta de qualidade, a mesma não é distribuída pelas Lojas da R., com a consequente perda de vendas para esta.
51. A Ré emitiu as seguintes facturas referentes a penalidades por falta de qualidade:
• Factura n.º ... no valor de € 745,20;
• Factura n.º ... no valor de € 127,50;
• Factura n.º ... no valor de € 1.071,36;
• Factura n.º ... no valor de € 1.184,40.
52. Nos dias 10, 17, 18 e 19 de Abril de 2019 a Ré rejeitou, respectivamente, 121 caixas com 605 Kg de carapau pequeno; 188 caixas de verdinhos; 2 caixas de sarda e 60 caixas de carapau pequeno; e 200 caixas de sarda e 50 caixas de carapau pequeno, fornecidas pela Autora, com fundamento em falta de qualidade;
53. A A. foi informada das rejeições ocorridas nos fornecimentos de 10, 17, 18 e 19 de Abril de 2019.
54. No dia 04.06.2019 a R. rejeitou 510kg de pescado fresco fornecido pela A., com fundamento em “unidades com barriga rebentada e a espinhar”.
55. Nos dias 24 e 26 de Julho a Ré rejeitou, respectivamente, 372 caixas e 2 caixas de sardinha fornecida pela Autora com fundamento em falta de qualidade;
56. A A. foi informada das rejeições ocorridas nos fornecimentos de 24 e de 26 de Julho de 2019.
57. Em 5 e 8 de Agosto de 2019 a R. rejeitou um total de 2610kg de pescado fornecido pela A., por falta de qualidade.
58. No e-mail de 11.02.2016 enviado pela R. à A. pode ler-se:
«Bom dia, Segue em anexo o débito de Janeiro. Agradeço o envio do mesmo assinado e carimbado. Qualquer dúvida referente ao valor, agradeço que contactem o gestor de categoria BB. Tratando-se de um processo auditado mensalmente, a devolução».
59. Pode, por sua vez, ler-se na resposta da A., enviada por AA: «Bom dia, Envio em anexo os documentos assinados e carimbados».
60. Após a citação da injunção apresentada pela Autora, a Ré tentou agendar, sem sucesso, uma reunião com esta, para esclarecer as dúvidas existentes quanto a débitos.
61. A Ré enviou um e-mail à Autora em 27.10.2020 onde se lê:
“Boa tarde AA,
Volto a reforçar que faz sentido termos uma reunião para discutir uma série de temas.
Até porque existem alguns valores de débitos que pelo que entendi existem dúvidas e queremos esclarecer tudo e mostrar que está tudo com base no acordado.
Peço assim, mais uma vez, que nos indique uma data em que possamos reunir e falar.».
62. No âmbito da acção nº 87513/20.2YIPRT.L1, tendo sido aberta a audiência de discussão e julgamento com a tentativa de conciliação, as partes, A. e R., declararam o seguinte: «Aberta a Audiência pela Mmª Juíza, pelos Ilustres Mandatários das partes foi pedida a palavra, tendo-lhes sido concedida, no seu uso, disseram que existem fortes possibilidades de composição amigável do litígio, requerendo para o efeito a suspensão dos autos por vinte dias para atingir tal desidrato, o qual passará pela retoma da relação comercial.».
63. Os documentos intitulados de “campanhas promocionais” não reflectem promoções sobre o pescado comprado à A..
64. Os documentos intitulados «campanhas promocionais» não reflectem promoções nem passadas, nem actuais, nem diferidas no tempo.
*
B) E vem, dado como não provado:
1. A Ré é titular de uma quota de mercado de 33% no sector do pescado, onde detém posição dominante.
2. No mercado da distribuição alimentar, a Ré detém, também, posição dominante, conjuntamente com o “Modelo Continente”, sector de elevado nível de concentração, representando uma quota próxima de 50% da referida distribuição.
3. Entre 2009 até dezembro de 2019, o volume de encomendas de pescado da Ré representava as seguintes percentagens da produção da Autora:
- Em 2009 - 100%;
- Em 2010 - 97%;
- Em 2011 - 100%;
- Em 2012 - 81%;
- Em 2013 - 51%;
- Em 2014 - 53%;
- Em 2015 - 58%;
- Em 2016 - 43%;
- Em 2017 - 32%;
- Em 2018 - 7%;
- Em 2019 - 31%.
4. Nos anos em que a Autora reclamava da emissão das facturas da Ré, a Ré diminuía as suas encomendas;
5. A partir de 2014, mas com maior significado a partir de 2017 e até 2019, a Ré foi gradualmente diminuindo as suas encomendas.
6. O preço médio de venda de um quilograma de pescado cifrava-se em €2,06 e a Ré emitia facturas que representam um desconto médio de €0,78; donde, o preço médio real de venda do pescado fornecido à Ré baixava para €1,28 (€2,06 - €0,78).
7. O custo médio de produção por quilograma para a A. no período de 2014 a 2019 cifrou-se em €0,42 (que inclui custos logísticos e custos de estrutura)
8. A Ré sabia que o grau médio de dependência comercial da Autora face à Ré, durante os anos de 2014 a 2019 representava 52%.
9. A Ré tem uma quota de mercado de 21%.
10. As notas de débito “acção promocional” emitidas pela Ré reflectem os ajustes de preço e também os já mencionados descontos rappel, descontos quantidade e ainda as penalidades por falta de qualidade ou quantidade.
11. As facturas são enviadas pela R. ao fornecedor, acompanhadas das notas de débito “acção promocional”, que sustentam a factura.
12. O desconto rappel foi acordado com a A. desde 2013.
13. À medida que o volume de compras à A. foi aumentando, a percentagem do rappel aplicado foi sendo actualizada anualmente.
14. Em 2013 o valor do rappel acordado com a A. era de 2%.
15. Entre os anos de 2014 a 2016 o valor do rappel acordado com a A. era de 3,5%.
16. Entre os anos de 2017 a 2019 o valor do rappel acordado com a A. era de 5%. Doc 3
17. O desconto sobre quantidade acordado entre A. e R. era de 0,05c (cinco cêntimos) por kg comprado Doc 4.
18. Pelo menos desde o ano de 2013, que A. e R. acordaram na formação de preço em dois momentos distintos, tendo a Autora emitido facturas referentes aos fornecimentos dos anos de 2014 e 2019, inserindo nas mesmas o valor ficcionado acordado com a R.
19. A A. sabe e não pode desconhecer que as campanhas promocionais são antes notas de débito destinadas a acertar preço e aplicar descontos previamente acordados.
20. As facturas emitidas pela Autora reflectem preços/kg de pescado superiores aos devidos.
21. À medida que a Autora encontrava outros compradores de pescado que, porventura, melhor atendessem às suas expectativas, menos pescado vendia à Ré.
22. A Autora deixou de aceitar encomendas da Ré a partir de Agosto de 2020.
23. Os documentos intitulados “campanhas promocionais” reflectem notas de débitos de descontos e ajustes de preço, conforme acordado entre as partes.
24. As notas de débito emitidas pela R. e faturadas à A., espelhavam o acordo das partes quanto à dinâmica da determinação de preço do produto.
*
C) Rectificação e aditamentos sobre as referências ao Proc. 87513/20.2YIPRT.L1 que se mostram relevantes, considerando o que consta nos pontos 25 e 43 da matéria de facto julgada provada pela 1ª instância e o que foi alegado na petição inicial (art. 18º) e na contestação (designadamente, art. 127º, 243º, 244º, 245, 246º, 251º, 252º, 254º, 255º) – ao abrigo do disposto nos art. 607º nº 4 e 663º nº 2 do CPC):
1. rectificação
No ponto 25, que reproduz parcialmente o art. 18º da petição inicial, consta que na referida acção a ora apelada «requereu a devolução dos pagamentos efectuados desde 1 de Janeiro de 2020 até Agosto de 2020». Porém, resulta do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação que não foi pedida devolução de pagamentos, mas sim a condenação da ora apelante no pagamento de facturas de fornecimentos de pescado.
Assim, o ponto 25 passa a ter esta redacção:
«A Autora moveu acção judicial contra a Ré que correu termos no Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 3 Processo nº 87513/20.2YIPRT, que foi definitivamente decidida por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, 2ª Secção Cível, em 29/09/2022, que condenou a Ré a pagar à A. o montante de 59.128,86 € (que inclui IVA à taxa de 6%) com juros de mora à taxa comercial legal vencidos e vincendos até integral pagamento».
2. aditamentos
25. a) A referida acção iniciou-se com requerimento de injunção apresentado contra Pingo Doce, SA em 15/10/2020 com vista ao pagamento de 61.003,12 € a título de capital e 1.039,13 € a título de juros de mora.
25. b) Face à oposição à injunção deduzida por Pingo Doce, SA, o processo foi remetido ao tribunal, prosseguindo como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.
25. c) No acórdão lê-se, designadamente:
- que a autora «alegou, em síntese, que exerce a actividade comercial de compra, venda e manipulação de pescado fresco e refrigerado e que celebrou com a requerida – que exerce a actividade comercial de compra e venda de produtos alimentares enquanto titular de vários supermercados que utilizam a marca Pingo Doce – um contrato de fornecimento de pescado, obrigando-se a requerida a liquidar a totalidade das facturas emitidas por aquela; no exercício da sua actividade comercial, forneceu à requerida várias espécies de pescado fresco, devidamente discriminadas nas facturas emitidas, contendo como condição de pagamento o prazo de 8 dias após a data desses fornecimento, por lhe terem sido comunicadas as exactas condições de pagamento e que se encontram expressas nas citas facturas; a requerida não pagou as facturas em causa, pelo que deve ser condenada a pagá-las com juros moratórios contados desde a respectiva data de vencimento das facturas à taxa de juros comercial até pagamento»,
- que a ré excepcionou, alegando:
«(…) com efeito, a requerente bem sabe que, no desenrolar da relação comercial com a requerida, era habitual esta proceder à emissão de notas de débito por acções promocionais, penalidades por falta de qualidade e análises de controlo de qualidade; (…) a relação comercial existente entre a requerente e a requerida desenrolou-se dessa forma pelo menos nos anos de 2018 e 2019; tendo sempre a requerente assinado notas de débito referentes aos anos de 2018 e 2019 (…)»,
- «Apreciação dos recursos
(…)
Dos fornecimentos da autora
(…)
Dos créditos da ré até 07/07/2020
(…)
No recurso, a ré engloba as facturas 2734 e 6784 num conjunto com a 8340, todas as três genericamente descritas como dizendo respeito a campanhas promocionais, e argumenta como se todas elas se referissem às diferenças entre o valor fixo da sardinha constante das facturas da autora e o valor que as sardinhas teriam em cada um dos dias de fornecimento – ou seja, todas elas corresponderiam ao que resulta dos factos provados sob 10 a 17.
Mas não era essa a argumentação da ré na oposição à injunção; quanto às facturas 2734 e 6783 limitava-se a dizer que elas constavam da conta-corrente da autora e que se referiam a notas de débito emitidas pela ré e aceites pela autora, remetendo para os documentos respectivos.
Só quanto aos documentos posteriores a 07/07/2020, como se vê do relatório deste acórdão, e, por isso, apenas com aproveitamento para a factura 8340, é que a ré dizia que era referente à diferença do preço da sardinha.
(…)
Seja como for …
Voltando ao que era dito pela ré quanto às duas facturas agora em causa, ou seja, 2734 e 6784, isto é, o que constava dos documentos:
Pegando nos documentos respectivos reproduzidos no facto 8, temos desde logo a factura 2734 que se refere a campanhas promocionais e tem data de 31/03/2020.
Ora, a remessa genérica numa factura para “campanhas promocionais”, sem absolutamente mais nada, sem sequer a remessa para um qualquer outro documento que lhe servisse de suporte, não serve minimamente para indicar à autora e ao tribunal por que serviço ou por que compra é que a ré está a cobrar tal valor á autora e, obviamente, o tribunal só poderia aceitar tal valor se soubesse aqueles dados. Ninguém pode pedir o pagamento de uma factura sem dizer a que é que ela se refere – qual foi o serviço prestado ou o bem comprado e quando é que ele foi prestado ou quando é que a compra ocorreu. Até porque, de contrário, tal pedido poderia voltar a ser feito, e o devedor não poderia retorquir que já o tinha pago ou já tinha sido condenado a pagá-lo. (…)
A ré não fez isso na oposição à injunção mas agora, no recurso, vem dizer em relação a esta factura – como às outras duas (6784 e 8340) de que se falará mais à frente – que ela era uma das do acerto do preço da sardinha.
(…)
(…) Os factos 10 a 17 permitem dizer que as partes actuaram em geral do modo aí descrito, mas deles não resulta – nem podia resultar porque a ré nunca antes o tinha dito, ao menos para as duas primeiras – que as facturas 2374, 6487 e 8340 sejam facturas de acertos de preços.
(…) Ou seja, a ré sabia que precisava de algo para justificar os valores inscritos nas facturas e tentou obter esse apoio contratual enviando os documentos/”contratos” para assinatura da autora, só que a autora não assinou os “contratos” e a ré passou a fazer de conta que eles não eram necessários.
(…)»
*
D) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
1. Na conclusão H). da alegação da apelante lê-se: «(…) leva-nos a colocar em questão a necessária isenção que deverá estar subjacente à apreciação da prova produzida o que, s.m.o., não se verifica na sentença recorrida.».
Ao Tribunal da Relação compete reapreciar a prova e decidir se a 1ª instância julgou bem ou se incorreu em erro de julgamento. Procedemos pois, à audição integral da gravação da audiência final, à análise da prova documental e à análise da motivação da decisão sobre a matéria de facto.
*
2. Segundo a apelante deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos:
- 21, 22, 24 e 45 dos factos provados,
- 10, 11, 18, 19, 22, 23 e 24 dos factos não provados
Mais entende que deve ser julgado provado o que vem alegado no art. 221º da contestação.
*
Assim,
- pretende que seja julgado não provado:
«21. A Ré comunicou à Autora que, caso não aceitasse a emissão e assinatura das facturas e contratos referidos, deixaria de fornecer pescado à Ré» (ponto 21 dos factos provados)
«22.A Autora apenas assinou e aceitou os documentos referidos por temer que a Ré deixasse de lhe comprar o pescado» (ponto 22 dos factos provados)
«24. A partir desse momento a Ré deixou de solicitar encomendas à Autora» (ponto 24 dos factos provados)
- pretende que seja julgado provado:
«Pelo menos desde o ano de 2013, que A.e R. acordaram na formação de preço em dois momentos distintos, tendo a Autora emitidos facturas referentes aos fornecimentos dos anos de 2014 e 2019, inserindo nas mesmas o valor ficcionado acordado com a R.» (ponto 18 dos factos não provados)
«A Autora deixou de aceitar as encomendas da Ré a partir de Agosto de 2020» (ponto 22 dos factos não provados)
«A R. nunca deixou de ter interesse na manutenção da relação comercial» (art. 221º da contestação, e não 251º como por manifesto lapso de escrito consta na conclusão O
«As notas de débito “acção promocional” emitidas pela Ré reflectem os ajustes de preço e também os já mencionados descontos rappel, descontos quantidade e ainda as penalidades por falta de qualidade ou quantidade» (ponto 10 dos factos não provados)
«As facturas são enviadas pela R. ao fornecedor, acompanhadas das notas de débito “acção promocional” que sustentam a factura» (ponto 11 dos factos não provados)
« A A. sabe e não pode desconhecer que as campanhas promocionais são antes notas de débito destinadas a acertar preço e aplicar descontos previamente acordados.» (ponto 19 dos factos não provados»
«Os documentos intitulados “campanhas promocionais” reflectem notas de débitos de descontos e ajustes de preço, conforme acordado entre as partes» (ponto 23 dos factos não provados)
«As notas de débito emitidas pela R. e facturadas à A. espelhavam o acordo das partes quanto à dinâmica da determinação de preço do produto» (ponto 24 dos factos não provados)
«Tanto os descontos rappel e de quantidade, como o valor de sobrepreço eram controlados e validados internamente pela Autora e pela Ré» (ponto 45 dos factos provados – aditamento: «pela Autora»)
*
2.1. Apreciemos a pretensão da apelante sobre os pontos 10, 11, 19, 23, 24 dos factos não provados e ponto 45 dos factos provados
Está provado e não é impugnado:
- «63. Os documentos intitulados de “campanhas promocionais” não reflectem promoções sobre o pescado comprado à A.», «64. Os documentos intitulados “campanhas promocionais” não reflectem promoções nem passadas, nem actuais, nem diferidas no tempo», com esta motivação: «resultam do teor da contestação da Ré em que esta admite tal facto» e «a testemunha AA igualmente declara não ter feito qualquer promoção dos seus produtos à Ré».
A 1ª instância julgou não provado (factos alegados nos art. 108º a 114º da contestação) – e não é impugnado:
«12. O desconto rappel foi acordado com a A. desde 2013»
«13. À medida que o volume de compras à A. foi aumentando a percentagem do rappel aplicado foi sendo actualizada anualmente.»
«14. Em 2013 o valor do rappel acordado com a A. era de 3,5%.»
«15. Entre os anos de 2014 a 2016 o valor do rappel acordado com a A. era de 3,5%»
«16. Entre os anos de 2017 a 2019 o valor do rappel acordado com a A. erra de 5% (doc 3)»
«17. O desconto sobre quantidade acordado entre A. e R. era de 0,05 c (cinco cêntimos) por kg comprado (doc. 4)»
Sobre o facto julgado provado no ponto 45 a 1ª instância deu esta motivação:
«Deste artigo foi retirada a menção à Autora uma vez que as testemunhas, funcionários da Ré, não têm conhecimento suficiente para aferir se também ela fazia esse controlo e a testemunha BB declara que que não conseguia perceber o teor dos documentos enviados pela Autora, não se tendo provado que esta enviasse notas de débito ou qualquer outro documento com referências suficientes para que a Autora pudesse fazer o controlo dos débitos»
Diga-se, antes de mais, que é contraditória a pretensão de que seja julgado provado o que consta no ponto 24 (dos factos não provados - «As notas de débito emitidas pela R. e faturadas à A. espelhavam o acordo das partes quanto à dinâmica da determinação de preço do produto») com a alegação de que (…) tendo os débitos à Recorrida sido realizados por factura (…) naturalmente que não existem nos autos, nem poderiam existir documentos intitulados “notas de débito”», de que «a Autoridade Tributária esclarece que podem ser utilizadas faturas para realizar débitos» e de que «Não havia “nota de débito”, porque como vimos, não eram emitidas notas de débito, mas documentos (campanhas promocionais e faturas) que justificavam os débitos».
Portanto, ou são facturas, ou são notas de débito.
Certo é que nenhuma dos trabalhadores da apelante que depuseram como testemunhas foi capaz de dizer ao tribunal qual o motivo – e nem a apelante alegou o motivo na contestação - para terem sido debitadas à apelada quantias a título de acertos de preço, descontos e penalidades por meio de facturas com a descrição “Contrato de Acção Promocional – Extra Investimento”, “Campanhas Promocionais”. Ora, como não foi prestado algum serviço dessa espécie à apelada, seria de esperar que uma entidade com contabilidade organizada e de grande dimensão como a apelante (explora mais de 470 lojas em Portugal) não se bastasse com a justificação de que se trata de uma «infeliz designação».
Aliás, mesmo a tratar-se de uma «infeliz designação» nenhuma justificação foi alegada na contestação para a incidência de IVA à taxa de 23% sobre as quantias debitadas nessas facturas, quando é certo que o IVA sobre o pescado fresco e congelado é de 6% (cfr art. 18º nº 1 al a) do CIVA).
Segundo a apelante o nº 6 do art. 36º do CIVA permite a emissão de facturas para serem debitadas quantias a título de acertos de preço, descontos e penalidades. Porém, essa norma não prevê a emissão de facturas pelo cliente para cobrar tais débitos ao fornecedor, mas sim a emissão de documentos rectificativos, ao estatuir: « 6 - As guias ou notas de devolução e outros documentos retificativos de faturas devem conter, além da data e numeração sequencial, os elementos a que se refere a alínea a) do número anterior, bem como a referência à fatura a que respeitam e as menções desta que são objeto de alterações».
De referir que a testemunha FF, trabalhadora da apelante há 26 anos, sempre como técnica de contabilidade e que está na área de fornecedores de mercadoria para venda nas lojas há 12 anos, apesar de se recordar desta fornecedora, disse nada saber sobre negociações quanto a descontos, dizendo que os acordos são com a área comercial e por esta carregados no sistema informático, disse nada saber sobre campanhas promocionais apesar de emitir as facturas com essa referência - «não sei o que está por detrás», «Eu só vou ver se isto está assinado ou não», «se o fornecedor assinou ou não» - disse que uma nota de débito serve para corrigir uma factura mas também disse que «emitimos os descontos acordados na área comercial por uma factura«, com a justificação de que são vários tipos de descontos e referindo depois «não sou contabilista», «não sou fiscalista», tendo prestado um depoimento confuso, chegando a dizer que o Pingo até ficava prejudicado com a aplicação da taxa de 16% de IVA.
Por seu lado, a testemunha comum AA – disse que faz a gestão administrativa e comercial da apelada desde o início e é filho dos seus dois sócios -, à pergunta da apelante «Como é que fazia o controlo do que o Pingo Doce tinha a haver?», respondeu: «É simples. Eu não tinha hipótese de saber, porque o Pingo Doce não emitia notas de débito. Emitia facturas promocionais com valores completamente aleatórios, que eu não sei explicar nem vocês sabem»; disse que reclamou várias vezes aos trabalhadores da apelante, GG, HH, II e BB; disse que internamente a apelada fazia o controlo da diferença entre o preço ficcionado e o preço exacto depois acordado e explicou como deveriam ser apurados os valores para serem emitidas notas de débito pela apelante, mas esta não emitia notas de débito e sim facturas de campanhas promocionais com valores que não sabe explicar.
Porém, sustenta a apelante que o documento que foi admitido durante o depoimento da testemunha BB demonstra a falsidade das declarações de AA e permite concluir que a apelada fazia o controlo dos débitos a realizar pela apelante pelo método da emissão das ditas facturas.
Esse documento admitido contém comunicações electrónicas entre BB e AA, resultando que:
- em 08/05/2020 BB enviou a AA «um mapa explicativo da origem do valor» respeitante a uma «Nota de débito», em resposta ao email de AA de 04/05/2020 onde este disse que «Recebemos a nota de débito, que junto em anexo, todavia, não entendo a razão da mesma, pelo que, agradeço que me informe sobre a natureza da referida nota de débito.»;
- em 22/05/2020 AA respondeu: «Seguindo o mesmo raciocínio, relativamente ao mapa que me enviou, os nossos valores são diferentes, ou seja, o saldo até está a nosso favor. Agradeço que analise e comente o mapa que junto em anexo».
A apelante não juntou o «mapa explicativo da origem do valor».
Quanto ao mapa de AA, refere-se aos meses de Julho a Dezembro do ano de 2019 e aos meses de Janeiro a Março de 2020. Como nele constam valores referentes a rappel, diferença de preços e descontos, pretende a apelante fazer valer a sua tese de que foi acordada a aplicação de rappel e descontos por quantidade e bem assim a emissão das facturas para serem efectuados os débitos à apelada. Mas a expressão «Seguindo o mesmo raciocínio» não evidencia o acordo da apelada quer sobre a aplicação dos descontos (rappel e suas percentagens e descontos por quantidade) quer sobre a prática de emissão de facturas.
Portanto, a análise da prova documental e dos depoimentos das testemunhas não impõe decisão diversa da que foi proferida pela 1ª instância, mas deve ser aditada esta menção antecedendo o ponto 10 dos factos não provados:
«Sem prejuízo do que está provado nos pontos 51 a 57»
Improcede, nesta parte, a impugnação.
*
2.2. Sobre o ponto 18. dos factos não provados
A 1ª instância deu esta motivação:
«Não se provou em que data as partes acordaram na formação do preço do pescado de acordo com o método descrito».
Invoca a apelante o depoimento da testemunha AA e contradição com o que está provado nos pontos 12,13, 41 e 42
Está provado nos pontos 41 e 42:
«41. Dada a celeridade diária do processo de negociação e colocação da encomenda, a R. propõe e o fornecedor aceita facturar determinada espécie de pescado, a um determinado preço por kg – o preço ficcionado - que passa a constar da factura emitida pelo fornecedor que a Ré paga; num segundo momento, as partes acordam o preço exacto por Kg de pescado, sendo o valor pago em excesso pela Ré abatido à conta corrente através da emissão duma nota de débito.
42. Na relação comercial entre Autora e Ré foi aplicada esta modalidade de formação de preço.»
Do depoimento de AA resulta que essa foi a prática nos anos de 2014 e seguintes.
Por isso, impõe-se alterar o ponto 42 dos factos provados e eliminar o ponto 18 dos factos não provados.
Nesta conformidade decide-se eliminar esse ponto 18 e julgar provado:
«42. Na relação comercial entre Autora e Ré foi aplicada esta modalidade de formação de preço pelo menos desde 2014, tendo a Autora emitido facturas referentes aos anos de 2014 e seguintes inserindo nas mesmas o preço ficcionado como proposto pela R..»
*
2.3. Sobre o art. 221º da contestação
Aí vem alegado: «A Ré nunca deixou de ter interesse na manutenção da relação comercial»
Não indica a apelante qual o concreto meio probatório para fundamentar a sua pretensão, como impõe o art. 640º nº 1 al. b) do CPC. Além disso, o que interessa é o que consta nos pontos 21, 22 e 24 dos factos provados (impugnados pela apelante) e no ponto 22 dos factos não provados (impugnado pela apelante).
Improcede a impugnação nesta parte.
*
2.4. Sobre os pontos 21, 22 e 24 dos factos provados e o ponto 22 dos factos não provados
Antes de mais, cumpre dizer que inexiste a alegada contradição da decisão da 1ª instância quanto ao ponto 22 dos factos não provados e ao ponto 24 dos factos provados.
No que respeita à alegação de que «o tribunal a quo criou um facto -que dá como provado -que determina que a Recorrida assinou documentos que titulavam débitos por temer que, caso não o fizesse, a Recorrente deixava de lhe comprar pescado», «O termo “temor” foi, aliás, um termo escolhido oficiosamente pelo tribunal a quo em sede de sentença e em substituição do termo “coação”, invocada pela Recorrida ao longo da p.i, coação essa que o tribunal rejeitou em sede de despacho saneador», é de lembrar que na petição inicial vem alegado, designadamente:
«Em face da atitude comercial da Ré, em consequência da emissão das referidas facturas, (…) a A. recusou-se a assinar tais documentos»,
«Porém, a Ré informou a A. que se não aceitasse a emissão e assinatura das facturas e dos contratos (…) deixaria de lhe solicitar encomendas de pescado (…)»,
«Perante a ameaça produzida pela Ré, e dadas as circunstâncias de dependência comercial e económica da A., (…) a A. viu-se coagida a assinar os referidos contratos (…)»
No saneador a 1ª instância, para decidir a invocada excepção de caducidade, expôs, além do mais:
«Não há dúvida que a Autora alega ter assinado coagida os documentos que legitimaram a Ré a operar a compensação de créditos com os débitos que tinha perante a Autora pelos fornecimentos por esta efectuados.
Observa-se, porém, que o pedido apresentado não é o de anulação de um ou vários negócios jurídicos, com base em tal vício. A Autora apresenta um pedido de pagamento de um determinado valor coincidente com os supostos créditos da Ré, qualificando o comportamento negocial desta como abusivo.
Do que vem alegado pela Autora pode concluir-se que a causa de pedir da presente acção se centra na imputação à Ré de práticas negociais abusivas, alegando que esta, fazendo uso de um poder negocial superior ao da Autora ameaçou rescindir unilateralmente o contrato de fornecimento celebrado e assim a levou a aceitar os descontos que entendeu fazer sobre os preços acordados.».
E, nos temas da prova consta: «1. A prática subjacente aos descontos dos valores constantes das facturas emitidas pela Ré e elencadas na pi foi imposta unilateralmente à Autora», «5. Consequências que o rompimento dessa relação comercial teria para a Autora»
No art. 255º do CC (Código Civil) está previsto:
«1. Diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração.
2. A ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro.
3. Não constitui coacção a ameaça do exercício normal de um direito nem o simples temor reverencial.»
Decorre do art. 607º do CPC (Código de Processo Civil) que só factos o juiz pode julgar provados ou não provados, sendo que o art. 5º estabelece:
«1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
(…)»
A alegação da autora de que se viu coagida a assinar os documentos perante a ameaça de que a ré deixaria de lhe fazer encomendas de pescado equivale à alegação de que «temeu que a ré deixasse de lhe fazer encomendas», «receou que a ré deixasse de lhe fazer encomendas», «teve medo de que a ré deixasse de lhe fazer encomendas». Portanto, a 1ª instância não criou um facto ao substituir a expressão «viu-se coagida» no ponto 22 dos factos provados.
Prosseguindo.
A apelante invoca os depoimentos das testemunhas BB, DD, CC – todos seus trabalhadores – e da testemunha EE – seu fornecedor de pescado – por oposição ao depoimento de AA que considera ser «testemunha parcial e não isenta», «parte interessada na ação», alegando também que «O tribunal a quo não questionou a idoneidade e isenção (…) não obstante dispor de elementos para o fazer».
É de lembrar:
- «O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (art. 607º nº 5 do CPC);
- «A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.» (art. 396º do Código Civil);
- «A parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer.» (art. 521º do CPC);
- «Se houver oposição direta, acerca de determinado facto, entre os depoimentos das testemunhas ou entre eles e o depoimento da parte, pode ter lugar, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, a acareação das pessoas em contradição.» (art. 523º do CPC)
Não foi deduzida contradita quanto a AA nem foi realizada acareação entre este e as demais testemunhas arroladas pela apelante, nem foi requerido o seu confronto com o documento admitido durante o depoimento de BB.
Mas vejamos se é de acompanhar o entendimento da apelante de que AA é uma testemunha não credível e de que CC, BB e DD «explicaram de forma clara e precisa que os fornecedores são livres de aceitarem ou não os descontos aplicados às compras».
DD – disse ser gestor, trabalhar no Pingo Doce desde 2010, tendo estado na área do pescado desde Julho de 2019 a Janeiro de 2022 - referiu que teve uma reunião de apresentação com AA em Outubro de 2019, mas não teve reuniões para negociar condições, «Eu mantive o que estava para trás», antes de si estava CC nessa área; referiu que a testemunha BB fazia a gestão do dia a dia; referiu que sempre vigorou o rappel e o desconto de 5 cêntimos com a apelada, não tendo dado explicação para isso não ter ficado previsto no contrato celebrado em 23/03/2009 nem no aditamento de 2012; disse ter havido tentativas de reunião com AA por causa da discordância deste quanto aos valores indicados nas facturas com a designação «campanhas promocionais», que disse ser «a linguagem que usamos internamente», «não há campanha promocional, é só designação»; afirmou «nós emitimos notas de débito» e que a assinatura de AA nos documentos é aprova de que sabia que as designadas campanhas promocionais eram o rappel e outros descontos e o overprice.
A testemunha CC – disse ser gestora sénior de formação, trabalhar no Pingo Doce desde 1994, tendo exercido funções na direcção comercial de pescado desde Junho de 2016 até 2019 – referiu que o valor do rappel era negociado anualmente mas que «não sei agora se foi comigo alguma vez negociado o rappel», parte do princípio de que os fornecedores conferiam os valores das notas de débito e afirmou que AA tinha de ter um processo de conferir se os valores estavam correctos ou não; às perguntas sobre a razão da emissão de facturas e de nelas serem referidas «campanha promocional» disse «não sei responder»; à pergunta sobre a razão de ser aplicado IVA sobre os descontos respondeu «não sei», sobre a razão de não haver anexos ao contrato sore o rappel e outros descontos respondeu que «eram contratos verbais».
A testemunha BB – disse ser gestor de categoria sénior de peixaria desde 2012 no Pingo Doce e que trabalhava com a apelada desde 2013 ou 2014 – referiu que não viu o contrato celebrado com a apelada e que é igual para todos os fornecedores; referiu que havia rappel e outros descontos e sabia dos respectivos valores porque «ia ao sistema», que eram valores acordados entre as partes, «era um número que propúnhamos», mas tendo-lhe sido perguntado «era o senhor que propunha» respondeu «provavelmente sim, agora, depois destes anos todos ….», fez referência ao documento cuja junção aos autos foi ordenada durante o seu depoimento para demonstrar que AA conhecia os descontos e os controlava, mas quando lhe foi lido aquele trecho do texto da mensagem de AA «Seguindo o mesmo raciocínio, relativamente ao mapa que me enviou, os nossos valores são diferentes, ou seja, o saldo até está a nosso favor.» e lhe foi perguntado se o documento está incompleto, mostrou-se hesitante, tendo dito que depois seria analisado «queríamos uma reunião para apurar a divergência, mas o senhor AA deixou de atender o telefone»; referiu que DD era na altura o seu chefe, que não podiam colocar encomenda porque AA não atendia o telefone; tenho sido perguntado sobre o que sucederia se o fornecedor recusasse assinar os documentos com a designação «campanha promocional» respondeu que «Tinha de entrar em conversa».
Quanto à testemunha AA, a cujo depoimento já nos referimos, disse que BB ficou no lugar de HH depois da «operação rappel», que desde 2009 a 2013 nunca houve este tipo de descontos a título de “campanhas promocionais”, que o único desconto acordado era 1$% por antecipação do pagamento das facturas, a partir de Janeiro de 2014 começaram a ser emitidas facturas de “campanhas promocionais” e reclamou várias vezes a GG, a HH e a II; referiu que contactou GG, comercial com quem todos os dias falava, o seu chefe Dr HH e o director de perecíveis, II, e todos lhe disseram que a apelada tinha de aceitar pois era a nova prática do Pingo Doce, faziam isso com todos os fornecedores e se não aceitasse deixava de fornecer; afirmou que foi aceitando essas facturas «Justamente pela nossa dependência económica, durante muito tempo era o nosso único cliente» e que á dada altura as coisas estavam a complicar-se e começámos a procurar outros clientes», «depois conseguimos o Intermarché e o Mercadona»; referiu que a apelada tinha feito um investimento de 400 mil euros, teve de recorrer a crédito bancário, com custos de exploração a rondarem 60 mil euros por mês e por isso, apesar de ter prejuízo, seria pior se rompesse com o Pingo Doce naquela altura, e por isso teve de consolidar com outros clientes; referiu que no ano de 2020 a apelada já estava em velocidade cruzeiro, aquele empréstimo bancário já estava amortizado «E em Agosto devolvemos as facturas e recusámos assinar os contratos. O senhor GG ligava-me todos os dias a dizer o pedido para o dia seguinte e deixou de o fazer»; foi peremptório ao afirmar que o único desconto acordado com o Pingo Doce foi o desconto financeiro de 1% e que reclamou várias vezes a GG, HH, II e a BB.
A 1ª testemunha que foi ouvida na audiência final, JJ - disse ser contabilista e trabalhar na apelada – referiu que questionou AA sobre as facturas emitidas pela apelante com a menção «campanhas promocionais» e que este lhe transmitiu que eram documentos impostos pelo Pingo Doce e se não os aceitasse e assinasse a apelada deixava de lhe fornecer pescado fresco; disse não ter conhecimento de qualquer alteração ao contrato além do aditamento de 2012.
Quanto à testemunha EE – disse ter uma empresa, a Omnifish, que fornece pescado fresco ao Pingo Doce desde 2016 ou 2018 -, não mostrou conhecimento dos termos em que se desenvolveu o relacionamento comercial entre a apelante e a apelada no período em causa nestes autos, disse que no caso da sua empresa não se recorda se foi acordado rappel, mas que de momento não existe.
Verifica-se que AA, apesar de ser filho dos dois sócios da apelada, respondeu com convicção e sinceridade a todas as perguntas, tendo revelado conhecimento directo da relação comercial com a apelante em virtude das suas funções, não sendo pois, de acompanhar o entendimento da apelante de que prestou «declarações tendenciosas» e não é testemunha credível.
Concluindo, a prova produzida não impõe decisão diversa sobre os referidos factos, improcedendo nesta parte a impugnação.
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D) O Direito
1. Entende a apelante que está errada a decisão de declaração oficiosa de nulidade do negócio jurídico, alegando, designadamente, que «as partes admitiram alterações ao contrato, mediante a emissão de documentos escritos, comunicados electronicamente e do qual resulte a concordância inequívoca da contraparte ao seu conteúdo e aos seus efeitos, ao longo de vários anos», «Os três requisitos encontram-se verificados quanto aos documentos campanhas promocionais», «Acontece que o douto tribunal a quo prendeu-se, na questão do nomen iuris que as partes apuseram nos contratos, i.e “Campanhas Promocionais», «As campanhas promocionais corporizam um mecanismo de correcção ao preço e à aplicação de descontos, determinado entre as partes, sendo que a única condição existente para a emissão de tais documentos e facturas é, precisamente, a necessidade de correcção de preço pago em excesso pela Recorrente – dado como provado nos autos – e a aplicação de descontos acordados entre as partes.», «(…) inexistindo campanhas promocionais, tal como é assumido pelas partes, é verdade que o objecto do contrato é impossível, por inexistente. Sucede que, atenta a prova produzida quanto à existência de sobrepreço, descontos de rappel e de quantidade, o objecto está determinado», «O simples facto de o tribunal a quo admitir a existência de sobrepreço invalida a decisão de nulidade do contrato por indeterminabilidade do objeto na medida em que, pelo menos quanto a essa parte das faturas, o objeto é determinado».
Mais alega que a sentença «ficciona uma qualquer obrigação da Recorrente em emitir um documento “Nota de débito” para justificar os débitos», «É falso que a Recorrente tenha alegado ter emitido o documento contabilístico vulgarmente designado como “nota de débito”», «O que a Recorrente alega (…) é que os débitos englobando descontos, penalidades e sobrepreço eram realizados por Fatura».
Porém, na contestação lê-se: «falamos de seis anos em que notas de débito foram enviadas pela R. à A.», «O valor remanescente, pago em excesso pela Ré, é abatido à conta corrente, via “nota de débito” (“acção promocional”)», «Tais notas de débito reflectem também os já mencionados descontos», «As facturas são enviadas pela R. ao fornecedor, acompanhadas das notas de débito “acção promocional” que sustentam a factura», «As notas de débito e a factura eram enviadas para a A.», «Em anexo aos documentos, encontram-se as notas de débito e facturas».
Além dessa confusa alegação sobre «notas de débito», «notas de débito “acção promocional”», «notas de débito e facturas», «notas de débito “acção promocional” que sustentam a factura», também é alegado que os documentos intitulados «Contrato de adção promocional Extra investimento» são afinal contratos sobre descontos e preços do pescado: «Estes descontos são acordados com os fornecedores, anualmente, e são reflectidos nos documentos que a A. junta aos autos “Campanhas Promocionais – Extra – Investimentos”, os quais são emitidos pelo Departamento Comercial», «Também os contratos promocionais e respectiva facturação, acordados no âmbito da relação de fornecimento», «Aliás, cada um dos contratos promocionais contém assinatura e carimbo das partes contratantes», «Em segundo lugar, resultou demonstrada a aceitação por parte da A. de cada uma das campanhas promocionais», «A A. sabe e não pode desconhecer, porque assim agiu ao longo de seis anos, que as campanhas promocionais são antes notas de débito destinadas a acertar preço e aplicar descontos previamente acordados»
Na sentença é feita esta apreciação:
«Contudo, analisados um por um os contratos juntos aos autos e mencionados nos factos provados 14 a 19 supra, o que se verifica é que tais contratos não têm quaisquer cláusulas, apenas se extraindo destes qual o valor que a Ré pretende debitar à Autora, em cada um dos meses a que se reportam, não permitindo conhecer, por deles não constarem, as contrapartidas prestadas pela Autora à Ré que justificam esses débitos ou se tais contrapartidas, efectivamente, existem.
Com efeito, extrai-se dos factos provados que tais contratos, sob a designação de “Contratos – acção promocional (Extra Investimento)”, não traduzem qualquer obrigação da Ré para com a Autora que justifique o débito ali aposto, pois, além do mais, a Ré confessa que não há nem houve quaisquer campanhas promocionais dos produtos da Autora, nem prestou a esta qualquer outro serviço que se refira a acções promocionais.
Assim, podemos afirmar que os valores exigidos a título de “acção promocional” não têm contrapartida ou serviço que os justifique.
Por outro lado, não pode saber-se a que respeitam tais contratos uma vez que estes não têm qualquer conteúdo, traduzindo-se na mera alusão a uma campanha promocional que, pelos vistos, não existiu com valores que não se podem aqui sindicar.
Nessa medida e porque os contratos traduzem negócios jurídicos cujo objecto é indeterminável, são aqueles nulos nos termos do art. 280º, nº1 CC que estipula: “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.”, sendo a nulidade aqui em causa de conhecimento oficioso.
Nos termos do artº 289º nº 1 do CC, a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado.
Atentemos ainda na defesa apresentada pela Ré para observar que a mesma se destina, essencialmente, a fixar, a posteriori, um objecto aos contratos, o que confirma a sua indeterminabilidade face ao teor dos documentos produzidos por aquela.
Mesmo assim, nada do que a Ré alega em sua defesa, consegue sanar o vício que os mesmos apresentam, como veremos.
A Ré alega a existência de acordos celebrados com a Autora que lhe permitiriam exigir-lhe os montantes que constam das facturas, dizendo que as mesmas incorporam descontos referentes a rappel, descontos comerciais, ajustes de preço de pescado e penalidades por falta de qualidade.
Deixamos, por ora, as penalidades por falta de qualidade a que aludiremos mais à frente.
Do que foi apurado resulta que as partes celebraram um contrato de fornecimento de pescado com determinadas condições de pagamento e que de acordo com a cláusula décima desse contrato, qualquer alteração ao mesmo deveria constar de documento escrito e assinado pelas partes – vd. pontos 5, 6 e 7 dos factos provados.
Tendo as partes convencionado no contrato de condições gerais que as alterações ao contrato deveriam constar de documento escrito e assinado pelas partes, tanto é o bastante para declarar, que quaisquer acordos verbais não podem ser opostos à outra parte por se presumir que as partes não se querem vincular senão pela forma convencionada – art. 223º, nº1 CC, nada havendo que indicie o contrário – e existindo mesmo um aditamento ao contrato datado de 2012 que torna consistente a primeira conclusão extraída.
De resto, a própria conduta da Ré que se viu na necessidade de produzir documentos escritos e assinados pela Autora - os contratos em causa na presente acção para justificar a emissão das facturas, confirma o que acabamos de dizer.»
Em conformidade com essa apreciação, a 1ª instância declarou «nulos os contratos designados por Acção Promocional – Extra Investimento a que se reportam os pontos 11 a 14 dos factos provados».
Ora, não indica a apelante um único documento onde se leia que as partes acordam sobre a aplicação de rappel ou qualquer outro e respectivos valores ou percentagens ou sobre o preço real do pescado fornecido e o preço ficcionado. E na verdade, tal indicação seria impossível, pois além da referência a «Penalidades por falta de qualidade», o que neles consta é «Campanhas Promocionais» e que: «O valor das Acções promocionais previstas neste contrato será debitado por PINGO DOCE SA e será por esta descontado nos pagamentos que efectue. Após assinatura, enviar para o endereço ...». Aliás, a apelante persiste na sua confusão e contradição ao alegar que «deverão ser tidas em consideração as faturas de campanhas promocionais».
Não tem, pois, suporte nos factos provados a alegação de que «a opção pela uniformização dos vários descontos, penalidades por falta de qualidade e sobrepreço num único documento intitulado genericamente como “campanhas promocionais” e a escrupulosa verificação da Recorrente da aceitação dos débitos por parte da Recorrida (…) são factos praticados voluntariamente pelas partes no âmbito da sua autonomia contratual mas que a sentença vem subverter a uma obrigatoriedade de forma e a um nomen iuris não previstos na lei».
Em suma, como os contratos não têm por objecto acções promocionais e deles não consta a menção a outro acordo entre as partes e suas cláusulas, acertada é a conclusão a que chegou a 1ª instância: os contratos são nulos por falta de objecto.
Improcede este fundamento do recurso.
2. Segundo a apelante: «a sentença reconhece, ainda, e de facto, um enriquecimento sem causa da Recorrida, decisão essa que não pode ser aceite pelo Tribunal ad quem», pois é «reconhecidamente credora da Recorrida quanto ao sobrepreço -- o que não é compaginável à luz do disposto no artigo 609º do CPC», e tal situação «deverá ser corrigida oficiosamente, nos termos do artigo 662 nº 2 do CPC, designadamente, ordenando-se a produção de prova por parte da Recorrida, quanto aos valores de sobrepreço que admite ter controlado ao longo dos anos de 2014 até ao final da relação de fornecimento.»; subsidiariamente, defende a apelante, deve ser condenada no que vier a ser liquidado nos termos do nº 2 do art. 609º; invoca também o art. 411º do CPC.
Lê-se na sentença:
«Assim, no que diz respeito aos valores apostos nas facturas emitidas com fundamento em contratos inválidos, deve s Ré ser condenada a fazer a sua restituição, cabendo-lhe exigir os montantes que lhe sejam devidos pela Autora que se reportem a ajustes de preço acordados, em acção própria em que alegue todos os factos necessários ao apuramento dos montantes em dívida a esse título».
O CPC prevê nos normativos invocados pela apelante:
Art. 411º
«Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.»
Art. 609º
«1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
2 - Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
(…)»
Art. 662º
«2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.»
Mas, decorre do art. 5º nº 1 do CPC e do art. 342º nº 2 do CC que à apelante competia alegar e provar os valores dos acertos resultantes da prática de sobrepreço quanto a cada uma das facturas. Portanto, não pode o tribunal ordenar a produção de prova sobre factos não alegados. Aliás, explicou a 1ª instância:
«(…) quanto a cada uma das modalidades de desconto invocadas pela Ré, não foram por esta alegados os factos que permitam o cálculo dos valores em dívida a cada mês, por cada item referido ou foram alegados factos que não encontram eco na matéria que foi considerada provada, o que não permite validar o conteúdo das facturas.
Tratando-se de matéria de excepção – compensação – pertence à Ré o ónus de alegação – art. 342º nº 2 do CC.
Com efeito, desconhece-se, por não ter sido alegado, qual o valor das facturas que se reporta a ajustes de preço, tendo sido indicada em cada uma delas, uma única rúbrica que engloba alegadamente todos estes valores, sem a Ré os ter discriminado na sua defesa».
Improcede este fundamento do recurso.
3. Do abuso do direito e litigância de má fé (conclusões LL, MM e NN)
Tendo improcedido a impugnação da decisão sobre a matéria de facto com base na qual a apelante sustenta a sua alegação a este respeito, improcede também este fundamento do recurso.
4. Se, como alega, a apelada, devem também ser consideradas nulas as facturas emitidas com penalidades por falta de qualidade.
A apelada não interpôs recurso subordinado.
Mas, a nulidade é de conhecimento oficioso.
Sucede que esta pretensão da apelada funda-se na alegação de que «o documento idóneo seria a emissão de cada nota de débito com referência à correspondente factura emitida pela Autora/Recorrida, a fim de ser objecto de correcção e conciliação do acto de comércio, assim homenageando a formalidade exigível pelo CIVA».
Porém, não indica e na verdade inexiste, normativo legal do qual resulte a alegada nulidade.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Anabela Calafate
Nuno Gonçalves
António Santos