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PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
MEDIDA DE APOIO JUNTO DOS PAIS
ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
ABSENTISMO
Sumário
Sumário elaborado pelo Relator: -A execução da medida de apoio junto dos pais deve ser orientada no sentido do reforço ou aquisição por parte destes das competências para o exercício da função parental, adequadas à superação da situação de perigo e suas consequências e à conveniente satisfação das necessidades de protecção e promoção da criança; - Nessa senda, devem ser considerados na operacionalização do plano de intervenção, entre outros, os seguintes elementos: a) capacidade dos pais para remover qualquer situação de perigo; b) ausência de comportamentos que afectem a segurança ou o equilíbrio emocional da criança ou do jovem; c) disponibilidade dos pais para colaborar nas acções constantes do plano de intervenção; - Ainda que a menor esteja inserida num agregado disfuncional e com falhas de supervisão por parte da progenitora, entende-se como desproporcional e desadequando que a medida de apoio junto dos pais, seja substituída por medida de acolhimento residencial, quando estamos perante uma menor que já completou 16 anos (aquando da prolação deste Acórdão), com base em absentismo escolar e sem que uma comprovada falta de articulação entre progenitora e psicóloga que acompanha a menor, possa ser imputada à progenitora.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. O relatório
O Ministério Público requereu a abertura de processo judicial de promoção e proteção, a favor da jovem AA, nascida em ...2009, filha de BB e de CC, solicitando ao abrigo do disposto no artigo 73º, nº 1, alínea b) da Lei de Proteção de crianças e jovens em perigo, a aplicação de medida de promoção e proteção.
A necessidade de intervenção surgiu na sequência da exposição da jovem a situações de violência doméstica, absentismo escolar e associação a grupo de pares, o espaço da residência ser considerado desadequado ao número de elementos do agregado, o que motivou que, em 2021, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens aplicasse à jovem uma medida de promoção e proteção de apoio junto aos pais, medida esta que não surtiu efeitos, porquanto a jovem continuou em absentismo escolar, não sendo assídua no acompanhamento psicológico, revelando-se a mãe incapaz de alterar a situação da jovem.
Face aos sucessivos incumprimentos, foram aplicadas medidas de promoção e proteção de apoio junto aos pais, concretizada na pessoa da mãe em 29 de novembro de 2023, a qual foi prorrogada por três meses em 22 de março de2024.
Em 17 de junho de 2024, tal medida foi revista, determinando-se a sua alteração para a medida de apoio junto ao pai da jovem, ficando aí decidido que a jovem ficaria aos cuidados deste.
Em 20 de junho de 2024, a progenitora da jovem dirigiu um requerimento aos autos referindo que a mesma não iria cumprir com o determinado e que preferia ir para uma casa de acolhimento, tendo o Tribunal, nessa sequência, determinado à EMAT que se averiguasse da existência de vaga em centro de acolhimento residencial local, por despacho proferido em 24 de junho de2024.
Nessa sequência, a jovem mudou de residência juntamente com a sua mãe para a ilha de São Jorge em julho de2024.
Foi junto aos autos o Relatório social de acompanhamento de execução da medida. Foi cumprido o disposto nos artigos 84º e 85º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (anexa à Lei nº 147199, de 1 de setembro).
Determinou-se a audição da jovem e dos seus progenitores, e em 17 de dezembro de 2024 foi aplicada à jovem uma medida de promoção e proteção de apoio junto à mãe pelo período de 6 meses.
Em 3l de janeiro de2025, a EMAT juntou aos autos relatório a dar conta da necessidade de a medida ser revista face ao forte absentismo escolar da jovem e à incapacidade da sua mãe em efetuar uma supervisão parental eficaz, tendo o Tribunal, em sede de revisão da medida, determinado a audição da jovem e dos progenitores em 18 de fevereiro de 2025, na qual a Digna Magistrada do Ministério Público promoveu a alteração da medida de promoção e proteção para a medida de acolhimento residencial, tendo a jovem e a sua progenitora demonstrado a sua discordância quanto à essa alteração.
Foi dado cumprimento ao disposto no artº 114º, nº 1 e nº 5, alínea a) da Lei de Proteção de crianças e jovens em Perigo.
Foram apresentadas alegações apenas pelo Ministério Público e indicada prova.
Foi designado dia para realização de debate judicial e nomeados juízes sociais.
Procedeu-se à realização do debate judicial, com a observância de todos os formalismos legais, tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas, bem como os progenitores e tomadas declarações à jovem.
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Realizado o debate judicial, foi proferida a seguinte decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes que compõe este coletivo misto ao abrigo do disposto nos artigos 62º nº 3 alínea e 35º nº l alínea f) rever a medida de promoção e proteção aplicada a AA, e substituir a medida de apoio junto aos pais concretizada junto da mãe, pela medida de acolhimento residencial nelo período de 12 (doze) meses.
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Inconformadas, BB e AA, respectivamente progenitora e jovem, interpuseram recurso de apelação para esta Relação e formularam nas suas alegações as seguintes conclusões: 24 Por não se afigurar adequado a resolver o seu absentismo escolar, provado que a faltas ás aulas e ao estágio se ficam a dever a desmotivação da jovem, obrigada a frequentar um estágio na biblioteca e na cantina da escola, sem relação com o mesmo e á falta de controlo nas saídas do espaço escolar. 25 A jovem completa 16 anos de idade no dia ..., a dois anos de atingir a idade adulta, 26 Durante toda a sua vida a jovem teve a seu lado a progenitora, com quem mantém uma forte relação familiar. 27 A medida de acolhimento residencial, viria provávelmente desencadear sentimento de revolta e agravamento da ansiedade diagnosticada em anterior relatório psicológico. 28 Pelo que se afigura adequada a continuação da medida apoio junto da mãe . 29 Ou apoio junto de outro familiar, tios residentes na ilha de S.Jorge, dispostos a receber a jovem no seu agregado familiar, propósito este manifestado após o decretamento do acolhimento residencial da jovem, caso venha a ser esta a medida decretada por V.as Ex.as , assim se fazendo JUSTIÇA.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, nas quais deduziu as seguintes conclusões: 1. A recorrente AA, nasceu a ...2009; 2. Desde os 7 anos de idade que a sua residência oscila entre a morada do pai e da mãe, porquanto separaram-se; 3. A AA desde o 2º ciclo (ensino preparatório) apresenta um comportamento absentista; 4. Tanto é que, à data de hoje (AA com 15 anos) ainda não completou o 2º ciclo; 5. A conduta absentista da jovem tem-na acompanhada por todos os equipamentos escolares, por onde passou; 6. As medidas de promoção e protecção aplicadas anteriormente, não obstante o empenho das entidades e bondade deste Tribunal e do anterior, não lograram obter quaisquer resultados; 7. As recorrentes regularmente notificadas para alegarem e indicarem prova, nos termos e para os efeitos do artigo 114.º n.º 1 da Lei 147/99 de 1 de Setembro, nada disseram; 8. Não existem familiares disponíveis e, que reúnam condições para acolher a jovem e promover o direito à educação; 9. A recorrente BB, progenitora da jovem AA, não mostrou ao longo dos anos ter capacidades e/ou competências parentais adequadas a promover o direito à educação da filha, porquanto é conivente com o absentismo, encobrindo-o e, incapaz de impor regras; 10.Nestes termos e nos melhores de Direito que doutamente se suprirão, não se deverá dar provimento ao recurso interposto pelas recorrentes, mantendo-se integralmente a Douta Decisão recorrida, por tal corresponder, in casu, a um acto conforme à Justiça e no superior interesse da jovem.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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II. Objecto e delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável).
Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver é a seguinte:
-avaliar a bondade da decisão tomada de rever medida de promoção e protecção, no sentido do acolhimento residencial da menor.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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III. Os factos Recebeu-se da 1ª instância o seguinte elenco de factos provados:
1. AA encontra-se registada como nascida em ...2009 e filha de CC e de BB.
2. A jovem ficou a residir com o pai até aos 7 anos de idade, altura em que ficou à guarda da progenitora através do acordo celebrado entre os progenitores do exercício das responsabilidades parentais homologado em 6 de maio de 2015, pela Instância Local, Secção Cível J 2 do Tribunal de Angra do Heroísmo da Comarca dos Açores.
3. Até julho de 2024, a jovem AA residia com a sua mãe na ilha Terceira, nos Açores, tendo aí sido sinalizada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Angra do Heroísmo em 16 de junho de 2021por exposição a episódios de violência doméstica resultantes da relação da sua progenitora com DD, a quem a jovem AA chamava de padrinho, mas também de outros companheiros anteriores a esse.
4. A AA frequentou a Escola..., porém devido ao elevado número de faltas injustificadas, e consequente não aproveitamento, reprovou o 6º ano.
5. A jovem AA foi transferida aos 13 anos de idade para a Escola... com o objetivo de se afastar do seu grupo de pares, que, de acordo com o estabelecimento de ensino, também representavam comportamentos de risco, solução esta que não promoveu melhorias na atitude da jovem, mantendo-se a mesma em absentismo escolar.
6. A AA é acompanhada através da Clínica de Intervenção Médico-Terapêutica pela psicóloga Dra. BB desde os 4 anos de idade, e foi acompanhada pela Pedopsiquiatra Dra. EE, apresentando como principais dificuldades sintomatologia ansiosa e dificuldades na regulação emocional, tendo sido medicada com Quetiapina 100 mg e Sertralina 50 mg, mas não cumprindo a medicação, desde que teve um episódio em que por força de uma sobredosagem, foi sujeita a uma lavagem estomacal.
7. A jovem AA não mantém contacto frequente com o pai, e não pretende estar com ele por situações que ocorreram no passado.
8. A progenitora tem 3 filhas, já maiores de idade, irmãs uterinas da AA, a FF, a GG e a HH, sendo certo que, na impossibilidade de estar com o pai, a família alargada não demonstra qualquer disponibilidade para estar com a jovem AA.
9. conforme referido em 4.1,1.4., no início do 6º ano, e quando frequentava a Escola..., a jovem começou a apresentar uma assiduidade muito irregular, sendo que, aquando das ausências do recinto escolar, a jovem mantinha-se em paradeiro incerto, sendo vista na zona da Praia da Vitória, sendo contabilizadas entre 26 de setembro de 2023 e 13 de maio de 2024, um total de 362 faltas injustificadas e 90 faltas justificadas.
10. No ano letivo de 23/24, e de acordo com as informações remetidas pela escola, a AA frequentava o curso pré-profissionalizante, ultrapassando o limite de faltas injustificadas em várias disciplinas.
11. De acordo com o relatório da CIT de janeiro de202l, "as alterações ao nível da dinâmica familiar tiveram um impacto negativo ao nível emocional, exacerbando a sintomatologia ansiosa ".
12. No relatório de pedopsiquiatria, datado de julho de 2022, "As referidas dificuldades parecem ser acentuadas por um perfil cognitivo limítrofe e por um ambiente familiar pouco contentor, pautado por conflitualidade e mudança".
13. No que respeita à conduta parental, do relatório psicológico do CIT extrai-se o seguinte: "A progenitora aparenta demonstrar preocupação com o processo terapêutico (...), mas suspeita-se que poderá ter dificuldades em colocar em prática as estratégías sugeridas. "
14. As sucessivas e reiteradas faltas da jovem, apontadas nos sucessivos relatórios de acompanhamento ainda na ilha Terceira são favorecidas pelo estilo permissivo da progenitora e a ausência de uma postura de veracidade sobre a supervisão escolar.
15. Em julho de 2024, a jovem AA e o seu agregado familiar constituído pela própria, pela sua progenitora, pelo companheiro desta de nome II, pela filha deste JJ (com 15 anos) e por KK, com 2 anos de idade, fruto da relação entre BB e II mudou-se para a ilha de São Jorge, passando a residir no Porto Novo..., Ribeira Seca.
16. O agregado familiar da jovem referido em 15. é presentemente acompanhado por 4 entidades: equipa do rendimento social de inserção, CPCJ, Intervenção Social Precoce e EMAT.
17. A jovem AA está matriculada presentemente no Programa Específico de Escolarização e Formação -Pré Profìssionalização que conta na sua matriz com 12 horas de formação prática em contexto de trabalho que está a ser realizado na biblioteca e na cozinha da escola.
18. A Vice-Presidente do Conselho Executivo da Escola Básica e Secundária de Velas, Professora LL, informou à Técnica da Equipa ATT, MM, no dia 20 de janeiro do corrente ano, que AA tem demonstrado um padrão reiterado de absentismo escolar, com particular incidência na Formação Prática em Contexto de Trabalho.
19. Em reunião realizada a 24 de janeiro de 2025, a Vice-Presidente do Conselho Executivo e a Diretora de Turma relataram que a mãe de AA, BB, assegura que a filha permanece na escola, apesar de não frequentar o estágio.
20. Na maioria das situações em que AA se ausenta do recinto escolar durante o horário letivo, a progenitora desconhece o seu paradeiro, estando a mesma convencida que a filha se encontra no recinto escolar, situação esta que é contraditória quer com as próprias justificações das faltas, por um lado, quer com a falta de supervisão por outro, ou ainda uma cumplicidade com tais comportamentos.
21. No âmbito da já referida formação prática referida em 17. desde o mês de dezembro de 2024 até meados de fevereiro de 2025, a jovem AA regista cerca de 63 faltas, das quais 13, não estão devidamente justificadas pela progenitora e sua encarregada de educação, faltas essas que dizem respeito a tempos lectivos e não a dias completos de ausência.
22. Para além das faltas referidas em 21., a jovem AA ausenta-se inúmeras vezes do recinto escolar para fumar, com a anuência e complacência da mãe, pese embora o núcleo escolar tenha manifestado o seu desagrado quanto a tal conduta.
23. A AA, por todos os equipamentos escolares, por onde passou, foi sempre sinalizada por absentismo escolar, situação que não tem sido trabalhada com a psicóloga que a acompanha desde os l0 anos de idade, por falta de articulação entre a progenitora e esta, limitando-se as mais das vezes a terapêutica a assuntos triviais e supérfluos, escolhidos pela jovem aquando das consultas realizadas.
24. A progenitora da jovem AA encontra-se presentemente desempregada beneficia das prestações familiares dos filhos AA e KK, no total de 511,19€ e do Rendimento Social de Inserção, no valor de 209,98€, o companheiro exerce atividade profissional por Conta de Outrem, na categoria de mecânico, auferindo sensivelmente 600,00€ mensais e conta ainda com as prestações familiares da filha JJ, no montante de 225,56€, sendo que os valores declarados perfazem o total de 1.546,64€. 25. Porque relevante, e ao abrigo do disposto no art. 662º nº 1 do CPC, entendemos dar como assentes trechos do conteúdo do relatório do serviço de psicologia clínica do Centro de Saúde da Calheta, junto aos autos em 03.04.2025, que, aliás, é mencionado na motivação da decisão da matéria de facto, assim: A AA (NNU ...) realizou duas sessões de avaliação psicológica, no Centro de Saúde de Calheta, no âmbito da solicitação do MP para o Processo de Promoção e Proteção 588/14.9TBAGH-C. Como é típico nestes contextos de adversidade e instabilidade, a AA acabou por iniciar a sua adolescência com a manifestação de alguns comportamentos de risco e dificuldades de regulação emocional: muitas faltas escolares para estar com o grupo a consumir cannabis e tabaco, ou apenas para desafiar o pai biológico quando este era o encarregado de educação; automutilação e “tentativas de suicídio” com a ingestão de medicação prescrita pela Pedopsiquiatria (anti-depressivo e estabilizador de humor). A mudança para a ilha de São Jorge desencadeou uma crise adaptativa, com perda de peso significativa, isolamento, ansiedade e somatização, com diversas entradas no serviço de atendimento permanente. Para além da escola (terceira escola), esta mudança implica a necessidade de criar uma nova rede de apoio/socialização e de atividades de lazer (ex., na Terceira praticou atletismo, patinagem e golfe). Neste aspeto, fica-se com a impressão que por a mãe ter alguns sentimentos de culpa em relação ao que a filha sofreu no passado, e por ter receio desta fazer mal a si própria, apresenta dificuldades em ser firme na definição e manutenção de limites (apenas face ao contexto escolar, não tendo atualmente qualquer outra queixada filha). Relativamente ao estado psicológico atual da AA, de acordo com os resultados do BSI, esta apresenta tendência para Ansiedade e Somatização (componente física do mal-estar psicológico, como por ex., dores de barriga, náuseas, palpitações, cefaleias, etc…). Ao nível da autorregulação deixou de consumir cannabis e, recentemente, de se automutilar. Por outro lado, aumentou no consumo de tabaco como compensação. Está a tentar adaptar-se melhor ao novo contexto: menor isolamento; pondera inscrever-se nos escuteiros e/ou volley. A nível familiar sente estabilidade desde que a mãe vive com o atual companheiro, deixando de estar exposta a maus-tratos como era habitual. Pela primeira vez existe comunicação e cuidado na família. Nota-se também que a AA tem uma relação de grande proximidade com a mãe, representando um apoio para a mesma. Tem como aspirações para o futuro inscrever-se num curso de Mecânica e/ou fazer recrutamento militar. Desde há muito tempo que se interessa por carros e mecânica, enquanto que na carreira militar parece existir um certo fascínio.
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IV. O mérito do recurso
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O Direito
Estabilizado o quadro factual do litígio, cumpre agora analisar juridicamente a pretensão das recorrentes, à luz do mesmo.
A questão essencial a decidir prende-se com a decisão concreta de rever a medida de promoção e proteção aplicada a AA, substituindo a medida de apoio junto aos pais concretizada junto da mãe, pela medida de acolhimento residencial pelo período de 12 (doze) meses.
Em primeiro lugar, é preciso notar que o tempo dos menores é substancialmente diverso do tempo dos adultos, sendo que a decisão a proferir tem como ponto de referência e objectivo último a atingir, a exclusiva defesa dos legítimos interesses dos menores. O problema está unicamente em determinar qual a solução que melhor satisfaça os seus interesses, enquanto pessoas, com interesses morais, afectivos e materiais próprios.
Há, pois, em primeiro lugar, que reunir e apreciar criticamente os elementos indispensáveis à concretização do “interesse do menor”, dado que este é o critério básico de decisão.
Sobre este princípio, Helena Bolieiro e Paulo Guerra propõem a seguinte definição: “… podemos definir o interesse superior da criança (não definido em termos legais) como o interesse que se sobrepõe a qualquer outro interesse legítimo, seja o dos pais, seja o dos adultos terceiros, devendo ser densificado e concretizado através de uma rigorosa avaliação casuística, numa perspetiva global e sistémica, de natureza interdisciplinar e interinstitucional, visando a satisfação da premente necessidade da criança de crescer harmoniosamente, em ambiente de amor, aceitação e bem-estar, promovendo-se a criação de ligações afetivas estáveis e gratificantes” (In A Criança e a Família – Uma questão de Direitos, Coimbra Editora, 2009, pág. 322).
O “interesse superior da criança” é um conceito indeterminado, que tem vindo a ser determinado à luz dos instrumentos legislativos, quer de direito internacional quer nacional, radicando na ideia de procura da solução mais adequada para a criança, aquela que melhor a salvaguarde, melhor promova o seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral, bem como a estabilidade emocional, tendo em conta a sua idade, o seu enraizamento ao meio socio-cultural, mas também a disponibilidade e capacidade dos progenitores em assegurar tais objectivos ( cf. Ac da Relação de Évora de 22/11/2018 in www.dgsi.pt).
Igualmente, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20.11.1989, impõe que os Estados tomem medidas de protecção das crianças contra todas as formas de violência física ou mental, quer na família, quer fora dela – artigo 19.º, n.º 1.
A Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo (Lei 147/99, de 1 de Setembro, conhecida pela abreviatura de LPCJP), prevê no respectivo art. 3.º, n.º 1, que “a intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.”
O n.º 2 desta norma exemplifica diversas situações de perigo, entre as quais o abandono, os maus-tratos físicos ou psíquicos, a não prestação dos cuidados ou afeição adequados à sua idade e situação pessoal ou a sujeição, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional.
Consagra-se, assim, um direito geral de protecção da criança e do dever de discriminação positiva relativamente à criança em situação de desfavor.
O art. 35.º da LPCJP consagra um conjunto de medidas de promoção e protecção, com vista a afastar o perigo em que as crianças e os jovens se encontram, proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso – art. 34.º, als. a), b) e c).
Dispõe-se assim no art. 34º, nas suas alíneas a) e b), que as medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo visam afastar o perigo em que estes se encontram e proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral.
Por sua vez, o art. 35º faz uma enumeração taxativa das medidas de promoção e protecção, que são:
a) Apoio junto dos pais.
b) Apoio junto de outro familiar.
c) Confiança a pessoa idónea.
d) Apoio para autonomia de vida.
e) Acolhimento familiar.
f) Acolhimento residencial.
g) Confiança a pessoa selecionada para a adopção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adopção.
As medidas referidas estão elencadas por ordem de preferência, ou seja, dá-se prevalência àquelas a executar no meio natural de vida sobre as que serão executadas em regime de colocação.
Saliente-se que o desenvolvimento pleno dos menores implica a realização de direitos sociais, culturais, económicos e civis e o exercício desses direitos reclama uma medida de promoção e protecção.
De acordo com o artigo 36.º, n.ºs 5 e 6, da Constituição, “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.” E acrescenta no respectivo artigo 69.º, n.º 1, que “as crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral.”
Aqui chegados, importa determinar se em face dos factos que se provaram, a sentença decidiu ajustadamente- medida de acolhimento residencial pelo período de 12 (doze) meses -, tendo em conta o enquadramento jurídico aplicável. Segundo o acórdão recorrido: Dos factos provados, resultou provado à saciedade que, o absentismo escolar da jovem AA foi uma constante na sua vida, estando a mesma com 15 anos no 6 º ano de escolaridade, estando em causa o seu direito à educação. Simultaneamente resulta dos factos dados como provados que, não obstante o acompanhamento psicoterapêutico que a jovem faz desde os 4 anos de idade, tem se revelado ineficaz, sendo um dos fatores apontados, a falta de articulação da progenitora com a psicóloga que acompanha a jovem AA desde os 10 anos de idade, persistindo um quadro de ansiedade, limitando-se as mais das vezes a terapêutica a assuntos triviais e supérfluos, escolhidos pela jovem aquando das consultas realizadas. estando em causa o seu direito à saúde.(sic) Considerou, ainda, o acórdão recorrido que: Dos factos dados como provados, resultou ainda provado que, as medidas de promoção e proteção aplicadas até ao momento, em meio natural de vida – apoio junto aos pais, na pessoa do pai e da mãe – revelaram-se ineficazes em debelar os perigos a que a jovem se mantem exposta à sua educação e à sua saúde, os quais persistem, não sendo os progenitores capazes de adotar uma estratégia eficaz para eliminar os mesmos, adotando na maioria das vezes uma postura desculpante e permissiva que contribui para que esses perigos persistam e permaneçam. A agravar toda esta situação, as constantes mudanças do agregado familiar e das escolas que a jovem tem frequentado, o que não contribui para a estabilidade da mesma a nível pessoal e escolar, e contribui para a manutenção do absentismo escolar grave e persistente.(sic) Para concluir que: Deste modo, os progenitores não demonstram capacidade de, por si só, organizarem a sua vida social e laboral em prol daquela jovem, evidenciando débeis competências parentais, o que coloca em risco a saúde, crescimento e desenvolvimento, físico e psíquico, da jovem, bem como a sua educação. Ademais, não foi encontrada qualquer alternativa que permitisse obviar à institucionalização, posto que a família alargada dos progenitores não se predispôs a acolher a jovem, ainda que transitoriamente, na medida em que não querem ou não podem assumir uma contribuição para o processo educativo e afetivo da jovem, proporcionando-lhe um desenvolvimento são e harmonioso.(sic)
Não se olvida que, no caso dos autos, a menor encontra-se inserida num agregado familiar com marcados traços de disfuncionalidade- o agregado familiar da jovem referido em 5. é presentemente acompanhado por 4 entidades: equipa do rendimento social de inserção, CPCJ, Intervenção Social Precoce e EMAT-, que se reflectem inexoravelmente na supervisão escolar da mesma.
Secundando o que acabámos de referir, provou-se que na maioria das situações em que a AA se ausenta do recinto escolar durante o horário lectivo, a progenitora desconhece o seu paradeiro, estando a mesma convencida que a filha se encontra no recinto escolar.
De salientar que, conforme expressamente previsto no art.º 4.º da LPCJP, a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece, entre outros, aos seguintes princípios: “a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto; (…) c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida; d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo; e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante; h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável; (…) k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais.”
Sintetizando:
-na ponderação de qualquer medida provisória deverão ter-se em conta, para além do interesse superior do menor enunciado na alínea a) do art.º 4º da LPCJP, todos os restantes princípios consagrados nas várias alíneas do mesmo art.º 4º, nomeadamente: o da intervenção precoce, traduzida no imperativo da intervenção do tribunal logo que a situação de perigo seja conhecida [alínea c)]; o da proporcionalidade e actualidade - a medida só deve interferir na vida do menor e da sua família, na medida do que for estritamente necessário à finalidade pretendida [alínea d)]; o da responsabilidade parental, traduzido na imposição aos pais do respeito pelos deveres parentais [alínea f)]; e o da prevalência da família - optando por soluções que promovam e aprofundem a integração dos jovens na família [alínea h)].
Antes da revisão da medida determinada pelo acórdão que é posto em crise, a menor AA encontrava-se sujeita a medida de apoio junto aos pais, concretizada junto da mãe.
Não se olvida, porque evidente, que a menor se encontra integrada num agregado familiar com sinais evidentes de disfuncionalidade, que existe um problema com o percurso escolar da menor – comprometendo o seu direito à educação- e que a menor carece de apoio psicoterapêutico que, se não for concretizado e incentivado, pode trazer consequências nefastas para a saúde mental da jovem.
Começando pela questão da saúde: se é certo que se deu como assente que existe falta de articulação entre a progenitora da menor e a psicóloga que acompanha a jovem AA desde os 10 anos de idade, porém, nada permite afirmar que essa falta de articulação se deve à progenitora.
No que tange ao absentismo escolar da menor, pegando nos dados mais recentes (cfr. facto 21), será que 63 faltas, das quais 13, não estão devidamente justificadas pela progenitora, desde o mês de dezembro de 2024 até meados de fevereiro de 2025, podem justificar a alteração da medida de promoção e protecção? E logo no sentido da institucionalização da menor?
Apreciemos.
Concordamos que o absentismo escolar da menor é grave e, caso não seja revertido, pode comprometer gravemente o desenvolvimento mental e intelectual da menor.
Mesmo levando em conta, que existem falhas de supervisão por parte da progenitora (cfr. factos 20 e 22), entendemos como desproporcionado e desadequado institucionalizar a menor -que já completou 16 anos-, subtraindo-a ao seio familiar, quando pensamos que a medida a rever (apoio junto dos pais, concretamente junto da mãe), devidamente calibrada e orientada, tem potencial para remover os perigos qua ainda pairam sobre aquela.
Sobre a medida de apoio junto dos pais, escreve-se no Ac. do Tribunal de Coimbra de 25-06-2019 que: A execução da medida de apoio junto dos pais, de apoio junto de outro familiar ou de confiança a pessoa idónea deve ter em conta a situação de perigo que determinou a sua aplicação e o nível das competências parentais ou da capacidade protectora do outro familiar ou da pessoa idónea, reveladas quando da aplicação da medida, consoante os casos (art.º 16º, n.º 1). A execução da medida de apoio junto dos pais deve ser orientada no sentido do reforço ou aquisição por parte destes das competências para o exercício da função parental adequadas à superação da situação de perigo e suas consequências e à conveniente satisfação das necessidades de protecção e promoção da criança (n.º 2). Tendo presentes os objectivos referidos no n.º 2 devem ser considerados na operacionalização do plano de intervenção, entre outros, os seguintes elementos: a) Capacidade dos pais para remover qualquer situação de perigo; b) Ausência de comportamentos que afectem a segurança ou o equilíbrio emocional da criança ou do jovem; c) Disponibilidade dos pais para colaborar nas acções constantes do plano de intervenção (n.º 4) (Ac. proferido no proc.230/11.0TMCBR-D.C1, versão integral em www.dgsi.pt).
Tanto ao nível da saúde, como da formação escolar da menor, entendemos que, no âmbito da medida de promoção e protecção de apoio junto da mãe - não obstante as comprovadas limitações desta, ao nível das capacidades parentais-, é, ainda, possível desenvolver estratégias com vista a trabalhar e corrigir aspectos desviantes na conduta da menor.
Por um lado, promovendo-se uma melhor articulação entre a progenitora e a psicóloga que a acompanha de forma a debelar o problema de Ansiedade e Somatização – tudo aponta para que a menor deixou de consumir cannabis e, recentemente, de se automutilar, aumentou no consumo de tabaco como compensação. Por outro lado, no domínio da educação, além da continuidade da menor no ensino com uma componente profissionalizante, existe margem para incentivar a mesma em áreas do seu interesse (escuteiros e/ou volley) e encaminhá-la para domínios que a seduzem (curso de Mecânica e/ou fazer recrutamento militar).
Para implementar estas estratégias, julgamos ser desproporcionado e desnecessário retirar a menor do seu ambiente familiar; a mãe e a menor, devidamente acompanhadas por equipas técnicas no terreno, interagindo com serviços do SNS, Escola Pública, outras instituições estatais e da sociedade civil, poderão no meio natural, construir um projecto de vida futuro para a jovem, tudo isto sem esquecer que a menor caminha a passos largos para a maioridade.
Para tanto, reforçar-se-á a intervenção da EMAT junto da mãe e da menor, devendo a EMAT e psicóloga organizar um plano de sessões de acompanhamento da jovem, ficando a mãe obrigada a articular-se com a psicóloga de forma a cumprir tal plano de sessões e, igualmente responsável, em fazer comparecer a jovem nessas sessões.
Pelas razões expostas, procederá a presente apelação.
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V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar totalmente procedente a apelação apresentada e, consequentemente, decide-se revogar o acórdão proferido na primeira instância, na medida em que reviu a medida de promoção e protecção, aplicando à menor AA a medida de acolhimento residencial pelo período de 12 (doze) meses, determinando-se a prorrogação da medida de medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, concretizada junto da mãe, pelo período de 6 meses, devendo a EMAT junto da psicóloga organizar um plano de sessões de acompanhamento da jovem, ficando a mãe obrigada a articular-se com a psicóloga de forma a cumprir tal plano de sessões e, igualmente responsável, em fazer comparecer a jovem nessas sessões (artigos 62 º, n º 3 alínea c) e artigo 35 º, n º 1 alínea a) da LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO).
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Registe e notifique.
Lisboa, 10-07-2025,
João Manuel P. Cordeiro Brasão
Adeodato Brotas
Gabriela de Fátima Marques