INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
DECISÃO SUMÁRIA
DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
ADMISSIBILIDADE
INDEFERIMENTO
Sumário


I. As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, do CPC.
II. O Supremo Tribunal, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos por aquele preceito, sempre poderá verificar se a Relação ao usar tais poderes, agiu ou não dentro dos limites conferidos pela lei para os exercer.

Texto Integral


Acordam em Conferência na 6ª. Secção do STJ.

1-Relatório:

AA, insolvente nos autos principais e BB, instauraram, por apenso, ação de impugnação de resolução de ato em benefício da massa insolvente, nos termos do artigo 125.º, do CIRE, contra a Massa Insolvente de AA, representada pela Senhora Administradora de Insolvência.

Na 1ª. Instância foi proferida sentença, com o seguinte teor, a final:

«Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga este Tribunal a presente ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente intentada por AA e BB contra a Massa Insolvente improcedente».

A autora insolvente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.

No TRL. foi proferido acórdão, com o seguinte teor no seu dispositivo:

«Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim confirmando a sentença».

Uma vez mais, inconformada veio a recorrida interpor recurso de revista, ou assim se não entendendo, revista excecional para este STJ.

Foi proferido o seguinte despacho:

«Na situação vertente, foi proferido acórdão que conheceu do mérito da causa, o qual confirmou na íntegra a decisão da 1ª. instância.

Dispõe o nº. 1 do art. 671º do CPC. que, cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª. instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

Porém, dispõe o nº. 3 do mesmo preceito que, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª. instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

Com efeito, compulsada a sentença da 1ª. Instância e o acórdão da Relação, constatamos que a argumentação expendida é a mesma em ambas as instâncias, verificando-se a existência de dupla conforme, tal como havia constado do despacho de subida do recurso.

E tanto assim é, que a própria recorrente também não suscita a inexistência de dupla conforme, requerendo a admissão de revista excecional, a título subsidiário.

No seu requerimento de interposição de recurso, assaca nulidades ao acórdão recorrido.

Ora, tem sido entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça, que por virtude da ocorrência de dupla conforme, aquelas nulidades só são arguíveis por via recursória, se a revista for interposta a título de revista excecional, nos termos do nº. 1 do art. 672º do CPC. e este recurso for admissível.

A recorrente arguiu nulidades do acórdão proferido (já apreciadas pelo Tribunal da Relação) e deduziu revista excecional com suporte na al. a) do nº. 1 e al. a) do nº. 2 do art. 672º do CPC.».

Os autos foram remetidos à Formação, a qual proferiu acórdão, nos seguintes termos:

«Pelo exposto, acordam os juízes desta Formação em não admitir a revista excecional, determinando, no entanto, a devolução dos autos à Exmª. Senhora Juíza Conselheira, a quem a revista foi distribuída, para os fins acima considerados».

Os fins acima considerados são:

«Todavia, considerando que a Recorrente invoca, de igual modo, a violação pelo acórdão recorrido do disposto nos artºs. 662º n.º 2, alínea c), in fine, e 674º n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil, deverão os autos ser remetidos à Exmª. Senhora Juíza Conselheira, a quem o recurso foi distribuído, nos termos do n.º 5 do art.º 672º do Código de Processo Civil, para que, em função do fundamento invocado, possa reponderar o seguimento a dar aos termos da presente revista, em termos gerais, ao abrigo daqueles enunciados preceitos adjetivos (artºs. 662º n.º 2, alínea c), in fine, e 674º n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil), conforme acabado de discretear».

Foi proferida decisão.

Desta decisão sumária veio a recorrente requerer que sobre a mesma recaísse acórdão, nos termos do art. 652º, nº. 3 do CPC., reiterando a admissão de revista.

Foram colhidos os vistos.

2- Fundamentação:

A decisão sumária proferida tem o seguinte teor, que se reproduz:

«Nas suas conclusões de recurso diz a recorrente, a tal respeito:

l) O tribunal recorrido não ampliando a matéria de facto nos termos da conclusão c) das alegações de recurso dos ora recorrentes para a Relação de Lisboa,

m) Oblitera aos recorrentes a possibilidade de demonstrarem que o negócio celebrado pelo valor de 111.332,70€, acrescido de duas hipotecas que à data da insolvência garantiam 70.118,08€, estava dentro dos valores de mercado,

n) E, sendo assim, que as obrigações assumidas pela insolvente não excederam manifestamente as da contraparte, logo, não estavam preenchidos os requisitos do artº 121, nº1, al. h), do CIRE, para declarar resolvido incondicionalmente o negócio em crise.

o) Viola o acórdão recorrido lei adjectiva, artº 674, nº1, al. b), do CPC, não aplicando o artº 662/2, al. c) in fine do CPC – ampliação matéria de facto.

Diz o acórdão recorrido:

«A Recorrente finaliza as suas alegações referentes à impugnação da matéria de facto, pedindo ainda o aditamento de um novo facto, que considera essencial para prova da onerosidade do negócio celebrado entre os AA. e que é o seguinte:

O imóvel foi transmitido com duas hipotecas que à data da insolvência garantiam 70.118,08 €, conforme reclamação de créditos do BPI.

Cremos, no entanto, que, nesta fase processual não é admissível tal aditamento.

Com efeito, o nº 2 do artigo 662º do CPC, que regulamenta a modificabilidade da decisão de facto, determina que a Relação deve, mesmo oficiosamente:

c) Anular a decisão proferida na 1ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Deduz-se do teor da norma que a ampliação da matéria de facto exige, como se refere na parte final da referida alínea c), que a ampliação seja indispensável.

Esta indispensabilidade só se colocará, em princípio, quando o facto ausente da matéria de facto seja essencial para o preenchimento da causa de pedir ou de alguma excepção.

Contudo, relativamente aos factos essenciais (isto é, todos os factos de que depende o reconhecimento das pretensões deduzidas e que devem ser vertidos nos articulados das partes) e no que respeita à forma do processo comum, se estes não tiverem sido alegados, não é permitido ao tribunal considerá-los na sentença, como decorre do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil. Dito de outro modo, se o facto for essencial e não tiver sido alegado, as partes não podem, em recurso, pedir que o tribunal da Relação o declare provado. Só os factos instrumentais ou complementares poderão ser aditados à matéria de facto, tenham ou não sido alegados, neste último caso se resultarem da discussão da causa, mas só no caso de se revelarem indispensáveis para a decisão da causa. Compreende-se que assim seja não só por razões de economia processual, como também para evitar uma complexidade desnecessária que multiplicaria as questões e não promoveria a clarificação das questões efetivamente relevantes.

No caso, pese embora o facto tenha sido alegado nos artigos 17º e 18º da petição, não nos parece que seja indispensável, dado não ser essencial para o preenchimento da causa de pedir: o facto de o imóvel transmitido estar onerado com duas hipotecas, não prova, sem mais, a onerosidade do negócio celebrado. Com efeito, o critério para distinguir um negócio oneroso de um negócio gratuito resulta do respectivo conteúdo e finalidade. Assim, enquanto os negócios onerosos pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a perspectiva destas, um nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais (normalmente traduzidas em negócios gratuitos ou a título gratuito caracterizam-se, ao invés, pela intervenção de um intenção liberal (animus donandi, animus beneficiandi), ou seja, uma parte tem a intenção, devidamente manifestada, de efectuar uma atribuição patrimonial a favor da outra, sem contrapartida ou correspectivo. O que importa, nos negócios onerosos, é a vontade ou o intento das partes.

De todo o modo, o facto que os recorrentes pretendiam ver incluído nos factos provados, já resulta do nº. 4), na medida em que aí se declara que as hipotecas se mantiveram».

Ora, a reforma legislativa de 2013 do regime dos recursos atribuiu à 2ª. instância instrumentos que lhe permitem formar uma convicção própria e autónoma sobre os factos que interessem à boa decisão do recurso, mas também que lhe impõem que dê relevo a factos não alegados, que surjam durante a instrução, ou ainda, a ampliação da matéria de facto quando a considere indispensável.

O artigo 662.º, nº.1 do CPC. é disso sintomático, quando passou a decretar imperativamente, em vez de «pode», como anteriormente, que a Relação «deve» alterar a decisão de primeira instância sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por outro lado, n.º 2 do mesmo preceito atribui um vasto leque de poderes/deveres inquisitórios ao tribunal, podendo a Relação alterar o julgamento de facto, desconsiderar matéria de natureza estritamente jurídico-conclusiva (artigos 607.º, 4 e 663.º, 2) corrigir a decisão de facto que viole normas imperativas de direito probatório material (artigos 5.º, 3, 607.º, 4 e 5 e 662º, 1), considerar factos notórios e de conhecimento funcional não ponderados pela primeira instância (artigos 5.º, 2 c) e 412.º) e ainda aproveitar-se de factos instrumentais, mas também complementares e concretizadores que já resultavam da instrução da causa em 1.ª instância (artigo 5.º, 2).

As questões de facto estão, assim, reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, do CPC.

A competência do Supremo Tribunal de Justiça está circunscrita à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, não podendo debruçar-se sobre a matéria de facto, ficando vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido, a que aplica definitivamente o regime jurídico tido por adequado, nos termos do nº. 1 do art. 682º. do CPC.

Porém, dispõe o nº. 2 do mesmo preceito, que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº. 3 do artigo 674º do CPC.

E o nº. 3 do art. 674º do CPC., admite a revista com fundamento em ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

O Supremo Tribunal, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos por aquele preceito, sempre poderá verificar se a Relação ao usar tais poderes, agiu ou não dentro dos limites conferidos pela lei para os exercer (cfr. Ac. do STJ. de 16-12-2020, in www.dgsi.pt).

E na situação, sub judice, o Tribunal da Relação atuou no âmbito dos poderes que a lei lhe confere.

Com efeito, a intervenção do STJ a nível factual é muito limitada, não podendo sindicar o erro na livre apreciação das provas, exceto nos casos contemplados no nº. 3 do art. 674º do CPC. (cfr., nomeadamente, Acs. do STJ. de 15-12-2020, 15-12-2022, 24-5-2022, in www.dgsi.pt).

Com efeito, incumbe à Relação aquilatar da indispensabilidade ou não, da ampliação da matéria de facto, pois, não basta que os factos tenham conexão com alguma das soluções plausíveis da questão de direito, mas a ponderação da sua necessidade perante o objeto do recurso.

No caso vertente, a Relação ponderou a matéria de facto de que dispunha, analisou-a e entendeu não ser indispensável qualquer ampliação.

Tal juízo valorativo incumbe à Relação, não podendo o STJ. imiscuir-se nesta convicção fáctica.

A Relação já dispunha de matéria de facto suficiente para a decisão de direito, nenhuma afronta a normas de direito adjetivo tendo cometido, ou seja, respeitou as normas procedimentais ao seu alcance, sem qualquer censura aos seus próprios poderes.

Pelo exposto, nada mais resta a este STJ. conhecer».

Com efeito, o Tribunal da Relação atuou dentro dos seus poderes, não tendo sido desconsiderada qualquer prova, uma vez que, tal como se configurou o objeto do litígio, todos os factos pertinentes foram elencados.

Sumário:

- As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, do CPC.

- O Supremo Tribunal, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos por aquele preceito, sempre poderá verificar se a Relação ao usar tais poderes, agiu ou não dentro dos limites conferidos pela lei para os exercer.

3- Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em Conferência, indeferir a reclamação apresentada, mantendo-se a decisão singular.

Custas a cargo da recorrente, que se fixa em 2 Ucs, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 1-7-2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Maria Olinda Garcia

Anabela Luna de Carvalho