Os apensos do processo de insolvência têm natureza urgente, como estabelece imperativamente o artigo 9.º do CIRE. Sendo a contraparte uma Massa Insolvente, o recorrente tem a obrigação de saber que o processo tem natureza urgente. A natureza deste prazo não pode ser alterada por decisão judicial (a requerimento do recorrente). Não tendo o recurso de apelação sido interposto atempadamente, o direito ao recurso já não pode ser exercido, e tal não viola o princípio da confiança.
I. RELATÓRIO
*1. A Massa Insolvente da “Tovisi, S.A.” propôs ação declarativa contra a sociedade “Rentimo, Ldª”, pedindo a condenação desta no pagamento de 137.028,71 Euros, respeitantes a serviços prestados pela autora na área da construção civil, os quais não teriam sido pagos nos termos contratualmente convencionados.
A ré contestou, pugnando pela improcedência da ação; e deduziu pedido reconvencional.
2. A primeira instância, por sentença de 26.05.2024, julgou a ação procedente, e condenou a ré a pagar à Massa Insolvente da Tovisi, S.A. o valor de 128.128,63 Euros, acrescido de juros moratórios vencidos de 8.900,08 Euros bem como dos vincendos desde a data da citação até efetivo pagamento. E julgou improcedente o pedido reconvencional.
3. Contra essa decisão, a ré interpôs recurso de apelação, em 01.07.2024.
4. No Tribunal da Relação do Porto, por decisão singular, entendeu-se que o prazo para interpor o recurso já se encontrava ultrapassado, dada a natureza urgente do processo, tendo a recorrente sido previamente notificada para se pronunciar sobre o sentido dessa decisão. A ré apelante afirmou que o processo sempre havia sido tramitado como não urgente, e assim deveria continuar a ser considerado, devendo, portanto, o recurso ser recebido.
Não se conformando com a decisão singular, a ré reclamou para a Conferência, a qual proferiu acórdão confirmativo daquela decisão.
5. Inconformado com o acórdão do TRP, a ré apelante interpôs recurso de revista, sustentando a respetiva admissibilidade no artigo 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC, por entender que a decisão recorrida havia violado o caso julgado.
Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«I. Vem o presente recurso interposto do acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação em sede de conferência, sobre a reclamação da decisão de não admissão do recurso apresentado pela ora Recorrente, por extemporâneo, proferida em primeira instância por aquele Tribunal.
II. Acórdão, pelo qual os Venerandos Desembargadores, e aderindo à teses do Relator, vieram manter a decisão de não admissibilidade do recurso, por extemporâneo, com os seguintes fundamentos que no essencial se transcrevem: (…)
“Em primeiro lugar, cumpre deixar claro que, como se pode constatar pela leitura da decisão singular reclamada, na mesma não se reconheceu que foi preterida alguma formalidade essencial na tramitação deste processo. Nem, de resto, o poderia fazer, pois que o objeto dessa decisão não era validar ou invalidar essa tramitação. Pelo contrário, o que aí se referiu foi que não era esta a altura própria para tomar posição sobre a alegação da Apelante, no sentido de que tal tramitação nunca obedeceu à qualificação deste processo como urgente, nem sobre a ausência de despacho a determinar a apensação destes autos ao processo de insolvência. Como aí se refere, “quanto a qualquer um destes aspetos, esta é uma altura em que não pode assumir-se posição sobre eles e, menos ainda, retirar da ocorrência de qualquer eventual irregularidade cometida a esse respeito, alguma consequência, no sentido de alterar a qualificação deste processo como urgente”. (...)
Efetivamente, a qualificação deste processo como urgente decorre da lei (artigo 9.º do CIRE) e, nesse campo, o julgador não tem qualquer poder. Não a pode, portanto, alterar. Seja por via da adequação formal, seja por via da correção do processado, seja por outra via qualquer. Nesta fase e momento, a única alternativa é retirar dessa qualificação as respetivas implicações jurídicas e processuais. (…)
Como tal, dando aqui por reproduzida toda a argumentação expressa em tal decisão e sendo certo que o prazo para a interposição do recurso (15 dias - artigo 638.º, n.ºs 1 e 7 do CPC “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do CIRE) se esgotou antes dessa interposição, ou seja, presumindo-se a sentença recorrida notificada à Apelante no dia 31/05/2024 (artigo 248.º, n.º 1, do CPC), o dito prazo (de 15 dias), expirou no dia 17/06/2024 e este recurso só foi interposto no dia 01/07/2024, só se pode declarar o mesmo como intempestivo.
Consequentemente, acorda-se, em conferência, em julgar improcedente a reclamação em apreço e confirmar a decisão singular impugnada.”
III. Ora, é do acórdão assim proferido que rejeitou o recurso apresentado pela Recorrente, por intempestivo, considerando - numa decisão surpresa - estarmos na presença de um processo imperativamente urgente (art.º 9.º CIRE), desconsiderando a natureza e tramitação que lhe fora impressa, em sede de primeira instância (comum) e as suas consequências - nomeadamente para a salvaguarda dos direitos de defesa da Ré - e que, se escusa a retirar da tramitação adoptada, as implicações jurídicas e processuais ao abrigo de uma alegada impossibilidade, que ora se recorre.
IV. Entende a recorrente que decisão proferida pelo Relator e confirmada pela Conferência em sede de reclamação importa a violação de caso julgado, em virtude de não ter sido a natureza referida, aquela que foi impressa ao processo em sede de primeira instância.
V. Ou, caso assim se não entenda, o que por mera hipótese se concebe, sem conceder mas, como subsidiariamente se invocará e procurará demonstrar, entende a Recorrente que a decisão proferida enferma de nulidade por omissão de pronúncia e por oposição entre os fundamentos e a decisão proferida, (art.º 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) aqui aplicáveis ex vi do art.º 674.º, n.º 1, alínea c) do CPC).
VI. Com efeito a decisão enunciada, nos termos em que foi proferida, tem por subjacente o reconhecimento, por parte do Tribunal da Relação de ter sido praticada, em sede de 1.ª Instância, a nulidade a que se alude no art.º 193.º do CPC.
VII. Nulidade que, nos termos do art.º 196.º do CPC é do conhecimento oficioso e que tem como consequência legal e imediata, a anulação dos actos praticados após a citação da Ré, ora Recorrente, ou, no limite, nos termos do n.º 2 do primeiro dos enunciados preceitos, após a prolação da sentença, momento em que, em conformidade com o decidido em sede de Reclamação, operou a diminuição das garantias de defesa da Ré.
VIII. E que sendo do conhecimento oficioso, e invocável a todo o tempo, o Tribunal a quo estava obrigado a conhecer, como consequência directa da fundamentação invocada e decisão proferida em sede de reclamação, sendo o seu corolário lógico.
IX. O que, não se tendo verificado, importa a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia e, concomitantemente, por oposição entre os fundamentos e a decisão proferida, (art.º 615.º, n.º 1 alínea c) e d) aqui aplicáveis ex vi do art.º 674.º, n.º 1 alínea c) do CPC).
X. Considera a Recorrente que, tal como sucedeu em sede de decisão singular, a decisão da conferência aqui posta em causa, não foi, com o devido respeito, acertada, nem bem fundada, no que concerne não só à questão de direito como igualmente quanto à factualidade que emerge dos autos, e que invoca para fundamentar a intempestividade do recurso.
XI. Com efeito, o acórdão proferido viola caso julgado formal (art.º 630.º do CPC) e enferma de nulidade nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea c) e d), aplicáveis ex vi do art.º 674.º, n.º 1 alínea c) do CPC, pois, como se demonstrará:
c) os fundamentos nele invocados estão em oposição com a decisão.
d) O Tribunal deixou de se pronunciar sobre questões que estava obrigado a conhecer e, bem assim, conheceu de questões que lhe estava vedado conhecer (art.º 630 CPC).
XII. Como resulta à saciedade do elencado supra, encontrando-se plenamente demonstrado e documentado no sistema Citius e no processo, bem ou mal, nos presentes autos, o Tribunal de primeira instância adoptou tout court a tramitação de um processo comum, não urgente.
XIII. Fê-lo, ainda que por decisão implícita, quando configurou os presentes autos como processo comum sem referência à sua, concomitante natureza especial e, bem assim, quando ordenou a citação da Ré para contestar no prazo de 35 (trinta e cinco) dias, com suspensão da sua contagem nos períodos de férias.
XIV. Como o fez, quando, sem qualquer fundamentação, deferiu prorrogações de prazo, admitiu o recurso e, nos termos do art.º 641.º do CPC, de que expressamente lançou mão, conheceu das nulidades nele, invocadas.
XV. Também como se referiu e resulta do mesmo sistema Citius e de todo o processado, a decisão implícita subjacente a todas as referidas decisões - de estarmos perante um processo sob a forma comum não urgente - não foi impugnada por qualquer dos intervenientes processuais.
XVI. Pelo que, bem ou mal, tal decisão implícita transitou em julgado, neste sentido se firma a jurisprudência do STJ, veja-se a titulo meramente exemplificativo o sumariado no AC. de 2/2/2023 em que foi relator João Curia Mariano, também acessível in https://juris.stj.pt/:
“I - O caso julgado estende a sua relevância para além do conteúdo decisório expresso, abrangendo fenómenos de inferência, quando uma determinada decisão expressa pressuponha ou imponha, necessariamente, uma outra decisão implícita. II - Tendo sido proferido um despacho que dá sem efeito a diligência para produção da prova arrolada, perante a apresentação de um requerimento conjunto apresentado pelos mandatários das partes em que estes acordam em que se julgue provada determinada factualidade, prescindindo ambos da produção dos meios de prova arrolados, com a condição do tribunal considerar provados os factos que foram objeto de acordo, estamos perante uma decisão que implicitamente confere força probatória pleníssima a esse acordo. III - Daí que, a sentença proferida nesse processo ao conferir a esse acordo apenas força probatória bastante, sujeitando os respetivos factos a uma livre apreciação, desrespeita a força do caso julgado que se formou sobre a referida decisão implícita.”
XVII. E tendo transitado em julgado, ao Tribunal da Relação estava vedado declarar a não admissibilidade do recurso com fundamento na sua intempestividade, uma vez que esta, apenas se verifica com o reconhecimento da natureza urgente do processo. Natureza que, como à saciedade já se referiu, não foi a adoptada pelo Tribunal de 1.ª instância.
XVIII. Acresce que, como se referiu supra, a decisão implícita do Tribunal de primeira instância - de adoptar uma forma de processo comum não urgente, - ainda que errada, não era passível de apreciação por parte do Tribunal da Relação, atento o disposto no art.º 630.º do CPC.
XIX. Consagra nesse preceito o legislador o princípio da irrecorribilidade das decisões proferidas nos termos e ao abrigo do art.º 6.º, n.º 1 do CPC desde que, como sucede no caso sub judice, as mesmas não colidam com o princípio da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios.
XX. Ora, foi precisamente da análise de uma decisão implícita proferida pelo Tribunal de primeira instância ao abrigo de tais poderes, que o Tribunal da Relação, julgando-a inadmissível, por força do art.º 9.º do CIRE, veio proferir despacho de inadmissibilidade do recurso, decisão para a qual não detém poderes nem competência.
XXI. Pelo que, também por este facto, a decisão é nula, tendo o Tribunal da Relação conhecido de matéria que lhe estava vedado conhecer, violando assim o estatuído no (art.º 630.º, n.º 2 do CPC) e incorrendo na nulidade a que se alude na parte final do art.º 615.º, n.º 1, alínea d) in fine do CPC. Nulidade que, para os devidos e legais efeitos, se invoca.
XXII. Acresce que, não pode também a Recorrente conformar-se com a decisão da Relação, na parte em que julga estar a qualificação do processo excluída dos poderes do julgador, “seja por via da adequação formal, seja por via da correcção do processado, seja por outra via qualquer”, por força do estatuído no art.º 9 do CIRE, ou seja, por uma tal natureza decorrer directamente de lei.
XXIII. Entende a recorrente que dispõe o tribunal de poder discricionário (aqui entendido como a escolha da melhor solução entre as várias possíveis e não um exercício meramente arbitrário, este ilegal), de decidir em cumprimento do princípio da adequação formal (artigo 547.º CPC) da cooperação com as partes (artigo 7.º), da gestão, economia e celeridade processual (artigo 6.º) que visam proteger os interesses da partes em igualdade (artigo 4.º) e também fins públicos constituindo, tais princípios processuais, manifestações na lei ordinária do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, ínsitos no artigo 20.º, n.º 4 e 5 da CRP
XXIV. O princípio da adequação formal, ínsito nos artigos 6.º e 547.º do CPC, permite ao juiz, precisamente, adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, ou seja, e no que aos presentes autos respeita, para uma boa decisão da causa com respeito pelos princípios da igualdade, da defesa, da protecção da confiança e da segurança jurídica.
XXV. Entender diferentemente, como o fez a Relação, julgando estar vedado ao Tribunal, ao abrigo deste principio, atribuir natureza não urgente a um processo, só porque a enunciada tramitação deriva de lei expressa (art.º 9 do CIRE), representa um desvirtuar e esvaziar do próprio principio.
XXVI. No nosso ordenamento jurídico toda a tramitação processual está configurada por lei, todos os actos nela se encontram definidos, e nessa medida toda, a adequação importa, por definição, o afastamento de uma disposição legal, caso contrário, a adequação não se verifica.
XXVII. Tal alteração implica, como se referiu, uma violação de decisão, ainda que implícita, do Tribunal a quo, a qual por não ter sido impugnada tem os seus efeitos cristalizados no processo, com as consequências legais daí advenientes e viola os art.os 6 n.º 1 e 547.º do CPC, o que se invoca.
Subsidiariamente
XXVIII. Mas ainda que se considere, como entende a Relação, que ao Tribunal a quo, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos, pelo art.º 6.º, n.º 1 do CPC, está vedado alterar a tramitação do processo no que respeita à sua natureza urgente - o que se concebe sem conceder – ainda assim sempre a decisão recorrida enfermaria da nulidade a que se alude no art.º 615 n.º 1 alínea c) e d) do CPC.
XXIX. Entendendo, como entendeu o Tribunal da Relação estarmos na presença de um processo urgente e, constando dos autos documentos de onde resulta, sem margem para dúvidas, que a tramitação adoptada não seguiu/respeitou a forma enunciada, ao Tribunal da Relação impunha-se, como corolário lógico da sua decisão, reconhecer estar-se perante a nulidade que encontra previsão legal no art.º 193.º do CPC.
XXX. Nulidade que, não obstante a ora Recorrente a ter invocado atempadamente, não carecia sequer de ser invocada, porquanto é do conhecimento oficiosos, estando o Tribunal, por força dessa circunstância, obrigado a conhecer da mesma (art.º 196.º do CPC).
XXXI. Ora a referida nulidade tem como consequência legal e imperativa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, nomeadamente quando deles resulte uma diminuição das garantias do Réu (n.º 2 do art.º 193.º do CPC).
XXXII. Aqui chegados - considerando-se que não estamos na presença de caso julgado e/ou de matéria excluída ao conhecimento do tribunal superior - ao Tribunal da Relação impunha-se conhecer da dita nulidade e ordenar a anulação de todo o processado desde a citação da Ré e/ou, pelo menos, desde a notificação da sentença, garantindo e assegurando os direitos de defesa das partes.
XXXIII. A admissão do recurso defendida na tese da recorrente não configura, como erradamente se fez constar do acórdão, “um contornar do efeito imperativo do art.º 9 do CIRE”, trata-se isso sim de reconhecimento que tal imperatividade não foi respeitada pelo tribunal a quo, daí retirar as necessárias, únicas e possíveis, consequências legais, no que o Tribunal estava obrigado.
XXXIV. O que não é possível, e se traduz num contornar de uma situação, é fazer o que o tribunal a quo fez: Que considerando imperativa a tramitação estatuída no art.º 9.º do CIRE e detendo no processo elementos que comprovam a sua violação, se recusa daí a retirar as consequências legais, limitando-se a impor a jusante a enunciada tramitação, numa clamorosa violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e dos direitos de defesa das partes.
XXXV. A decisão do Tribunal da Relação configura, para além de todo o elencado, nesta parte, um non liquet.
XXXVI. Na verdade, o que no entender da Recorrente está vedado à Relação é - confrontada, como o foi, com toda a documentação ínsita nos autos - conhecer de uma nulidade, ainda que de forma implícita e dela não retirar as consequências legais, incorrendo num non liquet, o que lhe está vedado por força do art.º 8 do CC).
XXXVII. Ora se, no entender da Relação estamos perante uma nulidade (art.º 193.º do CPC), pois ao julgador estava vedado, por qualquer via, alterar a natureza e forma do processo, constando dos autos elementos que demonstram que tal natureza foi alterada em sede de primeira instância, facto que aliás foi alegado pela Recorrente, ao Tribunal da Relação impunha-se dela retirar as necessárias consequências.
XXXVIII. O que se nos afigura estar vedado ao Tribunal é reconhecer, como reconheceu, que foi preterida uma formalidade essencial/imperativa e concluir que a mesma já não pode ser apreciada, impondo a aplicação para o futuro, mas com efeitos retroactivos da forma urgente do processo.
XXXIX. E aqui chegados ou o Tribunal considerava que a nulidade verificada é passível de sanação, nos termos do art.º 198.º do CPC, o que impunha que o processo mantivesse a tramitação comum, e consequentemente, o recurso fosse admitido.
XL. Ou, o Tribunal da Relação considerava, como o fez, que o processo reveste natureza urgente imperativa, o que a verificar-se sucede desde o início, o que impunha a anulação dos actos que não pudessem ser aproveitados, in casu, a notificação da sentença, por assim o estabelecer o regime da nulidade.
XLI. Entender diferentemente, viola o preceituado nos art.os 193.º, 195.º, 196.º, 198.º e 199.º todos do CPC, o que se invoca.
XLII. A decisão da Relação enferma simultaneamente, da nulidade dos art.º 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), o que para os devidos e legais efeitos se invoca.
XLIII. Acresce que, como resulta da nota de citação, a Ré, ora Recorrente, não foi citada para um processo urgente, como teria de o ser, se fosse esse o caso. Aliás, tenha-se presente, por elucidativo, que mesmo em sede de apresentação de recurso o Tribunal a quo considerou o processo como não urgente ao admitir o recurso como atempado.
XLIV. Na verdade, em face da atuação do tribunal de 1.ª instância e secretaria, e a entender-se que estamos face um processo urgente, ocorreu erro, não imputável à Recorrente mas cujas consequências se repercutem directamente nos seus direitos de defesa, coartando-os.
XLV. Por elucidativo veja-se, sobre esta questão do prazo indicado pela secretaria, a posição da Jurisprudência sufragada no douto acórdão de 28.09.2022, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/ee3306726a77780180258 8e2003fc492?OpenDocument:
«II - Se os serviços do tribunal prestam informação ao citando, em formulário de que dispõem, acompanhando o expediente de citação (com dimensão explicativa/ informativa), sobre prazo para defesa/contestação e respetivo modo de contagem, apresentando-o como um prazo aumentado pela dilação, que se suspende em férias judiciais, então não é exigível ao destinatário - comummente um leigo em matérias jurídicas, numa altura em que ainda não estava representado por advogado, com o inerente «mitigado grau de censura» - que proceda à distinção entre prazo dilatório e prazo perentório, para concluir que só este último (e não aquele) está sujeito a essa suspensão. III - Cabendo aos tribunais, no exercício do poder/função judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes esperam daqueles uma conduta pautada pela boa-fé e verdade, em clima de confiança, em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, devendo ser protegidas as expetativas por eles legitimamente criadas em resultado de comportamentos dos poderes do Estado, aos quais se exige previsibilidade de atuação, de acordo com o princípio constitucional do Estado de Direito democrático, nas vertentes dos subprincípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. IV - Oferecido o articulado de contestação em prazo compatível com aquele quadro informativo veiculado no ato da citação, em que o citado acreditou, tem de considerar-se tempestiva a contestação, sob pena de violação daqueles princípios.»
XLVI. Pelo que também por este facto deve a decisão recorrida ser alterada, substituindo-se por outra que admita o recurso.
XLVII. Dá-se aqui por integralmente reproduzida a matéria elencada nos pontos 42 a 63 do artigo 32 das presentes alegações, no que respeita ao princípio da proteção da confiança e ao princípio da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), os quais, considera a Recorrente, nos termos aí enunciados e que doravante passam a constituir alegações do presente recurso, foram subvertidos na decisão proferida.
XLVIII. Tal como aí se refere, o facto de o presente processo ter seguido sempre, em 1ª Instância, uma tramitação não urgente, gerou na Ré/Recorrente a confiança legítima de que os prazos aplicáveis seriam não urgentes, independentemente de ser agora, e só agora, suscitada a questão do carácter urgente do processo.
XLIX. Alterar, pois, essa natureza do processo nesta altura e sem aviso prévio, prejudica gravemente o direito de defesa da Recorrente, como igualmente fere todo o processado até à data.
L. Daí que se possa concluir que, ao se considerar o recurso intempestivo, por ser agora tratado o processo como urgente, manifestamente se afeta o princípio da proteção da confiança.
LI. Tal decisão (i) constitui uma mutação grosseira nas expectativas legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, da Ré/Recorrente que se reconduzem a uma verdadeira "decisão-surpresa" em face do tramitado (pelo tribunal, secretaria e partes) e (ii) não se vislumbra qual os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que se devem, agora, e só agora, se considerar prevalecentes.
LII. Por fim, o tratamento deste processo como não urgente criou uma estabilidade no decurso do litígio à Ré/Recorrente, pelo que, uma vez mais e com uma outra vertente intimamente conexa com o princípio da confiança, alterar o regime do recurso contraria ainda o princípio da segurança jurídica, que exige previsibilidade e clareza nas regras.
LIII. Acresce que o art.º 9.º do CIRE, como interpretado no Douto Acórdão recorrido, no sentido de que a imperatividade da natureza urgente aí estabelecida se sobrepõe ao caso julgado dissociando, tal imperatividade do principio da segurança jurídica, e da protecção da confiança de que as partes possam gozar, é inconstitucional por violação dos princípios do Estado de Direito e da Legalidade vertidos para os artºs 2º, 3º 2 e 202º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, assim como do princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva vertido para o seu artº 20º, o que desde já expressamente se invoca para todos os efeitos.
LIV. Mais os art.º 643.º e 652.º, n.º 3 do CPC, como interpretado no douto Acórdão recorrido, no sentido de que à Relação está vedado, em sede de reclamação, o conhecimento de nulidades, de conhecimento oficioso e invocáveis a todo o tempo, não obstante do processo constarem todos os elementos que o permitem e tendo as mesmas sido invocadas, por considerar que tal matéria escapa ao âmbito/objecto da reclamação, é inconstitucional por violação do princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva vertido para o seu art.º 20.º e 268.º da CRP, o que desde já expressamente se invoca para todos os efeitos.
Termos em que se requer a Vªs Exªs se dignem admitir, e conceder provimento ao presente recurso, revogando o Douto Acórdão recorrido, de acordo com as conclusões acima enunciadas.»
6. Proferida, no STJ, decisão nos termos do artigo 656.º do CPC (ex vi do art.º 17.º do CIRE), veio a recorrente reclamar para a Conferência.
No seu requerimento, sustentou, na essência, os mesmos argumentos que já havia invocado na segunda instância (quando reclamou da decisão singular para a Conferência) e no recurso de revista,
Cabe apreciar em Conferência.
*
II. FUNDAMENTOS
A) Na decisão proferida, em 11.04.2025, nos termos do 656.º do CPC, e agora alvo de reclamação para a Conferência, entendeu-se o seguinte:
«1. O acórdão recorrido (confirmando a decisão singular) entendeu que o recurso de apelação havia sido interposto fora do tempo, afirmando:
«(…) sendo certo que o prazo para a interposição do recurso (15 dias - artigo 638.º, n.ºs 1 e 7 do CPC “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do CIRE) se esgotou antes dessa interposição, ou seja, presumindo-se a sentença recorrida notificada à Apelante no dia 31/05/2024 (artigo 248.º, n.º 1, do CPC), o dito prazo (de 15 dias), expirou no dia 17/06/2024 e este recurso só foi interposto no dia 01/07/2024, só se pode declarar o mesmo como intempestivo.»
Afirma-se ainda no acórdão recorrido:
«Efetivamente, a qualificação deste processo como urgente decorre da lei (artigo 9.º do CIRE) e, nesse campo, o julgador não tem qualquer poder. Não a pode, portanto, alterar. Seja por via da adequação formal, seja por via da correção do processado, seja por outra via qualquer. Nesta fase e momento, a única alternativa é retirar dessa qualificação as respetivas implicações jurídicas e processuais. (…)
Como se refere na decisão sumária reclamada, sendo este um processo urgente e podendo a Ré ter-se apercebido dessa natureza, “não pode legitimar-se a sua impugnação intempestiva da sentença recorrida, por via dos princípios constitucionais que refere; ou seja, o princípio da proteção da confiança ou o princípio da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa).
Efetivamente, se é certo que tais princípios vigoram e são aplicáveis no nosso ordenamento jurídico, também é verdade que não podem os mesmos servir para subverter esse ordenamento e, em vez das regras que o compõem, eleger outras com a finalidade de legitimar a violação das primeiramente referidas. Isso sim é que seria atentatório dos aludidos princípios.
Ou seja, em resumo, nem este processo pode ser qualificado como não urgente, pois que essa qualificação é imperativa e decorre da lei, nem sendo urgente, pode, agora, contornar-se essa qualificação por qualquer outra via ou princípio, com o objetivo de tornar tempestivo o recurso da Ré, quando o não é.»
2. Entende a recorrente que o acórdão recorrido, ao considerar que o processo tem natureza urgente, quando anteriormente não haviam sido aplicados prazos próprios de um processo urgente, incorreu em violação do caso julgado formal, pelo que a revista será admissível com base no artigo 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC.
Face à invocação deste fundamento específico de recorribilidade (nos termos do art.º 637.º, n.º 2 do CPC) e à apresentação de argumentos através dos quais a recorrente procura demonstrar a sua tese, a revista tem de ser admitida, com base no artigo 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC, ex vi do artigo 17.º do CIRE, para se apurar se o acórdão recorrido incorreu, ou não, em violação do caso julgado formal.
O objeto central do presente recurso é, assim, a questão de saber se o acórdão recorrido viola o caso julgado formal, cabendo ainda apurar se incorre em nulidade, como alegado pela recorrente, ou se faz aplicação de norma inconstitucional.
3. Dada a simplicidade da questão em causa, a decisão é tomada nos termos do artigo 656.º do CPC (ex vi do art.º 17.º do CIRE).
4. Dúvidas não existem de que a presente ação, tendo sido proposta por uma Massa Insolvente, no âmbito de um processo de insolvência, tem natureza urgente, como expressamente decorre do artigo 9.º, n.º 1 do CIRE, o qual dispõe:
«O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.»
As ações propostas por uma Massa Insolvente, representada pelo administrador da insolvência (que substitui o insolvente, nos termos do art.º 81.º e segs. do CIRE), como decorre da própria identidade deste tipo de autor, só podem ser propostas no âmbito de um processo de insolvência (pois tal sujeito não existe fora de um processo de insolvência, art.º 46.º do CIRE). Pela sua própria natureza, tais ações não necessitam, como é óbvio, de um específico despacho de apensação ao processo principal, diferentemente do que se verifica, nos termos do artigo 85.º do CIRE, quando se trata de ações que já se encontravam pendentes à data da declaração de insolvência.
Não há, portanto, que confundir ações que são propostas por uma Massa Insolvente, como acontece no caso concreto, que só podem existir no âmbito de um processo de insolvência, com ações que se encontravam pendentes à data da insolvência (que podem, ou não, ser apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art.º 85.º do CIRE).
No âmbito do processo de insolvência, para além do processo principal e dos incidentes que nele são tramitados, as demais matérias, por razões de especificidade e praticabilidade processual, correm em apenso, como se encontra previsto em múltiplas disposições ao longo do CIRE.
O artigo 9.º do CIRE é claro ao atribuir natureza urgente a todos os processos tramitados no âmbito de um processo de insolvência, quer seja o processo principal, os incidentes ou os apensos. E trata-se de uma norma que, pelo teor da sua estatuição, é uma norma imperativa.
5. A recorrente, estando representada por mandatário desde o início do processo, tem a obrigação de conhecer a lei, pois nos termos do artigo 6.º do Código Civil, a ignorância da lei não isenta do seu cumprimento. Não há, portanto, nenhuma decisão surpresa, nem nenhuma afetação da confiança legitima de uma parte, contrariamente ao afirmado pela recorrente.
Se em fases processuais anteriores a recorrente, eventualmente, beneficiou de prazos mais longos para exercer os seus direitos, do que aqueles que resultavam da natureza urgente do processo, é algo que ultrapassa o objeto da presente revista, pois o que está agora em causa é a questão de saber se o acórdão recorrido violou o caso julgado formal.
6. Como decorre da interpretação conjugada dos artigos 620.º e 621.º do CPC (ex vi do art.º 17.º do CIRE), o caso julgado formal emerge de uma decisão tomada sobre uma questão de natureza processual, que se torna imutável dentro do processo e com o alcance normativo que decorre da questão concretamente apreciada.
Ora, compulsando os autos, facilmente se concluiu que não existiu nenhuma concreta decisão judicial (nem a recorrente a identifica) a afirmar que o presente processo tem natureza não urgente.
A alegada tese de um eventual caso julgado implícito é absolutamente destituída de fundamento legal, pois basta observar o que dispõem os referidos artigos 620.º e 621.º do CPC para assim se concluir.
E ainda que a apreciação de algum concreto prazo não tivesse respeitado a natureza urgente do processo, tal só poderia, obviamente, valer para essa específica matéria.
A questão do prazo para a interposição do recurso de apelação não foi alvo de qualquer decisão anterior transitada em julgado. Aliás, a decisão de um tribunal recorrido que permita a subida de um recurso não vincula o tribunal superior, como decorre do disposto no artigo 641.º, n.º 5 do CPC.
7. A natureza imperativa do artigo 9.º do CIRE, sobre a natureza urgente dos processos tramitados no âmbito de uma insolvência, não permitia à recorrente ter qualquer expetativa juridicamente fundada sobre um eventual afastamento da aplicação dessa norma aos presentes autos. Proceder ao afastamento da natureza urgente do processo no que respeita à contagem do prazo para a interposição do recurso de apelação seria decidir contra legem.
Conclui-se, portanto, que o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei quando considerou, com base nos concretos elementos de facto, que o recurso havia sido apresentado fora do prazo, pelo que não podia ser admitido, não havendo nessa decisão a violação de qualquer caso julgado formal.
8. O acórdão recorrido, tendo procedido à correta aplicação da lei, face à natureza legal do processo em causa, não sofre de qualquer nulidade, seja por omissão de pronúncia, seja por oposição entre os fundamentos e a decisão, pelo que, contrariamente ao alegado pela recorrente, não se verificam as hipóteses previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) ou d) do CPC. Por outro lado, contrariamente ao afirmado pela recorrente, também não está em causa a hipótese prevista no artigo 193º do CPC, pois não se trata de uma questão de erro na forma do processo, mas sim da natureza legal da matéria, como decorre do artigo 9.º do CIRE.
9. Também não se identifica no acórdão recorrido a aplicação de qualquer norma em termos contrários à Constituição da República Portuguesa, nomeadamente contra o disposto no seu artigo 20.º, pois nenhum direito da recorrente é infundadamente afetado. O modo como a lei constitucional garante a todos o acesso a uma tutela jurisdicional efetiva não dispensa a observância das regras que disciplinam o exercício atempado e adequado dos direitos em cada caso concreto.
DECISÃO: Pelo exposto, nos termos do artigo 656.º do CPC (ex vi do artigo 17.º do CIRE) julga-se o recurso improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.»
B) Reanalisada essa decisão, em Conferência, concluiu-se que não enferma de qualquer nulidade, nomeadamente por omissão de pronúncia, pois as questões que integravam o objeto da revista, nos termos em que este recurso podia ser admitido (ou seja, com base na alegação do caso julgado formal) foram, efetivamente, conhecidas.
E a resposta dada, na decisão reclamada, à matéria objeto do recurso não merece censura, pois foi feita a correta aplicação do direito.
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DECISÃO: Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelo recorrente e confirma-se a decisão reclamada.
Custas: pelo reclamante, que se fixam em 3 UCs (artigo 7.º, n.º 4 e Tabela II, penúltima linha, do Regulamento das Custas Processuais).
Lisboa, 01.07.2025
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Cristina Coelho
Rosário Gonçalves