I. O dano biológico, na vertente de dano patrimonial, não visa ressarcir o dano laboral, mas um dano de natureza geral, correspondente à afetação definitiva da capacidade física e psíquica do lesado, e com repercussões nas suas atividades diárias (trabalho, sociais, familiares, de lazer), que não tem expressão em termos de incapacidade para o trabalho, mas exige esforços acrescidos para as desempenhar, limitando as possibilidades futuras de progressão na atividade profissional habitual ou de mudança de atividade profissional habitual, ou mesmo a possibilidade de exercício de outras atividades económicas.
II. A indemnização por perdas salariais em consequência da incapacidade laboral fixada no processo por acidente de trabalho, não exclui o ressarcimento pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, nem aquela indemnização esgota a ressarcibilidade dos danos sofridos na capacidade profissional, por serem distintos os danos a ressarcir.
III. Não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar os valores exatos dos montantes indemnizatórios concretamente arbitrados com recurso à equidade, cingindo-se a sua apreciação ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais se deve situar o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.
IV. O juízo casuístico efetuado pelas instâncias deve, em princípio, manter-se, salvo se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.
V. Mostra-se adequada a indemnização de €120.00,00, a título de dano biológico, numa situação em que o lesado, que não contribuiu para o acidente, tinha, à data 46 anos, ficou com sequelas graves no membro superior esquerdo, e ao nível do membro inferior esquerdo, as quais são suscetíveis de agravamento, implicam o uso de canadianas, e requerem ajuda permanente no domicílio e local de trabalho, são compatíveis com a atividade profissional habitual, mas exigem esforços acrescidos, tendo a consolidação médico-legal sido fixada em cerca de 4 anos após o acidente, e fixado um défice funcional de 22 pontos.
RELATÓRIO
Em 15.10.2019, AA intentou presente ação declarativa de condenação com processo comum contra Liberty Seguros, S.A. (posteriormente, por fusão, Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal), pedindo a condenação da R. a pagar-lhe: a) a quantia de €20.825,20 a título de perdas salarias; b) os restantes 30% devidos pelas incapacidades temporária e permanente para o trabalho, no valor de €6.247,56; c) a quantia de €305.210,64 a título de danos patrimoniais futuros; d) a quantia de €4.617 pelos dias de internamento; e) a quantia de €3.283,20 a título de quantum doloris; f) a quantia de €5.745,60 a título de dano estético; g) a quantia de €100.000,00 pela incapacidade permanente parcial; h) acrescidas de juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
A fundamentar o peticionado, alegou em síntese (no que, ora, releva):
No dia 14.6.2017, cerca das 20 horas e 15 minutos, quando circulava na Rua de ..., localidade de ..., conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-IQ, foi violentamente embatido pelo veículo de matrícula ..-LF-.., segurado na R., que seguia no sentido contrário, mas que por distração e negligência do respetivo condutor, entrou na sua faixa de rodagem.
O A. deslocava-se do seu trabalho, na empresa S..., Lda., para casa.
O A. sofreu várias lesões, foi sujeito a cirurgias, teve ITA, e ficou com sequelas, que determinaram uma IPP de 46,6637%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, desde a data da alta, 19/11/2018.
As sequelas determinam, ainda, a necessidade de ajudas técnicas, isto é, uso de canadiana, vigia médica, terapêutica medicamentosa.
No processo que correu termos no Tribunal de Trabalho, foi-lhe fixada uma pensão anual e vitalícia no valor de €4.747,42, com base na referida IPP.
O A. nunca mais voltou a retomar o seu trabalho, por incapacidade absoluta para o mesmo.
Citada, a R. contestou, por impugnação, e terminou pedindo a improcedência parcial da ação.
Em 20.03.2024, foi proferida sentença, que julgou a ação parcialmente procedente, e, em consequência, condenou a R. Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal a pagar ao A. AA a quantia global de €120.934,98 (cento e vinte mil novecentos e trinta e quatro euros e noventa e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, a partir da data da sentença, sobre aquele montante, até integral pagamento, absolvendo a R. do demais peticionado.
Inconformado com a decisão, apelou o A., tendo o Tribunal da Relação de Coimbra proferido acórdão, em 16.11.2024, que julgou a apelação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R. (apelada) a pagar ao A. (apelante) a quantia global de 220.934,98€ (duzentos e vinte mil novecentos e trinta e quatro euros e noventa e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a prolação da sentença até integral pagamento, no que se refere ao valor já fixado em 1ª instância, e desde a data do presente acórdão, relativamente ao acréscimo fixado nesta Relação.
Inconformados com a decisão interpuseram recurso de revista:
- O A., recurso que não foi admitido por despacho de 29.4.2025 (refª ......41), transitado em julgado;
- A R., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. O presente recurso de Revista versa sobre a existência de uma contradição entre o facto provado n.º 31 e o facto provado n.º 43.
2. O presente recurso de Revista visa igualmente submeter à apreciação pelos Exmos. Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça o quantum indemnizatório fixado pelos Exmos. Srs. Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra a título de dano biológico;
3. Existe uma contradição entre o facto provado n.º 31 e o facto provado n.º 43;
4. Resulta do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, elaborado pelo INML, que o Autor não ficou a padecer de Incapacidade para o Trabalho Habitual;
5. Resulta da Sentença proferida no âmbito da Ação Emergente de Acidente de Trabalho que o Autor não ficou a padecer de Incapacidade para o Trabalho Habitual;
6. O Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, elaborado pelo INML e a Sentença proferida no âmbito da Ação Emergente de Acidente de Trabalho são documentos autênticos, nos termos dos artigos 369.º, n.º 1 e n.º 2, 370.º, n.º 1, 371.º, n.º 1 e 372.º, n.º 1, todos do Código Civil;
7. Não foi alegada a falsidade dos referidos documentos;
8. Resultou provado que o Autor pode exercer o seu Trabalho Habitual, ainda que com esforços suplementares [v.d. facto provado n.º 43].
9. Resulta como não provado o facto b. de onde resulta que “Não se provou que o autor não possa retomar o trabalho por incapacidade absoluta para o mesmo.”;
10. Não pode ser considerado, para efeitos de determinação do montante indemnizatório a título de dano biológico, o facto de o Autor não se encontrar a exercer qualquer atividade profissional;
11. O Autor não se encontra absolutamente incapacitado para o exercício de qualquer trabalho;
12. Resulta do facto provado b. que o Autor poderia estar a auferir uma retribuição mensal, tendo em vista fazer face às “limitações inerentes ao dano biológico”;
13. Resulta do artigo 496.º, n.º 4 do Código Civil que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”;
14. No panorama jurisprudencial nacional têm vindo a ser fixadas indemnizações a título de dano biológico de valores inferiores, em situações semelhantes à dos presentes autos;
15. No panorama jurisprudencial nacional têm vindo a ser fixadas indemnizações a título de dano biológico de valores inferiores em situações que, pela idade do sinistrado ou pelo Défice Funcional Permanente atribuído, são de gravidade superior à dos presentes autos;
16. O montante indemnizatório arbitrado a título de dano biológico pelos Exmos. Srs. Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra revela-se excessivo e desconforme com a jurisprudência nacional;
17. O Autor já se encontra a ser ressarcido pela perda da sua capacidade laboral ao abrigo do Seguro do Ramo Acidentes de Trabalho, celebrado com a C...;
18. O Seguro de Acidentes de Trabalho visa garantir o restabelecimento do estado de saúde do trabalhador na vertente da sua capacidade laboral/de ganho, ou seja, visa garantir a “recuperação laboral” do trabalhador;
19. O arbitramento de uma indemnização a título de dano biológico que tome em linha de conta o facto de o Autor não se encontrar a exercer qualquer atividade profissional, determina uma sobreposição de indemnizações que visam ressarcir o mesmo dano.
20. Não deverá ser fixada uma indemnização a título de dano biológico de montante superior a 50.000,00 € (cinquenta mil euros), atentos os parâmetros jurisprudenciais nacionais.
Termina pedindo a alteração do acórdão recorrido em conformidade com o alegado.
O A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso da R., formulando as seguintes conclusões:
1. As presentes contra-alegações destinam-se a evidenciar que os argumentos avançados pela Recorrente são descabidos e desprovidos de fundamentação idónea.
2. Existe contradição entre o facto provado n.º 31 e o facto provado n.º 43, contudo a alteração que se impõe é a alteração da redação do facto do n.º 43 e não do facto n.º 31, como pretende a Recorrente.
3. As sequelas de que o Recorrido padece não são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual.
4. Em sentença proferida em 26 de abril de 2019 foi fixada ao recorrido a incapacidade permanente parcial de 46,6637%
5. O Recorrido não se conformou e deu início a um processo de revisão de incapacidade/pensão, o qual corre termos no Juízo de Trabalho das ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... com o n.º 1042/18.5...
6. No âmbito desse incidente confirmou-se a incapacidade permanente parcial de que o ora Recorrido padece e ainda que o mesmo necessita de usar calçado adaptado, a substituir de 6 em 6 meses, e de substituição das borrachas da prótese dentária anualmente.
7. Decorre do exame de revisão, relatório n.º1 de 27/10/2023, constante do processo de trabalho, que o sinistrado sofre de fenómenos dolorosos mais acentuados, que o mesmo só se consegue deslocar com apoio de duas muletas e permanecer sentado sem dor até cerca de 30 min, necessitando de ajuda de terceiras pessoas para confeção de alimentos, limpeza da casa e compra de produtos alimentares, uma vez que o mesmo tem dificuldade nas deslocações e em permanecer longos períodos em pé: cerca de 3h/dia, 2 a 3 vezes por semana, concluindo, aquele exame, a final, que o sinistrado necessita de ajuda de duas muletas, calço para o pé esquerdo, medicação analgésica e, muito provavelmente, de um veículo automático (uma vez que não tem mobilidade no membro inferior esquerdo para carregar na embraiagem).
8. O sinistrado não se conformou com o resultado do exame médico efetuado, e por considerar ser portador de uma IPP superior à determinada (opinião baseada, inclusivamente, no relatório médico elaborado pelo seu médico Dr. BB), requereu a realização de uma junta médica e a realização de um estudo ao seu posto de trabalho ao momento do acidente ao Departamento de Prevenção de Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social.
9. Decorre do relatório proferido pela Segurança Social - datado de 01/04/2024 constante do incidente de revisão incapacidade/pensão – que “As várias atividades desenvolvidas pelo Trabalhador têm fatores de risco proeminentes e comuns, nomeadamente: biomecânico e vibrações, com potencial de agravamento das sequelas documentadas no processo.”
10. Infelizmente, até momento, ainda não foi possível apurar o resultado do exame por junta médica, uma vez que a continuação da junta médica iniciada em 23/10/2024 está agendada para o próximo dia 26 de Março de 2025, pelas 16 horas.
11. Não obstante, não há dúvidas que as sequelas de que padece o sinistrado não são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual.
12. Existe grande probabilidade de, em sede de junta médica, ser finalmente fixada a incapacidade permanente para o trabalho habitual de que não há dúvidas que o Recorrido padece.
13. Toda a situação de saúde (decorrente, repita-se, do acidente do trabalho sofrido) não permitem ao Recorrido o exercício da sua antiga atividade profissional, o que não faz desde o sinistro ocorrido, inexistindo qualquer fator externo que contribua para tanto.
14. A Recorrente não concorda com a alteração do quantum indemnizatório levada a cabo no douto acórdão proferido pelos Exmos. Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra.
15. Ora, o Recorrido também não concorda com o quantum indemnizatório determinado pelo Tribunal na Relação de Coimbra, mas com fundamentos diametralmente opostos.
16. Com efeito, contrariamente ao Recorrente, o Recorrido entende que o facto de o mesmo não ter conseguido retomar, até à data, o seu trabalho não foi devidamente valorizado pelo tribunal a quo, considerando-se até que foi valorizado por defeito.
17. Tanto assim que o ora Recorrido apresentou recurso de revista onde melhor esgrime essa argumentação.
18. Ora se é verdade que não se provou que “o autor não possa retomar o trabalho por incapacidade absoluta para o mesmo.”, também não é menos verdade que até à presente data, decorridos mais de 7 anos desde a ocorrência do acidente de trabalho, o ora recorrido não mais conseguiu retomar a sua atividade, facto esse que se encontra irrefutavelmente provado.
19. Nem tão pouco há qualquer previsão de quando o mesmo a possa retomar, porquanto essa possibilidade não existe.
20. Assim, o arbitramento da uma indemnização a título de dano biológico no valor de 150.000,00€, não só é devido, como até é, na opinião do ora recorrido, manifestamente inferior ao que consideraria justo.
21. Ainda para mais, dada a elevada probabilidade de vir a ser decretado, em sede de junta médica a incapacidade definitiva para o trabalho habitual.
22. Pela contraposição do relatório do estudo do posto do trabalho constante com a sequelas de que o Recorrido padece, qualquer leigo consegue aferir de que é completamente impossível que o sinistrado possa desempenhar as suas funções habituais (com ou sem esforços acrescidos).
23. O Recorrido desempenhava funções com operadores de equipamentos móveis que compreendem as tarefas de funções dos operadores de máquinas móveis, de escavação, terraplanagem e/ou operador de empilhador, com especial incidência na condução, para serviços de manutenção, limpeza ou nivelamento de terrenos e espalhamento de terras, movimentação mecânica de materiais pesados, entre outras atividades relacionadas.
24. É impossível conceber que o Recorrido tem capacidade para desempenhar estas funções quando está inequivocamente provado que o mesmo necessita de: duas canadianas para se deslocar; calçado adaptado; apoio de 3.ºs para as atividades domésticas do quotidiano; necessidade de um automóvel adaptado, pelo facto de o mesmo não ter não ter mobilidade no membro inferior esquerdo para carregar na embraiagem.
25. O Recorrido não consegue estar sentado durante muito tempo sem que sofra dores e vice-versa quando está de pé.
26. Pelo exposto, não há dúvidas que as sequelas de que o mesmo é titular são completamente incompatíveis com o exercício da sua atividade profissional, e até, de qualquer outra atividade.
27. Não se compreende o porquê de estar a ser oferecida tanta resistência ao reconhecimento da incapacidade permanente para o trabalho de que ora Recorrido padece.
28. Está provado que existiu perda de função inerente/imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que o Recorrido ocupava com carácter permanente e que, por causa das lesões, o Recorrido não mais conseguiu retomar o seu trabalho.
29. Assim como está provado que as sequelas apuradas são permanentes e suscetíveis de agravamento.
30. Logo, o arbitramento do montante de 150.000,00€ a título de indemnização por dano biológico em nada é excessivo e/ou exagerado.
31. O facto de o caso que se discute nos presentes autos consubstanciar, simultaneamente, um acidente de viação e um acidente de trabalho, em nada revela para a determinação do quantum indemnizatório a título de dano biológico.
32. Sobre esta matéria importa ter presente o acórdão de 12-04-2024, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 34/14.8T8PNF-A. P1. S1;
33. Contrariamente ao que pretende fazer crer, não é verdade que o seguro de acidentes de trabalho vise integralmente a compensação da perda da capacidade laboral do sinistrado e a perda de capacidade de ganho decorrente do sinistro posto em crise.
34. A indemnização pelo dano biológico visa ressarcir tanto a redução da capacidade de ganho, como as limitações funcionais do lesado e o esforço acrescido no exercício das atividades profissionais e pessoais.
35. Sobre a conceptualização, valorização e finalidades da compensação do dano biológico pode ser lido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/10/2012.
36. A indemnização por danos futuros resultantes de incapacidade física do lesado causada por acidente de viação corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir por força da limitação da sua capacidade de trabalho que se traduz numa equação de correlacionação entre o rendimento anual perdido, o tempo provável de vida ativa e as expectativas sustentadas de progressão na carreira.
37. O Recorrido detém um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica decorrente das lesões de 22 pontos.
38. A indemnização por dano biológico não se confunde com a indemnização adveniente do acidente de trabalho,
39. Tratam-se de indemnizações complementares sobre danos distintos.
40. Nesta medida bem andou o acórdão Recorrido, tendo de improceder a alegação do Recorrente.
41. Termos em que terá de improceder o Recurso interposto, sob pena de desvalorização de situações gravíssimas como a dos presentes autos, com consequências nefastas na vida dos sinistrados, e desculpabilização e alívio daqueles que, legalmente, são responsáveis e estão obrigados a compensar os lesados.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir são:
a) da contradição entre os factos provados 31 e 43;
b) o montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Vêm dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 14.06.2017, cerca das 20h e 15m, o autor circulava na Rua de ..., na localidade de ..., conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-IQ, sua propriedade.
2. Foi quando o Autor se encontrava a circular nesse troço, que o veículo por si conduzido foi embatido por outro veículo, de matrícula ..-LF-.., segurado pela ré, que seguia no sentido contrário e que por distração do respetivo condutor, entrou na sua faixa de rodagem.
3. O Autor deslocava-se do seu trabalho na empresa S..., Lda., como auxiliar de montagens, para casa.
4. Depois de ocorrer o embate, o Autor ficou encarcerado.
5. O condutor do LF, conduzia na ocasião com uma taxa de álcool no sangue de 0,65 gramas por litro de sangue, registando, após dedução de margem de erro, uma TAS de 0,57 g/l.
6. Conduzia também influenciado pela substância THC-COOH, canabinóides, com o valor de 3,1 ng/ml.
7. O Autor foi assistido pela GNR, Posto Territorial de ... e pela VMER, que o transportou de imediato para o Centro Hospitalar de ... E.P.E – Hospital de ..., onde lhe foram prestados os primeiros cuidados.
8. O Autor sofreu um traumatismo da anca e joelho esquerdo, mais concretamente, “supra e intercondiliana do fémur esquerdo, traumatismo torácico à esquerda e escoriações abrasivas do braço esquerdo, face anterior do hemotórax esquerdo e joelho direito”.
9. As lesões sofridas pelo autor foram uma consequência direta, imediata e necessária do embate supra referido em 2.
10. Pelo que foi transferido para o serviço de Ortopedia II do Centro Hospitalar de ... – Hospital de ....
11. Dada a complexidade da lesão, acabou por ser transferido para a Unidade de Ortopedia do Centro Hospitalar e Universitário de ..., E.P.E., onde foi sujeito a várias cirurgias, para tratamento da fratura supra e intercondiliana do fémur esquerdo, lesão do plexo braquial esquerdo e atrofia muscular do antebraço e mão esquerda.
12. A primeira cirurgia realizou-se em 01.08.2017 para ressecção do terço distal do fémur esquerdo e aplicação de espaçador de cimento ósseo e a segunda em 24.10.2017 para reconstrução protética da articulação do joelho esquerdo com endomegaprótese distal de fémur revestida a prata.
13. Desde logo entrou de baixa médica, pelo seguro de acidentes de trabalho, da entidade patronal, na companhia Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A..
14. O processo de acidente de trabalho, correu seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo do Trabalho das ..., Proc. n.º 1042/18.5...
15. Em consequência direta do embate descrito, o Autor sofreu as seguintes lesões: Politraumatismo do hemicorpo esquerdo; Perda de peças dentárias; Traumatismo do membro inferior esquerdo com fratura distal supra e intercondiliana do fémur, cominutiva e complexa – tratamento cirúrgico com aplicação de prótese total do joelho; Dificuldade de memória a curto prazo; Parestesias/formigueiro com perda de motricidade fina da mão; Dor na anca e joelho esquerdo com rigidez matinal de duração superior a 30 minutos; Claudicação dolorosa do membro inferir esquerdo; Marcha claudicante com recurso a ajuda técnicas (canadianas).
16. Em consequência de tais lesões, o Autor ficou com as seguintes sequelas: Uso de prótese dentária móvel superior e inferior total; Plegia do membro superior esquerdo com atrofia acentuada de todos os grupos musculares sem função útil; No membro inferior esquerdo: cicatriz linear de características cirúrgicas com 30cm de comprimento ao longo da face externa da coxa e joelho em orientação longitudinal; Diminuição das massas musculares da coxa à custa do quadricípite; Tumefação do joelho com limitação da mobilidade em flexão referindo dor; Atrofia dos músculos da perna, com 28cm para 32cm na contralateral; Encurtamento global do membro inferior de 3cm, à custa do fémur.
17. No âmbito do processo de trabalho supra indicado no ponto 14, foi fixada ao autor uma incapacidade permanente parcial de 46,6637%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, desde a data da alta, 19/11/2018.
18. Houve perda de função inerente/imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que o Autor ocupava com carácter permanente.
19. As sequelas determinam, ainda, a necessidade de ajudas técnicas, isto é, uso de canadiana.
20. O Autor, terá de ser vigiado medicamente e efetuar terapêutica medicamentosa, bem como outros tratamentos, na tentativa de minimizar as queixas álgicas que terão períodos de exacerbação e, eventualmente, acompanhamento psicológico.
21. As sequelas permanentes apuradas são suscetíveis de agravamento.
22. Por causa destas lesões decorrentes do acidente, o Autor não mais conseguiu retomar o seu trabalho.
23. O Autor era auxiliar de montagens, por conta da empresa S..., Lda. e auferia um vencimento mensal de €900,00, num total anual de € 14.533,84, com os subsídios de férias e prémios.
24. A seguradora do trabalho, Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., suportou todas as despesas de tratamento, médicas e medicamentosas realizadas pelo Autor.
25. No supra referido processo de acidente de trabalho foi atribuída ao autor, com base na IPP de 46,6637% aí fixada, supra referida no ponto 17, uma pensão anual e vitalícia no valor de €4.747,42.
26. O autor recebeu da seguradora Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., por incapacidade temporária absoluta para o trabalho, a quantia de €14.890,22 referente a 70% calculado sobre o período total dessa incapacidade.
27. O Autor esteve 150 dias em internamento (de 14/06/2017 a 10/11/2017).
28. O autor foi sujeito a intervenções cirúrgicas, tendo consciência do risco da vida e sofrido pelo afastamento das responsabilidades familiares.
29. O Autor ficou com plegia do membro superior esquerdo com atrofia acentuada de todos os grupos musculares sem função útil; uma cicatriz linear de características cirúrgicas com 30cm de comprimento ao longo da face externa da coxa e joelho em orientação longitudinal; diminuição das massas musculares da coxa à custa do quadricípite; tumefação do joelho com limitação da mobilidade em flexão referindo dor; atrofia dos músculos da perna, com 28cm para 32cm na contralateral; encurtamento global do membro inferior de 3cm, à custa do fémur.
30. Ao fim de pouco tempo a condução causa ao autor dores intensas.
31. O autor sofre desgosto e angústia por se sentir inútil ao ficar incapacitado para o seu trabalho habitual, perdeu a sua autoestima e tem dores intensas que se mantêm desde a data da colisão.
32. O autor, antes do acidente dos autos era uma pessoa alegre, bem-disposta e saudável e, depois do acidente perdeu a alegria de viver, deixou de conviver com amigos, refugiando-se em casa.
33. Em 19.12.2018, a Liberty Seguros, S.A. foi incorporada, por fusão, na Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal, adquirindo esta última, todos os direitos e obrigações da Liberty Seguros, S.A..
34. Por via das alterações supra enunciadas, a Autora assumiu a posição da extinta Liberty Seguros, S.A. em todos os contratos celebrados e em vigor à data de 19.12.2018, respondendo nos exatos termos e condições em que aquela responderia.
35. A responsabilidade civil emergente dos riscos da circulação do veículo de matrícula ..-LF-.. encontrava-se, à data do embate, transferida para a ré através da apólice n.º ........10.
36. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo autor é fixável em 07.04.2021.
37. O período de défice funcional temporário total decorrente das lesões é de 167 dias.
38. O período de défice funcional temporário parcial decorrente das lesões é de 1227 dias.
39. O período de repercussão temporária na atividade profissional decorrente das lesões é de 947 dias.
40. O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial decorrente das lesões é de 447 dias.
41. O autor sofreu dores sendo o quantum doloris no grau 6 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
42. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica decorrente das lesões é de 22 pontos.
43. As sequelas descritas, quanto à sua repercussão permanente na atividade profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
44. O dano estético permanente decorrente das lesões é de grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
45. A repercussão permanente das lesões nas atividades desportivas e de lazer é de grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
46. A repercussão permanente na atividade sexual é de grau 2 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
47. As lesões sofridas pelo autor exigem ajudas permanentes no domicílio, local de trabalho ou veículo e tratamentos médicos regulares.
48. O autor nasceu no dia 22.09.1970.
*
E foram dados como não provados os seguintes factos:
a. que das lesões sofridas pelo autor tenha resultado uma incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 523 dias.
b. que o autor não possa retomar o trabalho por incapacidade absoluta para o mesmo.
c. que na sequência do acidente dos autos o autor não possa mais conduzir qualquer automóvel para o resto da sua vida.
d. que o autor tenha ficado com um prejuízo estético de grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Começa a Recorrente por pretender que seja alterado o facto provado 31 (“O autor sofre desgosto e angústia por se sentir inútil ao ficar incapacitado para o seu trabalho habitual, perdeu a sua autoestima e tem dores intensas que se mantêm desde a data da colisão”), passando a dele constar, apenas, que “O autor sofre desgosto e angústia, perdeu a sua autoestima e tem dores intensas que se mantêm desde a data da colisão”.
Sustenta que o referido facto provado está em contradição com o facto provado 43., e fundamenta a sua pretensão no teor do exame médico-legal e da sentença proferida no âmbito da Ação Emergente de Acidente de Trabalho, donde resulta, de forma inequívoca, que o A. não ficou a padecer de uma Incapacidade para o Trabalho Habitual, sendo ambos documentos autênticos, tendo força probatória plena, apenas ilidível com base na sua falsidade, o que não aconteceu.
Não lhe assiste razão.
Sendo o presente recurso de revista admissível, um dos seus fundamentos pode ser, efetivamente, a ofensa de disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova (art. 674º, nº 3, do CPC).
Nos termos do disposto no nº 1 do art. 682º do CPC, o Supremo julga apenas de direito, aplicando aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue aplicável, concretizando o nº 2 que “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº 3 do artigo 674º”.
Como regra, está vedado ao Supremo modificar a decisão da matéria de facto, oficiosamente ou a requerimento da parte.
A lei exceciona os casos previsto no nº 3 do art. 674º, ou seja, quando da matéria de facto provada se constate que as instâncias desrespeitaram norma expressa que exigia certa espécie de prova para a existência do facto, ou desrespeitaram norma legal sobre o valor de determinado meio probatório 1.
Sucede, porém, que, no caso, e ao contrário do que sustenta a Recorrente, não se mostra violado o disposto no art. 371º, nº 1, do CC, que determina a força probatória dos documentos autênticos.
Dispõe o mencionado artigo que “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Como explicavam Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, 4ª ed., Vol. I, págs. 327/328, em anotação ao art. 371º, “O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo (ex.: procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas perceções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coação, ou que o ato não seja simulado. (...).”.
Também Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCE, pág. 852/853, em anotação ao art. 371º do CC, escreve que “Não é sempre a mesma a força probatória material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, que lhes leu o documento …), ou que nele são atestados com base nas suas perceções (por ex., as declarações que ouviu ou os atos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador. As declarações de ciência ou de vontade, cuja emissão é atestada pelo documentador, terão valor probatório especial ou não, de acordo com a sua natureza. … A força probatória do documento também não tem qualquer repercussão na validade ou na veracidade da declaração documentada, nem é questionada por eventual arguição de vícios na formação da vontade ou de divergências entre a vontade e a declaração”.
Relativamente ao exame médico-legal efetuado no âmbito dos presentes autos, o mesmo faz prova plena dos atos e perceções que o perito médico diz ter realizado e percecionado.
Mas quanto ao seu “parecer médico”, às suas conclusões periciais, estipula o art. 389º do CC, que “A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.”.
Ou seja, a perícia é apreciada livremente pelo tribunal, tendo sido respeitada a força probatória plena do relatório, nos exatos termos estipulados pelo art. 371º do CC.
De resto, o facto provado 43 reflete a conclusão a que chegou o perito médico (conforme esclarecimentos prestados em 17.02.2023), e que o tribunal sufragou.
Relativamente à sentença proferida no âmbito da Ação Emergente de Acidente de Trabalho, aplica-se a mesma análise jurídica feita sobre a força probatória do documento, a que acresce a ponderação do valor de caso julgado material (arts. 619º, 621º, e 628º, do CPC), não aplicável no caso, por as partes não serem as mesmas (arts. 580º e 581º, do CC) 2.
Nesta conformidade, não se mostra violada a invocada disposição legal que fixa a força probatória dos documentos autênticos.
Por outro lado, não existe uma total contradição entre os factos provados 31 e 43.
O facto provado 31 reflete os sentimentos do A., enquanto o facto provado 43 se reporta ao resultado das sequelas de que ficou a padecer no exercício da sua atividade profissional.
E o facto de o A. sofrer “desgosto e angústia por se sentir inútil ao ficar incapacitado para o seu trabalho habitual” não tem, necessariamente, a ver com a factualidade dada por provada no facto 43, mas antes com o que resulta dos factos provados 18, 19 e 22.
Por último, saliente-se que a factualidade em causa (facto provado 31) apenas relevou para a determinação do quantum indemnizatório a título de danos não patrimoniais, e não para a fixação da indemnização a título de dano biológico, como resulta da fundamentação das decisões de 1ª instância e do Tribunal da Relação, única que é objeto do presente recurso.
Não merece, pois, provimento o recurso nesta parte.
2. A Recorrente insurge-se contra o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de dano biológico, não pondo em causa a sua ressarcibilidade, sustentando, porém, que deve ser mantido o montante indemnizatório fixado pelo tribunal de 1ª instância, ou seja, €50.000.
O tribunal de 1ª instância fundamentou o montante indemnizatório fixado nos seguintes termos: “… apurou-se que as lesões resultantes do acidente e sequelas daí derivadas representam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico–psíquica fixável em 22 pontos (anteriormente designado por incapacidade permanente geral e como dano biológico), lesões essas que determinaram um défice funcional temporário parcial de 1227 dias e total de 167 dias – vd. pontos 37, 38 e 42 dos factos provados; vd. o relatório do INML de 05.01.2023 e a sua correção/esclarecimento posterior de 17.02.2023.---- Este défice funcional permanente de seis pontos – que se refere à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais – corresponde ao denominado dano biológico que é um dano futuro previsível autónomo, isto é, repercute-se em toda a vida da pessoa, sendo indemnizável à face da lei – cf. CC: art. 564º-2.---- São danos futuros previsíveis aqueles que são certos ou suficientemente previsíveis como é o caso da perda da capacidade aquisitiva ou de ganho ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente, por virtude de lesão corporal de que passou a padecer.---- O supra referido défice funcional permanente da integridade físico–psíquica (anteriormente denominada IPP ou incapacidade permanente parcial) é suscetível de afetar e diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição de rendimento ou por passar a causar ou a implicar, para o lesado, um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou para manter ou exercer as várias tarefas e atividades gerais do quotidiano que antes da lesão desenvolvia. Tendo sido apurado que o lesado ficou, depois do acidente, a padecer de um défice funcional permanente de 22 pontos, importa apurar em que medida esse défice se repercute na sua vida futura. … No caso dos autos, conhecendo-se o concreto rendimento mensal do lesado à data dos factos (pelo que se desconsidera, como critério subsidiário, o valor da atual retribuição mínima mensal garantida ou o valor do salário médio nacional), no montante de €900,00 (ou seja, €12.600,00÷14 meses; vd., supra, o ponto 23 da matéria de facto apurada), levando em conta o défice funcional de 22 pontos e que, à data do acidente, iria trabalhar até à idade da reforma, ou seja, 66 anos (cf. DL n.º 187/2007, de 10-05 e Portaria n.º 292/2022, de 9-12 que prevê que se atinja a idade de reforma no funcionalismo público, aos 66 anos e 4 meses). Pese embora seja de 64 anos a idade correspondente à esperança de vida média para os homens nascidos, como é o caso do autor, em 1970, de acordo com os dados estatísticos (veiculados em PORDATA: https://www.pordata.pt/portugal/esperanca+de+vida+a+nascenca+total+e+por+sexo+(base+trienio+a+partir+de+2001)-418, consultado na presente data), é de admitir como razoável a idade de 70 anos como adicional de esperança de vida em face das atuais condições sanitárias, de vacinação e qualidade de alimentação e dos serviços médicos, que uma pessoa possa ainda lograr obter rendimentos complementares trabalhando ainda para além da idade de reforma, se assim o desejar.---- Considerando que o autor, até atingir os 70 anos de idade, poderia, portanto, trabalhar mais 23 anos (70-47 anos), uma taxa de inflação previsível durante os anos em que iria trabalhar que poderá ser fixada em 3% (inferior à taxa de juro civil, atualmente de 4%, mas superior à taxa atualmente paga nos depósitos bancários a prazo), levando-se ainda em conta que o montante é entregue de uma só vez e que ao valor da remuneração anual sempre haveria de retirar-se o valor correspondente a 1/4 para gastos pessoais, temos um valor apurado, de €45.581,68.----Usamos a tabela que abaixo se transcreve para tornar objetivo o cálculo da indemnização devida ao lesado em virtude da incapacidade apurada, indicando-se, num lado, a idade que ainda falta atingir para a idade de reforma, e do outro o fator-índice. Pegando, pois, no fator-índice correspondente, deve ser ele multiplicado pelo rendimento anualmente auferido à data do acidente e novamente multiplicado pela percentagem de IPP/défice funcional, e, assim, se obter o capital necessário que, diluído com os rendimentos que o lesado for gerando, lhe proporcione, até à sua idade de reforma, o valor correspondente ao valor perdido.---- É a seguinte a tabela: … Ou seja, aplicando os referidos dados, temos: €900,00x14=€12.600,00x16,44361x22÷100=€45.581,68) – vd. a fórmula utilizada pelo sobredito Ac. do STJ de 04.12.2007, para o qual se remete, a qual utiliza os seguintes elementos: idade da vítima: 47 anos; anos até atingir a reforma: 70-47=23 anos; fator correspondente da tabela indicada, aos 47 anos: 16,44361; rendimento anual auferido pela autora à data do acidente: €12.600,00; défice funcional de 22 pontos, i. é, 22 a dividir por 100; grau de concorrência da vítima para a lesão: inexiste; o que dá o resultado de €34.804,56, devendo subtrair-se 1/4 a este valor o que perfaz €34.186,26); contudo, como se salienta em tal aresto, nenhuma fórmula ou tabela contempla “a tendência de melhoria do nível de vida, a ascensão da produtividade, o aumento progressivo dos salários, as despesas que por via das incapacidades geradas o lesado vai ter que efetuar e não efetuaria se não fosse a lesão, não conta com a inflação nem com o aumento da longevidade, e parte do pressuposto que a situação profissional do lesado se manteria definitivamente estática, sem progressões na carreira, e não contempla também os danos que se projetam para além da idade de reforma”.---- Atento todo o exposto (considerando que ao tribunal é lícito atribuir montantes parcelares diferentes dos peticionados, nas diferentes rubricas indemnizatórias, ainda que em montante superior ao pedido parcelar, desde que não ultrapasse o valor global pedido, ao qual está legalmente vinculado e limitado: cf. CPC: art. 609º-1), importa concluir pela procedência parcial da ação e, em consequência, condenar a ré no pagamento da quantia global de €120.934,98, correspondente aos danos sofridos pela autora de natureza patrimonial e não patrimonial (€30.000+€35.000+€5.934,98), aos danos patrimoniais futuros do autor (€34.186,26), arredondando-se esta quantia, por efeito da equidade, para a quantia de €50.000,00, …” (sublinhado nosso).
O Tribunal da Relação fundamentou a sua decisão de alterar o montante indemnizatório a título de dano biológico para €150.000,00, nos seguintes termos: “… Como é sabido, o dano biológico, normalmente, assume reflexos no domínio patrimonial e não patrimonial (cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 19/6/2019, disponível em https://www.dgsi.pt...) [5 3], havendo quem defenda que parte dos prejuízos a que aludimos anteriormente, como é caso do quantum doloris, do dano estético e do prejuízo de afirmação pessoal, estão incluídos nesse âmbito (cf., a título meramente exemplificativo, o Acórdão do STJ de 18/12/2018, disponível em https://www.dgsi.pt... [6 4]). O que é relevante, no entanto, para efeitos indemnizatórios, é a extensão ou o âmbito dos prejuízos causados no domínio em causa, prejuízos que, globalmente, devem ser avaliados de harmonia com o critério equitativo já atrás referido (cf., sobre esta matéria, o Acórdão da Relação de Coimbra de 21/5/2024, disponível em https://www.dgsi.pt... [7 5]). Revertendo para o caso concreto, verifica-se que, à data do acidente, o sinistrado tinha 47 anos de idade (nasceu em 22/9/1970), sendo de perspetivar, atentos os índices estatísticos existentes nesta área, que o período durante o qual o mesmo irá estar afetado das limitações inerentes ao dano biológico se prolongue por quase três décadas, uma vez que a esperança de vida para os indivíduos do sexo masculino, aos 65 anos, encontra-se fixada em 18 anos, sendo que à nascença ascende a 78,4 anos (cf. os dados disponibilizados no site da Pordata e do Instituto Nacional de Estatística, a que pode aceder-se a partir dos seguintes endereços: … As sequelas que o autor apresenta são passíveis de agravamento, tendo o mesmo de realizar esforços acrescidos no âmbito da respetiva atividade profissional [8 6], sendo certo que, em consequência do acidente, não conseguiu retomar, até à data, o seu trabalho. É, pois, de perspetivar que deixará de auferir, durante o período de vida ativa, a remuneração que percecionava habitualmente, havendo, por isso que ressarcir, os prejuízos que não se encontram cobertos pelo correspondente seguro de acidentes de trabalho. Como sabemos, foi atribuída ao apelante, no âmbito do processo referido no ponto 14 dos factos provados, uma pensão anual e vitalícia que ascende a 4.747,42 €. Tal montante, dividido em 12 meses, resulta num valor mensal de 395,618 €, quantia que, ainda que o sinistrado não apresentasse as limitações/sequelas decorrentes do acidente de que foi vítima, sempre seria insuficiente para fazer face aos encargos que qualquer cidadão normal tem de suportar (alimentação, serviços essenciais - água, eletricidade e gás, nomeadamente -, despesas de deslocação/transporte, encargos com imóveis (rendas, empréstimos bancários e IMI), despesas médicas e medicamentosas, etc..). A retribuição mensal mínima garantida (RMMG) [9 7], por força do DL nº 107/2023, de 17 de Novembro, encontra-se atualmente fixada em 820,00 € (oitocentos e vinte euros), sendo que em 2025 irá ser atualizada para 870,00 €, ascendendo previsivelmente em 2028 a 1.020,00 € (mi e vinte euros) – cf. o documento referente ao Acordo Tripartido Sobre Valorização Salarial e Crescimento Económico (2025-2028) disponível em https://ces.pt/wp-content/uploads/2024/10/2024_Acordo-Tripartido-sobre-Valorizacao-Salarial-e-Crescimento-Economico_2025-2028.pdf. Recorde-se, por último, que o lesado, ora recorrente, apresenta um défice funcional da integridade físico-psíquica de 22 pontos, valor que é elevado e cujas consequências estão devidamente plasmadas na factualidade que vem exposta na presente decisão. Desta forma, mostra-se adequado, atenta a factualidade provada e os critérios normativos e jurisprudenciais que referimos, fixar o valor da indemnização referente ao dano biológico [10 8] em 150.000,00 € (cento e cinquenta mil euros) [11 9], pelo que procedendo parcialmente o recurso em análise, deverá ser proferida decisão em conformidade, com as consequências legais.”.
A Recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido, pretendendo que a indemnização pelo dano biológico seja fixada no montante decidido pela 1ª instância, argumentando:
- o tribunal recorrido sustenta a sua decisão, nomeadamente, no facto de o A., em consequência do acidente, não ter conseguido retomar, até à data, o seu trabalho, mas, embora tal facto, só por si, corresponda à verdade, não pode ser dissociado do facto não provado b., que tem a maior relevância, na medida em que, apesar de o A. ter ficado a padecer de uma incapacidade, não se encontra incapacitado para o trabalho habitual nem incapacidade de forma absoluta para o exercício de uma atividade profissional, razão pela qual o mesmo podia não só ter voltado a trabalhar, como a exercer a sua atividade habitual;
- por outro lado, o facto de o sinistro em causa nos presentes autos consubstanciar, simultaneamente, um acidente de viação e um acidente de trabalho, tem de ser tomado em consideração para efeitos de determinação do quantum indemnizatório a título de dano biológico, implicando, necessariamente, um cruzamento de regimes. O facto de o A. não ter conseguido retomar, até à data, o seu trabalho, já se mostra compensado pela indemnização fixada pelo seguro de acidentes de trabalho, que visa, exatamente, a compensação da perda da capacidade laboral do sinistrado. O arbitramento de uma indemnização a título de dano biológico que tome em linha de conta o facto de o A. não se encontrar a exercer qualquer atividade profissional, determina uma sobreposição de indemnizações que visam ressarcir o mesmo dano;
- o montante de 150.000,00€ arbitrado a título de indemnização por dano biológico é excessivo e exagerado, em face do panorama jurisprudencial nacional, como se conclui pela confrontação com o Ac. do TRG de 07.06.2023, Proc. N.º 2238/21.8T8GMR.G1, (à data do acidente o sinistrado tinha 53 anos de idade, e, consequentemente, um tempo previsível de vida ativa restante de 17 anos, auferia um rendimento líquido mensal de 967,52€ e ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente de 22 pontos, tendo sido arbitrada uma indemnização no valor de 70.224,00€), o Ac. do STJ de 23.05.2019, Proc. N.º 2476/16.5T8BRG.G1.S2 (a sinistrada ficou impedida de exercer a sua atividade profissional habitual, sendo que auferia a retribuição mensal de 1.706,20€, ficou a padecer de um Défice Funcional de 26 pontos e tinha 44 anos à data do acidente, tendo sido arbitrada uma indemnização no montante total de 250.000,00€), e o Ac. TRP de 23.09.2023, Proc. N.º 1388/17.0T8OVR.P1, (a sinistrada tinha 14 anos à data do acidente, tendo ficado, em consequência do mesmo, a padecer de um Défice Funcional Permanente de 35 pontos, e tendo em consideração a esperança média de vida até aos 83, e o limite de vida ativa os 67 anos, foi arbitrada uma indemnização a título de dano biológico de 100.000,00€).
Apreciemos.
A Recorrente não questiona o ressarcimento do denominado dano biológico, mas apenas o quantum indemnizatório fixado.
A lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”, dano primário, do qual podem derivar, além de incidências negativas não suscetíveis de avaliação pecuniária, a perda ou a diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tal suscetíveis de avaliação pecuniária.
O dano patrimonial não se reconduz, apenas, à perda efetiva de capacidade de ganho, mas, também, à perda funcional geral, determinante de um dano biológico.
O dano biológico (no caso, na vertente de dano patrimonial), não visa ressarcir o dano laboral, mas um dano de natureza geral, correspondente à afetação definitiva da capacidade física e psíquica do lesado, e com repercussões nas suas atividades diárias (trabalho, sociais, familiares, de lazer), que não tem expressão em termos de incapacidade para o trabalho, mas exige esforços acrescidos para as desempenhar.
Consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão direta no exercício da profissão habitual.
O Supremo Tribunal de Justiça vem reconhecendo o dano biológico como dano patrimonial futuro, na medida em que respeita a uma incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e mesmo que dela não resulte perda de vencimento, obrigando, porém, tal incapacidade a um maior esforço no exercício da atividade profissional e nas restantes atividades diárias do lesado, limitando as possibilidades futuras de progressão na atividade profissional habitual ou de mudança de atividade profissional habitual, ou mesmo a possibilidade de exercício de outras atividades económicas 10 11.
Nesta medida, a indemnização por perdas salariais em consequência da incapacidade laboral fixada no processo por acidente de trabalho, não exclui o ressarcimento pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, nem aquela indemnização esgota a ressarcibilidade dos danos sofridos na capacidade profissional, por serem distintos os danos a ressarcir, não havendo, pois, qualquer sobreposição.
Como se sumariou no Ac. do STJ de 11.12.2012, P. 40/08.1TBMMV.C1.S1 (Lopes do Rego), em www.dgsi.pt, “… 6. São de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as atividades da vida pessoal e corrente.”.
No mesmo sentido podem ver-se os Acs. do STJ de 11.7.2019, P. 1456/15.2T8FNC.L1.S1 (Henrique Araújo), de 12.04.2024, P. 34/14.8T8PNF-A.P1.S1 (Mário Belo Morgado), de 17.09.2024, P. nº 3765/16.4T8VFR.P1.S1 (Jorge Arcanjo), e de 27.11.2024, P. 9774/21.4T8PRT.P1.S1 (Maria de Deus Correia), todos em www.dgsi.pt.
É certo que o tribunal recorrido dá uma especial ênfase à repercussão das lesões sofridas pelo A. e sequelas daí resultantes na vida ativa do A., mas não atende apenas a esta como resulta dos fatores ponderados (nomeadamente o período de esperança de vida do A.) e dos acórdãos para que remete a fundamentar a sua decisão, não ocorrendo a invocada duplicação/sobreposição indemnizatória.
Os montantes indemnizatórios fixados pelas instâncias a título de dano biológico devem sê-lo com recurso à equidade (arts. 496º, nº 4 e 566º, nº 3, do CC), como foram 12.
Conforme jurisprudência uniforme deste tribunal, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar os valores exatos dos montantes indemnizatórios concretamente arbitrados, cingindo-se a sua apreciação “ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado” (Ac. do STJ de 15.09.2016, P. 492/10.0TBBAO.P1.S1 (António Joaquim Piçarra), em www.dgsi.pt).
E como vem sendo, também, consistentemente afirmado por este Supremo Tribunal de Justiça, o juízo casuístico efetuado pelas instâncias deve, em princípio manter-se, “salvo se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.” – Ac. do STJ de 23.03.2021, P. 1989/05.9TJVNF.G1.S1 (Fernando Samões), em www.dgsi.pt.
A partir dos elementos de facto, deve o tribunal calcular o montante da indemnização em termos de equidade, no quadro de juízos de verosimilhança e de probabilidade, tendo em conta o curso normal das coisas e as particulares circunstâncias do caso.
Como referiu o tribunal recorrido, não deve, apenas, atender-se ao limite da vida ativa, uma vez que, atingido este, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou a viver por vários anos.
Pondera-se, também, o facto de o valor indemnizatório ser recebido de uma só vez, como referiu o tribunal recorrido, e decisões jurisprudenciais nesta matéria, numa perspetiva atualista e evolutiva no quadro da ponderação de situações semelhantes.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 12.04.2023, P. nº 935/20.4T8VRL.G1.S1 (Jorge Dias), em www.dgsi.pt, “Devem ser observados os padrões de indemnização seguidos pela prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8º do Cód.Civil. Não se pode atender só à prática seguida pela jurisprudência de equivaler indemnizações para factos semelhantes e estagnarem os montantes indemnizatórios, porque os termos de comparação se referem a situações passadas, devendo ser tida em conta a evolução, fazendo o acompanhamento do aumento do custo de vida (inflação) e o aumento dos rendimentos médios das pessoas. E as indemnizações a atribuir por danos não patrimoniais não podem ser meramente simbólicas, devendo antes mostrar-se adequadas ao fim a que se destinam, ou seja, atenuar a dor sofrida pelo lesado e também reprovar, no plano civilístico, a conduta do agente.”.
Feitas estas considerações, vejamos se a indemnização fixada pelo tribunal recorrido se mostra nos limites dentro dos quais se deve situar o juízo equitativo, mostrando-se razoável o valor fixado à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
Da factualidade dada como provada resulta que:
- na sequência do acidente, para o qual o A. não contribuiu, este sofreu um traumatismo da anca e joelho esquerdo, mais concretamente, “supra e intercondiliana do fémur esquerdo, traumatismo torácico à esquerda e escoriações abrasivas do braço esquerdo, face anterior do hemotórax esquerdo e joelho direito” (factos 8 e 15);
- em consequência dessas lesões, o A. ficou com as seguintes sequelas, no que ora releva: com plegia (paralisia) do membro superior esquerdo com atrofia acentuada de todos os grupos musculares sem função útil, diminuição das massas musculares da coxa à custa do quadricípite, tumefação do joelho com limitação da mobilidade em flexão referindo dor, atrofia dos músculos da perna, com 28cm para 32cm na contralateral, e encurtamento global do membro inferior de 3cm, à custa do fémur (factos 26 e 29);
- as referidas sequelas determinam a necessidade de ajudas técnicas, isto é, uso de canadiana (facto 19);
- as sequelas permanentes apuradas são suscetíveis de agravamento (facto 21);
- a data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo A. foi fixada em quase 4 anos após o acidente, ou seja, em 07.04.2021 (facto 36);
- ao fim de pouco tempo a condução causa ao autor dores intensas (facto 30);
- as lesões sofridas pelo autor exigem ajudas permanentes no domicílio, local de trabalho ou veículo e tratamentos médicos regulares (facto 47);
- o A. era auxiliar de montagens na empresa S..., Lda. (factos 3 e 23);
- por causa das lesões decorrentes do acidente, o A. não mais conseguiu retomar o seu trabalho (facto 22) 13;
- o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica decorrente das lesões é de 22 pontos (facto 42);
- as sequelas descritas, quanto à sua repercussão permanente na atividade profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares (facto 43);
- à data do acidente o A. tinha 46 anos de idade.
Esta a factualidade que resulta provada, não sendo possível atender ao alegado pelo Recorrido em sede de contra-alegações, que não consta da fundamentação de facto, não foi trazido aos autos em momento adequado, não tendo sido discutido e apreciado.
Analisemos, agora, algumas decisões do STJ neste âmbito, relevando o acórdão indicado pela Recorrente:
- Ac. de 23.05.2019, P. nº 2476/16.5T8BRG.G1.S2, em www.dgsi.pt: a sinistrada ficou impedida de exercer a sua atividade profissional habitual, sendo que auferia a retribuição mensal de 1.706,20€, ficou a padecer de um Défice Funcional de 26 pontos e tinha 44 anos à data do acidente, tendo sido arbitrada uma indemnização no montante de €250.000,00;
- Ac. de 19.04.2018, P. nº 196/11.6TCGMR.G2.S1 (António Joaquim Piçarra), em www.dgsi.pt: à lesada foi atribuída uma desvalorização funcional permanente de 26 pontos (e uma IPP de 49,2495%, que o tribunal considerou que equivalia na prática a uma incapacidade total, na medida em que ficou impossibilitada de exercer o trabalho de costureira, que sempre exerceu desde os 14 anos de idade, não tem formação profissional para o exercício de outra atividade, ficou a padecer de fortes limitações ao nível da sua mobilidade), tendo à data do acidente (2008) 43 anos de idade, tendo sido arbitrada uma indemnização no montante de €162.000,00;
- Ac. de 10.9.2019, P. nº 16/13.7TVPRT.P1.S1 (Pinto de Almeida), não publicado: à lesada foi atribuída uma desvalorização funcional permanente de 23 pontos, sofreu várias fraturas e o tempo de consolidação médico-legal foi de 2 anos, as sequelas são compatíveis com o seu trabalho habitual, mas implicam esforços acrescidos, à data do acidente (2007) tinha 35 anos e auferia €1445,00 mensais, foi arbitrada uma indemnização no montante de €90.000,00;
- Ac. de 1.10.2019, P. nº 89/14.5TBLRA.C2.S1 (Pinto de Almeida), não publicado: (também acidente de trabalho) ao lesado foi atribuída uma desvalorização funcional permanente de 21 pontos, sofreu traumatismo cervical, e ficou com limitações de mobilidade na coluna cervical, o tempo de consolidação médico-legal foi de cerca de 9 meses, as sequelas são compatíveis com o seu trabalho habitual, mas implicam significativos esforços acrescidos, à data do acidente (2006) tinha 42 anos e auferia €1148,00 mensais, foi arbitrada uma indemnização no montante de €75.000,00;
- Ac. de 17.09.2024, P. nº 3765/16.4T8VFR.P1.S1 (Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt: (também acidente de trabalho) ao lesado foi atribuída uma desvalorização funcional permanente de 21 pontos, sofreu fratura ao nível do tornozelo, e ficou com limitações de mobilidade no pé esquerdo, o tempo de consolidação médico-legal foi de cerca de 17 meses, as sequelas são compatíveis com o seu trabalho habitual, de motorista, profissão que continuou a exercer, embora com esforços acrescidos, à data do acidente (2011) tinha 50 anos e auferia €1161,70 mensais, foi arbitrada uma indemnização no montante de €80.000,00, sem que fossem deduzidos os valores pagos pelo acidente laboral.
Ponderada a factualidade suprarreferida, e as decisões mencionadas numa perspetiva atualista e evolutiva, afigura-se-nos que a indemnização fixada pelo tribunal recorrido excede os limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, ficando aquém a fixada pelo tribunal de 1ª instância.
Tudo ponderado, afigura-se-nos equilibrado e justo, por mais conforme à equidade e justiça do caso concreto, fixar o montante da indemnização pelos danos patrimoniais futuros ou dano biológico em €120.000.
Em conclusão, procede parcialmente o recurso, devendo alterar-se a decisão recorrida nos termos referidos.
As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo da Recorrente e do Recorrido, na proporção do decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que o A. beneficia.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder em parte a revista, alterando-se o montante fixado como indemnização pelo dano biológico, que se fixa em €120.000,00 (cento e vinte mil euros), mantendo-se o demais decidido.
Custas nos termos referidos.
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Lisboa, 2025.07.01
Cristina Coelho (Relatora)
Anabela Luna de Carvalho
Maria Olinda Garcia
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):
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1. Nestes casos, e como explica Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, pág. 504, “os erros cometidos, ainda que repercutidos diretamente no elenco dos factos provados ou não provados, reconduzem-se, afinal, a erros de direito, inscrevendo-se a sua correção ainda nas atribuições do Supremo que não se fica pela função cassatória, antes deve proceder direta e imediatamente às modificações que o direito probatório material impuser”.↩︎
2. Sempre se dizendo que, o facto provado 43, na parte em que refere que as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, está em consonância com o decidido naquela sentença, contrariado, porém, pelo que se fez constar do ponto de facto provado 17, contra o qual a Recorrente não se insurgiu.↩︎
3. “5 O sumário do referido Acórdão integra as seguintes observações: “1- O dano biológico não é um terceiro género face á classificação dos danos como patrimoniais e não patrimoniais, mas uma outra categorização, fundada no facto que o origina e não nas suas consequências na esfera jurídica (patrimonial ou moral) do lesado. 2- O dano biológico pode ter, quer consequências patrimoniais, quer não patrimoniais: pode atingir imediata ou mediatamente o património do lesado e bem assim, simultaneamente, a sua pessoa na esfera da sua vida pessoal, do seu bem-estar, nos seus direitos de personalidade, de conteúdo não diretamente patrimonial 3- Hoje é clara a necessidade de considerar as consequências do dano biológico na vertente patrimonial quando implique esforços acrescidos para a atividade profissional exercida pelo lesado, mesmo nos casos em que não há uma repercussão direta e imediata no seu vencimento. 4- Nestes casos em que o dano biológico não é impeditivo do exercício das normais atividades profissionais, mas exige esforços acrescido para o desempenho dessas funções, há que recorrer diretamente à equidade para o cálculo da vertente patrimonial deste dano. 5- Para efeito de determinação da indemnização do dano biológico, quer na vertente patrimonial, quer na não patrimonial, importam essencialmente as consequências das lesões na vida do lesado, em todas as suas dimensões, mais do que a consideração abstrata dos pontos atribuídos ao Défice Funcional Permanente da Integridade Física de que passou a padecer, embora estes sejam, evidentemente, representativos da gravidade da lesão.”.”.↩︎
4. “6 No respetivo sumário consta o seguinte: “A doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural e cívica) – o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida.”.”.↩︎
5. “7 No sumário do mencionado Aresto refere-se o seguinte: “I – A afetação da pessoa do ponto de vista funcional, releva para efeitos indemnizatórios – como dano biológico – porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente da sua atividade laboral, diminuindo as alternativas que lhe seriam possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho. II – Estes esforços suplementares constituem perdas patrimoniais futuras, ressarcíveis à luz do disposto no art. 564º, nº 2, do Cód. Civil. III – Esta afetação existe ainda que não implique efetivas perdas de rendimentos laborais, por implicar apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais e, constituindo um dano que afeta a atividade geral do lesado, não cessa com a idade da reforma, antes se repercute pelo período previsível da vida do lesado. IV – Para cálculo dos valores indemnizatórios deverá o tribunal ter em consideração, para além do grau de incapacidade, fatores como a idade da vítima, o tempo provável em que se poderá manter ativo, a natureza do trabalho que realizava, o salário auferido, a progressão na carreira profissional, o facto de o capital ser ressarcido por uma vez só, eventuais desvalorizações da moeda, corrigidos estes por recurso a juízos de equidade. V – Na fixação dos danos não patrimoniais deve-se procurar reparar o dano causado à pessoa em si, de acordo com regras de equidade e de forma digna, tendo em conta a afetação no seu projeto pessoal de vida, as dores e sequelas que suporta e continuará a suportar, as limitações que estas lhe causam na sua vida diária.”.↩︎
6. “8 Não será relevante, para este efeito, a referência à incapacidade absoluta para o trabalho que consta no ponto 17 dos factos provados.”.↩︎
7. “9 Cf. art. 273º, nº1, do Código do Trabalho, cuja redação é a seguinte; “É garantida aos trabalhadores uma retribuição mínima mensal, seja qual for a modalidade praticada, cujo valor é determinado anualmente por legislação específica, ouvida a Comissão Permanente de Concertação Social.”.↩︎
8. “10 A que acrescem os valores de 65.000,00 € e 5.934,98 €, a título de danos não patrimoniais e lucros cessantes, respetivamente.”.↩︎
9. “11 Se atentarmos no valor indemnizatório que consideramos correto e o dividirmos pelo número de anos correspondente à esperança média de vida, chegamos a um valor anual de 7.464,496 €, valor que, dividido por 12 meses, ascende a 613,708 €.”.↩︎
10. Exemplificativamente, cfr. os Acs. do STJ de 19.04.2018, P. 196/11.6TCGMR.G2.S1 (António Joaquim Piçarra), e de 25.5.2017, P. 2028/12.9TBVCT.G1.S1 (Maria Graça Trigo), ambos em www.dgsi.pt.↩︎
11. Como se escreveu no Ac. do STJ de 06.07.04, P. 04B2084 (Ferreira de Almeida), in www.dgsi.pt, mas com plena pertinência, “Na realidade, na incapacidade funcional ou fisiológica, vulgarmente designada por “handicap”, a repercussão negativa da respetiva IPP centra-se precisamente na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços, por parte do lesado, o que se traduz numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das atividades pessoais, em geral, e numa consequente e, igualmente, previsível maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando, com regularidade. E é, exatamente, neste agravamento da penosidade, de carácter fisiológico, que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros. Trata-se, em suma, de indemnizar, “a se”, o dano corporal sofrido, quantificado por referência ao índice 100 – integridade psicossomática plena – e não qualquer perda efetiva de rendimento ou de concreta privação da capacidade de angariação de réditos”.↩︎
12. Embora com recurso a fórmulas – com interesse sobre esta questão, ver o Ac. do STJ de 29.10.2020, P. 111/17.3T8MAC.G1.S1 (Maria Graça Trigo), em www.dgsi.pt.↩︎
13. É certo que resultou não provado “b. que o autor não possa retomar o trabalho por incapacidade absoluta para o mesmo”, mas importa sublinhar que, como é sabido, a resposta negativa a um determinado facto apenas quer dizer que o mesmo não se provou, não significando que tenha de ter-se como provado o facto inverso. Conforme ilustra Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 1997, pág. 214, “(…) Se existe controvérsia sobre se o condutor do veículo X passou o cruzamento com o sinal vermelho e é dada resposta negativa sobre esse facto, não significa que se possa concluir, só através dessa resposta, que o condutor transitou com o sinal verde ou amarelo. (…)”. Também José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2001, pág. 630, escrevem que “… uma resposta de não provado, e por identidade de razão uma resposta especificada que pressupõe a não prova de algum elemento não abrangido nessa especificação, não significa a prova do contrário, correspondendo, tão só, à inexistência desse facto concreto para aquela decisão. Ou seja, como é invariavelmente reconhecido pela doutrina, «[a] prova do facto contrário diverge da resposta puramente negativa [equivalendo esta] à não alegação do facto não provado […]»”.↩︎