ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
REGULAMENTO
DECISÃO ARBITRAL
ANULAÇÃO
FUNDAMENTOS
HONORÁRIOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário


I. A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal judicial se o recorrente demonstrar que se verifica alguma das hipóteses previstas no n.º 3 do artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária.
II. Tendo o recorrente invocado violação dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º da LAV, bem como alegado que o processo arbitral não teria sido conforme com a convenção das partes, mas não conseguindo demonstrar a concreta existência dessas violações, nem que tal tivesse influenciado decisivamente o sentido da decisão arbitral, não existe fundamento para anular a decisão arbitral.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. “AA – Construções Unipessoal Ldª”, intentou, no Tribunal da Relação de Lisboa, ação de anulação de sentença arbitral contra “Caravela Visionária Ldª”, com base no artigo 46.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, com os seguintes fundamentos:

«1.º A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à construção, compra e venda e revenda de imóveis – conforme Documento n.º 1, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

2.º A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à mesma actividade – conforme Documento n.º 2, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

3.º Autora e Ré celebraram, a 26-08-2019, entre si um contrato de empreitada, por força do qual a primeira se obrigou a executar todos os trabalhos relacionados com a obra de reabilitação do prédio sito nos n.º ... a ... da Calçada do ..., em ... – conforme Documento n.º 3, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

4.º A Autora resolveu o contrato de empreitada e a Ré instaurou acção onde peticionou:

a) A restituição dos montantes pagos à Ré para execução da obra, no valor de € 193.404,17;

b) Indemnização pela paragem das obras, no valor de € 40.800,00;

c) Danos decorrentes de eventual incumprimento de contrato promessa, caso o mesmo se verificasse.

5.º Posteriormente, veio a Ré ampliar pedidos, concretizar pedidos e desistir de alguns pedidos.

6.º A referida acção foi instaurada junto de tribunal arbitral voluntário, constituído para o efeito, nos termos do disposto na Cláusula 33.ª do Contrato de Empreitada – idem Documento n.º 3, já junto.

7.º Através de acórdão proferido a 31-03-2022, foi a acção julgada parcialmente procedente e:

a) Condenada a Autora a pagar à Ré a quantia de € 320.000,00, acrescida de juros de mora vincendos desde o trânsito em julgado da decisão;

b) Condenada a Ré a pagar à Autora a quantia de € 17.757,74, relativa aos trabalhos do Auto 4, a que se reporta a factura 1/635 e parte da factura 1/628.

Conforme Documento n.º 4, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

8.º Não pode a Autora conformar-se com o teor desta decisão, por entender que todo o processo padeceu de nulidade, bem como o acórdão a final proferido.

B) Da Convenção Arbitral e da Desconformidade do Processo Arbitral:

9.º Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 da Cláusula 33.ª do Contrato de Empreitada, “Para dirimir qualquer questão emergente do presente Contrato, litígio, diferendo ou queixa relativos à interpretação, aplicação ou execução do presente Contrato serão seguidas, por ordem, as seguintes formas de resolução: (…) Quando, por negociação, nos termos do parágrafo anterior, não for resolvido o litígio deverá ser remetido para resolução com recurso a arbitragem. A arbitragem será realizada por um Tribunal Arbitral composto por 3 (três) árbitros nomeados, um pela Primeira Contraente, outro pela Segunda Contraente e um terceiro por acordo dos dois primeiros árbitros, que deverá assumir a função de Presidente. Na falta de acordo, o árbitro Presidente será designado pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a requerimento de qualquer dos Contraentes. O Tribunal funcionará em Lisboa no local que for escolhido pelos árbitros e julgará segundo o direito constituído, sendo a sua decisão final e irrecorrível.”

10.º A arbitragem voluntária tem subjacente o princípio da autonomia da vontade das partes: cabe às partes definir as regras processuais aplicáveis ao caso ou, se assim o entenderem, remeter para as regras processuais de fonte legal.

11.º Do que resulta da convenção de arbitragem, as partes acordaram que o julgamento do litígio seria feito “segundo o direito constituído”.

12.º Ora, a 30-07-2020, em reunião em que estiveram presentes apenas os árbitros designados, estes escolheram, sem audição das partes, que “o presente processo fica submetido ao Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, de 1 de Março de 2014” – conforme Documento n.º 5, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

13.º Mas as partes nunca acordaram nesse sentido – aliás, não foram, sequer, ouvidas a esse respeito.

14.º E, nos termos da convenção de arbitragem, seria de aplicar o direito constituído – o que inclui as regras processuais civis.

15.º Apenas se não existir acordo das partes, pode o tribunal arbitral “conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado” – vide n.º 3 do artigo 30.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro.

16.º Mas não o pode fazer quando as partes tiverem acordado algo diferente – como foi aqui o caso.

17.º Sucede que tais decisões são irrecorríveis e apenas susceptíveis de impugnação pela via da presente acção:

“A impugnação de decisões interlocutórias terá de ser feita no recurso que caiba da decisão definitiva do tribunal arbitral.” – vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10-03-2016 (processo n.º 402/16.OYRLSB-8).

18.º Acresce que tal desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio.

19.º Pois que o tribunal arbitral escudou-se na letra do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa para atropelar princípios basilares na lei processual civil – como infra melhor se explicará.

20.º Pelo que todo o processo arbitral esteve inquinado de nulidade, por não ter sido conforme com a convenção das partes.

21.º Atenta a desconformidade do processo com aquilo que foi convencionado pelas partes, a sentença terá de ser anulada, nos termos e para os efeitos do disposto na subalínea iv) da alínea a) do n.º 3 do artigo 43.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro – o que desde já requer a V. Exa. se digne declarar.

C) Do Valor da Acção e dos Honorários dos Árbitros:

22.º O tribunal arbitral entendeu fixar o valor da acção em € 779.348,91 – idem Documento n.º 5, já junto.

23.º A Autora nunca compreendeu porque o tribunal arbitral entendeu fixar o valor da acção neste montante.

24.º Isto porque a Ré, então Demandante, formulou um pedido no valor de € 234.204,17 – valor que, aliás, atribui à sua acção.

25.º E foi o tribunal arbitral quem, de moto proprium, entendeu quase triplicar este valor.

26.º O que lhe permitiu fixar o valor dos honorários dos árbitros em € 40.079,37.

27.º Em vez dos € 24.000,00 que, nos termos da tabela n.º 1 do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, lhes caberia receber.

28.º Posteriormente, já depois de realizada tentativa de conciliação entre as partes, veio a Ré apresentar articulado superveniente, por força do qual o valor da acção veio a ser fixado em € 1.089.557,77.

29.º O que levou a que os honorários e encargos com o Tribunal Arbitral fossem alterados para um total de € 56.993,52 – conforme Documento n.º 6, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

30.º Conforme já supra se expôs, as partes nunca acordaram na aplicação do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa.

31.º Tal foi uma decisão tomada, única e exclusivamente, pelos árbitros.

32.º E a ela as partes tiveram de se sujeitar.

33.º Mas não havendo acordo nesta matéria, podem as partes requerer em tribunal a redução dos honorários.

34.º Pelo que desde já requer a V. Exa., nos termos do disposto no artigo 17.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, ordenar a redução dos honorários e fixar o valor da acção.

D) Da Violação de Princípios Fundamentais:

35.º Determina o n.º 1 do artigo 30.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, que: “O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais:

a) O demandado é citado para se defender;

b) As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final;

c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as excepções previstas na presente lei.”

36.º A Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, vem acolher, expressamente, os princípios da igualdade e do contraditório.

37.º E, na subalínea v) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º, acolhe expressamente o princípio do dispositivo.

38.º Todos estes princípios têm alicerce na Constituição da República Portuguesa, em particular no princípio da igualdade (artigo 13.º) e no acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º).

39.º A este propósito, atente-se ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19-01-2017 (processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1):

“I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.

III. Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.”

40.º O princípio do dispositivo é uma das traves-mestras do princípio da igualdade e do acesso ao Direito.

41.º A sua violação é, indubitavelmente, um atropelo à Constituição da República Portuguesa.

42.º O tribunal arbitral – que se pretende como um verdadeiro tribunal (atente-se aos artigos 204.º e 209.º da Constituição da República Portuguesa) – está, assim, sujeito aos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes – que têm como fundamento os princípios constitucionalmente consagrados da igualdade e da imparcialidade dos tribunais.

Concretizando:

43.º A Ré apresentou o seu requerimento probatório com a sua petição inicial, incluindo prova testemunhal.

44.º Em resposta à reconvenção deduzida pela aqui Autora, a Ré veio alterar o seu requerimento probatório, tendo requerido a tomada de declarações de parte do representante legal da sociedade Ré e o aditamento do rol de testemunhas.

45.º Em sede de articulado superveniente veio, novamente, aditar o seu rol de testemunhas.

46.º Nessa sequência, requereu a junção aos autos de novos documentos, incluindo um denominado “Acordo”, onde não estavam reconhecidas as assinaturas dos intervenientes, e dois documentos, que se presumem ser de origem bancária, em língua estrangeira.

47.º A Autora impugnou especificamente estes documentos, requerendo o seu desentranhamento dos autos.

48.º O tribunal arbitral não se pronunciou a respeito do pedido de desentranhamento desta documentação.

49.º As sessões de julgamento decorreram normalmente, tendo a última tido lugar a 17-09-2021, após a tomada de declarações de parte dos legais representantes da Autora e da Ré, tendo os mandatários sido notificados para apresentarem alegações finais escritas – conforme Documento n.º 7, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

50.º As partes apresentaram as respectivas alegações finais.

51.º Assim, a 12-09-2021, o tribunal arbitral considerou encerrada a fase de instrução (após a junção aos autos de documento que a Ré havia protestado juntar), devendo os autos ser conclusos para prolação da sentença – conforme Documento n.º 8, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

52.º Para grande surpresa da Autora, que aguardava há quase 4 (quatro) meses que fosse proferida decisão, através de comunicação datada de 06-01-2022, o tribunal arbitral comunicou que era sua decisão “reabrir o debate instrutório” – conforme Documento n.º 9, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

53.º Mas, ao invés de solicitar esclarecimentos, veio o tribunal arbitral substituir-se à então Demandante (ora Ré) e proceder a nova inquirição de uma das testemunhas já ouvidas e facultando à Demandante (ora Ré) a possibilidade de juntar mais prova aos autos.

54.º Assim se substituindo à Demandante, então Ré, a quem cabia fazer prova. E mais!

55.º Não podendo a Demandante satisfazer o pedido de prova documental feito pelo tribunal arbitral, veio aquela – já depois de encerrada a fase de instrução e de alegações finais produzidas! – alterar o seu requerimento probatório, requerendo a inquirição de um terceiro.

56.º Alegou, então, que o terceiro era o beneficiário efectivo da sociedade Demandante (a ora Ré).

57.º E o tribunal arbitral nem requereu que fosse junta aos autos a certidão do registo comercial, de modo a fazer prova dessa qualidade.

58.º Acresce que a inquirição da testemunha, que apenas comunicava em mandarim, foi feita por intermédio de intérprete.

59.º Intérprete, esse, que pouco dominava a língua portuguesa.

60.º A instâncias da mandatária da Autora, então Demandada, a esta não era permitido formular questões livremente, pois tinha de usar palavras “simples” e expressões “fáceis”, ou o inquirido e o seu intérprete não percebiam as perguntas!

61.º Com todo o respeito – que é muito – a Autora acaba por ser condenada no pagamento de uma indemnização que teve como base:

a) Documentação escrita em língua estrangeira, que nunca foi traduzida;

b) Inquirição de uma testemunha, já após encerrada a fase de instrução e proferidas alegações finais, que não dominava a língua portuguesa e cujo intérprete também não supria essa falta.

62.º Assim violando, ostensivamente, o princípio do contraditório.

63.º Acresce que às partes “deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final” – vide alínea b) do n.º 1 do artigo 30.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro.

64.º Mas, concluída a produção de prova – novamente – não foi dada a palavra às partes para se pronunciarem em sede de alegações finais.

65.º Tendo sido reaberta, por vontade dos árbitros, a fase de instrução, determina o princípio do contraditório que as partes se possam pronunciar quanto à prova produzida.

66.º Direito que não lhes assistiu.

67.º Conclui-se, assim, que todo o processo arbitral inquina de nulidade, desde a reunião, apenas entre os árbitros, que entenderam, sem ouvir as partes, aplicar o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, até à decisão de reabrir a instrução, substituindo-se às partes quanto à prova a produzir, dando relevo a prova produzida em língua estrangeira e sem direito ao devido contraditório.»

Concluiu pedindo a procedência da ação e que fosse anulada a sentença arbitral que o condenou.

2. “Caravela Visionária Ldª”, deduziu oposição, invocando a intempestividade da apresentação da ação, pedindo a sua improcedência e a condenação de AA – Construções Unipessoal Ldª, por abuso de direito e litigância de má fé.

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3. O Tribunal Arbitral tinha proferido acórdão, em 31.03.2022, julgando a ação parcialmente procedente, na qual:

a) Condenou AA – Construções Unipessoal Ldª. a pagar a Caravela Visionária Ldª, a quantia de € 320.000,00, acrescida de juros de mora vincendos desde o trânsito em julgado da decisão;

b) Condenou a Caravela Visionária Ldª a pagar a AA – Construções Unipessoal Ldª a quantia de € 17.757,74, relativa aos trabalhos do Auto 4, a que se reporta a factura 1/635 e parte da factura 1/628.

O Tribunal Arbitral fixou à ação o valor de € 1.089.557,77, após articulado superveniente apresentado, e foram fixados aos Árbitros honorários no montante de € 56.993,52.

Em 11.09.2023, os árbitros pronunciaram-se sobre o pedido de redução de honorários, dizendo que as partes deram expresso acordo à aplicação do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, de 1 de março de 2014, para definição dos honorários dos árbitros, de reembolso das despesas e da forma de pagamento pelas partes de preparos por conta desses honorários e despesas, nos moldes propostos na Ata de Reunião, de 22 de julho, o que foi aceite por Caravela Visionária Ldª, em 27.07.2020, e por AA – Construções Unipessoal Ldª, em 28.07.2020.

*

4. O tribunal da Relação proferiu acórdão com o seguinte dispositivo:

«(…) acorda-se em julgar improcedente o pedido de anulação do Acórdão do Tribunal Arbitral deduzido por AA, Lda, também improcedente o pedido da sua condenação por abuso de direito e litigância de má fé, absolvendo-a do mesmo, e mantendo os honorários fixados no Acórdão do Tribunal Arbitral.»

5. “AA – Construções Unipessoal Ldª”, não se confirmando com o acórdão do TRL, interpôs o presente recurso de revista.

Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

«1. Recorre-se do acórdão que julgou “improcedente o pedido de anulação do Acórdão do Tribunal Arbitral (…) e mantendo os honorários fixados no Acórdão do Tribunal Arbitral”.

2. A acção de anulação encontra fundamento em três pontos fulcrais:

a. Se as partes acordaram entre si submeter o processo ao Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, de 1 de Março de 2014;

b. Se as partes acordaram fixar os honorários dos árbitros com base no estipulado no Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, de 1 de Março de 2014;

c. A violação dos princípios da igualdade, do contraditório e do dispositivo.

3. O tribunal recorrido conclui que não existia acordo das partes quanto às regras processuais do processo de arbitragem e que foi “na reunião de 30.07.2020, em que estiveram presentes apenas os árbitros designados” que se determinou “que o processo ficava submetido ao Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, de 01 de Março de 2014”.

4. A adopção do dito Regulamento não foi tomada por acordo das partes, que nem foram ouvidas a este respeito e que tiveram de aceitar, sem mais, o determinado pelos árbitros.

5. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 da Cláusula 33.ª do Contrato de Empreitada, “Para dirimir qualquer questão emergente do presente Contrato, litígio, diferendo ou queixa relativos à interpretação, aplicação ou execução do presente Contrato serão seguidas, por ordem, as seguintes formas de resolução: (…) Quando, por negociação, nos termos do parágrafo anterior, não for resolvido o litígio deverá ser remetido para resolução com recurso a arbitragem. A arbitragem será realizada por um Tribunal Arbitral composto por 3 (três) árbitros nomeados, um pela Primeira Contraente, outro pela Segunda Contraente e um terceiro por acordo dos dois primeiros árbitros, que deverá assumir a função de Presidente. Na falta de acordo, o árbitro Presidente será designado pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a requerimento de qualquer dos Contraentes. O Tribunal funcionará em Lisboa no local que for escolhido pelos árbitros e julgará segundo o direito constituído, sendo a sua decisão final e irrecorrível.”

6. A arbitragem voluntária tem subjacente o princípio da autonomia da vontade das partes: cabe às partes definir as regras processuais aplicáveis ao caso ou, se assim o entenderem, remeter para as regras processuais de fonte legal.

7. Do que resulta da convenção de arbitragem, as partes acordaram que o julgamento do litígio seria feito “segundo o direito constituído”.

8. Apenas se não existir acordo das partes, pode o tribunal arbitral “conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado” – vide n.º 3 do artigo 30.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro.

9. Mas não o pode fazer quando as partes tiverem acordado algo diferente.

10.O acórdão recorrido ignorou estes factos, fundamentando-se na acta datada de 14-09-2021, onde consta que “os Mandatários das Partes declararam que no decurso do processo arbitral não se verificaram quaisquer nulidades e que foi respeitado o princípio do contraditório”.

11. Esta acta encontra-se assinada somente pelos árbitros.

12. As partes não puderam impugnar o teor da mesma e arguir, de facto, a nulidade do processo, em qualquer outro momento que não o da acção de nulidade da decisão.

13. Refugiando-se no texto da acta, o acórdão recorrido subtraiu-se a qualquer tomar qualquer decisão concreta quanto às nulidades arguidas pela Recorrente.

14. Não se pronunciando quanto a toda a matéria de nulidade na prova produzida, alegada pela Recorrente na sua acção de anulação.

15. Quanto ao valor dos honorários dos árbitros – em absoluta contradição com a conclusão a que havia chegado ab initio – veio o acórdão recorrido concluir que, afinal, terão sido as partes a acordar na aplicação do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, de 1 de Março de 2014.

16. Pelo que nada haveria a apontar ao valor fixado a título de honorários dos árbitros.

17. Ora, inicialmente, conclui-se que a aplicação do dito Regulamento foi decidida pelos árbitros – e não pelas partes.

18. Pelo que a decisão recorrida contradiz-se em si mesma.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão da Relação, fazendo-se assim a Costumada justiça

Cabe apreciar.

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II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto da revista.

Como consta dos autos, na convenção de arbitragem, as partes concluíram que a decisão arbitral seria final e irrecorrível (em sintonia com a regra da não recorribilidade, prevista no art.º 39.º, n.º 4 da LAV). Assim, o recurso da decisão arbitral só pode ser de anulação. Trata-se de um recurso de cassação (artigo 46.º, n.º 9 da LAV) e só é admissível caso seja alegada alguma das hipóteses previstas no artigo 46.º, n.º 3 da LAV.

No caso concreto, o recorrente entende que o acórdão recorrido, ao não declarar a nulidade da decisão arbitral, não fez a correta aplicação do direito na análise da observância dos princípios fundamentais constantes do artigo 30.º da LAV, ex vi do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea ii) da LAV, bem como nos termos da subalínea iv) quando a decisão recorrida apreciou a conformidade do processo arbitral com a convenção das partes.

O recurso é, assim, admissível, nos termos do artigo 59.º, n.º 8, in fine, da LAV e artigo 671.º, n.º 1 do CPC.

O objeto do recurso é, assim o de saber se existia fundamento para anular a decisão arbitral.

2. A factualidade relevante

A factualidade que releva para a apreciação do presente recurso de anulação é aquela que resulta do relatório supra apresentado.

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3. O direito aplicável

3.1. Nos termos do artigo art.º 39.º, n.º 4 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, em regra, as decisões arbitrais não são suscetíveis de recurso para os tribunais judiciais. No caso concreto, as partes convencionaram expressamente essa limitação, quando na cláusula 33.ª, n.º 1, alínea b) do Contrato de Empreitada (entre elas celebrado) afirmaram que: “O Tribunal (…) julgará segundo o direito constituído, sendo a sua decisão final e irrecorrível.”

Assim, a única forma de impugnar a decisão arbitral em causa seria através do pedido de anulação, nos termos do artigo 46.º, n.º 1 da LAV (sendo esse direito impugnatório irrenunciável, nos termos do artigo 5.º deste artigo).

Nos termos do n.º 9.º do artigo 46.º: «O tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas (…)»

Por outro lado, os fundamentos pelos quais se requer a anulação de uma decisão arbitral encontram-se taxativamente fixados pelo n.º 3 do artigo 46.º. Dispõe esta norma:

«3. A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:

a) A parte que faz o pedido demonstrar que:

i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afectada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou

ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou

iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou

iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou

v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou

vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º; ou

vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º ; ou

b) O tribunal verificar que:

i) O objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;

ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.»

3.2. Nas suas alegações de recurso, o recorrente entende que o Tribunal da Relação devia ter anulado a decisão arbitral por terem sido violados princípios fundamentais previstos no artigo 30.º da LAV, concretamente “da igualdade, do contraditório e do dispositivo”.

Trata-se de um fundamento compaginável com a hipótese prevista no artigo 46.º, n.º 3.º, alínea a), subalínea ii) da LAV.

Por outro lado, afirma que não teria existido acordo das partes para submeter o processo ao Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa (de 1 de março de 2014); e também não teria havido acordo das partes no sentido de os honorários dos árbitros serem fixados nos termos desse Regulamento.

Tais fundamentos de anulação da decisão arbitral são compagináveis com a hipótese prevista no artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iv) da LAV, ou seja, o processo arbitral não ter sido conforme com a convenção das partes.

3.3. Vejamos, à luz do quadro legal pertinente, se assiste razão ao recorrente.

Dispõe o artigo 30.º da LAV (no que diretamente releva para a solução do caso concreto):

«1 - O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais:
a) O demandado é citado para se defender;

b) As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final;

c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as excepções previstas na presente lei.»

Nos termos do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea ii), haverá fundamento para anulação da decisão arbitral, se:

«Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio».

Ora, no caso concreto, é manifesto que o recorrente não consegue demonstrar em que se traduziu a violação dos referidos princípios, tal como não consegue demonstrar que essa eventual violação tivesse tido uma influência decisiva na resolução do litígio.

Para efeitos de anulação de uma decisão arbitral não basta a existência de um desvio negligenciável à observância dos princípios estruturantes do processo arbitral, previstos no artigo 30.º. É necessário que o recorrente demonstre a existência de um nexo de causalidade entre o desrespeito daqueles princípios e o sentido da decisão arbitral. O recorrente tem, assim, de demonstrar que a decisão teria sido (total ou parcialmente) diferente se tais princípios tivessem sido respeitados.

No caso concreto, o recorrente não procede minimamente a essa demonstração. O que o seu recurso revela é, essencialmente, um descontentamento com o sentido da decisão arbitral que o condenou a indemnizar a contraparte no contrato de empreitada.

Facilmente se concluiu, tal como concluiu o Tribunal da Relação, que não se encontra demonstrada a violação de princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º da LAV, nem que uma eventual violação desses princípios tivesse influenciado decisivamente o sentido da decisão arbitral, pelo que, nessa medida, não existe fundamento para anular a decisão arbitral.

3.4. Quanto à alegação no sentido de o processo arbitral não ter sido conforme com a convenção das partes, pelo facto de ter sido aplicado o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, cabia ao recorrente demonstrar que, a existir tal desrespeito, essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio, como exige o artigo 46.º, n.º 3.º, alínea a), subalínea iv) da LAV.

Porém, o recorrente não procede minimamente a essa demonstração.

Aliás, como se sustentou no acórdão do Tribunal da Relação, os autos não revelam essa desconformidade. Mas sim o seu contrário, pois na ata datada de 14.09.2021, consta que “os Mandatários das Partes declararam que no decurso do processo arbitral não se verificaram quaisquer nulidades e que foi respeitado o princípio do contraditório”.

Por outro lado, importa ter presente as regras que emergem do disposto nos números 2 e 3 do artigo 30.º:

«2 - As partes podem, até à aceitação do primeiro árbitro, acordar sobre as regras do processo a observar na arbitragem, com respeito pelos princípios fundamentais consignados no número anterior do presente artigo e pelas demais normas imperativas constantes desta lei

3- Não existindo tal acordo das partes e na falta de disposições aplicáveis na presente lei, o tribunal arbitral pode conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado, definindo as regras processuais que entender adequadas, devendo, se for esse o caso, explicitar que considera subsidiariamente aplicável o disposto na lei que rege o processo perante o tribunal estadual competente.»

Cabia ao recorrente demonstrar que as partes tinham convencionado a aplicação de outras regras, ou excluído a aplicação daquele regulamento, para contrariar o poder que o artigo 30.º, n.º 3 confere aos árbitros quanto à definição das regras aplicáveis. Mas, como é manifesto, o recorrente não fez essa demonstração.

Conclui-se, assim, que também com base artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iv) da LAV não haveria fundamento para anular a decisão arbitral.

Especificamente sobre a questão do valor dos honorários dos árbitros, não tem o tribunal judicial que se pronunciar, numa ação de anulação, se esse valor foi bem ou mal fixado. Mas apenas se nessa matéria o tribunal arbitral seguiu as regras processuais aplicadas, como resulta da natureza taxativa dos fundamentos de anulação da decisão arbitral, nos termos do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iv) da LAV.

Tendo os honorários dos árbitros sido fixados de acordo com o referido Regulamento, e não tendo o recorrente demonstrado que esse Regulamento não podia ser aplicado, a sua pretensão de anulação daquela decisão é destituída de fundamento, pois não se demonstra a violação de qualquer regra disciplinadora dessa matéria.

Em resumo, não existe qualquer fundamento para que o tribunal judicial proceda à anulação da decisão arbitral, pelo que não existe fundamento para revogar o acórdão recorrido.

*

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 01.07.2025,

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Cristina Coelho

Luís Espírito Santo