CONTRATO DE MÚTUO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PETIÇÃO INICIAL
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DA OFICIALIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE DO CONTRATO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
CONTRATO
REQUISITOS
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. O disposto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC não permite ao juiz aplicar uma figura jurídica (diferente da invocada na petição inicial), quando os pressupostos de tal figura não se encontram demonstrados pela factualidade provada.
II. Tendo o autor peticionado a restituição de determinada quantia, com base na celebração de um contrato de mútuo, nulo por falta de forma, mas cuja celebração factual não se provou, não pode o tribunal superior decretar a restituição desse montante com base em enriquecimento sem causa (que o autor não peticionou subsidiariamente), quando a factualidade provada não revela a presença dos requisitos cumulativos dos quais depende a aplicação dessa figura jurídica.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA, propôs a presente ação declarativa contra BB.

Alegou, em síntese, que acordou verbalmente com o réu emprestar-lhe as quantias de que este necessitasse para comparticipar nas despesas da sociedade irregular que ambos constituíram. Aquando do encerramento e liquidação daquela sociedade, foi apurado o saldo devedor dos vários empréstimos assim concedidos, que em maio de 2002 perfazia o valor de 51.426,00 €. As partes convencionaram que este valor seria liquidado até ao final do mesmo ano, mas apenas foram efetuadas amortizações num total de 9.500,00 €. Embora o autor tenha admitido prorrogar o período de acerto de contas, o réu nada mais pagou, apesar de ter sido interpelado para esse efeito por diversas vezes.

Concluiu pedindo a declaração da nulidade do contrato de mútuo celebrado entre o autor e o réu e a condenação deste a pagar a quantia de 41.926,00 €, acrescida de juros.

2. O réu apresentou contestação na qual, para além de impugnar factos alegados na petição inicial, arguiu a ineptidão da petição inicial e a prescrição do direito do autor, ao abrigo dos artigos 309.º e 482.º do CC. Alegou, para sustentar esta prescrição, que qualquer acordo ou sociedade irregular que existisse terminou em 1999, e que o pedido do autor apenas se poderia basear no enriquecimento sem causa.

O autor respondeu à matéria de exceção invocada na contestação, pugnando pela sua improcedência, alegando, a respeito da prescrição ordinária, que o encerramento da liquidação da sociedade ocorreu em maio de 2002, momento em que foi apurado o valor em dívida resultante dos vários empréstimos concedidos ao réu pelo autor.

3. Observada a pertinente tramitação processual, veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«(…) julgo a acção procedente, por provada, e, consequentemente, declarando nulo por falta de forma o contrato de mútuo acima referido, decido condenar o réu, BB, a pagar ao autor, AA, a quantia de 41.926,00 euros (quarenta e um mil novecentos e vinte e seis euros), quantia esta acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.»

4. Contra essa decisão, o réu interpôs recurso de apelação, o qual veio a ser julgado procedente, tendo a Relação proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

«(…) na procedência da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e julgam totalmente improcedente a acção, absolvendo o réu do pedido

5. Inconformado com essa decisão, o autor interpôs recurso de revista.

Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso da circunstância do Autor, ora Recorrente, não se conformar com o, aliás, douto Acórdão proferido a fls.… dos presentes autos, que decidiu considerar procedente a apelação apresentada, revogando a sentença recorrida, e, assim, a julgar totalmente improcedente a acção, absolvendo o Réu do pedido.

B. O que, não se podendo aceitar, motiva então o presente recurso de revista!

C. Enquadrando-se, assim, este recurso, no âmbito do disposto no n.º 1 do art.º 671.º do CPC que dita que «Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa» (“a contrario” a dupla conforme do n.º 3 do art.º 671.º), com fundamento, na al. a) do n.º 1 do art.º 674.º, por estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito, neste caso, concretamente, o disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

D. Sendo pois, a seguinte questão a debater no presente recurso - violação do disposto no art.º 5.º, n.º 3 do CPC., à luz da ideia ou regra conhecida como “iura novit curia”, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito.

E. Ora, na esteira das alegações de apelação apresentadas pelo Recorrente/Réu, entendeu o Venerando Tribunal da Relação do Porto que, haveria de proceder à alteração da decisão de facto, no que respeita aos factos n.º 3 a 5 dados como provados pelo Digm.º Tribunal “a quo”.

F. Passando, pois, a elencar a matéria de facto julgada provada e não provada, renumerando-a, nos termos que aqui se deixam transcritos (…).

«Factos Provados:

1- O autor, AA, e o réu, BB, são irmãos entre si;

2- Face a esse parentesco e relações entre ambos, organizaram entre si uma sociedade irregular, havendo um e outro de comparticipar em igual medida nas “despesas” e “receitas”;

3. Em Maio de 2002, o réu preencheu, datou e assinou e entregou ao autor um cheque-garantia no valor apurado, ou seja, de 51.426,00 euros;

4. O que o autor aceitou, atendendo ao elevado montante em dívida à data, e confiando que o seu irmão iria pagar aquele valor durante esse ano de 2002

5. O Autor recebeu o cheque, como manifestação da seriedade do compromisso assumido pelo seu irmão, confiando que aquele não deixaria de pagar o valor nele inscrito;

6- Não obstante ter ficado na posse do cheque em causa, este ficou destruído de forma irrecuperável, na sequência de uma inundação no armazém do autor, em que guardava aquele cheque numa pasta, tendo apenas em sua posse uma fotocópia, na qual é possível constatar, o número de cheque com os últimos dígitos ..13, da conta n.º ........11, sacado sobre o Banco Banif – Banco Internacional do Funchal (doc. nº 1 junto com a petição inicial);

7- Por conta da quantia titulada por aquele cheque, o réu pagou ao autor, em datas distintas, o valor total 9.500,00 euros, a título de amortizações;

8- Da quantia titulada por aquele cheque, o réu nada mais pagou, apesar de diversas interpelações verbais do autor para o efeito;

9- Até que, em 17 de Dezembro de 2018, o autor remeteu uma carta registada ao réu, exigindo o pagamento (doc. 2 e 2-A juntos com a petição inicial);

10- Recebendo resposta, também escrita, datada de 26.12.2018, por intermédio de mandatário do réu, aí se afirmando que “se desconhece a existência de qualquer acerto de contas a efectuar, na medida em que não existe qualquer negócio validamente celebrado, que sustente a sua pretensão” (doc. nº 3 junto com a petição inicial).

Factos Não Provados:

O tribunal recorrido julgou não provado que:

-Mercê das condições pessoais e económicas de cada um deles, para fazer face às despesas/investimentos da “sociedade” entre ambos, o autor tenha emprestado ao réu diversas quantias monetárias para que este pudesse participar em igual medida na actividade comercial de ambos, com a condição de que tais quantias lhe fossem devolvidas pelo réu;

- Quando, por questões pessoais entre eles, puseram termo à sociedade/parceria que os unia, tenham apurado entre ambos o saldo devedor, dos vários empréstimos parcialmente concedidos ao aqui réu pelo autor, nos moldes acima referidos;

- Tal saldo, à data de Maio de 2002, perfizesse o valor de €: 51.426,00 favorável ao autor;

- As relações entre autor e réu tenham cessado definitivamente em 1999;

- O autor nunca tenha emprestado/mutuado quaisquer quantias em dinheiro ao réu.

G. Isto porque, escreveu-se no douto Acórdão, ora recorrido, que:

«Atento o exposto, o que resulta da prova produzida é, em síntese, que as partes fizeram investimentos nos estabelecimentos que integravam a sociedade irregular por elas constituída e que, quando decidiram pôr fim a essa sociedade, dividiram entre eles o património, tendo em conta o valor do ativo (em que se incluída um café que haviam comprado) e o valor do passivo (em que se incluía uma dívida bancária decorrente de um empréstimo contraído pelo autor para investir num dos estabelecimentos que integravam a referida sociedade irregular). Nesta operação terá sido apurado um saldo em dinheiro, mas a prova produzida não permite afirmar – nem tal estava alegado – se se tratava de um saldo definitivo corresponde ao valor titulado pelo cheque cuja cópia foi junta aos autos, como afirmou o autor, ou se esse valor apenas seria devido se e quando o café acima aludido (que na divisão dos bens foi atribuído ao réu pelo valor de 125 mil euros) fosse “legalizado” como afirmou o réu, secundado pela sua ex-mulher, referindo-se à obtenção de licença de utilização.

Esta análise revela que os factos que acabaram por resultar da instrução da causa não correspondem aos que o autor alegou na petição inicial (relativos a vários empréstimos concedidos pelo autor ao réu), nem correspondem à versão dos factos que o réu, em sede de impugnação motivada, descreveu na sua contestação (relativos a um suposto empréstimo ao autor à sociedade irregular que ambos haviam constituído).

Por essa razão, por estarem foram do objecto deste processo – e, por isso mesmo, não terem sido sujeitos às garantias processais que a produção válida de prova demanda –, não podem ser considerados nestes autos.»

H. O que, pelas razões que infra se escalpelizarão, não se concede!

I. Com efeito, dispõe o n.º 3 do artigo 5.º do CPC que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.»

Ou seja,

J. «I. O artigo 5.º, n.º 3, do CPC dá expressão à ideia ou regra conhecida como “iura novit curia”, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito.

II. Nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o julgador não está circunscrito às alegações das partes no que toca à indagação, à interpretação e à aplicação das regras jurídicas aplicáveis.

III. Sempre que o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal se contenha dentro dos limites da factualidade essencial alegada e seja adequado ao efeito prático-jurídico pretendido, pode o tribunal realizá-lo, posto que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre ele, sendo poder-dever do julgador proceder à requalificação ou reconfiguração normativo-jurídica do caso quando cumpridas aquelas condições.» - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/02/2023, proferido nos autos de processo n.º 3063/18.9T8PTM.E2.S1, da 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.

K. Ora, o douto Acórdão recorrido fundou a sua decisão de absolver o Réu do pedido contra si formulado pelo Autor, no facto de este ter invocado, como fundamento do mesmo, o mútuo (empréstimo ou vários empréstimos), quando dispunha, para o mesmo desiderato, de outros institutos jurídicos, nomeadamente, o reconhecimento da dívida por parte do Réu e o seu inerente enriquecimento sem causa, quando deixou de cumprir com o pagamento a que se obrigou, aquando da emissão daquele cheque, ora trazido a juízo.

L. É que, da factualidade provada resulta que o Réu preencheu, datou e assinou e entregou ao autor um cheque-garantia no valor apurado, ou seja, de 51.426,00 euros; o que o autor aceitou, atendendo ao elevado montante em dívida à data, e confiando que o seu irmão iria pagar aquele valor durante esse ano de 2002;

M. Quer isto significar que, nas contas entre os aqui Autor e Réu, deu o Venerando Tribunal recorrido, efectivamente como provado que foi apurado o valor em dívida de 51.426,00 euros;

N. Mais, deu, também como provado que “Por conta da quantia titulada por aquele cheque, o réu pagou ao autor, em datas distintas, o valor total 9.500,00 euros, a título de amortizações;”

O. Ou seja, salvo o devido respeito, por entendimento diverso (o que não se aceita, mas por mero dever legal de patrocínio se equaciona) é inquestionável que deu o Tribunal, aqui recorrido, como provada a existência da dívida em causa; e, aliás, o próprio reconhecimento da mesma por parte do Réu ao ter realizado pagamentos, em amortização daquela quantia.

P. Destarte, facilmente decorre que o Réu veio a beneficiar e a enriquecer à custa do Autor, e sem causa, da quantia titulada por aquele cheque, com exceção dos montantes já pagos.

Q. Assim, salvo o devido respeito, sempre teria o Tribunal recorrido que ter enquadrado a factualidade em causa, nos termos do art. 470.º e sgts. do C.P.C., conferindo ao aqui Autor o direito a exigir do Réu o pagamento do quantitativo em dívida.

R. Não invocou o Autor, aqui Recorrente, tal instituto na sua petição inicial, remetendo-se, antes, para a figura da nulidade do mútuo, nos termos dos artigos 220.º e 1143.º do Código Civil, mas, por força dessa invocação, ficou o Tribunal recorrido vinculado a tal alegação?

Não, pois o citado art. 5.º do C.P.C. diz que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

S. Deste preceito resulta a vinculação do tribunal à matéria de facto alegada e só a esta, mas não ao seu enquadramento jurídico. Por isso, se o tribunal entender que a solução jurídica do caso, em face dos concretos factos alegados e provados, é diferente da propugnada pelas partes deve decidir conforme assim entender.

T. Assim, em sede do presente recurso de revista, o aqui Recorrente invoca o comando do art. 5.º, n.º 3 do C.P.C. (ex- art.º 664.º do CPC), para dizer que, o Tribunal recorrido, face à factualidade que considerou provada, deveria ter analisado a mesma à luz de outros institutos através dos quais poderia e/ou deveria ter sido formulado o pedido em causa, pois que, tinha liberdade de acção para tal, por não estar vinculado às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

U. Por isso, ainda que o Tribunal considerasse que o instituto da nulidade do mútuo não tinha aplicação ao caso, sempre deveria, exercitando o seu poder de livre aplicação das regras de direito, subsumir o caso aos institutos que considerasse aplicáveis, nomeadamente, o do enriquecimento sem causa, por se mostrarem preenchidos os seus pressupostos.

V. Em síntese, tanto a doutrina como a jurisprudência, designadamente do Egrégio Supremo Tribunal, convergem no entendimento de que é possível ao (e desejável que) o tribunal dê às questões submetidas à sua apreciação o enquadramento jurídico mais adequado, ainda que isso signifique divergir do enquadramento cogitado pelos autores.

W. Assim, por todas as razões supra apontadas, residindo a questão a apreciar nestes autos à violação do disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, na medida em que, descurou o Venerando Tribunal, ora recorrido, do dever de apreciar a factualidade que considerou provada à luz de todas as soluções plausíveis de direito, deverá ser concedida revista.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.as Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogada a decisão ora recorrida na parte em mantendo-se a decisão proferida em 1.ª instância, ainda que com diferente enquadramento jurídico (por força do enriquecimento sem causa), com o que V.as Exas. julgarão, como sempre, com inteira e sã justiça

6. O recorrido respondeu, sintetizando a sua posição nos seguintes termos:

«1. O Autor alegou na petição inicial, ter celebrado um contrato de mútuo com o Réu.

2. A causa de pedir foi exposta pelo Autor e foi com base nela que o Réu exerceu o contraditório.

3. O Tribunal de 1ª Instância julgou a ação procedente considerando, erradamente, que o facto essencial, contrato de mútuo, alegado pelo Autor tinha sido provado.

4. O Réu interpôs recurso de apelação para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, por não ter sido feito prova da existência de qualquer contrato de mútuo entre as partes.

5. O Tribunal da Relação do Porto, decidiu por unanimidade ser o recurso de apelação totalmente procedente, absolvendo o Réu do pedido formulado pelo Autor.

6. O Autor vem agora no presente Recurso alegar que o Venerando Tribunal da Relação do Porto, errou por na decisão por violação do princípio “iura novit curia”, previsto nos termos do artigo 5º nº 3 do Código Processo Civil.

7. Alegação que o Réu não pode de forma alguma aceitar,

8. Porque este princípio, não permite a alteração da causa de pedir que serviu de fundamento à ação.

9. É às partes que incumbe provar os factos essenciais que alegam e é ao Tribunal que incumbe efetuar o enquadramento jurídico adequado e aplicar o Direito.

10. O Autor confunde o que está consagrado no artigo 5º nº 3 do Código de Processo Civil, porque “não estar o Juiz sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, é diferente de “não estar o Juiz sujeito aos factos essenciais alegados pelas partes, nas suas peças processuais”

11. O princípio iura novit curia permite ao Tribunal aplicar o Direito correto aos factos, mas não autoriza que seja alterada a causa de pedir apresentada pelo Autor na sua petição inicial.

12. Considerar agora que afinal houve enriquecimento sem causa, seria considerar uma nova causa de pedir, o que é inconcebível, porque não se pode em sede de recurso, transformar uma pretensão baseada num contrato de mútuo em enriquecimento sem causa, porque isso seria substituir a base factual.

13. Ainda que, por mera hipótese de raciocínio tal fosse possível, o que não se concebe de forma alguma, vir nesta fase alegar que o Tribunal “deveria exercitar o seu poder de livre aplicação das regras de direito e subsumir o caso dos institutos que considerasse aplicáveis, nomeadamente, o do enriquecimento sem causa”, significaria que a ação interposta pelo Autor estaria sempre condenada ao insucesso, já que nos termos do artigo 482º do Código Civil, o direito do Autor estaria já prescrito há muitos anos.

14. Prescrição essa foi invocada pelo Réu na sua contestação.

Nestes termos, nos melhores de Direito e com o mui douto suprimento de V.Exas., deve o Recurso interposto pelo Autor ser julgado improcedente e por via disso, deve manter-se inalterada a decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, só assim se aplicando corretamente o Direito e consequentemente, fazendo Justiça

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

Verificados os requisitos gerais de recorribilidade, exigidos pelo artigo 629.º, n.º 1 do CPC, e tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, em sentido desfavorável ao recorrente, a revista é admissível nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC.

O objeto do recurso é o de saber se a pretensão do autor pode ser juridicamente enquadrada na figura do enriquecimento sem causa, tendo por base o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC (apesar de tal figura não ter sido invocada na petição inicial), e se, com essa base, deve ser julgada procedente.

2. A factualidade provada

Após alteração da decisão sobre a matéria de facto, a segunda instância deu como provada a seguinte factualidade:

«1- O autor, AA, e o réu, BB, são irmãos entre si;

2- Face a esse parentesco e relações entre ambos, organizaram entre si uma sociedade irregular, havendo um e outro de comparticipar em igual medida nas “despesas” e “receitas”;

3- Em Maio de 2002, o réu preencheu, datou e assinou e entregou ao autor um cheque-garantia no valor apurado, ou seja, de 51.426,00 euros;

4- O que o autor aceitou, atendendo ao elevado montante em dívida à data, e confiando que o seu irmão iria pagar aquele valor durante esse ano de 2002;

5- O Autor recebeu o cheque, como manifestação da seriedade do compromisso assumido pelo seu irmão, confiando que aquele não deixaria de pagar o valor nele inscrito;

6- Não obstante ter ficado na posse do cheque em causa, este ficou destruído de forma irrecuperável, na sequência de uma inundação no armazém do autor, em que guardava aquele cheque numa pasta, tendo apenas em sua posse uma fotocópia, na qual é possível constatar, o número de cheque com os últimos dígitos ..13, da conta n.º ........11, sacado sobre o Banco Banif – Banco Internacional do Funchal (doc. nº 1 junto com a petição inicial);

7- Por conta da quantia titulada por aquele cheque, o réu pagou ao autor, em datas distintas, o valor total 9.500,00 euros, a título de amortizações;

8- Da quantia titulada por aquele cheque, o réu nada mais pagou, apesar de diversas interpelações verbais do autor para o efeito;

9- Até que, em 17 de Dezembro de 2018, o autor remeteu uma carta registada ao réu, exigindo o pagamento (doc. 2 e 2-A juntos com a petição inicial);

10- Recebendo resposta, também escrita, datada de 26.12.2018, por intermédio de mandatário do réu, aí se afirmando que “se desconhece a existência de qualquer acerto de contas a efectuar, na medida em que não existe qualquer negócio validamente celebrado, que sustente a sua pretensão” (doc. nº 3 junto com a petição inicial).»

3. O direito aplicável

3.1. Na petição inicial, o autor pediu a condenação do réu a restituir-se a quantia de 41.926,00 € (acrescida de juros), tendo por base a existência de um contrato de mútuo, por via do qual o autor teria emprestado ao réu a quantia de 51.426,00 €, mas este apenas lhe devolveu 9.500,00 €. Tendo esse contrato de mútuo sido verbal e, por isso, nulo por falta de forma (artigos 1143.º e 220.º do CC), o autor pediu a restituição daquele montante com base no efeito retroativo da declaração de nulidade (artigo 289.º do CC).

A segunda instância entendeu que não havia sido feita prova de ter existido o referido mútuo (ainda que verbal), não havendo prova de ter existido, efetivamente, entrega daquela quantia ao réu.

Nas suas alegações de revista vem o autor pretender que o réu seja condenado a restituir-lhe o referido montante, com base na figura do enriquecimento sem causa. E sustenta essa tese no disposto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC.

Vejamos.

3.2. O acórdão recorrido apresenta a seguinte fundamentação de direito:

«O autor baseou o seu pedido nos empréstimos que afirma ter concedido ao réu, mediante acordo ou acordos celebrados verbalmente entre eles, ou melhor, na obrigação de restituição das quantias mutuadas, no valor global de 51.426,00 €, com base na nulidade daquele acordo ou acordos por falta de forma e na consequente obrigação de restituição do que foi prestado.

Mas, como decorre da decisão que incidiu sobre o recurso da matéria de facto, não logrou provar a celebração daqueles empréstimos. Tratando-se de factos constitutivos do seu direito, a falta de prova dos mesmos impede o seu reconhecimento judicial, nos termos previstos no artigo 342.º do CC.

Ficou, porém, demonstrado que, em Maio de 2002, o réu preencheu, datou, assinou e entregou ao autor um cheque-garantia no referido valor de 51.426,00 € (cfr. ponto 3 dos factos provados) e que, por conta da quantia titulada por esse cheque, o réu pagou ao autor, em datas distintas, o valor total 9.500,00 €, a título de amortizações (cfr. ponto 7, após renumeração dos factos provados), nada mais tendo pago, apesar de diversas vezes interpelado para esse efeito (cfr. pontos 8 e 9 renumerados).

Contudo, estes factos não se revelam suficientes para servir de base à condenação do réu.

Desde logo porque esta acção configura uma acção de anulação de um contrato de mútuo e não uma acção cartular.

Mas também porque se trata de um cheque-garantia, que não se destinava a ser descontado, conforme declaração aposta no verso do mesmo e reiterada por ambas as partes em sede de audiência de julgamento, nada nos factos apurados nos elucidando sobre a proveniência e a natureza do crédito garantido ou sobre as condições da sua exigibilidade.

É certo que, em sede de instrução da causa, as partes tomaram posição sobre essa proveniência e natureza, nos termos já antes expostos a respeito da apreciação do recurso da matéria de facto. Mas tal factualidade não foi, nem podia ter sido, vertida nos factos provados e não provados, por extravasar o objecto da acção, tal como as partes a apresentaram em juízo.

Deste modo, para além de não sustarem a declaração de nulidade de um ou mais contratos de mútuo, os factos apurados também não podem sustentar a condenação do réu a pagar ao autor a quantia por este solicitada.

Do exposto decorre ser a acção totalmente improcedente, pelo que a decisão recorrida não pode subsistir. Em face da procedência da apelação e da improcedência da acção, as respectivas custas serão suportadas pelo autor/recorrido

3.3. Afirma o recorrente nas suas alegações de revista que «(…) é inquestionável que deu o Tribunal, aqui recorrido, como provada a existência da dívida em causa; e, aliás, o próprio reconhecimento da mesma por parte do Réu ao ter realizado pagamentos, em amortização daquela quantia».

Consequentemente, entende o recorrente que o tribunal devia ter aplicado a figura do enriquecimento sem causa para condenar o réu a restituir-lhe o valor peticionado.

E acrescenta, na sua alegação: «Não invocou o Autor, aqui Recorrente, tal instituto na sua petição inicial, remetendo-se, antes, para a figura da nulidade do mútuo, nos termos dos artigos 220.º e 1143.º do Código Civil, mas, por força dessa invocação, ficou o Tribunal recorrido vinculado a tal alegação? Não, pois o citado art.º 5.º, do C.P.C. diz que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito

E concluiu: «(…) ainda que o Tribunal considerasse que o instituto da nulidade do mútuo não tinha aplicação ao caso, sempre deveria, exercitando o seu poder de livre aplicação das regras de direito, subsumir o caso aos institutos que considerasse aplicáveis, nomeadamente, o do enriquecimento sem causa, por se mostrarem preenchidos os seus pressupostos.»

3.4. Pode, desde já, afirmar-se que não assiste razão ao recorrente.

Como bem se entendeu no acórdão recorrido, não está em causa uma simples questão de qualificação jurídica.

A pretensão formulada pelo autor, na petição inicial, foi a de que o réu fosse condenado a restituir-lhe determinada quantia, assentando essa pretensão no facto de o autor ter emprestado (rectius, mutuado) tal valor ao réu. Assumindo a nulidade desse contrato de mútuo, por vicio de forma, o autor invocou o efeito retroativo da declaração de nulidade (art.º 289.º do CC) como base normativa da sua pretensão restitutória.

A relação material que alavanca a pretensão normativa do autor seria, assim, a existência de um “empréstimo”. Porém, como entendeu a segunda instância, o autor não provou os factos essenciais constitutivos do alegado empréstimo, como era seu ónus (artigos 5.º, n.º 1 do CPC e 342.º, n.º 1 do CC). Desde logo (antes da questão da nulidade por falta de forma), estando alegado um contrato real quanto à sua constituição (como decorre do art.º 1142.º do CC), era necessário provar a efetiva entrega (pelo autor ao réu) do montante reclamado, ocorrida no âmbito da conclusão do alegado empréstimo. Mas tal não se provou.

O que se encontra provado é que, em 2002, o réu preencheu, assinou e entregou ao autor um cheque-garantia (entretanto, desaparecido) no valor de 51.426,00 Euros; e que, por conta da quantia titulada por aquele cheque, o réu pagou ao autor, em datas distintas, o valor total 9.500,00 Euros.

Ora, não bastará provar que uma pessoa deve determinado montante a outra para que o tribunal condene o devedor a pagar (ou restituir) esse montante ao credor. Há que apurar em que termos jurídico-factuais se sustenta a pretensão do credor (e, eventualmente, se ainda é judicialmente exigível).

É certo que pelo princípio da oficiosidade (art.º 5.º, n.º 3 do CPC), o juiz conhece do direito, sem se encontrar limitado pelas qualificações jurídicas invocadas pelas partes. Mas tal não significa que o juiz possa convocar figuras jurídicas cujos elementos constitutivos não se encontrem cabalmente vertidos nos factos provados. Tal seria desrespeitar, desde logo, o disposto no artigo 5.º, n.º 1 do CPC (bem como o disposto no art.º 3.º).

3.5. Pretende o autor-recorrente que o tribunal aplique a figura do enriquecimento sem causa (prevista no artigo 473.º do CC) para, com base nela, condenar o réu a restituir-lhe a quantia peticionada. Porém, facilmente se constata que o autor não alegou (subsidiariamente) nem provou cabalmente os pressupostos, cumulativos, constitutivos dessa figura jurídica.

Da factualidade provada (que não é extensa), embora se constate a existência de uma dívida, não é possível concluir pela presença de um enriquecimento do réu, à custa do autor, e sem causa justificativa. Sendo ainda necessário apurar, dada a natureza supletiva desta figura (art.º 474.º do CC), se não existia outro meio para o autor ser ressarcido. E os autos teriam ainda de revelar que o direito de exigir a restituição com base no enriquecimento sem causa não se encontrava prescrito, face ao disposto no artigo 482.º do CC (e dado que o réu, na contestação, invocou a prescrição do direito do autor). Não está, assim, em causa uma simples questão de indagação do direito aplicável, mas sim de insuficiência da base factual para a aplicação de outra figura jurídica.

Este é o entendimento que encontra respaldo na jurisprudência do STJ. Veja-se, a título exemplificativo, o que se afirmou nas seguintes decisões:

Acórdão do STJ, de 18.09.2018, (relator Tomé Gomes), no processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1:

«(…) ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”.

Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.»

No mesmo sentido, deve citar-se o Acórdão do STJ, de 19.01.2027 (relator Tomé Gomes), no processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1:

«Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.

Não tendo o A. logrado provar os factos que consubstanciam a causa de pedir invocada, provando-se antes uma relação jurídica diversa, firmada entre o autor e um dos réus, de que possa resultar também um efeito prático-jurídico distinto do peticionado, não resta senão julgar a ação improcedente.»

3.6. Em suma, a factualidade produzida não fornece elementos suficientes para se poder aplicar ao caso concreto a figura do enriquecimento sem causa ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC, como pretende o recorrente. Nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do CC, era o autor que tinha o ónus de fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito. Não o tendo feito, a ação só pode ser improcedente.

Nestes termos, concluiu-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito aos factos provados.

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 01.07.2025

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Luís Espírito Santo

Luís Correia de Mendonça