No incidente de liquidação de sentença (artigo 358.º, n.º 2 do CPC) não podem ser quantificados mais danos do que aqueles que resultam da decisão final proferida nos autos principais.
I. RELATÓRIO
1. AA e BB, autores no processo principal, do qual estes autos são apenso, deduziram incidente de liquidação contra CC e DD, réus no processo principal, peticionando a condenação dos réus no pagamento da quantia global de € 103.911,01).
Alegaram, em síntese, que na ação principal os réus foram condenados, além do mais, a “b) (…) ressarcirem ao AA de todos os danos que constituem a consequência adequada da existência dos defeitos no mesmo imóvel, sejam de natureza patrimonial ou não patrimonial e assim, pagaram-lhe a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença”.
Alegaram ainda que, na sequência das fortes chuvadas dos anos de 2015 e 2016, a água que se infiltrou na moradia dos Autores, já que a cobertura não retinha a pluviosidade, se encontra a destruir os elementos estruturais que constituem a cobertura, os acabamentos, pinturas dos tetos e pinturas das paredes interiores e todos os elementos de carpintaria existentes, designadamente portas interiores, aros e guarnições, roupeiros, forras de madeira de janelas, portas das paredes exteriores, sanefas, soalho de revestimento do pavimento e ainda as tábuas que forram os degraus das escadas interiores, e que estes elementos apresentam uma degradação tal que já não é possível a sua reparação.
E mais alegaram que se verificou a danificação da instalação elétrica, focos de iluminação, caldeira, máquina de lavar roupa, todo o mobiliário do 1º andar da habitação, assim como os respetivos cortinados e roupas de cama, e que tal situação está a afetar gravemente o interior do prédio urbano e a vida dos Autores, pois não lhes é possível habitar a sua própria casa.
2. Os réus contestaram, contradizendo, além do mais, a extensão dos danos, a necessidade da sua reparação e o custo invocado.
3. Já no decurso do presente incidente, as partes interpuseram recurso da sentença proferida nos autos principais para o Tribunal da Relação, o qual proferiu acórdão que absolveu os réus-apelantes do pedido de indemnização por danos patrimoniais, e circunscreveu à matéria factual vazada no número 36º dos factos provados a indemnização por danos não patrimoniais atribuída aos apelados, a liquidar ulteriormente.
Deste acórdão foi interposto recurso para o STJ, o qual revogou o acórdão recorrido na parte em que os réus haviam sido absolvidos do pedido de indemnização por danos patrimoniais, condenando os réus a ressarcirem os autores dos danos decorrentes do ponto 40º do elenco dos factos provados, pagando-lhes o que se vier a liquidar.
Os autores ampliaram o pedido para a quantia de €136.608,22, tendo essa ampliação sido admitida.
4. A primeira instância veio a proferir sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo o presente incidente de liquidação parcialmente procedente, por provado e, em consequência, condeno os réus/requeridos CC e DD a pagarem aos autores EE o montante global de €115.611,56 (cento e quinze mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos).»
5. Os réus interpuseram recurso de apelação, o qual obteve parcial provimento, tendo o TRG proferido acórdão no qual se decidiu:
«Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, em:
a) rejeitar a apelação quanto à impugnação da matéria de facto;
b) alterar a sentença recorrida na parte respeitante aos danos patrimoniais que se liquidam no valor global de €57.559,14 (cinquenta e sete mil quinhentos e cinquenta e nove euros e catorze cêntimos);
c) confirmar, no mais, a sentença recorrida.»
6. Contra esse acórdão foi interposto recurso de revista, tanto pelos réus-apelantes como pelos autores.
Os réus interpuseram recurso de revista, na parte em que o acórdão recorrido rejeitou a apelação quanto à impugnação da matéria de facto. Nas suas alegações formularam as seguintes conclusões:
«a) Nos termos do artigo 674°, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, o recurso de revista pode ter por fundamento a violação ou errada aplicação da lei de processo.
b) Tem sido entendimento pacífico da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, independentemente de haver convergência nas decisões de 1ª e 2ª instância, é admissível recurso de revista, nos termos gerais, do acórdão proferido pela relação em que seja apontada a existência de erro decisório relativamente à aplicação da lei processual no que se refere à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
c) Em tais casos, é admissível a revista normal, não sendo aplicável o dispositivo da dupla conforme, dado que o Supremo Tribunal de Justiça surge como tribunal de 1º grau de recurso.
d) Nas suas alegações de recurso de apelação, os Recorrentes indicaram os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados e indicaram os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida.
e) O Tribunal de 1ª instância elencou os factos provados de forma minuciosa e detalhada, individualizando cada dano em cada facto, bem como o custo de cada dano em cada facto, pelo que, embora o número de factos seja elevado, não se pode dizer que a matéria de facto seja ampla ou extensa.
f) Os Recorrentes procedem a uma divisão dos factos impugnados de forma lógica, sendo que os pontos 1 a 26 dos factos provados dizem respeito à existência dos danos patrimoniais, os pontos 27 a 101 ao quantitativo desses mesmos danos e os pontos 102 a 114 aos danos não patrimoniais.
g) Os meios de prova que sustentam a impugnação são específicos para cada bloco de factos e visam a matéria de cada um desses blocos na sua globalidade.
h) - Na parte respeitante aos pontos 1 a 26 dos factos provados, os Recorrentes pretendem demonstrar que não foi feita prova de que os danos aí elencados tenham sido provocados pela água que se infiltrou na moradia dos AA referida em 40) dos factos provados.
i) É quanto a esta questão específica, expressa no ponto 1 dos factos provados, mas abrangendo todos os pontos seguintes até ao 26, que os Recorrentes se insurgem no seu recurso.
j) O fundamento da impugnação dos pontos 1 a 26 dos factos provados é o mesmo para todos estes factos, sendo que todos os meios probatórios indicados pelos Recorrentes visam a mesma matéria.
k) A impugnação dos pontos 27 a 101 tem na sua base os mesmos fundamentos.
1) A insuficiência de prova, consubstanciada na ausência de perícia, e a análise crítica dos orçamentos, fundada nas limitações que os mesmos apresentam e na falta de corroboração da prova testemunhal, abrangem toda a factualidade dos pontos 27 a 101 dos factos provados, sendo que tal matéria, ainda que vertida em numerosos pontos de facto, cinge-se ao quantitativo dos danos.
m) As provas indicadas quanto à impugnação dos pontos 102 a 114 dos factos provados, abrangem todos os referidos pontos de facto, justificando-se uma apreciação conjunta dos mesmos.
n) Existe uma evidente conexão entre os factos que compõem cada um dos três blocos destacados no recurso de apelação.
o) As razões invocadas na impugnação da matéria de facto para a alteração da resposta dada aos factos que compõem cada um dos referidos blocos são as mesmas.
p) O alcance da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto é perfeitamente percetível.
q) Tem sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que o sentido e alcance dos requisitos formais de cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos nos artigos 640°, n°s 1 e 2 do Código de Processo Civil, devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e não de modo estritamente dogmático e inflexível.
r) Embora a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado da prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos sejam precisamente as mesmas, essa indicação dirigida, em bloco, a toda essa factualidade.
s) Necessário é que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado.
t) Relativamente aos blocos de factos indicados nas alegações, os Recorrentes apresentaram os correspondentes meios probatórios em que alicerçaram a sua posição discordante do entendimento defendido na sentença proferida em primeira instância, indicando com exatidão as passagens da gravação em que fundavam a sua alegação, e fundamentaram essa sua posição.
u) O conteúdo da impugnação revela-se perfeitamente compreensível, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.
v) Não resulta da decisão recorrida que o Tribunal a quo tenha revelado incompreensão sobre a pretensão dos Recorridos.
w) Tendo sido observado o disposto no artigo 640° do Código de Processo Civil, deveria o Tribunal a quo ter apreciado o recurso por si interposto sobre a matéria de facto.
x) Ao rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto por razões formais, quando os Recorrentes especificaram os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados e os concretos meios probatórios que, no seu entender impunham decisão diversa da recorrida, deduzindo uma impugnação perfeitamente compreensível e cuja apreciação não requeria um esforço anómalo, o Tribunal a quo fez uma interpretação inconstitucional do artigo 640°, n.° 1 do Código de Processo Civil por violação do disposto no artigo 20°, n.° 4 da Constituição da República Portuguesa, o que expressamente se invoca.
y) Deverá ser ordenada a baixa do processo ao Tribunal a quo para apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos Recorrentes.
z) A sentença proferida em primeira instância nos autos principais determinou a condenação dos RR. a “ressarcirem os AA de todos os danos que constituem a consequência adequada dos defeitos do mesmo imóvel, sejam de natureza patrimonial ou não patrimonial e assim, pagarem-lhes a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença.”
aa) No requerimento inicial, os Requerentes alegaram todos os danos que, no seu entender, foram consequência adequada dos defeitos verificados na sua moradia.
ab) Nos autos principais, os doutos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães e do Supremo Tribunal de Justiça alteraram a decisão tomada em primeira instância quanto à indemnização a liquidar em execução de sentença, sendo que a decisão definitiva e que transitou em julgado veio restringir o âmbito dos danos em relação aos quais foi reconhecido aos Requerentes o direito à indemnização.
ac) A decisão final determinou a condenação dos RR. a ressarcir os AA. dos danos patrimoniais decorrentes do ponto 40 dos factos provados e dos danos não patrimoniais circunscritos à matéria factual vazada no ponto 36 dos factos provados.
ad) O Tribunal de 1ª instância atendeu a todos os danos alegados, sem levar em conta a restrição operada pelos doutos Acórdãos dos Tribunais Superiores.
ae) Relativamente aos danos patrimoniais, só os danos decorrentes das chuvadas ocorridas em Fevereiro de 2016 são indemnizáveis.
af) Tendo em conta o alegado no requerimento inicial, tais danos circunscrevem-se ao vertido nos artigos 11° e 12°.
ag) - Relativamente aos danos e custos elencados no artigo 17° do requerimento
inicial apenas está abrangida a reparação geral da instalação eléctrica referida na
alínea i).
ah) - Quanto aos danos mencionados no artigo 28° do requerimento inicial, apenas estão abrangidos a caldeira referida no ponto F., a máquina de lavar roupa indicada no ponto CC. e o material eléctrico identificado nos pontos N., P., Q., R., S., T., AA. e BB.
ai) - Quanto aos danos não patrimoniais, a liquidação apenas se deve circunscrever aos danos referidos no ponto 36 dos factos provados da sentença proferida nos autos principais
aj) - Os únicos danos a considerar são os resultantes do facto de os Requerentes evitarem a vinda a Portugal devido à tristeza sentida por causa dos defeitos da sua casa.
ak) - Os danos alegados nos artigos 33° e seguintes do requerimento inicial não estão abrangidos pela matéria do referido ponto 36 dos factos provados.
al) - O Tribunal a quo condenou os Requeridos a ressarcir danos que não estão abrangidos pela condenação em liquidação de sentença determinada na decisão definitiva proferida nos autos principais.
am) A restrição operada nos acórdãos dos Tribunais Superiores deveria obrigatoriamente reflectir-se no presente incidente, adequando o mesmo ao definitivamente decidido nos autos principais.
an) Impõe-se assim que todos os danos não abrangidos por essa condenação não sejam considerados para efeitos do apuramento do montante indemnizatório.
ao) Quanto aos danos patrimoniais, deveriam ser excluídos da liquidação, por não caberem no seu âmbito, os valores mencionados nos pontos 27), 30), 31), 32), 33), 34) e 66) dos factos provados.
ap) - Relativamente aos danos não patrimoniais, não deve, por extravasar o âmbito da liquidação, ser considerada a factualidade constante dos pontos 102), 103), 104), 105), 106), 107), 108), 109), 110), 111), 112), 113) e 114) dos factos provados.
Nestes termos e nos demais que Vossas Excelências doutamente suprirão será feita justiça.»
7. Os autores-recorridos apresentaram contra-alegações, defendendo, em síntese, a legalidade da decisão recorrida, e sustentando que os recorrentes não deviam ter procedido a uma impugnação da matéria de facto em blocos, mas sim especificando qual a decisão que devia corresponder a cada facto dado como provado.
8. Os autores também interpuseram recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
«A. O Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que os danos elencados no ponto 40) dos factos provados são os danos sequenciais alegados no articulado superveniente apresentado pelos Autores referentes às carpintarias, que aqui trazemos à colação.
B. Os Recorrentes não concordam com o referido entendimento, porquanto os Recorrentes entendem que os danos elencados no ponto 40) dos factos provados são TODOS os danos sequenciais alegados no articulado superveniente apresentado pelos Autores, aqui Recorrentes.
C. Na petição inicial, os Autores, aqui Recorrentes, apresentaram um pedido genérico, sendo que a factualidade apurada (ponto 40º dos factos provados) permitiu considerar a verificação do dano, sendo considerado que permite a condenação do pedido, tendo sido relegado a especificação do dano para liquidação.
D. Nos autos principais, foi proferido Douto Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, em que sustenta o seguinte:
“Entendendo, em face do exposto, que o pedido indemnizatório por danos patrimoniais se refere (também) aos danos sequencialmente provocados pelos defeitos (e discriminados no articulado superveniente), concluiu-se que este não se encontra sujeito a prazos de caducidade; e que não se verifica a excepção de caducidade apontada pela Relação.
Por outro lado, tendo sido formulado pedido genérico, a falta de apuramento pelas instâncias dos danos alegados no articulado superveniente não redunda em insuficiência factual justificadora da anulação do julgamento. Com efeito, a factualidade apurada (ponto 40 dos factos provados) permite considerar verificado o dano, o que é suficiente para fundar a condenação no pedido, relegando-se especificação do dano para a liquidação”.
E. Desta forma, entendem os Recorrentes que a Douta Decisão proferida pelo Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça é que, de facto, o pedido indemnizatório por danos
patrimoniais da factualidade apurada no ponto 40 dos factos dados como provados,
correspondem a TODOS os danos discriminados no articulado superveniente.
F. Conforme é do entendimento da Douta Sentença (incidente de liquidação),
proferida pela 1ª Instância, e do Acórdão do STJ proferido nos autos principais, são
unânimes a dar como assentes que as chuvas provocaram danos nas paredes e
tetos.
G. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães apenas englobou os danos sequenciais alegados no articulado superveniente apresentado pelos Autores referentes às carpintarias.
H. Tal como sustentado pela Douta Decisão da 1ª Instância, é cristalino que: (…) “Por outro lado, no que concerne à duplicação de condenações, salienta-se que nos presentes autos foi expressamente determinado que se especificassem e liquidassem, em incidente de liquidação, os danos provenientes das chuvas de 2016”.
I. “Ora, não havendo dúvida, como não há, em face da matéria de facto provada, que a chuvas provocaram danos nas paredes e tetos, salvo o devido respeito, não se vê que haja qualquer violação do julgado”.
J. Resulta no art. 15º e 16º do articulado superveniente que:
K. “15 - De facto, é mais grave o que choveu no interior da habitação, pois a construção não deixa que a água que lá entra escorra, como acontece no exterior, retendo-a provocando danos difíceis de avaliar em todas as dimensões”
L. “16 - Consequentemente, a água que penetrou na moradia por via da pluviosidade, não retida pela cobertura, encontra-se a destruir em primeiro lugar os elementos estruturais que constituem a cobertura, os acabamentos, pinturas dos tectos e pinturas das paredes interiores e todos os elementos de carpintaria existentes, designadamente.
M. Os acabamentos, tetos e paredes deverão ser englobados no ponto 40 dos factos dados como provados, sujeito a liquidação.
N. Violou assim, o Douto Acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto nos artigos, 580º e 621º, ambos do C.P.CIVIL, quanto ao conteúdo e alcance do caso julgado material, anterior, já formado.
O. Com efeito, deverão ser considerados os danos alegados no articulado superveniente, decorrente da não retenção pela cobertura da água das chuvas em fevereiro de 2016, devem ser incluídos os factos 1º a 101º dos factos dados como provados na Douta Sentença.
P. Face ao exposto, deverá ser contabilizado os danos patrimoniais conforme foi determinado pelo Tribunal da 1ª Instância, que aqui damos por reproduzido, nomeadamente: “€ 63 937,32, a que acresce o IVA de 23%, no montante global de €78.642,90 (sendo: €4.951,32 + € 7.911,82 + € 9.850,00+ €3.250 + €2.670,00 + 4.383,50+ €3.565,00 + €15.430,00)”. “Por sua vez, para reparação dos danos na instalação elétrica, sanitários e eletrodomésticos, despenderão os autores a quantia global de €18.899,21 (com IVA),
Q. Na substituição dos móveis despenderão o montante global de €6.589,45; em roupas de cama e têxteis lar, os autores terão de despender €1.596,00 e na substituição dos cortinados referidos em 26) terão de despender o montante global de €4.884,00.
R. Contabilizado a liquidação dos danos julgados provados, contabiliza-se o valor global de €110.611,56 (cento e dez mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos) de danos patrimoniais (correspondente à soma de €78.642,90, €18.899,21, €6.589,45, €1.596,00, €4.884,00).
S. Face ao exposto, deverá ser contabilizada a liquidação dos danos julgados provados, o valor global de €110.611,56 (cento e dez mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos) de danos patrimoniais, ao invés de €57.559,14 (cinquenta e sete mil quinhentos e cinquenta e nove cêntimos e catorze cêntimos).
T. E, em consequência, deverá ser revogado o Acórdão recorrido, e ser substituído por outro que condene os Recorridos a pagar aos Recorrentes a quantia de €110.611,56 (cento e dez mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais.
Nestes termos, e pelos motivos supra alegados, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência, revogar-se o Douto Acórdão proferido nos autos, e substituí-lo por outro Acórdão, que condene os Recorridos a pagar aos Recorrentes a quantia de €110.611,56 (cento e dez mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais.»
9. Os réus-recorridos apresentaram contra-alegações, defendendo o decidido no acórdão recorrido quanto à extensão da indemnização dos danos patrimoniais, sustentando, em sintonia com esse acórdão, que não assiste aos requerentes o direito de exigirem uma indemnização pelo custo de trabalhos de reparação que, por força da decisão proferida nos autos principais, têm de ser executados pelos próprios requeridos.
Cabe apreciar.
*
II. FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objeto dos recursos
1.1. Quanto ao recurso interposto pelos réus.
Os réus interpuseram recurso de revista quanto à parte do acórdão que não conheceu da sua pretensão recursiva em verem alterado o julgamento da matéria de facto. Entendeu-se nesse aresto que os apelantes não haviam cumpridos as regras processuais para o efeito estabelecidas no artigo 640.º do CPC. Nesta matéria não existe dupla conformidade decisória que impeça a revista, pois trata-se de uma decisão específica do recurso de apelação, pelo que a revista é admissível, tendo como objeto a questão de saber se, nesse ponto, o acórdão fez errada aplicação das regras de processo.
1.2. Quanto ao recurso interposto pelos autores.
Tendo o acórdão recorrido diminuído o montante indemnizatório correspondente a danos patrimoniais, que havia sido fixado pela sentença, sendo, nessa medida, uma decisão desfavorável aos autores, o recurso por eles interposto é admissível, nos termos do artigo 671º, n.º 1 do CPC.
O objeto do recurso dos autores é o de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei ao liquidar o montante que os réus devem pagar aos autores a título de danos patrimoniais, na interpretação que fez da decisão final proferida nos autos principais sobre a delimitação dos danos indemnizáveis.
2. Factualidade provada
As instâncias deram como provada a factualidade que se descreve:
«1) A água que se infiltrou na moradia dos autores referida em 40) dos factos provados na ação principal, não retida pela cobertura, encontra-se a destruir os elementos estruturais que constituem a cobertura, …
2) … os acabamentos,
3) … pinturas dos tetos e pinturas das paredes interiores e …
4) … todos os elementos de carpintaria existentes,
5) … designadamente, portas interiores,
6) … aros e guarnições,
7) … roupeiros,
8) … forras de madeira de janelas,
9) … portas das paredes exteriores,
10) … sanefas,
11) … soalho de revestimento do pavimento …
12) … e ainda as tábuas que forram os degraus das escadas interiores da habitação dos autores.
13) Os elementos referidos em 6) a 8), 9) e 12) apresentam uma degradação tal, que já não é possível a sua reparação.
14) Em virtude da infiltração da água, proveniente das fortes chuvadas de Fevereiro de 2016, referidas em 40) dos factos provados da ação principal, verificou-se ainda a danificação da instalação elétrica, …
15) … dos focos de iluminação,
16) … candeeiros,
17) … Tomadas,
18) … Eletrodomésticos, nomeadamente da caldeira, frigorifico, videoporteiro e máquina de lavar roupa…
19) E a danificação dos sanitários, concretamente torneiras…
20) … lavatórios,
21) … sanitas
22) … Bidés,
23) E banheiras.
24) Sendo certo que desde essa data e durante um período não concretizado, não houve luz na habitação dos autores.
25) Verificou-se ainda a deterioração de todo o mobiliário do 1º andar da habitação,…
26) … assim como, os respetivos cortinados, roupas de cama e têxteis lar.
27) A reparação dos danos referidos em 1) a 12) implicará a remoção de toda a pintura deteriorada de paredes, e tectos do rés-do-chão, andar, garagem e arrumos, remoção de rebocos soltos e fissurados e todo o soalho existente, aros de portas e baguetes, incluindo transporte para vazadouro autorizado, com um custo de €4.951,32, a que acresce o IVA;
28) … A reparação de todos os rebocos de tetos e paredes, incluindo tetos em estuque tradicional, com um custo de € 7.911,82, a que acresce o IVA;
29) … Emassar todas as paredes, lixar e pintar com aplicação de uma demão de primário e três demãos de tinta para estuque em cor branca em todos os tetos com aplicação anti fungos em instalações sanitárias, lavandaria e garagem, com o custo de € 9.850,00, a que acresce o IVA;
30) … A aplicação de todos os soalhos tem o custo de €3.250,00, a que acresce o IVA;
31) … A colocação de rodapés em madeira de tola, com secção 7.5 x 1.5 cm, incluindo tratamento com verniz meio brilho, com um custo de €2.670,00, a que acresce o IVA;
32) … A colocação de aros e baguetes em madeira de tola nas portas inferiores, e lixar portas existentes e aplicar verniz meio brilho em portas aros e baguetes, com um custo de 4.383,50, a que acresce o IVA;
33) … Decapar e lixar a madeira de todos os vãos de escada interiores sem substituição de madeiras, aplicação de verniz de soalho meio brilho, com um custo de €3.565,00, a que acresce o IVA;
34) … Substituição total dos armários roupeiros tem um custo de €15.430,00, a que acresce o IVA;
35) Para reparação dos danos na instalação elétrica, sanitários e eletrodomésticos referidos em 14 a 23), despenderão os autores a quantia global de €18.899,21 (com IVA),
36) … sendo que em 2 banheiras de hidromassagens, 1,60x75 sanitania, o valor de € 2.100;
37) … 1 lavatório, starlight 1200, 1,40x60, o valor de € 953,76;
38) … 1 lavatório kaza auxiliar neiva, 100 dezeb 1,20x60, o valor de € 716,01;
39) … 1 espelho kaza, fronto iluminado, 80 x 80 cm, o valor de € 218,64;
40) … 1 espelho lavatório denia, 80x70 cm, ar.alum, o valor de € 101,22;
41) … 1 caldeira a gasóleo, báxi gavina 30 kw, o valor de € 2.064,00;
42) … 1 sanita sanindusa, o valor de € 177,06;
43) … 1 bidé sanindusa, o valor de € 153,60;
44) … 1 autoclismo sanindusa, o valor de € 136,28;
45) … 3 torneiras de esquadrias, o valor de € 39,60;
46) … 3 conjuntos de ferragens de autoclismos, sanindusa, o valor de € 79,20;
47) … 3 conjuntos de toalheiros – inox, o valor de € 224,40;
48) … 2 conjuntos de torneira roca, o valor de € 284,40;
49) … 1 quadro ited, o valor de € 450,00;
50) … 3 extratores de casa de banho, o valor de € 153,60;
51) …. 27 focos de teto de interiores, 15x15, o valor de € 486,00;
52) … 15 focos de exteriores, de 12 w, o valor de € 248,10;
53) … 7 olhos de boi – exteriores, o valor de € 296,58;
54) … 6 focos, embutidos, 18x18 – 18 w, o valor de € 118,80;
55) … 5 candeeiros de tetos de quarto, o valor de € 418,20;
56) …. 2 armaduras, casa das máquinas, garagem e quarto de arrumos, o valor de €54,00;
57) … 1 programador de rega, 4 estações honter, o valor de € 88,80;
58) … 1 vídeo porteiro duplo, golomar, o valor de € 446,40;
59) …. 3 tampas de sanitas, o valor de € 162,00;
60) … 2 radiadores toalheiros, toalheiros inox 1x20x45, o valor de € 342,00;
61) … 2 proteções em vidro, 1,20x90 para banheira, o valor de € 372,00;
62) … 32 tomadas legra, o valor de € 274,80;
63) … 12 cometedores, escada legra, o valor de € 113,76;
64) … 1 máquina de lavar roupa, marca branca, o valor de € 450,00;
65) … 1 frigorifico de marca branca, com 2 portas, o valor de € 492,00;
66) E em mão de obra, para colocação dos materiais, o valor de € 3.240,00.
67) Para substituir os móveis danificados referidos em 25), os autores têm de despender € 402,60 numa Cama “Júpiter ref. FT.W.CER.65”…
68) … € 221,80 em duas mesas cabeceira “Ref. FT.WW.CER.69”…
69) … € 228,00 num Colchão Nacional Ortopédico 150*195;
70) …€83,15 num Estrado Laminas 150*195;
71) … €240,00 num vestidor 1800 wuengue ref. FT.W.WWW.86;
72) … €402,00 numa Cama Júpiter ref. FT.W.WW.86;
73) … € 221,80 em duas Mesas cabeceira, ref. FT.WW.CER.69;
74) … € 356,40 numa cómoda, com 3 gavetas, ref. FT.C.WW.70;
75) … € 92,40 numa moldura 1010, cerejeira, ref. FT.C.CER.71;
76) … € 228,00 num colchão nacional ortopédico, 150*195;
77) … € 83,15 num estrado laminas 150*195;
78) … € 303,60 numa cabeceira Duo, 280 esquerdo, ref. 897 DI;
79) … € 463,35 numa banheira plana, 150, ref. 8891N;
80) … € 277,20 em duas mesas de cabeceira, com 2 gavetas, ref. 20362;
81) … € 231,00 num colchão nacional ortopédico 150*195;
82) … €83,15 num Estrado, Láminas 150*195;
83) … €275,90 num camiseiro, com 4 gavetas + 1 contenedor, ref. 2166ª;
84) … € 234,00 uma moldura, 90*200 forrada em napaflex 16;
85) …€ 402,60 numa cama júpitar, ref. FT.W.CER.65;
86) …€ 221,80 em duas mesas de cabeceira, ref. FT.WW.CER.69;
87) …€ 356,40 numa cómoda, 3 gavetas, ref. FT.C.WW.70;
88) …€ 92,40 numa moldura 1010, cerejeira, ref. FT.C.CER.71;
89) …€ 231,00 um colchão nacional ortopédico 150*195;
90) …€ 83,15 num estrado laminas 150*195;
91) …€ 774,00 numa consola AK 983.
92) Tudo, no montante global de €6.589,45 (seis mil quinhentos e oitenta e nove euros e quarenta e cinco cêntimos).
93) Para substituir as roupas de cama e têxteis lar referidos em 26), os autores terão de despender em quatro edredões, no valor de € 560,00;
94) … em oito jogos de lençóis, no valor de € 600,00;
95) … em quatro jogos de toalhas de banho, no valor de € 260,00;
96) … em oito almofadas, no valor de € 176,00.
97) … Tudo no montante global de € 1.596,00 (mil quinhentos e noventa e seis euros).
98) E na substituição dos cortinados referidos em 26) terão de despender o montante global de €4.884,00, sendo € 2.640,00 em 88 metros de tecido alinhado;
99) …. €1.400, 00 em 8 varões em inox completos, com 3,70 metros de largura;
100) … €44,00 em 88 fitas decorativas;
101) … E €800 com o trabalho de costura e colocação.
102) O descrito em 1) a 26) afeta gravemente a vida dos autores, já que, durante um período concretamente apurado, não foi possível habitar na casa que adquiriram.
103) Os AA. tinham planeado convidar uns amigos e familiares de França, para passar férias, na habitação em causa,
104) … porém, já não se afigura possível a estadia dos AA. na sua própria casa, assim como, a estadia dos familiares e amigos.
105) Quando os filhos dos AA. encontravam-se em gozo de férias em Portugal, os mesmos estavam privados de usufruir a casa de habitação, o que causava aos AA. bastante tristeza.
106) Os defeitos existentes na habitação potenciaram e motivaram sucessivas desavenças e discussões entre o casal, e
107) ... resultaram em stress e desgaste mental na pessoa dos AA.,
108) ... e para além disso, abalou a relação conjugal entre os mesmos, ao ponto de o marido A. e esposa A., ponderaram divorciarem-se.
109) - Toda esta situação perturbou o descanso noturno, retirando-lhes várias horas de sono.
110) Os defeitos e danos na casa de habitação resultaram vários incómodos e desconforto por habitarem na casa.
111) Quando os AA. se deslocavam para Portugal, eram obrigados a pernoitar no Hotel S... em ..., e em casa de amigos.
112) Sentem-se constrangidos e incomodados ao receber pessoas amigas e familiares na sua casa, emanando a mesma casa dos AA. um odor intenso a bolor, insuportável, que afecta as vias respiratórias de todos aqueles que lá se encontram.
113) A moradia que adquiriram em estado de novo não lhes tem proporcionado a qualidade de vida que expectaram.
114) Em consequência das patologias que enferma a casa, bem como os danos causados por essas patologias, a autora esposa obrigou-se a tomar calmantes e antidepressivos.»
*
3. O direito aplicável
3.1. Quanto ao recurso dos réus.
Os réus pretendem revista do acórdão na parte em que não conheceu da sua pretensão em verem alterado o julgamento da matéria de facto. Entendeu-se nesse aresto que os apelantes não cumpriram as regras processuais para o efeito estabelecidas no artigo 640.º do CPC.
Extratam-se do acórdão recorrido as seguintes passagens da sua fundamentação, que mais diretamente revelam a razão da rejeição da reapreciação da matéria de facto:
«De acordo com o referido artigo 640º é de exigir ao recorrente que obrigatoriamente especifique:
i. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
ii. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
iii. Quando a impugnação dos pontos da decisão da matéria de facto se baseie em provas gravadas deverá ainda indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes e proceder se o entender à transcrição dos excertos que considere oportunos;
iv. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O legislador impõe de forma expressa ao recorrente tal ónus de especificar, e o seu incumprimento implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
(…)
Temos entendido como essencial que das conclusões formuladas pelo recorrente constem os pontos da matéria de facto que impugna; é que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, que definem as questões a reapreciar pela Relação, pelo que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar (…).
Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem distinguindo, para efeitos do disposto no referido artigo 640º, a previsão constante das alíneas a), b) e c) do n.º 1 (exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir) considerando que constituem um ónus primário “na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto” (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Relatora Conselheira Rosa Tching) da exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, a que se refere a alínea a) do nº 2 e que constitui um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
(…)
Importa também ter presente o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, de 17 de outubro de 2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 14/11/2023) que uniformizou jurisprudência no sentido de que “[n]os termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa”.
No caso concreto, analisadas as alegações apresentadas pelos Recorrentes ressalta que delas constam os pontos da matéria de facto impugnados, são indicados meios de prova, com menção das passagens da gravação relativamente aos depoimentos, tendo procedido à transcrição dos mesmos e é indicado o sentido da decisão que em seu entender deve ser proferida.
Porém, e nessa parte assiste razão aos Recorridos, os Recorrentes procedem à impugnação da matéria de facto, num total de 114 pontos, em 3 blocos: dos pontos 1 a 26, 27 a 101 e 102 a 114.
Sempre entendemos que não deve determinar a imediata e liminar rejeição do recurso o facto do recorrente proceder à impugnação por “blocos de factos” quando “os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão revelando-se alguns deles incindíveis e o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/04/2023, Processo n.º 2054/21.7T8BRG.G1.S1, Relator Sousa Pinto).
E temos entendido que a Relação, chamada a reapreciar a prova, deve usar de alguma flexibilidade na interpretação da lei e atender ao princípio da proporcionalidade; como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/02/2018 (Processo n.º 440/14.1T8PRT.P1.S1, Relatora Conselheira Maria da Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt) “[d]e acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal”.
Contudo, no caso concreto, entendemos não se poder considerar cumpridos pelos Recorrentes os ónus previstos no artigo 640º do CPC atendendo não só ao número de factos que agrupam em cada bloco, mas também porque dentro de cada bloco não pode afirmar-se que os factos são incindíveis e nem apresentam entre si evidente conexão; é certo que em todos os pontos julgados provados estão em causa danos sofridos pelos Autores, patrimoniais e não patrimoniais, o que não surpreende uma vez que nos encontramos no âmbito de acidente de liquidação que tem por objetivo a quantificação desses danos. Porém, encontramos no elenco dos factos provados danos patrimoniais de diferente natureza, seja pinturas de paredes e tetos, carpintaria, instalação elétrica, eletrodomésticos, sanitários, mobiliário existente na habitação e roupas de cama, cujos meios de prova, designadamente documental, em que o tribunal a quo baseou a sua convicção são distintos.
Os Recorrentes poderiam até ter formado “blocos” reunindo os factos respeitantes a cada um dos referidos tipos, como por exemplo, todos os factos respeitantes a mobiliário, ou a carpintarias, ou às roupas de cama; no entanto, optaram por agrupar os danos não patrimoniais, e quanto aos danos patrimoniais formaram dois blocos, concentrando no primeiro 26 pontos da matéria de facto, onde são referidos todos aqueles danos, e num segundo bloco 74 pontos da matéria de facto onde se especificam e quantificam todos os danos.
Ao impugnarem a matéria de facto na sua totalidade, pois impugnam todos os factos julgados provados, e agrupando os factos dessa forma, acabam por fazer uma impugnação genérica e generalizada da mesma e, embora tenham indicado vários elementos probatórios, fizeram-no em termos de reescrutínio global da factualidade, de forma genérica para 26 e 74 pontos da matéria de facto, quanto aos danos patrimoniais e para 12 pontos da matéria de facto quanto aos danos não patrimoniais, que entendemos não cumprir a exigência legal ínsita na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 640º do CPC, que impõe uma indicação precisa dos meios de prova que segundo o recorrente determinam a alteração dos factos concretamente impugnados, pois que a lei obriga à especificação desses concretos meios probatórios em função dos pontos factuais impugnados.
(…)
Em face do exposto, e não se mostrando devidamente cumprido pelos Recorrentes o ónus de delimitação do objeto do recurso sobre a matéria de facto deve rejeitar-se nesta parte o recurso, o que ora se decide.»
Pode, desde já, afirmar-se que o acórdão recorrido não merece censura. Efetivamente, no ponto x) das conclusões da apelação, os réus indicaram os números dos factos que entendiam merecer decisão diversa (ou seja, não provados), e que vão do n.º 1 ao n.º 114. No ponto y) dessas conclusões, indicaram, em globo, os meios de prova a atender. Depois, até ao ponto cb), discorreram genericamente sobre os meios de prova, reportando-os a três grupos de factos, e concluíram, em termos globais, que praticamente tudo o que foi provado devia ser dado como não provado.
Não existe, portanto, uma concreta especificação da razão pela qual devia a primeira instância ter valorado cada um dos factos de forma diversa, face à prova que lhe corresponderia, para se concluir que um facto dado como provado devia ter sido julgado como não provado. Conclui-se, portanto, que a Relação fez correta aplicação das regras consagradas no artigo 640.º do CPC, pelo que não existe errada aplicação da lei de processo, sendo, por isso, a revista dos réus julgada improcedente.
*
3.2. Quanto ao recurso dos autores
3.2.1. Nos autos da ação principal (além do mais), com base no artigo 609.º, n.º 2 do CPC, os réus foram condenados em termos genéricos a indemnizar os autores por danos patrimoniais a determinar em liquidação de sentença, encontrando-se, assim, justificada a necessidade do presente incidente, nos termos do artigo 358.º, n.º 2 do CPC.
Pela sua própria natureza, e no tipo de hipóteses em que se incluiu o caso concreto, este incidente reconduz-se, essencialmente, ao desenvolvimento de atos destinados à quantificação de uma obrigação de indemnizar (artigo 566.º do CC), cuja existência e extensão já não podem ser postas em causa, porque previamente definidas em ação de condenação, na qual se apuraram os termos da responsabilidade civil dos réus (formando-se caso julgado).
Prevendo o artigo 360.º, n.º 3 do CPC que se sigam os termos do processo comum declarativo, aí se produzirá a prova do quantum indemnizatório, sendo a correspondente decisão suscetível de recurso, nos termos gerais, como se verifica no caso concreto.
O objeto do presente recurso respeita à quantificação dos danos patrimoniais sofridos pelos autores e que devem ser indemnizados (não sendo abrangidos os danos não patrimoniais). Entendem os autores-recorrentes que o acórdão recorrido fez errada interpretação do que havia sido decidido no processo principal ao reduzir a indemnização fixada na sentença, e que, nessa medida, violaria o caso julgado emergente da decisão proferida na ação principal, na qual os réus foram condenados.
Em breve síntese, importa ter presente que, já depois de se ter iniciado o presente incidente de liquidação, a sentença a liquidar foi alvo de recuso de apelação, tendo a Relação entendido que o direito aos danos patrimoniais se encontrava prescrito, e alvo de recurso de revista, tendo o STJ entendido que esse direito não se encontrava prescrito.
3.2.2. O acórdão recorrido procedeu à interpretação conjugada do resultado das três decisões proferidas no processo principal para concluir qual o âmbito dos danos patrimoniais que devem ser liquidados no presente incidente.
Afirma-se no acórdão recorrido o seguinte:
«Quais os danos a indemnizar, conjugando o âmbito das três decisões proferidas na ação de condenação, que o presente incidente visa liquidar?
(…)
Vejamos.
Na sentença proferida em 1ª instância foi decidido:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pela procedência da ação, decido:
a) Condenar os RR a repararem e eliminarem todos os defeitos de construção de que enferma o imóvel identificado na PI e que resultaram provados e bem assim a nele efetuarem todas as obras necessárias à sua total irradicação ou supressão.
b) Mais se condenam os RR a ressarcirem os AA de todos os danos que constituem a consequência adequada da existência dos defeitos no mesmo imóvel, sejam de natureza patrimonial ou não patrimonial e assim, pagarem-lhe a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença.
c) Mais se julga improcedente a exceção de caducidade invocada pelos RR.
d) Condeno ainda os RR nas custas do processo (527º CPC)”.
O acórdão proferido por este tribunal da Relação de Guimarães foi decidido julgar parcialmente procedente a apelação e:
“- absolver os réus apelantes do pedido de indemnização por danos patrimoniais,
- circunscrever à matéria factual vazada no número 36º dos factos provados a indemnização por danos não patrimoniais atribuída aos apelados, a liquidar ulteriormente,
- manter, no mais, a decisão recorrida”.
No acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça foi decidido não padecer o acórdão recorrido das invocadas nulidades e, “- concedendo a revista, revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu os Réus do pedido de indemnização por danos patrimoniais, condenando os mesmos Réus a ressarcirem os Autores dos danos decorrentes do ponto 40º do elenco dos factos provados; - manter, no mais, o acórdão recorrido.”
Do exposto decorre que os Réus foram condenados, por decisão transitada em julgado na ação de que este incidente é dependência, a:
1) repararem e eliminarem todos os defeitos de construção de que enferma o imóvel identificado na PI e que resultaram provados, e bem assim a nele efetuarem todas as obras necessárias à sua total irradicação ou supressão;
2) ressarcirem os Autores dos danos decorrentes do ponto 40º do elenco dos factos provados;
3) a indemnizarem os Autores por danos não patrimoniais, a liquidar ulteriormente, relativamente à matéria vazada no número 36º dos factos provados.»
3.2.3. Os autores não impugnam, no essencial, a quantificação que o acórdão recorrido fez daquilo que entendeu serem os danos a liquidar, de acordo com a interpretação que fez da decisão proferida na ação principal. O que os autores-recorrentes impugnam é a decisão de terem sido contabilizados apenas esses danos, por entenderem que o acórdão recorrido fez errada interpretação do alcance do decidido na ação principal.
Afirma-se no acórdão recorrido que:
«(…) os danos alegados no articulado superveniente, decorrentes da não retenção pela cobertura da água das chuvas em fevereiro de 2016, cuja especificação foi relegada para liquidação e que estão abrangidos no presente incidente de liquidação são os seguintes:
A) Carpintarias (designadamente portas interiores, aros e guarnições, roupeiros, forras de madeira de janelas, portas das paredes exteriores, sanefas, soalho de revestimento do pavimento e ainda as tábuas que forram os degraus das escadas interiores);
B) Mobiliário;
C) Cortinados e roupa de cama;
D) Instalação elétrica, focos de iluminação, caldeira e máquina de lavar roupa.»
E, depois de quantificar cada uma dessas parcelas, o acórdão recorrido concluiu: «Do exposto decorre dever ser liquidado em €57.559,14 o valor global dos danos patrimoniais (…)»
No entendimento dos réus-recorrentes deviam ter sido liquidados também os danos que as chuvas de fevereiro de 2016 causaram no próprio imóvel, nomeadamente, nas suas paredes e tetos.
Sustentam os autores nas conclusões da revista que:
«M. Os acabamentos, tetos e paredes deverão ser englobados no ponto 40 dos factos dados como provados, sujeito a liquidação.
N. Violou assim, o Douto Acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto nos artigos, 580º e 621º, ambos do C.P.CIVIL, quanto ao conteúdo e alcance do caso julgado material, anterior, já formado.»
3.2.4. Como consta da factualidade provada, a água que se infiltrou no imóvel, em consequência das chuvas de 2016, não danificou apenas os equipamentos e os bens móveis que foram contabilizados no acórdão recorrido; danificou também paredes, tetos e acabamentos.
Todavia, o acórdão recorrido tomou em conta o facto de os réus terem sido condenados (na ação principal) a repararem e eliminarem todos os defeitos do imóvel que haviam vendido aos autores, pelo que aqueles danos sempre estariam compreendidos nessa obrigação de reparação. De contrário não se compreenderia que os réus estivessem obrigados a reparar e a indemnizar o custo dos mesmos danos. Deste modo, o acórdão recorrido entendeu que estes danos não deviam ser objeto de liquidação, porque tal não decorria do decidido na ação principal.
Os recorrentes entendem que o acórdão recorrido não respeitou o âmbito decisório do acórdão do STJ de 15.09.2022, do qual decorreria a obrigação de indemnizar todos os danos patrimoniais causados na moradia pelas chuvas de fevereiro de 2016.
3.2.6. O acórdão do STJ, de 15.09.2022, proferido nos autos principais decidiu:
«(…) concedendo a revista, revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu os Réus do pedido de indemnização por danos patrimoniais, condenando os mesmos Réus a ressarcirem os Autores dos danos decorrentes do ponto 40º do elenco dos factos provados, pagando-lhes o que se vier a liquidar;
- manter, no mais, o acórdão recorrido.»
O ponto 40 dos factos provados na ação principal tinha o seguinte teor:
«Em Fevereiro de 2016 a não retenção pela cobertura da água das chuvas penetrou na moradia dos autores.»
Colhe-se no referido acórdão do STJ, de 15.09.2022, a seguinte fundamentação:
«No referido articulado superveniente os Recorrentes, ao quantificarem o dano patrimonial, consideram quer os custos de reparação dos danos invocados no articulado superveniente quer os custos da reparação dos defeitos. Estes últimos não são consideráveis uma vez que está pedida (e já decretada porquanto nessa parte não impugnada) a obrigação de reparação dos defeitos. Mas essa circunstância apenas determina a necessidade de se circunscrever o âmbito dos danos a que se refere o pedido indemnizatório.
Entendendo, em face do exposto, que o pedido indemnizatório por danos patrimoniais se refere (também) aos danos sequencialmente provocados pelos defeitos (e discriminados no articulado superveniente), concluiu-se que este não se encontra sujeito a prazos de caducidade; e que não se verifica a excepção de caducidade apontada pela Relação.
Por outro lado, tendo sido formulado pedido genérico, a falta de apuramento pelas instâncias dos danos alegados no articulado superveniente não redunda em insuficiência factual justificadora da anulação do julgamento. Com efeito, a factualidade apurada (ponto 40 dos factos provados) permite considerar verificado o dano, o que é suficiente para fundar a condenação no pedido, relegando-se especificação do dano para a liquidação.»
O referido acórdão do STJ teve como objeto central a questão de saber se o direito ao ressarcimento dos danos patrimoniais invocados pelos autores se encontrava, ou não, prescrito. E o que resultou desse aresto foi que o direito ao ressarcimento dos danos patrimoniais compreendidos no ponto 40) dos factos provados não se encontrava prescrito.
Tal acórdão (ao revogar parcialmente a decisão da segunda instância) não procedeu, assim, a qualquer modificação respeitante à forma como as instâncias haviam definido o modo de ressarcimento dos danos patrimoniais que os autores haviam sofrido, havendo, portanto, danos que os réus deviam reparar (reparação natural) e danos que deviam ser indemnizados, sendo estes últimos, obviamente, os únicos carecidos de liquidação.
O acórdão agora recorrido veio a interpretar o alcance dessa última decisão nos seguintes termos:
«(…) considerando o texto decisório do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça ao condenar os Réus a ressarcirem os Autores dos danos decorrentes do ponto 40º do elenco dos factos provados, com a fundamentação constante do mesmo e todos os antecedentes lógicos, designadamente a própria sentença objeto de recurso e o acórdão proferido pela Relação, concluímos que a única interpretação possível do ponto de vista de um declaratário normal, desde logo colocado na situação dos Autores e dos Réus, é a supra referida de que os danos que estão em causa, decorrentes do ponto 40) dos factos provados, são os danos sequenciais alegados no articulado superveniente apresentado pelos Autores referentes às carpintarias (designadamente portas interiores, aros e guarnições, roupeiros, forras de madeira de janelas, portas das paredes exteriores, sanefas, soalho de revestimento do pavimento e ainda as tábuas que forram os degraus das escadas interiores), ao mobiliário, cortinados e roupa de cama, e à instalação elétrica, focos de iluminação, caldeira, e máquina de lavar roupa, sendo a especificação destes danos que foi relegada para liquidação e está em causa no presente incidente de liquidação.»
3.2.7. Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido, ao considerar em conjunto o âmbito das decisões proferidas nos autos do processo principal, não fez errada aplicação das normas que disciplinam a interpretação dos atos jurídicos.
Efetivamente, como decorre do disposto no artigo 295.º do CC, à interpretação dos atos jurídicos, como são as decisões judiciais, também se aplicam, com as devidas adaptações, as normas que regem a interpretação dos negócios jurídicos, relevando no caso concreto, particularmente, as regras emergentes do artigo 236.º do CC que habilitam o intérprete a extrair das decisões o seu sentido mais razoável e coerente atendendo ao contexto decisório.
Conclui-se, em suma, que o acórdão recorrido não merece censura.
*
DECISÃO: Pelo exposto decide-se:
- Julgar improcedente a revista dos réus;
- Julgar improcedente a revista dos autores.
Custas: a pagar por ambos os recorrentes-recorridos, em partes iguais.
Lisboa, 01.07.2024
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Anabela Luna de Carvalho
Luís Correia de Mendonça