I. Em casos, seguramente, excepcionais, em que possam estar em causa situações de limitação ao direito à liberdade que justifiquem a garantia de habeas corpus no âmbito da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, não será de rejeitar, de princípio, a admissibilidade da sua aplicação.
II. A dificuldade de ordem prática reside no facto de que qualquer das medidas enunciadas nas várias alíneas do n.º 1, do artigo 35.º da LPCJP, visa, em satisfação do superior interesse da criança e do jovem, designadamente, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral.
III. A medida de promoção e proteção visa, por definição, proteger a criança ou o jovem e afastar uma situação de perigo, finalidade que, à primeira vista, parecerá pouco compatível com a ideia de “libertar” a criança/jovem quando e enquanto esse perigo se mantém.
IV. Assim, situações haverá em que, na prática se não possa determinar a “libertação” da criança ou jovem, porque tal significaria, no caso, a sua entrega ao pai, sobre quem recai a suspeita da prática do crime de violência doméstica sobre o filho.
V. Teria que ser noutra sede, vg. no processo de promoção, no processo crime, que a questão prática terá que ser resolvida e, não em sede de apreciação da providência de habeas corpus, conduzindo a situações atípicas de verificação do pressupostos para o decretamento de habeas corpus, mas inconsequente, no imediato, por razões de proteção da criança/jovem em causa.
VI. Não compete ao STJ, em sede de providência de habeas corpus, sindicar, como se de uma revista se tratasse, o acerto da fundamentação do juízo de aplicação das ditas medidas de acolhimento residencial, primeiro e, da actual, de apoio junto da mãe depois, não sendo possível afirmar a existência de qualquer situação de ilegalidade evidente, ostensiva, indiscutível e diretamente verificável.
VII. Será no âmbito da jurisdição civil que o pai da criança poderá questionar as aludidas decisões.
VIII. Por seu lado, em relação ao cônjuge do peticionante, que saiu da casa de morada de família e foi acolhida numa casa de abrigo, na sequência da queixa que apresentou, contra aquele, pelo crime de violência doméstica, seguramente que não está privada da liberdade, ou internada sem consentimento.
I. Relatório
Em requerimento, epigrafado de urgente, que deu entrada em Juízo a 27.6.2025, dirigido ao Juiz de Direito do Tribunal de Família e Menores de ..., J..., subscrito por advogado, com pedido de remessa ao Supremo Tribunal de Justiça, apresentou, AA, indiano, da região do Punjab, casado com a destinatária do pedido, BB, indiana e pai do infante menor de idade destinatário, CC, indiano, residente com o casal, seus pais legais, ao abrigo do artigo “222.º/2 alínea d)” CPPenal – “detenção motivada por facto pelo qual a lei não a permite, qual seja, internamento não consentido” - petição de Habeas Corpus, por retirada de eficácia do internamento involuntário, compulsório, não consentido, conduzidos por Órgão de Polícia Criminal Comandante do Posto da GNR, Comando Territorial de ..., Destacamento Territorial de ..., Posto Territorial de ..., por promoção à proteção destinada ao abrigo ... Comissão de Proteção de Crianças e Jovens,com os pacientes destinatários já privados da mais ampla e plena liberdade de ir e vir, em busca da sua libertação da custódia de uma casa de abrigo à vítima e da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, alegando, em resumo, o seguinte:
- notas introdutórias:
- os envolvidos são pessoas muito simples a pouco tempo residentes em Portugal, ele trabalhador rural e ela doméstica do lar com um filho infante menor impúbere que pelas circunstâncias principais e secundárias não falam, nem leem, tampouco escrevem o idioma português;
- ambos os cônjuges são de etnia indiana, não dominam minimamente a língua portuguesa e têm hábitos e costumes muito diferentes nos nacionais;
- os factos são singelos e oferecem bastante simplicidade e entendimento, tendo sido obtidos por tradutor e são em tudo coincidentes:
- a mãe BB teve uma discussão com o seu marido ora requerente sobre o facto da casa não estar devidamente arrumada e higienizada, acusação que a cônjuge repudiou, nada mais se tendo passado do que isso;
- tal como a própria fez questão de declarar livremente na Secção do DIAP de ..., com a assistência de tradutor nomeado por aqueles serviços do Ministério Público;
- como estava bastante constipada, tal como o seu filho menor, solicitou pelos meios possíveis à sua vizinha que a ajudasse a ir ao posto médico da localidade;
- a vizinha entendeu que se poderia tratar de uma situação de violência doméstica e chamou a PSP;
- a polícia só apareceu em casa dos requerentes cerca de dois dias depois já os ânimos entre o casal estavam perfeitamente serenados, face ao pequeno desaguisado que haviam tido;
- não obstante a PSP deu nota de que tinha sido chamada ao local e que lá habitava um menino de quarto anos e meio de idade;
- de imediato, por suspeitar que poderia a chamada configurar uma situação de violência doméstica alertou os serviços de ... da CPCJ de ...
- sem que houvesse algum indício da prática daquele crime a CPCJ retirou contra sua vontade a mãe e colocou-a num Centro de Apoio a Vítima, dando-lhe nota de que se não aceitasse a medida de acolhimento e desse o seu consentimento, a criança seria retirada dela e entregue a uma instituição;
- não teve outra hipótese para poder manter a criança com ela senão deixar-se estar à guarda da APAV, entidade que a acolheu e que indubitavelmente presta à sociedade civil e às vitimas um apoio inestimável;
- foi aliás, por disponibilidade da APAV que os mandatários a pedido do progenitor conseguiram visitar a mãe e perceber minimamente o que se passava;
- as técnicas da APAV informaram que a CPCJ promoveu junto do Ministério Público e do Tribunal de Família e de Menores o processo supra identificado, onde, numa primeira análise e sem ouvir sequer os progenitores ou lhes dar hipótese de se fazerem representar por advogado determinou a retirada do menor à mãe e a entrega a uma instituição de acolhimento;
- vindo, no entanto e uma vez mais sem que os pais sequer percebessem o que estava a passar-se resolver permitir que o menor ficasse junto à mãe, enquanto esta aceitasse estar aos cuidados da APAV e que apenas lhe permitisse ficar com a tutela do menor caso se dispusesse a retornar à India - solução que face ao contexto a destinatária da medida estaria disponível a acatar como mal menor;
- a mãe nem sequer pode ter o seu telemóvel, para reunir com os advogados tem de informar com antecedência bastante e caso prescinda do acolhimento “voluntário” fica privada de ter o filho sob sua tutela, o qual segundo dizem, será de imediato entregue aos cuidados de uma instituição de acolhimento de menores;
- a situação é de tal forma condicionante e agressiva para a mãe que esta só chora e pede para ir para a India com o seu filho, sendo certo ao que tudo indica a sua real vontade é ficar em Portugal na companhia do seu esposo;
- o que se requer é a remoção das condicionantes que obrigam a mãe a ter de estar privada da sua liberdade, da sua própria alimentação pois não consegue habituar-se à comida que lhe é disponibilizar e tendo inclusive que pedir à família que lhe enviasse dinheiro para se poder alimentar por receio de perder o seu filho, receio este que é sério (por ter sido ao que tudo indica determinado por uma autoridade judicial) imediato, pois a ameaça de retirada da tutela do menor implica que se a mãe decidir deixar o centro de acolhimento de menores não poderá levar consigo o seu filho menor;
- é também muito grave face à dependência física e emocional da mãe, que se denota quando se afasta por minutos da progenitora o menino fica a chorar e a gritar pela mãe, sendo esta que o trata e alimenta desde que nasceu com grande cuidado e carinho;
- as medidas impostas são restritivas das liberdades da mãe e destinatária da medida solicitada, como também o são da criança, motivo pelo qual se vem solicitar a concessão de habeas corpus em favor de BB, que atualmente se encontra retida no Centro de Apoio à Vítima, da APAV sob alegação de denúncia de violência doméstica perpetrada pelo seu marido;
- a situação que toda esta família é complexa e merece uma análise cuidadosa, sem que implique a privação prévia da sua liberdade;
- a senhora BB, mãe de o menor de idade, sempre buscou exercer sua maternidade com dedicação e responsabilidade, não podendo apenas por causa de há poucos dias, ter sido vítima de uma denúncia, supostamente anónima alegando suposta violência doméstica, a qual para além do mais não terá tanto quanto se saiba sido acompanhada de provas concretas ou de uma investigação aprofundada;
- após a denúncia, as autoridades agiram de forma precipitada e desproporcionada, levando BB ao Centro de Apoio à Vítima, onde ela permanece com restrição de liberdade, sob a alegação de proteção ao menor;
- não há qualquer evidência que comprove a prática de violência por parte dela - factos e acusações que esta nega veementemente;
- a própria denúncia anónima não fornece detalhes específicos ou provas, por meramente indiciárias que sejam que sustentem a acusação, o que demonstra a fragilidade das alegações e pretensa fundamentação para a aplicação destes institutos jurídicos;
- durante o período de retenção, BB tem demonstrado total cooperação com as autoridades e busca acima de tudo garantir o bem-estar de seu filho, pois ela sempre esteve presente na vida do menor, que atualmente está sob os seus cuidados sob a vigilância da instituição de acolhimento, enquanto a situação é apurada;
- há uma ameaça de que BB seja enviada de volta ao seu país de origem, India/Punjab, o que representaria uma grave violação de seus direitos fundamentais e do direito do menor de manter contato com sua mãe;
- tal medida, além de desarrazoada sem uma investigação justa, poderia causar danos irreparáveis ao bem-estar emocional do menor, que necessita do convívio com sua mãe para seu desenvolvimento saudável;
- é uma família que está em risco de se desfazer aos desmandos de decisões incompreensíveis e aparentemente injustas e desproporcionadas;
- para estes cidadãos indianos a manutenção dos seus vistos ou autorizações de trabalho são de tal forma importantes que significam não só a sua subsistência condigna mas também a libertação de um passado no seu país de origem de uma pobreza extrema que se pretende evitar, sendo certo que o regresso ao Punjab implica a quase impossibilidade de poderem voltar a ter uma hipótese de desenvolver a sua vida na Europa e neste caso concreto em Portugal;
- os factos:
- os requerentes, em nome dos internados involuntariamente, apresentam notícia de que foram internados involuntariamente no passado dia 27 de maio de 2025, às 15.00 horas, pelas autoridades responsáveis, Polícia de Segurança Pública de ... por promoção da CPCJ da mesma localidade e a entrega à mãe ao abrigo da APAV, sob a alegação e motivos ainda desconhecidos na sua plenitude;
- o internamento involuntário persiste até a presente data no local abrigo ... Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, instituição oficial não judiciária, em condições desconhecidas, que não se pode obter informações por falta de respostas aos e-mails do escritório dos mandatários da beneficiária da medida e do seu cônjuge, demora injustificada com pouca ou nenhuma importância por parte do abrigo referenciado;
- a materialidade indiciária é insuficiente, sem a mínima formalidade legal de consentimento pela falta de tradução do motivo legítimo que a justifique, a consubstanciar abuso de poder conferido, seja do poder público (administrativo), como também do poder familiar ou por intervenção da vizinhança;
- o estado da mais ampla e plena liberdade, que se entende o direito de ir e vir, o direito de locomoção, é defendido e assegurado pelo instituto jurídico de consagração constitucional e mesmo supra constitucional habeas corpus como quer referir-se a CRP;
- em sentido especial, atentado à liberdade indica todo ato de coação ou não, apoiado em lei, que se dirija contra o direito de locomoção da pessoa, ou seja, a liberdade de ir e vir;
- mesmo no desempenho de suas atribuições se praticou o ato e executaram diligência, com excesso de poder por falta do essencial consentimento, ou seja, abusivamente, empenhados num abuso contra a liberdade de ir e vir dos destinatários, com constrangimento exercido pelas autoridades sobre as pessoas, em virtude de sua situação de hiperinsuficiência ou hipossuficiência, seja decorrente da nacionalidade de origem, das limitações com o idioma português, da posição social, da dependência em que se encontram as pessoas constrangidas, mediante excesso de limites nas funções cujas atribuições são definidas e determinadas em lei;
- resumindo e concluindo, a paciente mãe do paciente infante menor impúbere não entende nem fala, tampouco escreve o idioma português;
- a paciente mãe devido ao pouco em que se encontra em Portugal, ainda não domina absolutamente nada do idioma português;
- é uma aparente situação de violência doméstica sem justa causa ao abrigo de falsas premissas;
- nada se diz em relação ao Pai e aos esforços destes em visitar a família na instituição ou junto das autoridades para que estejam de novo reunidos.
E, assim, conclui:
- a aparência de internamento consentido é ilegal, na medida em que a internação compulsória ordenada pela entidade sem tradução das razões aos destinatários da medida, que são mãe e filho estrangeiros com residência em Portugal mas que sequer falam, ou ao menos leiam ou tampouco escrevem português;
- o internamento compulsório não consentido dos destinatários é manifestamente arbitrário e ilegal, na medida em que as autoridades que efetuaram o recolhimento ao abrigo não traduziram absolutamente nada para ordenar a privação da mais ampla e plena liberdade de ir e vir;
- o prazo de 48 horas para apresentação perante um juiz de direito competente foi ultrapassado, violando o artigo 28.º/1 da Constituição.
Pelo caráter de urgência do peticionamento requer que medidas urgentes sejam liminarmente decididas, pedindo,
- a) a admissão imediata da presente providência de retirada de eficácia com habeas corpus, mediante remessa urgente ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 31.º/3 da Constituição e artigo 222.º CPPenal;
b) a notificação das autoridades responsáveis pela detenção e internamento involuntário não consentido da mãe BB retirada da convivência com o filho menor impúbere CC, para apresentar os destinatários em audiência contraditória, no prazo de até 8 dias, conforme artigo 31.º/3 da Constituição;
c) a análise da legalidade tanto da detenção quanto do internamento involuntário, ordenados e levados a efeito, com ordem judicial liminar de imediata liberação dos pacientes destinatários, por se verificar indevida privação de liberdade;
d) a libertação dos cidadãos retidos contra a sua vontade.
e) A junção de documentos.
E culminando com a apresentação dos meios de prova, para comprovar os factos alegados:
- audição das autoridades e responsáveis pelo internamento involuntário;
- juntada de documentos que se dão por integralmente reproduzidos nesta petição;
- testemunhas a notificar:
DD, interprete e empresário, a notificar no escritório dos mandatários;
- AA, progenitor e marido dos detendos, também a notificar no escritório dos mandatários
- BB, a notificar na CASA DE ABRIGO À Vítima da APAV de ...
2. A 30.6.2025 foi prestada a seguinte informação:
“Pelos motivos e fundamentos vertidos nos despachos que aplicaram, primeiramente, a medida cautelar de acolhimento residencial (ref.ª .......70, de 05/06/2025), entretanto alterada para a medida de apoio junto da mãe, a executar em Instituição Centro de Apoio à Vida – CAV a indicar pelo ISS e, por ora, na Casa Abrigo onde está integrada com a mãe (ref.ª .......94, de 13/06/2025), que aqui dou inteiramente por reproduzidos e cujas cópias se juntam, e nos termos do n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Penal, aplicado analogicamente aos presentes autos, informo que esta última medida se mantém, por legal, em virtude de não ter ultrapassado o prazo máximo previsto no art.º 37.º, n.º 3 da LPCJP.
Mais informo que o início de execução da medida de apoio junto da mãe ocorreu em 13 de Junho de 2025, data em que a mesma foi aplicada, por a criança se encontrar já na Casa Abrigo, com a respetiva mãe, desde 28 de Maio de 2025, em virtude de aí ter ingressado voluntariamente, como resulta da informação social junta pela CPCJ de ... e anexa à petição inicial”.
3. Da certidão junta consta,
1- a petição inicial apresentada pelo Magistrado do MP que deu origem ao processo de promoção e protecção urgente com aplicação de medida cautelar a favor do menor CC, do seguinte teor:
“Exm.ª Srª
Juiz de Direito do Juízo de Família e
Menores de ...
O Ministério Público junto deste tribunal vem, nos termos do disposto nos artigos 3º, nºs 1 e 2, al. a), f), 11º, n.º 1, al. c), 35º, nº 1, al. f), 37.º, 72º, 100º, 101º, nº 1 e 105º, nº 1, todos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei nº 147/99, de 01.09), e artº 1918º do Código Civil, propor o presente PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO URGENTE COM APLICAÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR a favor do menor CC, residente na rua do ..., nos termos e com os seguintes fundamentos:
1º CC nasceu a ........2020, é natural da India e filho de AA e de BB. Reside na rua do ...
2.º O agregado familiar é constituído pelos pais e a criança.
3.º Os progenitores vivem em Portugal há dois anos.
4.º Viveram, cerca de quatro meses, em Lisboa e, depois, foram a viver na ....
5.º O menino está integrado no Jardim de Infância da ... há dois anos.
6º A família esteve na índia, de fevereiro de 2024 até final do ano letivo passado.
7.º A criança não fala português, mas está integrada no grupo de pares e percebe todas as indicações dadas.
8.º Os progenitores não falam português. Falam e entendem inglês.
9.º O pai trabalha em jardinagem, na zona de ... e arredores.
10.º A mãe está desempregada, e apenas sai de casa para ir buscar e levar o filho à escola.
11.º A educadora da criança viu a progenitora do CC com marcas no rosto e a coxear, tendo-lhe perguntado o que aconteceu, ao que a mãe respondeu que tinha caído.
12.º O menino foi sinalizado na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ... a 27 de maio de 2025.
13.º A 28 de maio de 2025, a mãe disse às Srãs. Comissárias que a violência física era recorrente, por parte do progenitor, quer a ela, quer, por vezes, à criança.
O progenitor grita muito, diariamente, insultando e humilhando a progenitora, proferindo frases como "estás maluca, não sabes fazer nada...".
A mãe tem frequentes dores de cabeça, tomando um medicamento indiano.
A mãe relatou que, na índia, o marido a tentou envenenar por duas vezes.
Já na índia a progenitora era vítima de violência doméstica, tendo sido apresentada queixa às autoridades policiais, contudo "a família paterna subornou a polícia", pagando-lhe e o processo terá sido arquivado.
14.º A progenitora, alegadamente, pediu ajuda à senhoria, através de mensagem escrita e foi a senhoria que se dirigiu à GNR para apresentar queixa.
15.º A progenitora deu consentimento para a intervenção e aceitou ser acolhida em casa abrigo.
16.º Nesse mesmo dia, a progenitora e a criança foram acolhidos em Casa Abrigo.
17.º O progenitor foi informado que o filho e a progenitora não estavam em casa, e tinham sido acolhidos, devido a sinalização de violência doméstica.
18.º O progenitor não confirmou as agressões. Disse que não batia.
19.º Foi realizada visita domiciliária. Havia vestígios de comida no chão e os quartos estavam um pouco desarrumados.
20.º No dia 2 de junho, o Centro de Acolhimento de Emergência, comunicou à comissão que a mãe manifestou intenção de regresso à sua habitação.
21.º No dia 03 de junho, reuniu a comissão restrita, tendo sido deliberada, por maioria, a aplicação ao menino da medida de promoção e proteção de Acolhimento Familiar ou Residencial, face à possibilidade de fuga da família.
22.º Entretanto, a mãe decidiu continuar no CAE e a APAV garantiu que durante dois dias não haveria possibilidade de fuga.
23.º A mãe não concordou com a medida proposta, tendo retirado o consentimento para a intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. E, na sequência, foi o Processo de Promoção e Proteção remetido ao Ministério Público (art.º 11.º, n.º 1, al. c), d Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo).
24.º A situação vivenciada pelo menino é grave, e carece de aplicação imediata de medida de promoção e proteção, de modo a salvaguardar o bom, equilibrado e saudável desenvolvimento da criança. A progenitora pretende regressar à casa de morada de família. Não consegue opor-se às agressões perpetuadas pelo progenitor e não tem como se autonomizar.
Afigura-se-nos que a evolução da situação do CC exige que seja aplicada, como medida cautelar a medida de promoção e proteção de acolhimento familiar ou residencial, (cfr. art.ºs 35.º, n.º 1 al. f), 37.º,49.º, todos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo).
25.º Deste modo, verifica-se que a formação e o desenvolvimento de CC se encontram em perigo, motivo pelo qual urge intervir para promover os seus direitos e a sua proteçao (Cfr. Artº 3º, nºs 1 e 2, al. g), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo - Lei nº 147/99, de 01.09).
26.º Urge preservar o bem-estar, a segurança, alimentação, habitação, estabilidade emocional do CC, através do imediato acolhimento residencial.
27.º Corre termos o processo de inquérito 160/25.8..., no MINISTÉRIO PÚBLICO - Procuradoria da República da Comarca de Santarém, Departamento de Investigação e Ação Penal - ...Secção de ....
28º O título de residência da progenitora e do menor encontram-se caducados, pelo que se encontram em situação irregular em território nacional.
Nesta conformidade, sendo inequívoco que CC vivência GRAVE PERIGO para a sua saúde, segurança e normal desenvolvimento, requer-se a V. Exª que:
- Observado o disposto no artº 102º, nº 2, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei 147/99, de 01.09), R. e A. a presente petição, seja declarada aberta a instrução, nos termos dos artigos 106º, nº 2 e 107º, do mesmo diploma legal,
- Se aplique, desde já, a favor de CC a medida de promoção e proteção de Acolhimento Familiar ou Residencial a título cautelar, pelo período de seis meses - artºs 34º, 37º, nº 1, 35º, nº 1, alínea f), 49º, 91.º e 92.º, todos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, medida que se revela adequada a garantir, no imediato, o apoio necessário à sua saúde, segurança e bem-estar; seguindo-se os ulteriores trâmites legais até final, sugerindo-se desde já as seguintes diligências em sede de instrução:
- Se designe a ATT, em parceria com a Equipa Técnica da Instituição, como entidade encarregue do acompanhamento da execução da medida.
- Se solicite a realização de relatório à ATT;
- Se designe data para a tomada de declarações aos progenitores, e a Técnica da Segurança Social, tendo em vista a eventual celebração de acordo.
Valor: € 30.000,01.
Junta:
Informação da Comissão de Proteçao de Crianças e Jovens de...
Protesta Juntar:
Processo de Promoção e Proteçao remetido pela Comissão de Proteçao de Crianças e Jovens”;
2- acompanhada de relatório da CPCJ de..., do seguinte teor:
“Relatório Identificação das Crianças
Nome: CC
Data de Nascimento: .../.../2020
Filiação
Identidade dos progenitores: AA e BB
Contacto telefónico do pai/mãe: .......56 / ...........36 Morada: Rua do ...
Fontes de Informação
- Sinalização
- Contactos Telefónicos/Mensagens (pais, APAV, Jardim de Infância, Procuradora)
- Entrevistas
- Visita Domiciliária
Breve História Sociofamiliar
O agregado familiar é constituído pelos pais e a criança.
Pais vivem em Portugal há dois anos. Quando chegaram a Portugal, viveram, cerca de quatro meses, em Lisboa e, entretanto, passaram a viver na ....
A criança está integrada no Jardim de Infância da ... (educadora EE), há dois anos. Segundo informação da educadora, a família esteve na índia, de fevereiro até final do ano letivo passado.
A criança não fala português, mas está integrada no grupo de pares e percebe todas as indicações dadas. O casal também não fala português. Falam e entendem inglês.
A criança só falta por doença, duas a três vezes por mês, sendo a mãe superprotetora.
O pai trabalha em jardinagem, na zona de ... e arredores.
A mãe está desempregada, saindo apenas para ir buscar e levar o filho à escola.
O processo na CPCJ
A 27 de maio de 2025, recebeu-se expediente da GNR, com sinalização tipificada com indicador 75 (Violência Doméstica).
A 28 de maio de 2025, em entrevista com a mãe, esta relatou que a violência física era recorrente, por parte do marido à própria e, por vezes, a criança. O pai grita muito, diariamente, insultando-a e humilhando-a, proferindo frases como "estás maluca, não sabes fazer nada.
A mãe tem frequentes dores de cabeça, tomando um medicamento indiano.
A mãe relatou que, na índia, o marido a tentou envenenar por duas vezes. Neste país já era vítima de violência doméstica, tendo sido apresentada queixa às autoridades policiais, contudo "a família paterna subornou a polícia", pagando-lhe e o processo terá sido arquivado.
A mãe explicou que pediu ajuda à senhoria, através de mensagem escrita e foi esta que se dirigiu à GNR para apresentar queixa.
Após explicação dos procedimentos e formas de intervenção da comissão, a progenitora deu o consentimento para a intervenção e aceitou ser acolhida em casa abrigo.
De referir que a educadora da criança verbalizou que, há algum tempo, viu a mãe do CC com marcas no rosto e a coxear, tendo-lhe perguntado o que aconteceu, a mãe respondeu que tinha caído.
No mesmo dia, contactou-se a APAV, no sentido de poderem integrar a progenitora e a criança em Casa Abrigo, tendo os dois sido acolhidos, no final da tarde.
Realizou-se ainda entrevista com o pai. Apesar das limitações de comunicação, foi informado que o filho e a progenitora não estavam em casa, tinham sido acolhidos, porque se havia recebido sinalização de violência doméstica. O pai não confirmou as agressões. Disse que não batia. Foi explicado que não pode bater, nem ser agressivo, quer fisicamente, quer verbalmente. Deu-se indicação para que se mantivesse calmo e aguardasse contactos.
Fez-se ainda visita domiciliária.
No dia 2 de junho, a Dra. FF, do Centro de Acolhimento de Emergência, comunicou à comissão que a mãe manifestou intenção de regresso à sua habitação, no dia 3, por volta do meio-dia.
Nesta sequência, a comissão fez contacto com a Dra. FF, propondo que se pudesse reunir, na sede da APAV, no dia seguinte, pelas 11 horas, caso tivessem sala. Posteriormente, foi confirmada a reunião.
No dia 3 de junho, reuniu a comissão restrita, tendo sido deliberada, por maioria, medida de Acolhimento Familiar ou Residencial, face à possibilidade de fuga desta família. Ponderou-se ainda poder aplicar um procedimento de emergência, caso a mãe mantivesse a sua vontade de saída para a sua residência, o que não veio a acontecer, uma vez que a mãe decidiu continuar no CAE e a APAV garantiu que durante dois dias não haveria possibilidade de fuga.
A mãe não concordou com a medida proposta, tendo, assim, retirado o consentimento para a intervenção.
O pai esteve na comissão, para lhe ser apresentado também o Acordo de Promoção e Proteção, mas tendo a mãe retirado o consentimento para a intervenção, foi-lhe comunicado que o processo seguiria para outra entidade e que deveria manter-se contactável sempre.
Conclusão
O processo foi instaurado, após receção de sinalização de violência doméstica pela GNR de .... A queixa foi apresentada pela senhoria, após pedido de ajuda por parte da mãe, através de mensagens escritas, relatando que o marido lhe batia e, por vezes, também batia ao filho. Após as diligências efetuadas por esta Comissão, mais precisamente entrevista à mãe, entrevista com a educadora do estabelecimento de ensino frequentado pela criança, entrevista ao pai, visita domiciliária, foram acionados os meios junto da APAV, para acolhimento da mãe e criança, em casa abrigo. A mãe decidiu, posteriormente, que pretendia regressar a casa, para junto do marido. O agregado familiar é de nacionalidade indiana e a criança, apesar de residir em Portugal, há 2 anos, e frequência em jardim-de-infância, apenas fala a língua materna, embora compreenda o que lhe é transmitido, segundo a educadora. Nenhum dos elementos do agregado tem os documentos atualizados. No dia dois, segunda-feira, a mãe informou a APAV que pretendia voltar para casa, para junto do marido, programando a sua saída para o dia três, ao meio-dia. A comissão foi informada da decisão da progenitora, pelo que solicitou reunião com a mãe, na sede da APAV, propondo-lhe a aplicação de medida de Acolhimento Familiar ou Residencial por um período de 12 meses, não tendo a mãe concordado com a mesma. Tendo em conta que a APAV informou as técnicas da comissão de que não haveria perigo de fuga nos próximos dois dias, não se aplicou procedimento de emergência, por se considerar que não havia perigo iminente para a vida desta criança.
Face ao exposto, deliberou esta comissão o arquivamento do processo e remessa aos Serviços do Ministério Público, por retirada de consentimento da progenitora”;
- bem como,
3- o despacho de 5.6, que autuou o processo como de promoção e protecção e que decretou, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º/2 alínea c), 37.º e 35.º/1 alíneas e) e f) da LPCJP, a aplicação a favor do CC, pelo período de seis meses e enquanto se procede à definição do seu encaminhamento subsequente, de uma medida cautelar de acolhimento familiar ou, acaso não exista vaga em família de acolhimento, de uma medida cautelar de acolhimento residencial, este a executar em CAR a indicar pelo ISS
4- o despacho de 13.6.2025, que, ao abrigo do disposto no artigo 62.º/3 alínea b) da LPCJP (Lei 147/99, de 1 de Setembro), reviu a medida cautelar de acolhimento aplicada a favor do CC e alterou para uma medida cautelar de apoio junto da mãe, por 6 meses, a executar em Instituição Centro de Apoio à Vida - CAV a indicar pelo ISS e, por ora, a executar na Casa Abrigo onde está integrada com a mãe.
4. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos artigos 11.º/4 alínea c), 223.º/1, 2 e 3 e 435.º CPPenal.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
1. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento, resultante da petição de habeas corpus, da informação e da certidão que a acompanha, é a seguinte:
Despacho de 5.6.2025
Autue como processo de promoção e proteção.
Declaro aberta a instrução do processo.
Requisite e junte CRC dos progenitores, procedendo se necessário à averiguação prévia dos dados a tanto necessários junto das bases de dados disponíveis — artigo 3.º da Lei 113/2009, de 17 de Setembro.
Da aplicação de medida cautelar:
o Ministério Público intentou o presente Processo de Promoção e Proteção a favor do CC, nascido em ... de ... de 2020, filho de AA e de BB, de nacionalidade indiana.
No mesmo ato, requereu a aplicação a favor da criança de uma medida cautelar de acolhimento familiar ou residencial.
Fundou tal pretensão na gravidade da situação que a criança vivencia.
Da informação social elaborada pela CPCJ de ... e junta com o requerimento inicial resulta que a criança esteve acolhida em Casa Abrigo, com a respetiva mãe, por esta ser vítima de violência por parte do pai da criança. Entretanto, a mãe decidiu abandonar, com a criança, a Casa Abrigo, o que pretendia fazer no passado dia 3 de Junho. A CPCJ entendeu aplicar a favor da criança uma medida de acolhimento residência ou familiar, com base no perigo de fuga da família, a qual não mereceu a concordância da progenitora, que retirou o consentimento para a intervenção daquela Comissão.
Afigura-se-nos assim que, neste momento, a progenitora da criança pretende regressar a um contexto onde é vítima de violência, não se apresentando quer ela quer o progenitor corno capazes de assegurar a integridade física, o bem-estar, a segurança, a saúde e o desenvolvimento integral do filho, mostrando—se destarte verificada a situação de perigo a que alude a alínea c) do n.º 2 do artigo 3.º da LPCJP. Importa, pois acautelar tal perigo enquanto o processo desenvolve os seus ulteriores termos, de forma cautelar, face à gravidade que o mesmo apresenta.
Dispõe o artigo 37.º da Lei 147/ 99, de 1 de Setembro que ”a título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente”.
O perigo supra mencionado, a que o CC se encontra sujeito, reclama uma intervenção imediata, de natureza cautelar e provisória, de harmonia com o disposto no artigo 37.º da LPCJ, que permita acautelar o interesse deste menino, enquanto se procede à definição do seu encaminhamento subsequente.
A única medida que se nos afigura, neste momento, como passível de satisfazer tais exigências é a medida de acolhimento, que o Ministério Público igualmente propugna que lhe seja aplicada, tanto mais que se desconhece a existência de qualquer outra pessoa que o pudesse acolher. Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 46.º da LPCJ, deve ser sempre priorizada a aplicação da medida de acolhimento residencial sobre a de acolhimento familiar, salvo: a) quando a consideração da excecional e específica situação da criança ou jovem carecidos de proteção imponha a aplicação da medida de acolhimento residencial; b) quando se constate a impossibilidade de facto.
No caso dos autos e face à urgência na tomada de medidas destinadas a acautelar o interesse da criança, ainda não foi possível apurar a existência de família de acolhimento disponível para acolher este menino, o que obstará em princípio à possibilidade de aplicação de tal medida. Sem prejuízo, salvaguardando a possibilidade de tal família vir a ser indicada, a modalidade de acolhimento a executar será, em concreto, dependente da prévia indagação sobre a existência de vaga em acolhimento familiar, nos termos que infra melhor se determinarão.
Por todo o exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º/2 alínea c), 37.º e 35.º/1 alíneas e) e f) da LPCJP, determino a aplicação a favor do CC, pelo período de seis meses e enquanto se procede à definição do seu encaminhamento subsequente, de uma medida cautelar de acolhimento familiar ou, acaso não exista vaga em família de acolhimento, de uma medida cautelar de acolhimento residencial, este a executar em CAR a indicar pelo ISS.
Comunique, pelo meio mais expedito, à Segurança Social, solicitando a indicação, com a máxima urgência, de vaga em família de acolhimento ou em CAR para a criança e à CPCJ de ....
Emita mandados de condução da criança à família ou instituição que vierem a ser indicadas, a cumprir em articulação com a Sr.ª Técnica Gestora do processo.
Solicite à entidade policial igualmente a notificação do presente despacho, aquando do cumprimento dos mandados, no que respeita aos progenitores, desde já em língua portuguesa.
Acaso tal notificação não seja efetuada pela entidade policial, deverá ser concretizada pela Secção, mal tenha conhecimento do cumprimento do presente despacho.
A execução desta medida será acompanhada pelo ISS.
A medida cautelar ora aplicada deverá ser revista no prazo máximo de 3 meses, devendo consequentemente o ISS remeter atempadamente relatório social tendente à sua revisão.
Solicite à Segurança Social:
a) a elaboração do relatório social a que alude o artigo 108.º/1 da LPCJ, onde se aborde a situação pessoal e familiar da criança e qual o projeto de vida que deverá ser delineado para a mesma, na perspetiva da promoção e proteção dos seus direitos.
Prazo: 30 dias.
b) sem prejuízo, que, decorridos 30 dias sobre o início de execução da medida de promoção e proteção supra aplicada em benefício da criança, venha remeter aos autos informação sobre o modo como se processou a adaptação da criança à família de acolhimento ou à casa de acolhimento.
Notifique os progenitores para, em 10 dias, virem juntar aos autos cópia do documento de identificação da criança.
Diligencie a Secção pela indicação de pessoa idônea para exercer as funções de tradutor/ intérprete de língua inglesa nos autos, que fica desde já nomeada para o efeito.
Solicite ao Sr. Tradutor que vier a ser indicado a tradução do requerimento inicial, da informação social que a acompanha e dos presentes despachos, para serem notificados aos progenitores quanto antes.
Despacho de 13.6.2025
Alteração da medida cautelar: Nos presentes autos foi aplicada a medida cautelar de acolhimento familiar ou, acaso não existisse vaga em família de acolhimento, de acolhimento residencial, a favor do CC, nascido em 22 de Setembro de 2020, por despacho proferido em 5.6.2025 (cfr. refª .......70).
A execução da medida ainda não teve início, sendo certo que, na sequência das diligências encetadas ao abrigo dos presentes autos, se apurou terem-se alterados alguns dos pressupostos que motivaram a sua aplicação. De facto, a mãe da criança, que se encontra com esta em Casa Abrigo e manifestava pretender regressar ao agregado familiar de origem, alterou a sua posição relativamente a tal regresso, como resulta da informação social com a ref.ª ......71, de 11.6.2025.
Neste momento, constata-se que a mãe é uma boa prestadora de cuidados, atenta, disponível, não se identificando situações de preocupação face à relação interpessoal com o filho, sobressaindo a relação vinculativa de ambos.
A barreira linguística dificulta a intervenção, mas tem conseguido ser ultrapassada, com o apoio da AIMA na tradução. A mãe está disponível para colaborar com a intervenção, mas encontra-se atualmente em situação irregular no país, sem recursos económicos, habitacionais e de apoio familiar de retaguarda.
O regresso ao agregado familiar de origem, pautado pelas situações de violência já referidas no despacho com a ref.ª ........70, de 5.6.2025, não se mostra viável ou consentâneo com o superior interesse da criança. No entanto, na medida em que a mãe atualmente se encontra disponível para integrar, com o filho, uma Instituição Centro de Apoio à Vida — CAV, o que permitirá manter a criança aos seus cuidados (o que não é despiciendo atendendo à vinculação observada) e, do mesmo passo, apoiar a mãe com vista à sua integração social e laboral, com vista a uma futura autonomização, afigura-se-nos que, neste momento, tal solução é mais consentânea com tal superior interesse.
Neste momento é, pois, desejável, ao abrigo do princípio da atualidade, a alteração da medida cautelar anteriormente aplicada, para uma medida de apoio junto da mãe, a executar em Instituição Centro de Apoio à Vida — CAV a indicar pelo ISS, sendo que a mesma será, por ora e até que tal vaga surja, executada na Casa Abrigo onde está integrada com a mãe.
Assim, conforme promovido, nos termos do disposto no artigo 62.º/3 alínea b) da LPCJP (Lei 147/99, de 1 de Setembro), decido rever a medida cautelar de acolhimento aplicada a favor do CC nos presentes autos e alterá-la para uma medida cautelar de apoio junto da mãe, por 6 meses, a executar em Instituição Centro de Apoio à Vida - CAV a indicar pelo ISS e, por ora, a executar na Casa Abrigo onde está integrada com a mãe.
Solicite ao ISS a indicação muito urgente de Centro de Apoio à Vida que possa acolher a criança e a respetiva mãe.
Notifique a progenitora, por ora sem tradução, a APAV e, por via desta, a Casa Abrigo onde a mãe se encontra acolhida e a Segurança Social, solicitando ainda que a criança e a mãe permaneçam na Casa Abrigo onde se encontram até que os Serviços da Segurança Social indicarem Centro de Apoio à Vida que as possa acolher.
Oportunamente, notifique também o progenitor, com tradução, bem como novamente a progenitora, em língua inglesa.
2. O Direito
2. 1. As razões do requerente.
Invocando a alínea d) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal, pretende o peticionante sejam a mulher e o filho restituídos à liberdade.
Estrutura esta sua pretensão no facto de a detenção de ambos ser motivada por facto pelo qual a lei não a permite, no caso internamento não consentido, sustentando tal asserção na seguinte linha de raciocínio:
- os requerentes, em nome dos internados involuntariamente, apresentam notícia de que foram internados involuntariamente no passado dia 27 de maio de 2025, às 15.00 horas, pelas autoridades responsáveis, Polícia de Segurança Pública de ... por promoção da CPCJ da mesma localidade e a entrega à mãe ao abrigo da APAV, sob a alegação e motivos ainda desconhecidos na sua plenitude;
- o internamento involuntário persiste até a presente data no local abrigo ... Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, instituição oficial não judiciária, em condições desconhecidas, que não se pode obter informações por falta de respostas aos e-mails do escritório dos mandatários da beneficiária da medida e do seu cônjuge, demora injustificada com pouca ou nenhuma importância por parte do abrigo referenciado;
- o requerente a mulher e o filho são de etnia indiana, pessoas muito simples, há pouco tempo residentes em Portugal, ele trabalhador rural e ela doméstica do lar com um filho infante menor impúbere que pelas circunstâncias principais e secundárias não falam, nem leem, tampouco escrevem o idioma português e têm hábitos e costumes muito diferentes dos nacionais;
- o requerente e a mulher tiveram uma discussão sobre o facto da casa não estar devidamente arrumada e higienizada - acusação que esta repudiou, nada mais se tendo passado do que isso;
- porque estava bastante constipada, tal como o seu filho menor, solicitou pelos meios possíveis à sua vizinha que a ajudasse a ir ao posto médico da localidade;
- a vizinha entendeu que se poderia tratar de uma situação de violência doméstica e chamou a PSP;
- a polícia só apareceu em casa dos requerentes cerca de dois dias depois já os ânimos entre o casal estavam perfeitamente serenados, face ao pequeno desaguisado que haviam tido e, não obstante, deu nota de que tinha sido chamada ao local e que lá habitava um menino de quarto anos e meio de idade e, de imediato, por suspeitar que poderia a chamada configurar uma situação de violência doméstica alertou os serviços de ... da CPCJ de ...;
- sem que houvesse algum indício da prática daquele crime a CPCJ retirou contra sua vontade a mãe e colocou-a num Centro de Apoio a Vítima, dando-lhe nota de que se não aceitasse a medida de acolhimento e desse o seu consentimento, a criança seria retirada dela e entregue a uma instituição – a mãe não teve outra hipótese para poder manter a criança com ela senão deixar-se estar à guarda da APAV, entidade que a acolheu;
- as técnicas da APAV informaram que a CPCJ promoveu junto do Ministério Público e do Tribunal de Família e de Menores o processo de promoção e protecção, onde, numa primeira análise e sem ouvir sequer os progenitores ou lhes dar hipótese de se fazerem representar por advogado determinou a retirada do menor à mãe e a entrega a uma instituição de acolhimento, vindo, no entanto, a permitir que o menor ficasse junto à mãe, enquanto esta aceitasse estar aos cuidados da APAV e que apenas lhe permitisse ficar com a tutela do menor caso se dispusesse a retornar à India - solução que face ao contexto a destinatária da medida estaria disponível a acatar como mal menor;
- as medidas impostas são restritivas das liberdades da mãe e destinatária da medida solicitada, como também o são da criança, motivo pelo qual se vem solicitar a concessão de habeas corpus em favor de BB, que atualmente se encontra retida no Centro de Apoio à Vítima, da APAV sob alegação de denúncia de violência doméstica perpetrada pelo seu marido;
- após a denúncia, as autoridades agiram de forma precipitada e desproporcionada, levando BB ao Centro de Apoio à Vítima, onde ela permanece com restrição de liberdade, sob a alegação de proteção ao menor;
- não há qualquer evidência que comprove a prática de violência por parte dela - factos e acusações que esta nega veementemente;
- há uma ameaça de que BB seja enviada de volta ao seu país de origem, India/Punjab, o que representaria uma grave violação de seus direitos fundamentais e do direito do menor de manter contato com sua mãe;
- a materialidade indiciária é insuficiente, sem a mínima formalidade legal de consentimento pela falta de tradução do motivo legítimo que a justifique, a consubstanciar abuso de poder conferido, seja do poder público (administrativo), como também do poder familiar ou por intervenção da vizinhança;
- o estado da mais ampla e plena liberdade, que se entende o direito de ir e vir, o direito de locomoção, é defendido e assegurado pelo instituto jurídico de consagração constitucional e mesmo supra constitucional habeas corpus como quer referir-se a CRP;
- em sentido especial, atentado à liberdade indica todo ato de coação ou não, apoiado em lei, que se dirija contra o direito de locomoção da pessoa, ou seja, a liberdade de ir e vir;
- mesmo no desempenho de suas atribuições se praticou o ato e executaram diligência, com excesso de poder por falta do essencial consentimento, ou seja, abusivamente, empenhados num abuso contra a liberdade de ir e vir dos destinatários, com constrangimento exercido pelas autoridades sobre as pessoas, em virtude de sua situação de hiperinsuficiência ou hipossuficiência, seja decorrente da nacionalidade de origem, das limitações com o idioma português, da posição social, da dependência em que se encontram as pessoas constrangidas, mediante excesso de limites nas funções cujas atribuições são definidas e determinadas em lei;
- a aparência de internamento consentido é ilegal, na medida em que a internação compulsória ordenada pela entidade sem tradução das razões aos destinatários da medida, que são mãe e filho estrangeiros com residência em Portugal mas que sequer falam, ou ao menos leiam ou tampouco escrevem português;
- o internamento compulsório não consentido dos destinatários é manifestamente arbitrário e ilegal, na medida em que as autoridades que efetuaram o recolhimento ao abrigo não traduziram absolutamente nada para ordenar a privação da mais ampla e plena liberdade de ir e vir;
- o prazo de 48 horas para apresentação perante um juiz de direito competente foi ultrapassado, violando o artigo 28.º/1 da Constituição.
2. 2. O texto legal.
O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade, cfr. artigos 27.º e 31.º da CRP, constituindo uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, cfr. artigo 31.º/3 da CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo.
A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.
Estabelece o artigo 220.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de detenção ilegal”:
“1 - Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem que ordene a sua imediata apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos:
a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial;
b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos;
c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite.
2 - O requerimento pode ser subscrito pelo detido ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3 - É punível com a pena prevista no artigo 382.º do Código Penal qualquer autoridade que levantar obstáculo ilegítimo à apresentação do requerimento referido nos números anteriores ou à sua remessa ao juiz competente”.
Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:
“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.
O peticionante apesar de invocar a situação prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 220.º - “detenção motivada por facto pelo qual a lei não a permite, qual seja, internamento não consentido” - acaba por a integrar na alínea d) do n.º 2 do artigo 222.º - que de resto não existe.
Importa assinalar, desde logo, que a invocação da existência de uma situação de detenção, a integrar no aludido artigo 220.º CPPenal, importaria que nos termos desta disposição legal, não teria este Supremo Tribunal competência para conhecer do pedido de habeas corpus. Seria da competência do Juiz de instrução, de 1.ª instância, da área onde se encontre o detido, à ordem de qualquer autoridade.
Independentemente desta nuance de caracterização da situação, ou como detenção, ou como prisão, no caso concreto, o certo é que no caso da criança estamos perante uma situação de medida de acolhimento residencial, familiar, primeiro e depois alterada para medida de apoio junto da mãe - a executar em Instituição Centro de Apoio à Vida — CAV a indicar pelo ISS, sendo que a mesma será, por ora e até que tal vaga surja, executada na Casa Abrigo onde está integrada com a mãe.
Isto é estamos manifestamente perante uma situação não expressamente prevista nem no artigo 31.º da CRP nem no artigo 222.º CPPenal.
E, assim, a questão a decidir, nesta sede, reporta-se, tão só, à questão de saber se a mãe e o filho se mantém, ou não, em situação motivada pelo qual a lei não permite.
2. 3. Baixando ao caso concreto.
Desde já, emitindo pronúncia sobre o requerimento de prova apresentado, é de referir que a pretensão de produção de prova pessoal é incompatível com as finalidades e tramitação do habeas corpus, que como providência simples e urgente que é não se compadece com as delongas exigidas por uma produção de prova nos termos pretendidos, como ainda, recentemente decidiu este Supremo Tribunal no acórdão de 13.2.2025, processo 74/22.3GFEVR, em que foi relator o aqui 1.º adjunto e em que o aqui relator foi ali 2.º adjunto, consultado no site da dgsi.
E, assim, todos os elementos necessários à decisão devem constar da certidão geral com que a providência é instruída e apenas se se suscitarem dúvidas sobre as condições da legalidade da prisão será ordenada a realização de averiguações, como prevê o artigo 223.º/4 alínea b) CPPenal.
No caso, do que vem de ser dito, dos próprios fundamentos alegados pelo peticionante, bem como, do supra relatado acerca dos elementos que constam da certidão junta ao processo, resulta, medianamente, claro, não se suscitar qualquer necessidade ou utilidade na realização de qualquer diligência de prova, ainda que oficiosa, sobre a legalidade da detenção.
Entrando no conhecimento dos fundamentos da petição.
2. 3. 1. A criança.
Decorre da petição que apesar de indicar a alínea d) - que não existe - o que o peticionante pretende é invocar a alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal, dado que de seguida se refere a detenção motivada por facto que a lei não permite – internamento não consentido.
Como vimos o peticionante na epígrafe da petição identifica quer, o processo da CPCJ, quer o inquérito, quer o processo de promoção e protecção.
Como vimos o processo da CPCJ terá sido arquivado dado o facto de a mãe ter retirado o seu, necessário, consentimento par a intervenção daquela entidade e, deu origem ao processo que veio a ser intentado pelo MP, de promoção e protecção do menor.
Por outro lado, o processo de inquérito terá subjacente o crime de violência doméstica em que a mãe será a vítima e o agressor o aqui peticionante.
E, como, ainda, acontece, na esmagadora maioria das situações, não é o agressor que sai, que é obrigado a sair da casa de morada de família, mas, sim, é a vítima que se acolhe numa casa de abrigo – a maior parte das vezes com os filhos menores.
A situação aqui retratada, evidencia o seguinte quadro.
No âmbito do processe de promoção e protecção intentado a favor da criança foi decidido, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º/2 alínea c), 37.º e 35.º/1 alíneas e) e f) da LPCJP, aplicar - pelo período de seis meses e enquanto se procede à definição do seu encaminhamento subsequente - a medida cautelar de acolhimento familiar ou, acaso não exista vaga em família de acolhimento, de uma medida cautelar de acolhimento residencial, este a executar em CAR a indicar pelo ISS.
Entretanto, ao fim de 8 dias foi decidido alterar tal medida, que ainda não tivera início, de resto, tendo presente que a mãe se estava disponível para integrar, com o filho, uma Instituição Centro de Apoio à Vida — CAV, o que permitirá manter a criança aos seus cuidados (o que não é despiciendo atendendo à vinculação observada) e, do mesmo passo, apoiar a mãe com vista à sua integração social e laboral, com vista a uma futura autonomização, tendo-se entendido que a solução mais consentânea com o superior interesse da criança seria, ao abrigo do disposto no artigo 62.º73 alínea b) da LPCJP, a aplicação de uma medida de apoio junto da mãe, a executar em Instituição Centro de Apoio à Vida — CAV a indicar pelo ISS, sendo que a mesma será, por ora e até que tal vaga surja, executada na Casa Abrigo onde está integrada com a mãe.
A primeira questão que se coloca no caso dos autos é a de saber se a situação em que a criança se encontra é susceptível de equiparação a uma privação de liberdade e se, por essa via, consente o recurso à providência de habeas corpus.
A jurisprudência do STJ vem admitindo a aplicação do regime do habeas corpus a situações não expressamente previstas nos artigos 31.º da CRP e 220.º e 222.º CPPenal com base em considerações de salvaguarda da liberdade enquanto valor fundamental constitucionalmente tutelado. Nessa linha de orientação estão abrangidos no âmbito do habeas corpus, para além dos casos de detenção ou de prisão ilegal, todas as outras situações em que alguém esteja privado da sua liberdade ou em que ela se encontre restringida de forma abusiva e injusta, cfr. acórdão de 8.3.2006, processo 06P885 – em que estava em causa a aplicação a um menor da medida de guarda em centro educativo em regime semiaberto - e de 2.3.2011, processo 25/11.0YFLSB.S1 – em que estava em causa a aplicação a um menor da medida tutelar de internamento em Centro Educativo - ambos consultados no site da dgsi.
Acerca da medida de acolhimento residencial, a partir do acórdão deste Supremo, de 18.01.2017, proferido no processo n.º 3/17.6YFLSB, passou a ser admitida a aplicação do regime do habeas corpus a tal medida de promoção e proteção, com fundamento em que esta, embora destinada a afastar o perigo em que a criança se encontra e a assegurar-lhe condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento, não deixa de se traduzir numa restrição da liberdade, configurando uma privação deste direito, merecedora da proteção da providência (no mesmo sentido, entre outros, acórdãos do STJ, de 9.06.2021, processo n.º 6/21.6T1PTG.S1; de 23.07.2021, processo n.º 2943/20.6T8CBR-A.S1; de 30.06.2022, processo n.º 736/20.0T8CBR-E.S1; de 16.11.2022, processo n.º 2638/22.6T8LRA-A.S1).
E nos mais recentes de,
- 13.08.2024, processo 268/24.7T8TVD-B.S1, relatado pelo aqui 2.º adjunto, consultado no site da dgsi e assim sumariado:
“III - Qualquer das medidas enunciadas nas várias alíneas do n.º 1, do artigo 35.º, da LPCJP, visa, em satisfação do superior interesse da criança e do jovem - um dos princípios orientadores da intervenção, nos termos do artigo 4.º, alínea a), desse diploma -, designadamente, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, não visando sancionar, nem isolar ou privar de liberdade, mas antes beneficiar e socializar as crianças e jovens em perigo.
IV – Ainda assim, em certos casos, seguramente excecionais, dentro da grande variabilidade da vida, admite-se que possam estar em causa situações de limitação ao direito à liberdade que justifiquem a garantia de habeas corpus no âmbito da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial”,
- de 13.2.2025, processo 4463714.9TBCSC, relatado pelo aqui 1.º adjunto, também, consultado no site da dgsi, numa situação de confiança a instituição com vista à adopção.
Em sentido contrário, pronunciaram-se os acórdãos deste STJ de 12.07.2018, processo n.º 50/18.0YFLSB.S1, de 04.07.2019, processo n.º 2199/17.8T8PRD-F e de 23.12.2020, processo n.º 339/05.9TMCBR-C.S1, realçando que a medida de acolhimento residencial, mesmo que provisória, não tem correspondência com a prisão ou com medida de coação restritiva da liberdade, aplicada em processo penal, pois que, no âmbito do regime aprovado pela Lei 147/99, de 1 de setembro - Lei de proteção de crianças e jovens em perigo, que passaremos a designar de LPCJP - as medidas de promoção e de proteção não visam sancionar nem isolar, nem privar de liberdade, mas, antes, beneficiar e socializar as crianças e jovens em perigo.
Recentemente, Damião da Cunha pronunciou-se desfavoravelmente quanto à extensão do regime do habeas corpus a casos “não penais”, como os atinentes à medida de acolhimento residual (Revista do Ministério Público, 180, 9-26).
Apesar das dificuldades, admitimos, porém, que em certos casos, seguramente excecionais, dentro da grande e imprevisível variabilidade da vida, possam estar em causa situações de limitação ao direito à liberdade que justifiquem a garantia de habeas corpus no âmbito da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, razão por que entendemos não ser de rejeitar, de princípio, a admissibilidade da sua aplicação.
Qualquer das medidas enunciadas nas várias alíneas do n.º 1, do artigo 35.º da LPCJP, visa, em satisfação do superior interesse da criança e do jovem - um dos princípios orientadores da intervenção, nos termos do artigo 4.º alínea a), desse diploma - designadamente, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral.
A medida de promoção e proteção visa, por definição, proteger a criança / jovem e afastar uma situação de perigo, finalidade que, numa primeira mirada, parecerá pouco compatível com a ideia de “libertar” a criança/jovem quando e enquanto esse perigo se mantém.
Por isso, podemos configurar situações em que, decidindo o STJ no sentido do deferimento de um habeas corpus, ainda assim não tenha como determinar a “libertação” do visado, que significaria a sua entrega aos pais, pois a procura de eventuais medidas subsequentes ou mesmo a prorrogação da que já se encontrava em vigor, teria de ser feita no devido processo de promoção, e não em sede de apreciação da providência de habeas corpus, conduzindo a situações atípicas de habeas corpus deferido, mas inconsequente, no imediato, por razões de proteção da criança/jovem em causa.
E, cremos, ainda assim, não se poder estabelecer o paralelo - que por vezes se faz - com as medidas tutelares educativas, cujas finalidades, regime e forma de execução são muito diferentes das relativas às medidas de promoção e proteção.
Razão por que as garantias aplicáveis num contexto não são necessariamente transponíveis para o outro.
A lei tutelar educativa tem como direito subsidiário o Código de Processo Penal, enquanto ao processo de promoção e proteção são aplicáveis subsidiariamente as normas relativas ao processo civil declarativo comum, ainda que fase de debate judicial e de recurso – artigo 126.º da LPCJP.
Assim, em apertada súmula, podem ser objecto de habeas corpus situações em que um menor seja sujeito de uma medida de protecção, não por se tratar verdadeiramente de uma situação de “prisão”, entendido o termo na acepção de reacção criminal envolvendo a privação de liberdade, mas por este tipo de medida ter como efeito o afastamento forçado do menor relativamente aos progenitores, ou pelo menos relativamente a um deles, contra o que seria a normalidade da vida e a presumível vontade dos pais e do menor. Tais medidas, implicando uma limitação da liberdade de movimentos, traduzem-se numa restrição de direitos fundamentais, restrição a avaliar numa perspetiva de conformidade com o princípio da legalidade e que nessa medida não poderão ser subtraídas ao campo de admissibilidade da providência de habeas corpus.
Esta perspectiva, especificamente no que a crianças e jovens concerne, encontra apoio nas Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 45/113, de 14 de Dezembro de 1990 e na Convenção Sobre os Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.
Assim, abrangendo as situações de crianças institucionalizadas, prevê a al. b) do Ponto 11 daquelas Regras das Nações Unidas que privação de liberdade significa qualquer forma de detenção ou prisão ou a colocação de uma pessoa num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não possa sair por sua própria vontade, por ordem de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, especificando, por seu turno, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 37.º alínea d), que a criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre tal matéria.
Independentemente das objecções que se possam levantar relativamente à aceitação da aplicabilidade da providência de habeas corpus a situações como aquela a que se reportam os autos – e a mais difícil de ultrapassar será, seguramente, a que questiona a aplicação desta medida por um tribunal penal a providências de natureza essencialmente civil, como é o caso da confiança a instituição com vista à adoção – não questionaremos a viabilidade da medida, quer por força da sedimentação da jurisprudência que a vem admitindo no âmbito das medidas de protecção e prevenção, quer pelo reconhecimento da inexistência de qualquer outra providência especificamente vocacionada para essa finalidade, ainda que à partida se nos afigurem de difícil verificação em tais situações os pressupostos que condicionam esta providência excepcional.
Reconhecemos, pois, que a medida de acolhimento familiar, com o necessário afastamento forçado da criança relativamente a ambos os progenitores e depois, a medida de apoio junto da mãe, ela própria, acolhida numa casa de abrigo, em virtude de ser vítima, como a criança, de violência doméstica por parte do marido e do pai, afasta a criança, aqui relativamente apenas ao progenitor, contra o que seria a normalidade da vida e a presumível vontade deste.
Ambas as situações, ainda assim, a poderem encerrar o aludido potencial para se traduzirem numa limitação da liberdade do menor, razão pela qual não lhe deverá ser negada a susceptibilidade de reversão mediante a utilização da providência excepcional de habeas corpus, suposto estar verificado o condicionalismo em que esta providência necessariamente deverá assentar.
Reconhecendo-se a tempestividade da petição formulada, por força da actualidade da medida imposta à criança, há que reconhecer também que a legitimidade da requerente é inquestionável, à luz do disposto nos artigos 31.º, n.º 2, da CRP e 222.º, n.º 2, do CPP.
A providência de habeas corpus que não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Editorial Verbo, 1993, 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.
De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no artigo 222.º/2 CPPenal.
Os fundamentos da providência de habeas corpus são os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade de qualquer medida que determine a privação da liberdade.
A providência de habeas corpus não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade.
Aqui apenas tem de verificar se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite.
O habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas em outros Tribunais, mormente nos Tribunais de 1.ª instância.
Irregularidades que aí possam ter sido praticadas, verificando-se os respectivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios.
O habeas corpus não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.
O habeas corpus, para ter razão de ser, deverá assumir uma função diferente da dos recursos – que constituem o modo de impugnação por excelência de decisões judiciais - servindo como instrumento de proteção da liberdade quando os meios ordinários não sejam suficientemente expeditos para assegurar essa proteção urgente.
O habeas corpus em virtude de privação ilegal da liberdade não visa a reanálise do caso, mas antes serve exclusivamente para apreciar se existe, ou não, uma privação da liberdade cuja ilegalidade seja evidente, ostensiva, indiscutível, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência - ilegalidade motivada por algum dos fundamentos legal e taxativamente previstos.
E, naturalmente, como, de resto, é jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal, para que possa merecer acolhimento o pedido de habeas corpus é ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual - actualidade reportada ao momento em que é apreciado o pedido.
Recordemos que os recursos das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e proteção, artigo 123.º do LPCJP, são da competência das secções cíveis das Relações e do STJ e não das respetivas secções criminais.
Não compete ao STJ, em sede de providência de habeas corpus, sindicar, como se de uma revista se tratasse, o acerto da fundamentação do juízo de aplicação das ditas medidas de acolhimento residencial, primeiro e, da actual, de apoio juto da mãe depois, não sendo possível afirmar a existência de qualquer situação de ilegalidade evidente, ostensiva, indiscutível e diretamente verificável.
Será no âmbito da jurisdição civil que o pai da criança poderá questionar as aludidas decisões.
Não é a providência extraordinária de habeas corpus o meio processual vocacionado para discutir/sindicar tais decisões e debater verificação ou não dos pressupostos de facto e de Direito em que assentaram.
Neste quadro, estando a situação da criança definida por decisão judicial, a discutir, sendo caso disso, na jurisdição civil, temos como manifesto que não compete às secções criminais do STJ, em sede de providência de habeas corpus, sindicar, como se de uma revista se tratasse, o acerto do(s) juízo(s) ali emitidos, não sendo possível afirmar aqui a existência de uma qualquer situação de privação da liberdade de ilegalidade evidente, ostensiva, indiscutível e diretamente verificável.
Não se verifica, pois, o invocado fundamento de habeas corpus – nem qualquer outro, de resto – da existência de internamento não consentido – a traduzir uma situação de provação da liberdade motivada por facto pelo qual a lei a não permite.
A alegada situação não se enquadra em nenhuma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal e, também, não cabe na previsão do artigo 220.º, imperfeitamente, invocado pelo peticionante, que não seria, sequer, da competência deste Supremo Tribunal.
Questão e vertente que o peticionante deixa bem explícita, de resto, ao invocar que os privados da liberdade não foram presentes ao Juiz, no prazo de 48 horas.
Resta concluir que a providência em apreço terá de ser indeferida, no tocante à criança.
2. 3. 2. O cônjuge.
Também não merece melhor sorte este segmento do habeas corpus, estruturado no facto de o cônjuge do peticionante estar contra a sua própria vontade acolhida numa casa de abrigo.
Não é essa a realidade que os autos deixam transparecer.
O que o processo evidencia é que foi o cônjuge do peticionante que tendo-se queixado de violência doméstica, por parte dele, em relação a si e à criança, decidiu ali ser acolhida.
Não lhe foi aplicada a ela nenhuma medida de coacção. Mormente restritiva da liberdade de circulação.
E ali se manterá enquanto o pretender. Enquanto se mantiveram, desde logo, os pressupostos que a levaram a sair da casa de morada de família.
O cônjuge do peticionante é que é a vítima. Ela é que se colocou longe da acção do peticionante, como forma de se precaver e de obviar à manutenção da situação de violência doméstica.
Nenhum fundamento existe para que, sequer, remotamente, se pudesse afirmar que está internada sem consentimento.
Muito menos privada da sua liberdade – em situação que a lei não prevê.
É claro, que no actual contexto existe uma relação de causa/efeito, entre o facto de a mãe estar numa casa abrigo e o facto de à criança - em perigo, recorde-se - ter sido aplicada a medida de apoio junto da mãe, deixando de vigorar a medida de acolhimento familiar, ou residencial.
Tal resulta expressamente da fundamentação da decisão de 13.6.
O que equivale por dizer que se a mãe se quiser ausentar a casa abrigo, seja para outro qualquer local, seja, regressar à casa de morada de família, o poderá fazer, por si, sem qualquer constrangimento.
Não poderá é deixar de ser avaliada a medida aplicada a favor da criança de apoio junto da mãe – se acaso esta for viver com o agressor, desde logo.
Com agressor da mãe da criança.
Recorde-se que a medida foi aplicada em benefício e no superior interesse da criança, que é o que aqui relevará, sempre.
Donde, improcede, aqui de forma, bem mais ostensiva, este segmento da petição.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por falta de fundamento legal, a presente providência de habeas corpus apresentada pelo peticionante AA.
Custas pelo requerente, fixando-se em 4 UC, a taxa de justiça, cfr. n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.
Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94.º/2 CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pelos dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente.
Supremo Tribunal de Justiça, 3.7.2025
Ernesto Nascimento - Relator
Jorge Jacob - Juiz Conselheiro Adjunto
Jorge Gonçalves - Juiz Conselheiro Adjunto
Helena Moniz – Juíza Conselheira Presidente