Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
I. Tem natureza propter rem a obrigação de pagar as contribuições necessárias para custear as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, prevista no artigo 1424.º do Código Civil.
II. A obrigação “propter rem” transmite-se sempre e de forma automática ao novo titular do direito real a cujo estatuto se sente geneticamente ligado.
III. No caso dos autos os serviços de segurança, limpeza, conservação, manutenção e demais condições de digna habitabilidade, defesa do ambiente, qualidade de vida e património natural e cultural da área inerente e circundante da respectiva urbanização que estejam integradas no alvará de loteamento do empreendimento constituem encargos para os condóminos, independentemente destes serem ou não associados da associação constituída para tal efeito pelos seus proprietários.
Notificados da referida decisão vieram os mesmos recorrentes apresentar requerimento no sentido de recair um acórdão sobre a matéria em causa (constante da aludida decisão), atento o disposto no art.º 652º, nº3, aplicável ex vi do citado art.º 643º, nº4, ambos do C.P.C., reiterando tudo aquilo que já tinha dito nas conclusões do requerimento de não admissão do recurso de revista.
Para tanto, concluíram do seguinte modo a sua pretensão:
A. A decisão singular proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça ao decidir no sentido de não admitir a revista violou o nº3 do artigo 671º do CPC;
B. O Tribunal da Relação de Évora proferiu Acórdão no qual foi julgado improcedente o Recurso de Apelação interposto pelos Recorrentes, aqui Reclamantes, mantendo a condenação dos mesmos;
C. Acontece que, apesar de o Tribunal da Relação de Évora julgar improcedente o Recurso interposto pelos Recorrentes, aqui Reclamantes, mantendo desta forma a condenação, a verdade é que fá-lo com fundamentação essencialmente diferente da fundamentação apresentada pelo Tribunal de 1ª instância;
D. O Tribunal de 1ª instância fundamenta a sua decisão de condenação dos Recorrentes, aqui Reclamantes, no instituto da sub-rogação, previsto nos artigos 589º e seguintes do CC;
E. Mais decidindo o Tribunal de 1ª instância, que, caso não se entendesse estarem verificados os pressupostos da sub-rogação pelo credor, que sempre seria de aplicar ao caso concreto o instituto do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 473º e seguintes do CC;
F. Concluindo a Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que “Relativamente à liquidação da quantia pecuniária que a autora tem direito a receber dos réus, seja por via da sub-rogação, seja por via de enriquecimento sem causa, conforme já dito acima, entende-se que a mesma há-de corresponder às despesas efectuadas pela autora com o cumprimento das obrigações contempladas na cláusula 3ª do acordo de cooperação. (…)”;
G. Ora, sem prejuízo de não se poder aceitar que a fundamentação para a condenação dos Recorrentes, aqui Reclamantes, tenha por base o instituto da sub-rogação e o instituto do enriquecimento sem causa, o que aliás foi amplamente explano no Recurso de Apelação interposto pelos Recorrentes, a verdade é que, o Tribunal da Relação Évora proferiu Acórdão no qual julgou improcedente o referido Recurso, mantendo a decisão proferida, no entanto, fê-lo com fundamentação essencialmente diferente;
H. Veja-se aliás que o Tribunal da Relação de Évora chega mesmo a referir que “Não se comunga assim das considerações exaradas na sentença recorrida a propósito do motivo originário e determinante da dívida se basear na subrogação e no instituto do enriquecimento sem causa. Em suma, a obrigação de pagar as contribuições necessárias para custear as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, consagrada no artigo 1424.º do Código Civil tem natureza propter rem.”;
I. O Tribunal da Relação de Évora, para fundamentar a sua decisão de manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância recorre não aos institutos que serviram de fundamentação à referida sentença – sub-rogação e enriquecimento sem causa – mas sim ao instituto das obrigações propter rem e ao instituto previsto no artigo 1424.º do CC;
J. Com os quais também os Recorrentes, aqui Reclamantes, não concordam, razão pela qual os mesmos deram entrada de Recurso de Revista;
K. Ora, tendo em conta que a fundamentação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora é fundamentalmente diferente da fundamentação da Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância – Institutos da sub-rogação e enriquecimento sem causa vs Instituto das obrigações proprter rem e o previsto no artigo 1424.º do CC - em causa nunca estará a dupla conforme;
L. Estipula o nº3 do artigo 671º do CPC que “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”;
M. Ora, nos presentes autos efectivamente existiu por parte do Tribunal da Relação de Évora uma confirmação, sem voto de vencido, da decisão proferida na 1ª Instância;
N. Acontece que, de acordo com o já referido, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, apresentou fundamentação essencialmente diferente para manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância;
O. Não se verificando desta forma a chamada dupla conforme;
P. Existe dupla conforme quando a Relação confirma, sem voto de vencido e com base em fundamentação substancialmente idêntica a decisão da 1ª instância;
Q. Sendo que, uma fundamentação essencialmente diferente existe quando se confirme a decisão da 1ª instância a partir de um quadro normativo substancialmente diverso;
R. Ora, de uma análise da Sentença proferida pelo Tribunal de 1º instância e do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, resulta por demais evidente que em causa não estão meras discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representam efectivamente um percurso jurídico diverso, nem o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada pela decisão apelada, nem sequer apenas o aditamento porventura de outro fundamento jurídico, que não tenha ali sido considerado, sem pôr em causa a fundamentação usada;
S. O que aconteceu nos presentes autos é que o Tribunal da Relação de Évora fundamentou a sua decisão de manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão recorrida;
T. Inovando de forma totalmente radical;
U. Em causa nos presentes autos nunca poderia estar uma dupla conforme;
V. A decisão singular agora proferida ao decidir no sentido de não admitir a revista violou o nº3 do artigo 671º do CPC;
W. Pelo que, tendo em conta todo o supra exposto deverá a presente Reclamação ser apresentada à Conferência.
A Autora foi notificada para, querendo, se pronunciar, mas nada veio dizer aos autos.
Cumpre decidir:
É entendimento pacífico que a reclamação para a conferência, nos termos do citado nº3 do art.652º, tem por função substituir a opinião singular do relator pela decisão colectiva do tribunal e não alargar o âmbito de conhecimento a outros temas que não tenham sido apreciados (neste sentido cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª Edição Actualizada, pág. 349 e seguintes).
Como antes já se referiu, na decisão singular objecto da presente reclamação considerou-se que a revista não é admissível por estarmos perante uma hipótese de dupla conforme o previsto na segunda parte do nº3 do art.º 671º do CPC.
Está visto que o inconformismo dos Réus se fundamenta, desde logo no entendimento de que o acórdão proferido pela Relação de Évora, apesar de confirmar a decisão proferida pela 1ª instância, teve por base fundamentação essencialmente diferente daquela que sustentou a sentença do Juízo Local Cível de ....
Como antes já ficou dito, estamos pois na norma supra citada, perante a noção de “dupla conforme”, situação processual que, como sabemos, impede o direito potestativo das partes de interporem recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, para que tal obstáculo ocorra é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a ausência de voto de vencido, uma conformidade essencial de fundamentação e, finalmente, uma conformidade da decisão proferida.
Voltamos a fazer notar que no caso dos autos dúvidas não restam de que o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido, a decisão proferida pela 1ª instância.
O que cabe pois apurar é se a decisão da Relação teve (ou não) por base uma fundamentação essencialmente diferente daquela que esteve na base da sentença proferida pela 1ª instância.
É aceite de forma pacífica que estando nós, na “dupla conforme”, perante um conceito vago/indeterminado fornecido pelo legislador, se impõe, antes de mais, e com vista a dar resposta à questão colocada, densificar/concretizar tal conceito.
Assim, conforme entendimento particamente consolidado neste Supremo, e que aqui se perfilha, há fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão recorrida, sendo, a esse propósito, de desconsiderar as discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representam efectivamente um percurso jurídico diverso, e bem como ainda o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada pela decisão apelada ou o aditamento porventura de outro fundamento jurídico, que não tenha ali sido considerado, sem pôr em causa a fundamentação usada. (neste sentido cf., entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: de 14/07/2021, no processo 1094/10.6TTPRT.P2-A.S1, de 02/08/2018, no processo 2639713.5TBVCT.G1.S1, de 15/02/2018, no processo 28/16.9T8MGD.G1.S2, de 30/11/2017, no processo 579/11.1TBVCD-E.P1.S1, de 29/06/2017, no processo 398/12.8TVLSB.L1.S1, de 15.022022, no processo 16399/15.1T8LSB-A-L1.S1, de 31.03.2022, no processo 14992/19.2T8LSB.L1.S1 e de 22.09.2022 no processo 19864/15.7T8LSB.L1.S1, todos disponíveis em www.dsi.pt, e ainda António Abrantes Geraldes Recursos em Processo Civil, 8ª. Edição Actualizada, Almedina págs. 484 e seguintes e António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Vol. I, pág.808/809).
Aplicando tais orientações ao caso concreto importa desde logo salientar o que de mais relevante foi feito constar na sentença proferida pela 1ª instância e que foi o seguinte:
“ Da (in)existência e liquidação da obrigação dos réus pagarem, à autora, as contribuições vencidas e vincendas
Sintetizando, o que a autora reclama dos réus nesta acção é o cumprimento de uma obrigação – que o artigo 397º do Cód. Civil define como o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação – e toda a obrigação tem uma fonte.
Pois bem. A primeira questão a dilucidar é determinar a fonte da obrigação reclamada pela autora.
Desde logo, a ré na sua contestação coloca em causa – e bem – a existência desta obrigação, por não ser associada da autora.
A autora é uma associação de proprietários (ou de moradores) e uma associação é uma pessoa colectiva de direito privado, com capacidade jurídica própria, que abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, cfr. artigos 167º e 160º, nº 1 do Cód. Civil.
(…)
Releva aqui considerar o disposto no artigo 167º, nº 1 do Cód. Civil, que estabelece que «O acto de constituição da associação especificará os bens ou serviços com que os associados concorrem para o património social, a denominação, fim e sede da pessoa colectiva, a forma do seu funcionamento, assim como a sua duração quando a associação se não constitua por tempo indeterminado.» e, também, o disposto no artigo 181º do Cód. Civil que estabelece que «O associado que por qualquer forma deixe de pertencer à associação não tem o direito de repetir as quotizações que haja pago e perde o direito ao património social, sem prejuízo da sua responsabilidade por todas as prestações relativas ao tempo em que foi membro da associação.».
Por fim, releva considerar, ainda, que o direito de associação, assim como a proibição da obrigação de fazer parte ou permanecer numa associação, estão consagrados no artigo 46º da Constituição da República Portuguesa.
Do que vem sendo dito, resulta, em suma, que qualquer morador ou proprietário de lotes da Vila Nova de Santo Estevão é livre de se associar, ou não, à autora, e só aos associados cumpre contribuir para a formação do património da associação autora.
Assim e sem necessidade de mais, entendemos que a autora não tem o direito a exigir da ré o pagamento das contribuições ou quotizações regulamentadas no artigo 3º do seu pacto de constituição e nos artigos 5º e 6º do seu Regulamento Interno, por a ré não ser sua associada.
Não significa isto, porém, que não assista à autora o direito a receber dos réus o equivalente a essas contribuições ou quotizações, ou outra qualquer quantia monetária, com fundamento legal diverso (ou se quisermos, por via de uma outra fonte obrigacional).
Conforme já se deixou dito, foi condição para a autorização de loteamento a transferência da gestão da área de protecção e enquadramento, integrada no domínio público do Município de Benavente, para os moradores ou grupos de moradores. Esta condição, de resto, ficou a constar da matrícula predial dos lotes adquiridos pelos primitivos réus.
Na nossa leitura, esta gestão, que foi atribuída aos moradores ou grupos de moradores, não se traduz num mero poder dos moradores, criado e pensado no seu exclusivo interesse ou para satisfazer os seus interesses privados. Do que se trata é de um verdadeiro dever imposto aos proprietários [pese embora a menção no alvará a moradores, julga-se que, terminologias à parte, não devem ser excluídos deste dever os proprietários que não sejam moradores, por estarem todos em igualdade de circunstâncias, ou seja, todos beneficiam do alvará e da gestão da zona de protecção e enquadramento]; dever esse, que foi contrapartida da autorização de loteamento, de que afinal são beneficiários os proprietários dos lotes.
Esta noção de dever, por oposição a poder, a nosso ver, tem arreigo no vocábulo «garantida» usado no alvará e transpostado para as matriculas prediais [«A gestão da área de protecção e enquadramento será garantida pelos futuros moradores ou grupo de moradores»]. A utilização do verbo garantir remete-nos decisivamente para a ideia de dever.
Sucede que, no caso, este dever de gestão da área de protecção e enquadramento não tem que ser assegurado por uma associação de moradores, formalmente constituída e actuando como tal, porquanto a terminologia usada no alvará, na nossa interpretação, tanto admite a actuação individual de cada morador, como a actuação de um conjunto de moradores (à margem de qualquer associação), como até a actuação de alguns moradores individualmente em conjunto com a actuação de um grupo de outros oradores.
A criação da associação autora foi uma solução escolhida por alguns proprietários, ao tempo da sua constituição, e acolhida pelo Município de Benavente, que com ela decidiu celebrar o acordo de cooperação aludido no alvará, mas daqui não decorre que todos os moradores tenham que integrar essa associação para que possam cumprir o seu dever de proprietários, ao nível da gestão da zona de protecção e enquadramento, já que essa solução colidiria frontalmente com o princípio de liberdade de associação. Nem a autora o pode exigir, nem o Município de Benavente.
Obrigar os proprietários a pagar contribuições ou quotas à associação autora, como forma de cumprirem as obrigações decorrentes para os moradores do alvará de loteamento, seria um caminho enviesado para os sujeitar à vontade de uma associação da qual não fazem parte.
Por outro lado, também não se afigura que caiba à Câmara Municipal e apenas a esta decidir qual a entidade que vai gerir a zona de protecção e enquadramento da VNSE.
Nesta conformidade, conclui-se que o alvará de loteamento impõe um verdadeiro dever – o dever de gestão da zona de protecção e enquadramento – e que esse dever recai sobre todos os proprietários, sejam eles, ou não, associados da autora.
Tal dever constitui, em nosso entender – e aqui indo ao encontro do já perfilhado pelo Tribunal da Relação de Évora nos dois acórdãos supra referidos – uma obrigação propter rem, que são aquelas que são inerentes à coisa (o bem imóvel) e que a acompanham, independentemente de quem seja o seu titular. Nelas, o sujeito passivo – o devedor – é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, ou seja, é determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa, nascendo e subsistindo, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção. Consequentemente, em caso de transmissão da coisa, e porque o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória, o novo titular do direito real (porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto) fica colocado, relativamente a esse estatuto, na mesma situação em que se encontrava o anterior, ou seja, as obrigações transmitem-se com o direito real de que elas decorrem, cabendo-lhe, como tal, a obrigação de realizar a prestação [cfr. acórdão do TRP de 08-09-2020, proferido no processo nº 25384/18.0T8PRT-A.P1, e disponível em www.dgsi.pt].
Quanto à densificação do dever em causa, embora pouco diga o alvará, diz o essencial: a gestão da zona de protecção e enquadramento, e nos contornos da operação urbanística em causa, outra coisa não se poderá entender senão que foram transferidas para os proprietários dos lotes obrigações de manutenção, conservação e preservação do espaço, como as que ficaram a constar da cláusula 3ª do acordo de cooperação que veio a ser celebrado com a autora, e que se deixaram elencadas na alínea 13) dos factos provados. Concluímos, portanto, que as obrigações assumidas pela associação autora por via do acordo de cooperação celebrado com o Município de Benavente constituem uma densificação ajustada e comedida do dever imposto aos proprietários, no alvará de loteamento.
A reforçar esta conclusão, atente-se que o alvará de loteamento remete a concretização da gestão da área de protecção e enquadramento para um futuro acordo de cooperação a celebrar «como previsto no art. 18.º do Dec. Lei n.º 448/91» (correspondente ao actual artigo 46º do Decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro), sendo que nos nºs 1 e 2 desse inciso legal se dispunha o seguinte: a gestão das infra-estruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva pode ser confiada a moradores ou a grupos de moradores das zonas loteadas e urbanizadas, mediante a celebração com o município de acordos de cooperação ou de contratos de concessão do domínio municipal; e os acordos de cooperação podem incidir, nomeadamente, sobre os seguintes aspectos: limpeza e higiene; conservação de espaços verdes existentes; manutenção dos equipamentos de recreio e lazer; e vigilância da área, por forma a evitar a sua degradação.
Outra coisa não se pode entender senão, também, que os custos inerentes ao cumprimento dessas obrigações têm de correr por conta dos proprietários, pois que seria desprovido de sentido, atribuir a gestão aos proprietários e obrigar o Município a arcar com os custos dessa gestão, julgando-se que, à luz de um declaratório normal, colocado na posição do real declaratório – aqui apelando ao critério normativo do artigo 236º do Cód. Civil – é essa a interpretação que melhor se ajusta à letra do alvará.
Sucede que, no caso, embora o dever de que vimos falando recaia sobre os proprietários dos lotes, entre os quais os réus – pelo simples facto de serem proprietários e estar em causa uma obrigação propter rem – está assente que é a autora quem vem assegurando em exclusivo a gestão da zona de protecção e enquadramento, suportando os respectivos custos, designadamente através do cumprimento das obrigações especificadas na cláusula 3ª do acordo de cooperação celebrado com o Município de Benavente.
Em síntese: tem sido a autora a cumprir a obrigação que recai sobre os réus, e sobre todos os outros proprietários dos lotes.
Esta conclusão, leva-nos a convocar o instituto da sub-rogação, regulamentado nos artigos 589º e seguintes do Cód. Civil.
Diferindo do entendimento do Tribunal da Relação de Évora, de 20-02-2024, não encontramos outro caminho para atribuir legitimidade (substantiva) à autora para demandar dos réus a compensação por despesas relacionadas com a coisa/bem imóvel, que ela suportou, mas cujos devedores originários são os réus, por serem os proprietários.
Em suma, à falta da cláusula quinta do mencionado contrato-promessa o elo obrigacional entre os réus e a autora nasce pela sub-rogação, salvo melhor opinião.
Mesmo quanto ao acordo de cooperação, também não se afigura que caiba à Câmara Municipal e apenas a esta decidir qual a entidade que vai gerir a zona de protecção e enquadramento da VNSE. Além disso, como se disse, obrigar os proprietários a pagar contribuições ou quotas à associação autora, como forma de cumprirem as obrigações decorrentes para os moradores do alvará de loteamento, seria um caminho enviesado para os sujeitar à vontade de uma associação da qual não fazem parte.
Julga-se que uma coisa é dizer-se que a obrigação é propter rem e que por isso mesmo cabe aos proprietários dos lotes, independentemente de qualquer vínculo contratual; outra é obrigar os réus a compensarem a autora porque ela cumpriu uma obrigação que era dos réus, e não da autora (nomeadamente porque os réus não contrataram com a autora a prestação de serviços que a mesma vem executando).
Ora, como ensina Antunes Varela, a sub-rogação é uma forma de transmissão de créditos, definindo-se, como sendo «a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento» [in Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª edição, pág. 324].
A lei admite duas espécies de sub-rogação: a sub-rogação convencional e a sub-rogação legal.
A sub-rogação convencional ou voluntária resulta de um acordo entre o terceiro que pagou e o credor primitivo, a quem é feito o pagamento, ou entre o terceiro e o devedor. A lei prevê três modalidades de sub-rogação voluntária: uma delas efectuada pelo credor e as duas restantes pelo devedor.
Em face dos contornos específicos do caso, importa desde já afastar a sub-rogação pelo devedor, consagrada no artigo 590º do Cód. Civil – desde logo, por falta de um acordo com o devedor, a ré –, assim como a sub-rogação legal, prevista no artigo 592º do Cód. Civil – atento que a autora não garantiu o cumprimento da obrigação da ré, nem se descortina qualquer interesse directo da autora no cumprimento dessa obrigação.
Outrossim, interessa in casu analisar os pressupostos da sub-rogação pelo credor, previstos no artigo 589º do Cód. Civil.
Desenvolvendo.
Manda o artigo 589º do Cód. Civil que: «O credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação.».
Precisando ideias, a prestação que está em causa é a gestão da zona de protecção e enquadramento; o credor desta prestação é o Município de Benavente; o devedor é cada um dos proprietários dos lotes abrangidos pelo alvará de loteamento.
Do normativo acabo de enunciar decorre que a validade da sub-rogação pelo credor exige uma declaração expressa de vontade nesse sentido, manifestada no acto do cumprimento da obrigação ou anteriormente. De contrário, entende-se que houve o propósito de extinguir a relação obrigacional e não o de transmiti-la pelo lado activo [neste sentido, Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 12º Edição Revista e actualizada, pág. 822].
Mas a sub-rogação para que seja expressa não tem de ser necessariamente feita por escrito, podendo também ser feita por outro meio directo de manifestação da vontade, cfr. previsto no artigo 217º do Cód. Civil.
Recorde-se que, no caso dos autos, o Município de Benavente celebrou o acordo de cooperação mencionado na alínea 13) dos factos provados, no qual expressou claramente a sua vontade de que seria a autora a cumprir o dever de gestão a cargo dos moradores de acordo com o alvará de loteamento e, se assim fez, outra coisa não se pode entender senão que cedeu à autora os direitos (ou créditos) que detinha sobre os moradores à associação autora.
Com efeito, entendemos que a vontade expressa pelo Município de Benavente ao longo de todos os considerandos e clausulado do acordo de cooperação celebrado com a autora (em momento anterior ao cumprimento por ela da prestação) é bastante para se terem por preenchidos os pressupostos do artigo 589º do Cód. Civil.
Sendo assim, existe de facto uma obrigação da ré, para com a autora, que tem por fundamento a sub-rogação do direito do Município de Benavente sobre a ré, a favor da autora, operada através do acordo de cooperação dos autos.
A sub-rogação coloca a sub-rogada, ora autora, na titularidade dos mesmos direitos que assistiam ao Município de Benavente, cfr. artigo 593º do Cód. Civil, o que, em termos quantitativos, se traduz no direito da autora exigir dos réus o pagamento da sua quota-parte nas despesas incorridas com o cumprimento das obrigações contempladas na cláusula 3ª do acordo de cooperação.
Em circunstâncias idênticas ao presente caso, defendemos na nossa decisão proferida no processo nº 240/21.9T8BNV, que, atenta a similitude entre a obrigação dos proprietários dos lotes e a obrigação dos condóminos na propriedade horizontal, é de aplicar a regra do artigo 1424º, nº 1 do Cód. Civil, de acordo com a qual cada um dos proprietários dos lotes deverá comparticipar nas referidas despesas na proporção do valor das suas fracções.
Melhor ponderando julgamos que, na verdade, não será esse o critério mais ajustado, pela circunstância de estar não estar em causa uma parte comum, de que todos sejam comproprietários em diferentes proporções, mas sim uma área que pertence ao domínio público, que não integra a propriedade privada de cada morador, mas relativamente à qual todos têm um interesse comum e em que a permilagem de cada um é indiferente.
Por outro lado, ressuma dos factos provados que toda a actividade da autora, até ver, tem estado relacionada com a prestação de serviços na zona de protecção e enquadramento da VNSE, nos termos do acordo de cooperação celebrado com a edilidade de Benavente. Daí que, o critério fixado por deliberação da assembleia-geral da APVNSE, realizada em 30-01-2010, julgado provado na alínea 12) dos factos provados, na medida em que exprime uma repartição dos custos incorridos pela associação com essa actividade se afigure ajustado e até pelo quantum mensal envolvido se possa depreender que é ajustado às tarefas envolvidas.
A contribuição de cada proprietário foi assim fixada por lote, fixando-se o valor devido pelos réus em 25 Euros mensais, por cada um dos lotes, uma vez que resultou provado que os seus lotes não têm moradias edificadas, pelo que recai sobre os réus a obrigação de pagar à autora a quantia de 25 Euros, desde Agosto de 2014, até Julho de 2019, por cada um dos lotes, correspondente ao valor de € 1.500,00, por cada lote, num total de 3.000 Euros, a que acrescem juros de natureza cível, desde a citação e até integral e efectivo pagamento.
Importa, igualmente, recordar quais os extractos mais relevantes do acórdão proferido pela Relação e que é agora objecto de revista:
“A relação contratual em que existe uma cláusula de transmissão da posição da vendedora que cria acessoriamente uma obrigação dos proprietários dos lotes em relação à conservação das partes comuns assume a natureza de obrigação propter rem e tem um conteúdo essencialmente privatístico.
O estatuto do direito real fixa os poderes que ao titular é permitido exercer sobre a res e as restrições ou limites a que esse exercício fica sujeito. Mas, a par disto, o estatuto do direito também pode impor ao titular, e impõe com frequência, deveres de conteúdo positivo. (...) É precisamente em relação a estes últimos que deve falar-se de obrigações reais, ob rem ou propter rem. Trata-se de vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra, titular ou não por sua vez de um ius in re, à realização de uma prestação de dare ou de facere” .
As obrigações que derivam deste estatuto não são obrigações que tenham na sua fonte um contrato ou um acto ilícito, porquanto elas derivam da simples circunstância da titularidade de um direito real.
Estas obrigações têm um regime específico respeitante à transmissão do direito real. Na verdade, «o problema da sucessão na obrigação propter rem — de origem legal ou negocial, pouco importa — apenas surge quando, verificados os pressupostos que no estatuto do direito real se mencionem e constituída, assim, a relação obrigacional, ocorra um acto translativo do direito real antes do cumprimento da obrigação».
Prosseguindo, Henrique Mesquita assinala que daqui decorre a existência de obrigações cuja transmissão se impõe para o novo titular do direito real a par de outras em que tal ambulatoriedade não acontece.
Ou, na lição de Oliveira Ascensão, a relação propter rem «transmite-se automaticamente a todo o novo titular do direito real» e «é insusceptível de transmissão independente do direito real a que se refere».
Antunes Varela sublinha que, entre outras, estão nessas circunstâncias a obrigação de reparar a coisa comum ou as partes comuns do edifício que constitua objecto da propriedade horizontal.
Do teor da escritura pública de constituição da Autora, da acta da sua assembleia-geral realizada em 30/06/2010, do seu regulamento interno, da certidão do registo predial e do acordo administrativo de cooperação celebrado entre a parte activa e o Município de Benavente resulta que estamos perante uma obrigação propter rem.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Regulamento Interno da APVNSE «são fins da Associação promover a protecção e defesa dos interesses dos Associados e demais proprietários de Vila Nova de Santo Estevão, no âmbito da segurança, limpeza, conservação, manutenção e demais condições de digna habitabilidade, defesa do ambiente, qualidade de vida e património natural e cultural da área inerente e circundante a Vila Nova de Santo Estevão, conforme determinado no alvará de loteamento do empreendimento».
A existência desse acordo de cooperação celebrado entre a Autora e o Município de Benavente tem como objecto a gestão da zona de protecção e enquadramento da Vila Nova de Santos Estevão, nos termos determinados no alvará de loteamento, e a prestação de serviços pela “Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estevão” para implementação desse acordo, sendo que, por força desses instrumentos de regulação, os custos são suportados através do pagamento de contribuições ou quotas mensais por parte dos proprietários de lotes integrados no empreendimento, sejam seus associados ou não.
Nos termos do alvará de loteamento compete à loteadora a gestão da referida área de protecção e enquadramento do empreendimento e essa administração passou a ser assegurada pela associação Autora e a supramencionada cláusula 5.ª consubstancia uma cláusula de transmissão da posição da vendedora no acordo celebrado com a compradora.
Neste campo, a associação de moradores/proprietários constituída, em conformidade com o alvará de loteamento, para assegurar a gestão das infra-estruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva, integra o elenco dos co-contratantes privados previstos no n.º 1 do artigo 46.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, com referência ao artigo 43.º do mesmo diploma.
Efectivamente, no contrato de aquisição está incluída uma obrigação de contribuir para o pagamento das despesas relacionadas com a segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior e, assim, face às vinculações reais existentes, a simples aquisição da propriedade implica um conjunto de deveres positivos ao nível da garantia do pagamento de despesas de condomínio.
As condições estabelecidas no alvará vinculam a Câmara Municipal e o proprietário do prédio e os adquirentes dos lotes, desde que constem do registo predial. Neste particular, Henrique Mesquita ensina que a obrigação “propter rem” se transmite sempre para o sub-adquirente do direito real a cujo estatuto se sente geneticamente ligado”.
A parte passiva beneficia de serviços de segurança, limpeza e outros que foram contratualizados directamente no instrumento de compra e venda, independentemente de ser ou não associada da Autora.
Não se comunga assim das considerações exaradas na sentença recorrida a propósito do motivo originário e determinante da dívida se basear na sub-rogação e no instituto do enriquecimento sem causa. Em suma, a obrigação de pagar as contribuições necessárias para custear as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, consagrada no artigo 1424.º do Código Civil tem natureza propter rem.
Não está aqui em causa a violação do direito ao associativismo, não sendo necessário que seja associado, pois existe uma vinculação de natureza real que obriga ao pagamento das despesas típicas de condomínio.
Não existe assim qualquer outro argumento recursivo que tenha a virtualidade de proceder, julgando-se improcedente o recurso interposto.”
Perante o exposto, as conclusões que se retiram são pois as seguintes:
É verdade que em ambas as instâncias acabou por se decidir que os réus ora recorrentes estavam obrigados a contribuir nos exactos termos peticionados pela autora para o pagamento das despesas, decorrentes do dever de gestão da zona de protecção e enquadramento, dever esse que recai sobre todos os proprietários sejam eles associados ou não da Autora.
No entanto, o que se verifica é que para a 1ª instância tal obrigação tem por motivo originário e determinante da dívida a sub-rogação e caso assim se não entenda o instituto do enriquecimento se causa.
Diversamente, para a Relação tal obrigação tem por base uma vinculação de natureza real, uma verdadeira obrigação propter rem.
Ora já vimos que “para que a dupla conforme deixe de actuar como obstáculo à revista, torna-se necessário, uma vez verificada a decisão confirmatória da sentença apelada, a aquiescência, pela Relação, do enquadramento jurídico suportado numa solução jurídica inovatória, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados na sentença proferida em 1ª instância” (neste sentido o recente acórdão do STJ de 13.03.2025, no processo 3039/14.0TBVFX.L2.S1, em www.dgsi.pt).
Face ao acabado de expor, deve pois considerar-se diversamente do que antes se entendeu, que estamos perante, “uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações, normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2015, processo nº 302913/11.6YIPRT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.).
Assim sendo e corrigindo a decisão singular antes proferida, deve pois considerar-se que a revista é admissível por não estarmos perante uma hipótese de dupla conforme o previsto na segunda parte do nº3 do art.º 671º do CPC.
E a ser assim e por evidentes razões de economia e celeridade processuais, impõe-se passar de imediato a conhecer do mérito do recurso, o que se faz nos termos seguintes:
I.Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por “Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estevão” contra DD e AA, a Ré e os demais herdeiros habilitados do primeiro Réu não se conformaram com a sentença condenatória.
A Autora peticionou a condenação dos Réus no pagamento da quantia de 3.000,00 € (três mil euros), bem como das contribuições vincendas, com juros de mora à taxa legal, a partir da citação.
Para o efeito, a Autora alegou que é uma associação sem fins lucrativos, com competência para assegurar a segurança, limpeza, conservação e manutenção da zona de enquadramento do empreendimento sito em Vila Nova de Santo Estevão, uma vez que estabeleceu com a Câmara Municipal de Benavente um Acordo Administrativo de Cooperação.
Mais invocou que os Réus são proprietários de dois prédios urbanos sitos em tal empreendimento e não têm liquidado as contribuições que a Autora fixou para cumprir tais objectivos, desde Agosto de 2014.
Em sede de contestação, a Ré AA defendeu-se por excepção, alegando que o dito Acordo Administrativo de Cooperação concretizado entre a Autora e a Câmara Municipal de Benavente não poderia ser extensivo à sua pessoa.
Salientou ainda que, ao não ser associada da aqui parte activa, não aceitava a imposição do pagamento peticionado a proprietários que não são membros da Autora, deduzindo a excepção de ilegitimidade.
Os autos prosseguiram e através de saneador-sentença o Tribunal “a quo” decidiu o mérito da causa, condenando os Réus nos termos peticionados.
Interposto recurso, o Tribunal da Relação de Évora decidiu julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deveria ser substituída por outra que, para além do saneamento strictu sensu, identificasse o objecto do processo e enunciasse os temas da prova, seguindo os autos para a fase do julgamento.
Foram julgados habilitados como sucessores do falecido Réu DD, o seu cônjuge AA e os seus filhos BB e CC.
Realizado o julgamento, a 1ª instância decidiu:
a) Condenar os Réus AA, BB e CC [os dois últimos tão-só na qualidade de herdeiros de DD] a pagar à Autora Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estevão a quantia de 3.000,00 € (três mil euros), correspondente às contribuições de Agosto de 2014 a Julho de 2019, pelos lotes n.ºs 65 e 616, acrescidas de juros à taxa de natureza civil, que até à data é de 4%, desde a data da citação (17-09-2019) até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar os Réus AA, BB e CC [os dois últimos tão-só na qualidade de herdeiros de DD] a pagar à Autora Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estevão as quantias que se vençam mensalmente, a título das contribuições periódicas referentes às despesas relacionadas com serviços de segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior, enquanto mantiverem a qualidade de proprietários dos referidos lotes e enquanto for a Autora prestar estes serviços, acrescidas de juros de mora, desde a data de vencimento até efectivo pagamento.
Desta decisão vieram os Réus interpor recurso de apelação.
Na sequência do mesmo recurso veio a ser proferido acórdão pelo tribunal da Relação de Évora no qual se decidiu julgar o mesmo improcedente e se confirmou a decisão recorrida.
Desta mesma decisão vieram os Réus interpor o presente recurso de revista que agora e nos termos sobreditos importa apreciar e decidir.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões de recurso dos réus/recorrentes (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC) e que nos autos é o seguinte:
A. O Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal ao julgar improcedente o Recurso interposto pelos aqui Recorrentes, confirmando, com fundamentação essencialmente diferente, a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, violou normas legais;
B. O Tribunal a quo ao aplicar ao caso concreto o regime das obrigações propter rem e o previsto no artigo 1424º do Código Civil violou a lei substantiva;
C. Uma obrigação propter rem traduz-se num vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrito para com outra, titular ou não por sua vez de um ius in re, à realização de uma prestação de dare ou de facere;
D. Nestes casos estão, por exemplo, as obrigações de contribuição para as despesas necessárias à conservação e fruição de partes comuns de edifícios que se encontrem constituídos em propriedade horizontal, nos termos do artigo 1424º do Código Civil;
E. Nos presentes autos não está nenhuma obrigação propter rem, porquanto apesar de os aqui Recorrentes serem titulares, à data dos factos, de um direito real, ou seja proprietários de lotes de terreno, os mesmos não ficaram adstritos para com a Recorrida, nem para com qualquer outra entidade, quanto à realização de qualquer prestação;
F. E muito menos ficaram adstritos ao pagamento das despesas típicas de condomínio, nos termos do artigo 1424º do Código Civil;
G. Acresce que, ao contrário do que é, mais uma vez, erradamente, referido no Acórdão de que se recorre, não existiu qualquer relação contratual entre os aqui Recorrentes e os vendedores dos lotes, na qual tenha sido estipulada uma cláusula de transmissão da posição da vendedora, que tenha criado assessoriamente uma obrigação dos proprietários dos lotes na contribuição no pagamento de despesas relacionadas com a segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior;
H. Veja-se neste sentido o facto dado como não provado b);
I. De toda a prova produzida não resultou que tenha existido a alegada cláusula 5ª que alegadamente consubstanciaria uma cláusula de transmissão da posição da vendedora no acordo celebrado coma comprador, nem sequer que no contrato de aquisição estivesse incluída uma obrigação de contribuir para o pagamento de quaisquer despesas;
J. Chama-se à atenção, novamente, no que diz respeito à alegada cláusula 5ª, para o facto não provado b);
K. Portanto, a Recorrente e o seu falecido marido nunca assinaram qualquer contrato, seja promessa de compra e venda, seja contrato definitivo, por referência à aquisição dos lotes de terreno em apreço nos presentes autos, nos quais constasse qualquer cláusula no sentido de que se obrigariam a contribuir para o pagamento das despesas relacionadas com a segurança e manutenção de espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior;
L. Acresce que, em causa nos presentes autos não estão partes comuns;
M. Veja-se que, do Alvará de loteamento, que alegadamente serviu de fundamento para a constituição da Recorrida não resulta a existência de quaisquer partes comuns, mas sim de áreas de domínio público municipal;
N. Portanto, estando em causa apenas a alegada gestão de áreas de domínio público municipal e não constando das cópias das certidões permanentes, a menção à existência de quaisquer partes comuns, não existem partes comuns;
O. E, portanto, não existindo quaisquer partes comuns, naturalmente não se poderá imputar aos Recorrentes a obrigação de pagamento das contribuições necessárias para custear as alegadas despesas necessárias à alegada conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, consagrada no artigo 1424º do Código Civil;
P. Sendo de se evidenciar que, certamente pelo facto de não estarem em causa partes comuns, nunca foi constituído qualquer condomínio;
Q. Nunca se poderá aplicar ao caso aqui em apreço o regime das obrigações propter rem, nem sequer o regime previsto no artigo 1424º do Código Civil;
R. Acresce ainda que, do Alvará de loteamento resulta que a gestão das áreas de protecção e enquadramento poderá ser garantida pelos futuros moradores ou grupo de moradores;
S. Não sendo obrigatória a constituição da Recorrida para que a gestão das áreas de protecção e enquadramento fosse garantida, já que a referida gestão poderia ser garantida pelos futuros moradores a título individual;
T. Mas mesmo que assim não se entendesse, ou seja, que a gestão das áreas de protecção e enquadramento tivesse que ser garantida pela Recorrida, por conta do Acordo de Cooperação celebrado, a verdade é que nunca poderiam ser imputados a todos os moradores, sem excepção, os alegados custos provenientes dessa gestão, mas apenas aos associados da Associação;
U. Isto porque, o Acordo de Cooperação foi celebrado pelo Município de Benavente e pela Recorrida, que é uma Associação, e que como tal só poderá vincular as pessoas e /ou outras entidades que sejam seus Associados e não outras pessoas e/ou outras entidades que não sejam suas Associadas;
V. Desta feita, e tendo em conta que nenhum dos Recorrentes era ou é associado da aqui Recorrida, nunca poderiam os mesmos ficar abrangidos pelo referido Acordo de Cooperação, nem sequer ser obrigados ao pagamento de quaisquer valores à Recorrida, a título de contribuições, porquanto as deliberações da mesma não vinculam, nem podem vincular os aqui Recorrentes;
W. Pelo que, também por esta razão, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, no sentido de condenar os Recorrentes ao pagamento de contribuições a uma Associação, à qual os mesmos não pertencem, violou o princípio fundamental estipulado no artigo 46º da Constituição da República Portuguesa, que é a liberdade de associação;
X. Perante o supra exposto, nunca poderiam os aqui Recorrentes serem condenados, impondo-se, pelo contrário, a absolvição dos mesmos.
Quanto à autora/recorrida esta nas suas contra alegações pugna pela improcedência do recurso e sem mais pela confirmação da decisão proferida.
Perante o exposto, resulta claro que são as seguintes as questões suscitadas no do presente recurso:
1ª) A não aplicação ao caso concreto do regime das obrigações propter rem;
2ª) A procedência/improcedência do recurso.
Prosseguindo.
É o seguinte o teor da decisão de facto que vem proferida das instâncias:
Factos Provados:
1. A Autora é uma associação sem fins lucrativos, constituída por escritura pública, em 21/07/2009, que tem por fim promover a protecção e defesa dos interesses dos associados, no âmbito da segurança, higiene e demais condições de digna habitabilidade, bem como a defesa do ambiente e qualidade de vida e património natural e cultural da área inerente e circundante a Vila Nova de Santo Estevão.
2) Por deliberação da sua assembleia-geral realizada em 26/07/2009 foi aprovado o Regulamento Interno da APVNSE – Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estevão [ou apenas APVNSE].
3) Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1º do Regulamento Interno da APVNSE «são fins da Associação promover a protecção e defesa dos interesses dos Associados e demais proprietários de Vila Nova de Santo Estevão, no âmbito da segurança, limpeza, conservação, manutenção e demais condições de digna habitabilidade, defesa do ambiente, qualidade de vida e património natural e cultural da área inerente e circundante a Vila Nova de Santo Estevão, conforme determinado no alvará de loteamento do empreendimento.».
4) Nos termos do disposto no n.º 2 do citado artigo 1.º, para prossecução dos fins enunciados, são competências da APVNSE, entre outras, assegurar a segurança, limpeza, conservação e manutenção da zona do empreendimento.
5) Nos termos do disposto no artigo 3.º do pacto de constituição da APVNSE constituem receitas da associação, entre outras, o produto das quotizações fixadas pela assembleia-geral.
6) Segundo o artigo 5.º do Regulamento Interno da APVNSE constituem receitas da associação, entre outras, «as importâncias provenientes do pagamento de quotas» e, ainda, «as quantias pagas pelos proprietários de lotes de Vila Nova de Santo Estevão que não sendo associados devam proceder ao pagamento de determinada quantia para fazer face às despesas da Associação no interesse de todos os Proprietários.».
7) Nos termos do disposto no artigo 6.º do Regulamento Interno da APVNSE, «a quota será mensal, podendo o seu pagamento ser feito em conjunto, anual, semestral ou trimestral. No caso de proprietários de terrenos sem construção, o pagamento deverá ser semestral ou anual.»
8) Nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do mesmo Regulamento Interno «o valor da quota é estabelecido em Assembleia Geral convocada para o efeito, por proposta da direcção».
9) Sob a Ap. 31 de 2001/02/15 da respectiva matrícula predial mostra-se registada a aquisição a favor de DD e AA, por compra à “C..., S.A.”, do prédio urbano correspondente ao lote n.º 65, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..74, da freguesia de CC, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..04, e sob a Ap. 31 de 2001/02/15 da respectiva matrícula predial mostra-se registada a aquisição a favor de DD e AA, por compra à “C..., S.A.”, do prédio urbano correspondente ao lote n.º 616, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..25, da freguesia de CC, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..54.
10) Os prédios referidos em 9) integram-se no alvará de loteamento n.º 8, emitido pela Câmara de Municipal de Benavente em 21/12/1998.
11) Sob a AP. 8 de 09/04/1999, da matrícula do prédio referido em 9), encontra-se registada a emissão do alvará de loteamento n.º 8 com o seguintes termos: «Autorizada a constituição de 673 lotes (…) A fim de interpor o domínio público municipal é a área total de 1.113.906,5 m2 – A gestão da área de protecção e enquadramento será garantida pelos futuros moradores ou grupo de moradores, mediante a celebração de «acordo de cooperação» entre estes e a Câmara Municipal como previsto no artigo 18.º do Dec. Lei n.º 448/91, condição de cedência ao domínio público da referida área e que será assumida pelos loteadores até à recepção definitiva das obras de urbanização (…);».
12) Por deliberação da assembleia-geral da APVNSE, realizada em 30/01/2010 foram estabelecidos os seguintes valores respeitantes às contribuições mensais a pagar pelos proprietários dos lotes situados no empreendimento de Santo Estevão:
(i) 25 Euros – lotes de terreno de 1.000 m2 e 2.000 m2
(ii) 35 Euros – lotes com moradia edificadas.
13) Em 27/04/2016 foi celebrado um acordo administrativo de cooperação entre o Município de Benavente, intitulada de primeira outorgante e a Autora, intitulada de segunda outorgante, mediante o qual esta se obrigou a garantir a limpeza e higiene, manutenção e a conservação das áreas de protecção e enquadramento e das áreas afectas a espaços livres públicos, a conservação e manutenção do circuito de manutenção, a conservação e manutenção da vedação limítrofe da urbanização, a replantação de novas espécies vegetais, paisagisticamente adequadas, efectuar a gestão florestal das áreas protecção e enquadramento e das áreas afectas a espaços livres públicos, elaborar plano de vigilância e segurança, a manutenção de um sistema de segurança tendo em vista obviar a degradação do espaço, equipamentos públicos e zonas verdes do loteamento urbano da Vila Nova de Santo Estevão, constando do mesmo os seguintes considerandos e cláusulas:
«Considerando que:
1) O Alvará n.º 8/98 titula a operação de loteamento e a 1.ª fase da execução das obras de urbanização, em Vila Nova de Santo Estevão.
(…)
4) À presente data, no que respeita à 1.ª fase de execução das obras de urbanização do loteamento encontram-se recebidas definitivamente pela Câmara Municipal todas as infra-estruturas, exceptuando parte residual de plantações, sementeiras e de circuito de manutenção, no âmbito de arranjos exteriores (o que é extensível às 2.ª e 3.ª fase – A das obras de urbanização, entretanto tituladas por aditamentos ao alvará de licença de loteamento inicial, respectivamente, datados de 08.05.1999 e de 27.12.2005);
(…)
7) Assim sendo, por razões de racionalidade e operacionalidade de meios e porque as infra-estruturas públicas do loteamento de Vila Nova de Santo Estevão constituem-se como um espaço que é e será essencialmente fruído pelos atuais e pelos futuros moradores nos lotes constituídos, se justifica que a sua gestão e manutenção seja atribuída a uma única entidade representativa dos mesmos.
Cláusula Primeira
Objecto
O presente acordo tem por objecto as partes da área de Protecção e Enquadramento e das áreas Afectas a Espaços Livres Públicos correspondentes às fases 1.ª, 2.ª, e 3.ª A das obras de urbanização do loteamento urbano de Vila Nova de Santo Estevão, melhor identificados no anexo I, bem como toda a área loteada, demarcada por vedação aramada com 8.000ml seus acessos e caminhos pedonais.
(…)
Cláusula Terceira
Obrigações do Segundo Outorgante
Pelo presente acordo cabe ao Segundo Outorgante
a) garantir a limpeza e higiene, a manutenção e a conservação das áreas da Área de Protecção e Enquadramento e das Áreas Afectas a Espaços Livres Públicos delimitados nos termos da cláusula primeira.
b) assumir a conservação e a manutenção do circuito de manutenção.
c) assumir a conservação e a manutenção da vedação limítrofe da urbanização.
d) promover a replantação de novas espécies vegetais, paisagisticamente adequados ao local;
e) efectuar a gestão florestal das áreas da Área de Protecção e Enquadramento e das Áreas Afectas a Espaços Livres Públicos delimitados nos termos das cláusulas primeira.
f) promover a elaboração do Plano de Vigilância e Segurança (adianta designado por Plano) a área definida na cláusula primeira.
g) vigiar e manter um sistema de segurança em toda a área objecto do presente acordo de cooperação, de forma a evitar qualquer degradação do espaço, equipamentos públicos e zonas verdes.
Cláusula Quarta
Obrigações do Primeiro Outorgante
Pelo presente acordo, cabe ao Primeiro Outorgante, em respeito do interesse público visada pela celebração do presente acordo:
(…)
h) acompanhar e fiscalizar a execução do acordo, nomeadamente no que respeita ao cumprimento pelo Segundo Outorgante das obrigações assumidas, bem como prestar o apoio técnico que se justifique, mediante análise casuística conjunta;
i) acompanhar e fiscalizar a execução do plano de vigilância e segurança referida na cláusula anterior;
j) desenvolver os necessários contactos com as autoridades locais, em particular com as forças de segurança e protecção civil, de modo a possibilitar o apoio articulado destas, às tarefas cobertas pelo mesmo plano de vigilância e segurança. 8…)
Cláusula Oitava
Prazo de Vigência
O presente acordo de cooperação é celebrado pelo prazo de cinco anos, contados a partir da data da sua outorga, prorrogável por períodos iguais e sucessivos, salvo rescisão expressa pelo Primeiro Outorgante, por razões de interesse público, devidamente fundamentado.»
14) Os prédios urbanos mencionados em 9) não têm moradia edificada.
15) A Ré não é associada da Autora.
16) A Ré não efectuou o pagamento das contribuições mensais objecto da deliberação mencionada na alínea 12), no valor de 1.500 Euros relativo aos meses de Agosto de 2014 a Julho de 2019, referente ao prédio 65, e no valor de 1.500 Euros relativo aos meses de Agosto de 2014 a Julho de 2019, refente ao prédio 616.
17) A gestão da área de protecção e enquadramento transferida para o Município de Benavente, nos termos do alvará de loteamento referido em 11) tem sido assegurada exclusivamente pela Autora, ao abrigo do acordo de cooperação celebrado com essa edilidade, através da prestação dos serviços mencionados na alínea 13), cujos custos são suportados pela Autora.
Com relevância para a decisão da causa, julgam-se não provados os seguintes factos:
a) A Autora exigiu aos Réus o pagamento das contribuições mencionadas na alínea 16) supra em momento anterior à propositura desta acção.
b) Dispõe a cláusula quinta do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a “C..., S.A.”, a loteadora do empreendimento de Vila Nova de Santo Estevão, e os promitentes-compradores dos lotes que o constituem, que «a fim de preservar a qualidade do empreendimento, a segurança dos utentes e assegurar a manutenção de um elevado nível de conservação dos espaços verdes e de utilização colectiva, o segundo contratante obriga-se a, após a data da outorga da escritura da ora prometida compra e venda, contribuir para o pagamento das despesas relacionadas com a segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior, contribuição que, durante o ano de 2001, não excederá o montante de 4.000$00/mês/lote e deverá ser paga à “Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estêvão”, a constituir”, conforme minuta utilizada para a celebração dos contratos promessa que se junta e dá por inteiramente reproduzida».
c) A falta de pagamento das contribuições devidas pelos proprietários põe em risco a segurança dos moradores e a segurança dos seus bens, assegurada pelos serviços de vigilância, bem como a limpeza, higiene, conservação dos espaços verdes e manutenção dos equipamentos.
Vejamos se tal entendimento merece ou não ser subscrito.
É sabido que a obrigação propter rem é aquela cujo sujeito passivo – o devedor – é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa (neste sentido cf. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979-512).
Mais, tal obrigação “consubstancia uma verdadeira relação creditória incrustada no estatuto do direito real, figurando como elemento do seu conteúdo (cf. Henrique Mesquita, R.D.E.S., XXIII, pág.153.).
A este propósito temos também como relevante a opinião de Rui Pinto Duarte, Direitos Reais, 2ª ed., Principia, 2007, a págs. 22 e seguintes, quando refere o seguinte: “Muitos direitos reais implicam deveres. São os casos, por exemplo, do dever dos comproprietários de contribuírem para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum (art.º 1411º, n°1), do dever dos condóminos de contribuírem para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns (art.º 1424º, n°1) e do dever dos usufrutuários de efectuarem as reparações ordinárias e de suportarem as despesas de administração (art.º 1472º, n°1). Alguns destes deveres são verdadeiras relações jurídicas obrigacionais. Na medida em que as mesmas façam parte do estatuto de um direito real, são chamadas obrigações reais ou obrigações propter rem. As obrigações reais não são direitos reais, mas sim, como dissemos, verdadeiras relações obrigacionais. (…).”
Cabe ainda salientar a ideia de que as obrigações reais se dizem ambulatórias quando se transmitem automaticamente com o direito real. O interesse da categoria «obrigações reais ambulatórias» é obviamente mais nítido que o da categoria «obrigações reais não ambulatórias» - pois estas não parecem ter um regime específico.
Contrariamente a outros ordenamentos jurídicos, a doutrina nacional continua a sustentar o interesse na “manutenção” destas duas categorias,
Isto porque o principal problema que as obrigações reais colocam é, precisamente, saber se são ambulatórias ou não.
Assim e como a lei não fornece um critério geral sobre o problema, são de aceitar os argumentos que, a propósito de quase todas as obrigações reais, apontam num e noutro sentido (a tal propósito a hipótese da obrigação que impende sobre os condóminos de contribuírem para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse (art.º 1424, n°1).
Tentando apresentar um critério geral que permita responder a tal questão, o Prof. Henrique Mesquita, Obrigações Reais, págs. 299 e seguintes, sugere o seguinte:
- Que sejam consideradas ambulatórias as obrigações reais de facere que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa objecto do direito real (v. g., o dever de realização de obras de reparação ordinária pelo usufrutuário imposto pelo art.º 1472º);
- Que sejam tendencialmente consideradas não ambulatórias todas as demais, nomeadamente a generalidade das obrigações pecuniárias (a excepção é constituída pelas obrigações cujos pressupostos materiais se encontram objectivados na coisa sobre que o direito real incide.
Conhecemos todos a discussão que tem a ver com a questão de saber se o carácter ambulatório das obrigações propter rem se aplica quer às obrigações meramente potenciais quer às obrigações existentes ou se pelo contrário se aplica apenas a estas últimas.
A este propósito, cabe analisar a hipótese da obrigação dos comproprietários de contribuírem para as despesas necessárias à conservação da coisa comum: assim se se encarar a obrigação em causa na sua vertente meramente potencial (a de contribuir se e quando for necessário), parece óbvio que a mesma acompanhará sempre a posição de comproprietário; por outro lado se se pensar numa obrigação actual de um comproprietário de contribuir para uma certa despesa de conservação (v. g., consertar o telhado que deixa passar água) já será discutível se, em caso de alienação da posição de comproprietário, a obrigação em causa a acompanhará.
Em nosso entender o entendimento que deve ser subscrito é o de o problema da transmissão automática das obrigações reais (ou seja, o do seu carácter ambulatório) só se coloca a propósito de obrigações existentes. Mais, perante a falta de norma expressa que defina tais regras, impõe-se concluir que não existe uma solução que responda a todos estes casos.
Por ser assim, cabe pois assumir que os supra referidos critérios definidos pelo Prof. Henrique Mesquita apenas podem ser tidos como indiciários.
Finalmente, importa não esquecer que, embora a categoria das obrigações reais tenha sido pensada para as obrigações de fonte legal, também se pode discutir a sua aplicação a obrigações cuja fonte é voluntária.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2003, no processo 03A531, em www.dgsi.pt. que “nas denominadas obrigações propter rem, obrigações que decorrem do estatuto dos iura in re, o sujeito passivo é o titular do direito real, in casu do domínio, e por ele e à custa dele devem ser satisfeitas”.
E disse-se ainda o seguinte:
“De notar que não se trata de uma obrigação de indemnizar, mas da obrigação de fazer coincidir a situação material da coisa com o estatuto do direito real que lhe molda o objecto.
Daí que se possa mesmo dizer que a violação do estatuto dos iura in re acabe por reflectir a "violação de um direito real alheio", tendo a respectiva obrigação propter rem "sempre como devedor o titular do direito real, mesmo que os actos que a originam sejam praticados por terceiro igualmente vinculado ao cumprimento" (Henrique Mesquita, "Obrigações Reais e ónus Reais" 309/311).
Obrigação propter rem, como a que agora se aprecia, resulta, pois, "directa e imediatamente, da aplicação do estatuto do direito à situação em que a coisa objectivamente se encontra". Nasce com a violação e subsiste, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção.
Consequentemente, em caso de transmissão, o novo titular do direito real fica colocado, relativamente a esse estatuto, na mesma situação em que se encontrava o anterior, ou seja, as obrigações transmitem-se com o direito real de que elas decorrem.
E quando tal sucede, escreve o Prof. Henrique Mesquita (ob. cit., 333), “o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória. Mesmo que ele, não obstante a alienação, se dispusesse a fazê-lo, só lograria efectuar o cumprimento caso o novo titular do direito real o autorizasse a interferir na res”.
Por isso, ou seja, porque a obrigação está ligada ao domínio e com o detentor desta posição jurídica coincide a legitimidade para nela interferir, é também este sujeito que deve realizar a prestação. Portanto, impõe-se também a conclusão de que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto.
Citando novamente Henrique Mesquita (loc. cit., 336), dir-se-á que, como obrigações ambulatórias que são, “trata-se sempre, em síntese, de obrigações que só podem ser cumpridas por quem seja titular do direito real de cujo estatuto promanam (...).”
Regressando ao caso concreto está visto por todos que nos autos o que está em causa é o pagamento formulado pela Autora contra os Réus e que teve por base a seguinte alegação:
A circunstância de ser uma associação sem fins lucrativos, com competência para assegurar a segurança, limpeza, conservação e manutenção da zona de enquadramento do empreendimento sito em Vila Nova de Santo Estevão, uma vez que estabeleceu com a Câmara Municipal de Benavente um Acordo Administrativo de Cooperação.
O facto de os Réus serem proprietários de dois prédios urbanos sitos em tal empreendimento.
O não pagamento pelos Réus e desde Agosto de 2014 das quantias correspondentes às contribuições que a Autora fixou para cumprir os supra identificados objectivos.
Sabemos que a 1ª instância julgou procedente a acção condenando os primeiros Réus no pagamento da quantia de 3.000 € (três mil euros), correspondente às contribuições de Agosto de 2014 a Julho de 2019, pelos lotes nºs 65 e 616, acrescidas de juros à taxa de natureza civil, que até à data é de 4%, desde a data da citação (17-09-2019) até efectivo e integral pagamento e os segundos Réus no pagamento das quantias que se vençam mensalmente, a título das contribuições periódicas referentes às despesas relacionadas com serviços de segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior, enquanto mantiverem a qualidade de proprietários dos referidos lotes e enquanto for a autora prestar estes serviços, acrescidas de juros de mora, desde a data de vencimento até efectivo pagamento.
Fundamentou tal decisão na figura jurídica da sub-rogação ou caso assim se não entenda no instituto do enriquecimento sem causa.
Sabemos também que a Relação apesar de confirmar tal decisão fundamentou a sua decisão de forma diversa chamando à colação as regras das obrigações propter rem.
Assim o que agora se discute é pois saber se o referido entendimento da Relação deve ou não ser sufragado.
Vejamos pois.
É consistente a ideia de que do teor da escritura pública de constituição da Autora, da acta da sua assembleia-geral realizada em 30/06/2010, do seu regulamento interno, da certidão do registo predial e do acordo administrativo de cooperação celebrado entre a parte activa e a Câmara Municipal de Benavente resulta que estamos perante uma obrigação “propter rem”.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Regulamento Interno da Associação de Proprietários de Vila Nova de Santo Estevão «são fins da Associação promover a protecção e defesa dos interesses dos Associados e demais proprietários de Vila Nova de Santo Estevão, no âmbito da segurança, limpeza, conservação, manutenção e demais condições de digna habitabilidade, defesa do ambiente, qualidade de vida e património natural e cultural da área inerente e circundante a Vila Nova de Santo Estevão, conforme determinado no alvará de loteamento do empreendimento».
A existência desse acordo de cooperação celebrado entre a Autora e o referido Município de Benavente tem como objecto a gestão da zona de protecção e enquadramento do empreendimento, os termos determinados no alvará de loteamento, e a prestação de serviços pela “Associação de Proprietários de Santo Estevão” para implementação desse acordo, sendo que, por força desses instrumentos de regulação, os custos são suportados através do pagamento de contribuições ou quotas mensais por parte dos proprietários de lotes integrados no empreendimento, sejam seus associados ou não.
Nos termos do alvará de loteamento compete à loteadora a gestão da referida área de protecção e enquadramento do empreendimento e essa administração passou a ser assegurada pela associação Autora e a supramencionada cláusula 5.ª consubstancia uma cláusula de transmissão da posição da vendedora no acordo celebrado com a compradora.
Neste campo, a associação de moradores/proprietários constituída, em conformidade com o alvará de loteamento, para assegurar a gestão das infra-estruturas e dos espaços verdes e de utilização colectiva, integra o elenco dos co-contratantes privados previstos no n.º 1 do artigo 46.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, com referência ao artigo 43.ºdo mesmo diploma, cujo respectivo teor é, recorde-se, o seguinte:
“Artigo 46.º (Gestão das infraestruturas e dos espaços verdes e de utilização coletiva):
1 - A gestão das infraestruturas e dos espaços verdes e de utilização coletiva pode ser confiada a moradores, a grupos de moradores das zonas loteadas e urbanizadas ou a entidades previstas no artigo 7.º, mediante a celebração com o município de acordos de cooperação ou de contratos de concessão do domínio municipal.
2 - Os acordos de cooperação podem incidir, nomeadamente, sobre os seguintes aspetos:
a) Limpeza e higiene;
b) Conservação de espaços verdes existentes;
c) Manutenção dos equipamentos de recreio e lazer;
d) Vigilância da área, por forma a evitar a sua degradação.
3 - Os contratos de concessão devem ser celebrados sempre que se pretenda realizar investimentos em equipamentos de utilização coletiva ou em instalações fixas e não desmontáveis em espaços verdes, ou a manutenção de infraestruturas.
Artigo 43.º (Áreas para espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas, equipamentos e habitação):
1 - Os projetos de loteamento devem prever áreas destinadas à implantação de espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas viárias, equipamentos e habitação pública, de custos controlados ou para arrendamento acessível.
2 - Os parâmetros para o dimensionamento das áreas referidas no número anterior são os que estiverem definidos em plano municipal ou intermunicipal de ordenamento do território.
3 - Para aferir se o projeto de loteamento respeita os parâmetros a que alude o número anterior consideram-se quer as parcelas de natureza privada a afetar àqueles fins quer as parcelas a ceder à câmara municipal nos termos do artigo seguinte.
4 - Os espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas viárias e equipamentos de natureza privada constituem partes comuns dos lotes resultantes da operação de loteamento e dos edifícios que neles venham a ser construídos e regem-se pelo disposto nos artigos 1420.º a 1438.º-A do Código Civil.
Verifica-se pois, que no contrato de aquisição está incluída uma obrigação de contribuir para o pagamento das despesas relacionadas com a segurança e manutenção dos espaços verdes, dos demais espaços de utilização comum e da vedação exterior e, assim, face às vinculações reais existentes, a simples aquisição da propriedade implica um conjunto de deveres positivos ao nível da garantia do pagamento de despesas de condomínio.
Pode ainda dizer-se que as condições estabelecidas no alvará vinculam a Câmara Municipal e o proprietário do prédio e os adquirentes dos lotes, desde que constem do registo predial (a este propósito e nos termos já antes referidos, cf. a opinião de Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, pág. 316, quando defende que a obrigação “propter rem” se transmite sempre para o sub-adquirente do direito real a cujo estatuto se sente geneticamente ligado).
Deve pois entender-se que a Ré beneficia de serviços de segurança, limpeza e outros que foram contratualizados directamente no instrumento de compra e venda e isto independentemente de ser ou não associada da Autora.
Quanto à alegada violação do direito previsto no art.º 46º da CRP, o que cabe dizer é o seguinte:
Sob o título «Liberdade de associação», dispõe do seguinte modo o artigo 46º da Constituição da República:
«1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
3. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela.
4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações que perfilhem a ideologia fascista».
“A associação é o principal dos tipos constitucionalmente protegidos de organização colectiva dos cidadãos (revestindo aliás várias formas: associações em geral, partidos, sindicatos) e integra, juntamente com os outros (cooperativas, comissões de trabalhadores, organizações populares de base territorial), aquilo que poderá ser genericamente designado como liberdade de organização colectiva dos cidadãos.” (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª edição, 1º vol., 2007, pág. 643).
A propósito do nº3 do mesmo artigo referem os mesmos autores que “componente intrínseco da liberdade de associação é o de que ninguém pode ser (ou continuar a ser) membro de uma associação sem a sua vontade de associar-se e, muito menos, contra a sua vontade (nº3). Garante-se assim a liberdade negativa de associação, isto é, a liberdade de se não associar ou de deixar de pertencer a associação de que seja membro, não podendo as autoridades públicas impor um acto de associação ou de adesão a uma associação ou a permanência numa associação, quer essa imposição seja directa, quer ela decorra indirectamente da sujeição de certo direito ou de certa vantagem ao acto de associação” (cf. obra citada, a pag.647).
Salvo melhor opinião, não pode dizer-se que nos autos e ao decidir-se como se decidiu se colocou em causa tal norma.
Isto porque salvo melhor opinião, não pode em bom rigor afirmar-se que os Réus foram obrigados a fazer parte ou coagidos a permanecer como membros da Associação de Proprietários de Santo Estevão.
De todo o modo não colhe a alegada violação do direito ao associativismo, já que a necessidade dos Réus serem associados, se mostra afastada pela existência da supra identificada vinculação de natureza real, em consequência da qual os mesmos estão obrigados ao pagamento das despesas que aqui se discutem.
Nestes termos é pois de concluir pela improcedência dos argumentos recursivos dos Réus.
Face ao exposto, nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 3 de Julho de 2025
Relator: Carlos Portela
1º Adjunto: Orlando dos Santos Nascimento
2ª Adjunta: Catarina Serra