O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal vocacionado para salvaguardar a aplicação da lei, substantiva ou adjetiva, está impedido de, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, conhecer das medidas tomadas de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, onde se enquadram aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de uma criança e das condições de vida dos progenitores, para decidir qual o local de residência que melhor acautela o interesse do menor.
Acordam em Conferência os Juízes da 2ªsecção do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. No âmbito do incidente de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, relativo à menor AA, sendo Requerente BB e , Requerido CC, foi proferida sentença que introduziu alteração ao regime de RRP vigente, designadamente - “ [..] no sentido de a criança passar a residir na ... com a progenitora, de onde esta é natural e para onde foi transferida ..[ ..] e decidindo-se assim, não será cortado o vínculo com o pai, sendo que em tempo de férias o convívio será alargado a toda a família paternal, consubstanciando na prática e em termos globais, um aumento de tempo de convívio paterno-filial.”
2. Inconformado, o Requerido interpôs recurso de apelação e pugnou, em síntese, pela revogação da sentença que “decidiu autorizar a mudança de residência da AA do ... (...) para a ..., aí fixando a residência junto da progenitora[..]”
3. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão tirado em unanimidade, revogou a decisão do tribunal a quo nesse tocante e repristinou o regime anterior, mantendo-se a menor a residir com a mãe, no ....
Do acórdão posto em crise, ressuma da fundamentação - “[…]Nessa parte, importa atender ao interesse da criança, tal qual o interpreta o Tribunal (vide o artigo 40.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, que reza: “Na sentença, o exercício das responsabilidades parentais é regulado de harmonia com os interesses da criança, devendo determinar-se que seja confiada a ambos ou a um dos progenitores, a outro familiar, a terceira pessoa ou a instituição de acolhimento, aí se fixando a residência daquela” – aplicável à alteração das responsabilidades parentais ex vi do n.º 5 do seu artigo 42.º: “O juiz ordena o prosseguimento dos autos, observando-se, na parte aplicável, o disposto nos artigos 35.º a 40.º”).E, efectivamente, volvendo já ao caso sub judicio – e aceitando que todos possam ter uma ponta de razão, embora esta não possa ser reconhecida a todos – se discorda afinal da decisão da 1ª instância, que não aparenta bem enquadrar o superior interesse da criança, que é o critério da lei nestas circunstâncias.
A progenitora/requerente invoca o seu próprio projecto de vida para levar a filha do ... para a ...; ainda por cima, por um período de 365 dias, findo o qual tem de regressar ao ..., onde continua ligada ao Comando .... E o projecto de vida da criança? Justifica-se alterar drasticamente a sua vida, tal como a conhece desde sempre?
Mas que circunstancialismo temos, afinal, que nos leve a revogar o que vem decidido da 1ª instância?
Vejam-se os seguintes factos provados: - 63 a 100 [..]
Vindo a concluir “Em síntese, discorda-se da solução encontrada de fixar a residência da menor, com a mãe, na Ilha da ... – sendo, todavia certo, como é normal nestes casos, que se se alterarem as circunstâncias que estiveram na base desta decisão, esta questão também poderá ser alterada no futuro (nunca constituindo, portanto, situações imutáveis). Para já, importa revogar-se a decisão impugnada e repristinar-se o regime das responsabilidades parentais que se encontrava em vigor aquando do presente pedido de alteração formulado pela progenitora – que constitui verdadeiramente o objecto do incidente – e não sendo caso para alterar mais nada, mormente a pretendida guarda partilhada da menor (que o pai veio enxertar no incidente), porquanto ficou demonstrado que, de momento, “A criança encontra-se integrada e adaptada ao regime de regulação das responsabilidades vigente, evidenciando uma ligação a ambos os progenitores, com sinais de vinculação consistente” (vide o ponto 100 da factualidade dada por provada). Já num futuro, todas estas questões relacionadas com a regulação.»
4. Inconformada, a progenitora interpôs recurso de revista, pugnando pela subsistência da sentença que acolheu a mudança da menor para a ..., acompanhando mãe para aí passar consigo a residir.
Na resposta, o requerido defendeu a improcedência da pretensão; interpôs, ainda, recurso subordinado do acórdão da Relação, no que respeita à fixação do regime de residência alternada, o qual foi pedido e não apreciado na primeira instância e pelo tribunal a quo.
5. Prefigurando-se a inadmissibilidade da revista, ouvidas as partes, a requerente sustentou a sua posição.
Por decisão da relatora não foi admitida a revista.
6.A recorrente pede agora a intervenção da Conferência com uso da faculdade estabelecida no artigo 652º, nº3º, do CPC.
Não foi junta resposta.
II. Fundamentação
A. Factos
À decisão relevam as incidências processuais que se enunciaram no relatório, sem prejuízo da compulsa das peças em apreço.
B. Do mérito
Antecipamos que não lhe assiste razão.
A reclamante retomou a argumentação anterior, com apelo à citação de arestos do Supremo Tribunal, que, s.d.r., reportam a situações de recorte casuístico distinto.
Da insurgência com o acórdão da Relação destaca-se:
“(..) 11.º Pelo que perante os mesmos factos provados, e sem alteração dos mesmos, podem duas instâncias ter duas decisões distintas?
12.º Não tendo o Tribunal da Relação analisado qualquer facto que permitisse a alteração da decisão da 1. ª Instância.
13.º Pelo que em questões de oportunidade e conveniência, foi o Tribunal da Relação que as aplicou.
14.º A Recorrente apenas pretende que seja aferida a legalidade da decisão do Tribunal da Relação, porquanto esta assentou na matéria dada como provada e que assegurava o superior interesse da criança - veja-se matéria provada na sentença nos pontos LV, LVII e LVIII.
15.º O Tribunal da Relação ao aferir um critério orientador usou-o de forma contrária ao do Tribunal da Primeira Instância.
16.º Pelo que questionamos de que forma está a interpretação da lei e a sua aplicação assegurada neste sentido. (…)”
A recorrente diverge, é certo, do julgado da Relação que não acolheu a sua pretensão de a filha de poder acompanhá-la a ir residir na Ilha ....
No acórdão considerou-se para tal o seguinte:
“(..)A progenitora/requerente invoca o seu próprio projecto de vida para levar a filha do ... para a ...; ainda por cima, por um período de 365 dias, findo o qual tem que regressar ao ..., onde continua ligada ao Comando .... E o projecto de vida da criança? Justifica-se alterar drasticamente a sua vida, tal como a conhece desde sempre? (…) 89. O Requerido CC, com 40 anos, militar ... a exercer funções na ... com horário das 9 horas às 17 horas, aufere salário de € 1.350,00, residente em ... com actual companheira (DD, empregada de ...). 90. Paga € 175,00 de pensão de alimentos, acrescida de 50% de infantário, terapia da fala, participa no pagamento na proporção de metade das despesas médicas/medicamentosas.91. A AA encontra-se bem integrada no actual contexto vivencial, quer a nível familiar, como médico e pré-escolar.92. Actualmente, face ao horário profissional, tem maior disponibilidade para acompanhar o desenvolvimento da filha. (..) 96. Actualmente, é seguida pelo médico de família, terapeuta da fala e oftalmologia pediátrica, necessitando de correção ocular.97. Encontra-se bem integrada no infantário que frequenta, desde o ano lectivo 2022-2023, sendo uma criança muito meiga e querida por todos, quer pelo grupo de pares, como por educadora e auxiliares.98. A criança é assídua, pontual, muito feliz, apresentando-se sempre adequadamente vestida consoante as condições climáticas. Demonstra fácil adaptabilidade a novas situações propostas. Relata, com expressa gratificação, o que acontece em casa da mãe e do pai, incluindo também a namorada do pai.99. Quando o progenitor a vai buscar ao infantário é notória a alegria do reencontro com o pai, correndo para os seus braços, tal como o faz com a mãe.100. A criança encontra-se integrada e adaptada ao regime de regulação das responsabilidades vigente, evidenciando uma ligação a ambos os progenitores, com sinais de vinculação consistente. (..)” “A criança encontra-se integrada e adaptada ao regime de regulação das responsabilidades vigente, evidenciando uma ligação a ambos os progenitores, com sinais de vinculação consistente” (vide o ponto 100 da factualidade dada por provada). Já num futuro, todas estas questões relacionadas com a regulação do exercício das responsabilidades parentais da menor AA podem voltar a ser equacionadas e eventualmente, modificadas, dependendo das circunstâncias que se forem sucedendo quer na vida da mesma, quer na dos seus progenitores. (..)”
Parece, pois, irrecusável que o Tribunal da Relação decidiu em resultado da ponderação das condições concretas de vida da criança, concluindo ser inadequada tal alteração de residência, orientado em exclusivo por critérios de conveniência e oportunidade, com vista à tutela do seu interesse, contrária à mudança tão significativa seu do meio e inserção familiar, social e escolar.
O Supremo Tribunal de Justiça, vocacionado para salvaguardar a aplicação e interpretação da lei, não pode conhecer das medidas tomadas de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, e onde se enquadram aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para decidir do local de residência.
Posto isto, acompanha-se o sentido de não admissão da revista do despacho da relatora e aqui se reproduz, em economia de actos.
«(…) Situamo-nos em sede de procedimento processual da regulação das responsabilidades parentais de AA e o objecto incidental à alteração do regime vigente incidiu sobre a alteração de residência da menor para a ..., aí passando a viver com a mãe que pediu transferência profissional; decisão revogada pela Relação de Évora nos termos do acórdão ora impugnado pela requerente.
O acórdão impugnado reporta a decisão proferida em incidente de alteração das responsabilidades parentais, configurando uma providência tutelar cível -artigo 3.º, alínea c) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), sujeita ao regime geral das providências cautelares cíveis, de acordo com o disposto no artigo 12ºdaquele diploma legal.
De acordo com o princípio acolhido no artigo 987º do CPC, no julgamento dos processos de jurisdição voluntária, “o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.”
O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal vocacionado para salvaguardar a aplicação da lei, substantiva ou adjetiva - artigo 674º do Código de Processo Civil - está impedido de, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, conhecer das medidas tomadas de acordo com critérios de conveniência e oportunidade.
Conforme preceitua o artigo 988º, n.º 2, do CPC - não admitem revista as decisões proferidas no âmbito de processos de jurisdição voluntária, segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.1
Isto, porquanto, a opção pela(s) solução(s) mais conveniente(s) e oportuna(s) é inextricável da apreciação e ponderação da situação de facto em que os interessados se encontram, e posto que o Supremo Tribunal de Justiça não tem poderes nesse âmbito da matéria de facto - artigo 674º e 682º do CPC, ou seja, a lei adjetiva limita a respetiva admissibilidade de recurso até à Relação.
Na doutrina, Rui Pinto explicita «[…]se o objeto de recurso de apelação é irrestrito, apenas com especificidades quanto à oportunidade da sua dedução (cf. art. 644º), já o objeto do recurso de revista é tipificado pela lei […]. Nesta perspectiva, o direito ao recurso é essencialmente garantido pelo regime do recurso de apelação, ficando reservada para a revista uma função de estabilização e uniformização na aplicação do direito (…).»
Em linha de orientação paralela, também, Abrantes Geraldes, faz notar que «(..) com o CPC de 2013 se encontra consolidada a ideia de que o triplo grau de jurisdição em matéria cível não constitui garantia generalizada. Ainda que ao legislador ordinário esteja vedada a possibilidade de eliminar em absoluto a admissibilidade do recurso de revista para o Supremo […], ou de elevar o valor da alçada da relação a um nível irrazoável e desproporcionado que tornasse o recurso de revista praticamente inatingível na grande maioria dos casos, não existem obstáculos à previsão de determinados condicionalismos a tal recurso. Aliás, [..] o Tribunal Constitucional vem uniformemente entendendo que as normas que, em concreto, restringem o recurso para o Supremo não estão feridas de inconstitucionalidade. O mesmo se poderá dizer das regras que limitam o recurso de decisões intercalares […]2.»
5.1. Dito isto, na situação em juízo confirma-se a apreciação liminar.
Tal como ilustra o excerto do acórdão impugnado, cuja transcrição parcial consta acima, a decisão de manter a residência da menor com a mãe no ..., e não na ..., conforme vontade da progenitora, que detém a guarda, suportou-se na avaliação do complexo fáctico actual e circunstancial da vida da criança e dos seus pais, meio social, escolar, rede de apoio e outros.
Ou seja, na procura da melhor solução na tutela do interesse da criança, atenderam à situação concreta da menor e inserção familiar, ponderando os prós e contras, orientados por critérios de adequação e de razoabilidade, que não contendem com matéria de legalidade estrita 3.
De igual modo, as alegações da recorrente revelam em eloquência, que o objecto da sua discordância com o acórdão, não se centra no processo de interpretação e aplicação da lei prosseguido pela Relação; a recorrente debate outrossim, a conveniência da ida para a ..., perante aquela mesma realidade fática e conjuntura.
Ou, por outras palavras, a recorrente não põe em causa que a Relação tenha atingido o superior interesse da criança, mas apenas que na solução que prosseguiu fez uma errónea apreciação e concretização desse interesse e da qual discorda.
De outro passo, é jurisprudência unânime que as nulidades decisórias previstas nos artigos 615º e 666º do CPC, não constituem fundamento autónomo de revista e serão apenas apreciadas acessoriamente, na circunstância de o recurso (com outro fundamento) ser admitido 4.
Como expressa o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de 17-11-2021:
« II. Entre as decisões de que não é admissível recurso de revista estão aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão sobre o regime de residência alternada ou sobre o regime de visitas dos pais, de acordo com critérios de adequação e de razoabilidade.
III. O facto de se alegar que foi violado um conjunto de disposições legais, sem especificar as razões de facto e de direito por que teriam sido violadas, não significa que sejam suscitadas questões de legalidade e, em todo o caso, nunca transformaria questões de conveniência ou de oportunidade em questões de legalidade.5»
No mesmo escopo, mais recente, consta do sumário do Acórdão do STJ de 18.04.20246:
«I. O processo tutelar comum, é um processo de jurisdição voluntária, nele se impondo como limite recursório o Tribunal da Relação, sem prejuízo de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, desde que estejam verificados os pressupostos gerais de recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação e estejam em causa questões de legalidade estrita.
II. Como casos típicos de decisões tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade são apontadas aquelas em que sejam ou devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão relativamente à guarda, ao regime de visitas e à pensão de alimentos, pois que nesse aspecto não há regras de determinação legal vinculativa moldando-se a decisão a proferir sobre princípios de ampla disponibilidade.»
5.3. Em conclusão, o acórdão revidendo, com base em juízos de oportunidade ou de conveniência, avaliou e ponderou a situação de facto em que se encontra a criança e os progenitores, com vista à prossecução do superior interesse daquela, correspondente a uma valoração estritamente factual e não a uma valoração jurídica.
Quanto ao recurso subordinado, na dependência do recurso principal, caduca não sendo apreciado o mérito do recurso principal- artigo 633º do CPC.
6.Pelo exposto, visto o preceituado no artigo 652º, nº1, al) b ex vi 679º do CPC, rejeita-se o conhecimento da revista interposta por BB, e por decorrência a revista subordinada interposta pelo requerido.
III. Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão de não admissão da revista.
Custas a cargo da reclamante, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.
Lisboa, 3.07.2025
Isabel Salgado (relatora)
Maria da Graça Trigo
Carlos Portela
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1. Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, II, pág.434; e conforme jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal, v.g. Ac.STJ 17 de maio de 2018729/15.4T8BRR.L1. S1, E Ac. STJ de 06 junho 2019, proc. 2215/12.0TMLSB-B. L1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt.
2. In Notas ao Código de Processo Civil, 2015, pp. 174/5.
3. “evidenciando uma ligação a ambos os progenitores, com sinais de vinculação consistente”
4. Cf. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2020, Proc. 1284/09.4TMPRT-B. P1.S1; e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, em comentário ao artigo 671.º e ao artigo 674.º do CPC, refere que caso não seja interposto ou não for admissível o recurso de revista as nulidades de acórdãos podem ser autonomamente arguidas– mas apenas perante a Relação, nos termos do artigo 615.º, n.º 4, do CPC.