RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
VALOR DA AÇÃO
ALÇADA
AÇÃO EXECUTIVA
DESPEJO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário


O recurso de revista não é admissível quando, entre outras coisas, o valor da causa é manifestamente inferior à alçada do Tribunal da Relação.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Reclamante: AA

1. Nos presentes autos de execução comum, em que é exequente Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e executado BB, foi proferido, em 8.01.2024, o seguinte despacho:

Atento o requerido e o disposto no nº 4 do artº 757 e no artº 767, ambos do Código do Processo Civil, autorizo a intervenção da força pública de segurança”.

2. Notificado do agendamento da deslocação da PSP para despejo do locado e não se conformando com a decisão proferida, veio AA interpor recurso de apelação.

3. O Tribunal da Relação proferiu, em 15.01.2024, uma decisão sumária julgando-se improcedente a apelação e, em consequência, confirmando-se a decisão recorrida, e, em 16.01.2024, sob reclamação do apelante, um acórdão (Acórdão recorrido), em que se desatendeu a reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada, com a improcedência do recurso.

4. Ainda não conformado, veio AA, sem mais, “interpor recurso contra o douto acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, que é de Revista, tem efeito suspensivo e sobe imediatamente nos próprios autos”.

Alegou, em conclusão, o seguinte:

1ª O ora Recorrente tomou conhecimento de que teria de desocupar, no dia 14 de Agosto de 2019, a casa de morada de família, precisando-se que o único executado no processo executivo é o Sr. BB, o qual já não mora na casa do IHRU desde 1992, tinha rendas em atraso e nunca mais voltou, tendo o embargante de terceiro e ora recorrente assumido a divida das rendas do referido BB com a promessa de alteração da titularidade do locado para seu nome.

2ª Não se consegue alcançar porque razão se refere que foram apresentados embargos de terceiro e ao mesmo tempo se sustenta que o Recorrente deveria ter apresentado embargos de terceiro. Efetivamente lançou mão desde procedimento.

3ª Independentemente das circunstâncias que rodearam a transmissão de posição contractual de facto e contra qual o IHRU nunca reagiu e, que se saiba, o silêncio tem sempre um significado mesmo quando se trate de um organismo do estado como é o caso do IHRU, sendo igualmente certo que até por força da CRP, de aplicação imediata em matéria de habitação social.

4ª O IHRU não pode dar o dito por não dito e uma situação de facto com mais de 20 anos que nunca foi escondida, e integrando-se o Recorrente no leque das pessoas que podem e devem ter direito a uma habitação social, a respetiva expectativas tem de merecer relevância jurídica, afigurando-se evidente que a execução interposta contra alguém que já não mora no locado há mais de 20 anos, sabendo o IHRU quem ai reside se verifica um manifesto abuso de direito que determina a nulidade da própria execução.

5ª Deduziu os competentes embargos, alegando, em suma, que efetuou no locado obras necessárias destinadas a garantir condições mínimas de habitabilidade, designadamente canalizações, regularização de roços; pinturas, reparação de 2 quartos, rebocos, tacos, etc…

6ª Alegou ainda que tais obras foram previamente autorizadas pelo representante do senhorio, através de várias visitas e até de deslocações do Recorrente ao IHRU para regularização da situação, inclusive com a pendência no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, numa ação administrativa de reconhecimento do direito a permanecer na habitação, na qual o IHRU foi citado, apresentou Contestação e se encontra a aguardar a marcação do julgamento.

7ª O Recorrente, tendo sido informado e ainda não citado, apresentou os competentes embargos de terceiro e deduziu o correspondente pedido de indemnização, alegando, em suma, que efetuou no locado obras necessárias destinadas a garantir condições mínimas de habitabilidade, designadamente canalizações, regularização de roços; pinturas, reparação de 2 quartos, rebocos, tacos, etc… Alegou ainda que tais obras foram previamente autorizadas pelo senhorio e que iriam ser tidas em conta para efeitos de compensação sobre o valor das rendas.

8ª Mais, alegou ainda que para ser compensada do valor gasto teria de receber a competente indemnização ou ver pagas as rendas vincendas até ao montante da indemnização.

9ª No presente caso afigura-se incontornável a existência de conexão objetiva entre as duas ações, sendo que o pedido reconvencional emerge do fato jurídico que serve de fundamento à defesa.

10ª A celeridade processual não pode fazer perigar nem o direito de defesa nem o contraditório tanto mais que a segurança na habitação prevalece sobre o interesse económico relativo ao despejo.

11ª Aliás, como pode ser salvaguardado o direito à extinção da obrigação de pagamento das rendas com base na invocada compensação com base na realização das obras necessárias se a reconvenção não for admitida, tanto mais que a cada direito corresponde uma ação destinada a fazê-lo valer em juízo.

12ª Tanto o possuidor de boa-fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. 2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

13ª As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.

14ª A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho ou da sentença. Tratando-se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o tribunal da 1ª instância a fundamente.

15ª Por outro lado, o douto despacho não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pela A, limitando-se a reproduzir um conjunto de considerações que são válidas para “N” ações, mas que não consubstanciam minimamente o cumprimento do imposto. 16º

Prescreve, então e no que ora nos interessa, o artigo 334.º do C.C., primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

17ª Quer-se, pois, tutelar ou permitir uma válvula de escape perante um determinado modo de exercício de direito ou direitos, que, apresentando-se formal e aparentemente admissível, redunda em manifesta contrariedade à ordem jurídica.

18ª Há abuso de direito quando um determinado direito – em si mesmo válido –, é exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social (Ac. RL, de 16 de Maio 1996, processo nº 0012472, sumário em dgsi.pt).

19ª Promover o despejo sem dar a possibilidade ao arrendatário de alegar e fazer prova de que efetuou obras necessárias e tais valores são adequados a fazer extinguir a obrigação de pagar as rendas reveste objetivamente uma contradição com os fundamentos inquinando de nulidade o despacho recorrido, desde logo com base no instituto do abuso de direito, o qual se invoca para todos os efeitos”.

5. Em 19.03.2025 foi no proferido Tribunal da Relação de Lisboa um despacho com o seguinte teor:

Por estar em tempo, ter o recorrente legitimidade, ser o despacho recorrível, mostrando-se dispensado o pagamento da taxa de justiça inicial pela interposição do recurso, contendo o recurso alegações, admito o recurso interposto que é de revista, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, uma vez que “o recurso de revista só tem efeito suspensivo em questões sobre o estado das pessoas (cfr. art. 676º, nº 1 do CPC)”.

6. Em 30.03.2025 proferiu a presente Relatora o seguinte despacho:

“Cumprindo apreciar, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, observa-se, desde logo, que o Acórdão recorrido confirma sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância. Existe, portanto, o obstáculo conhecido como dupla conforme (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC), que, não tendo sido invocado, na alegação, fundamento específico de recorribilidade, só poderia ser superado se o recurso fosse admitido por via excepcional (cfr. artigo 672.º do CPC) – bem-entendido, se esta tivesse sido alegada.

Sucede, porém, que se configura um obstáculo maior, no sentido de que se sobrepõe à dupla conforme e inviabiliza a admissão do recurso ordinário de revista por qualquer das vias – da via normal e, consequentemente, da via excepcional, já que esta apenas permite superar a dupla conforme.

Nos termos do artigo 629.º, n.º 1, do CPC, “[o] recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.

Ora, o valor da presente causa está fixado em € 5.064,88, o que significa que é consideravelmente inferior à alçada do tribunal recorrido e que o valor em que a decisão impugnada é desfavorável ao recorrente é inferior a metade da alçada do tribunal recorrido.

Pelo exposto, são fundadas as dúvidas sobre a admissibilidade do presente recurso.

Cumpra-se o disposto no artigo 655.º, n.º 1, do CPC”.

7. No exercício do seu direito, veio o recorrente alegar:

AA, tendo sido notificado, vem dizer que se encontra alegado e está amplamente demonstrado que o despejo do Recorrente de uma casa social do IHRU na qual reside há 25 anos se afigura estar em causa interesse de particular relevância social.

De facto, conservar tal habitação social ao longo de 25 anos implica ter despendido mais de 20 000,00€ em obras necessárias pois que o IHRU nada fez nem suportou, devendo tal prazo ser mais do que bastante para que se considere que o Recorrente dispõe de um título legitimo.

Aliás, o despejo de um agregado familiar desempregado e com dois filhos menores é de tal modo grave que interessa em termos particulares que seja conhecido o recurso tanto mais que quem pretende despejar é o IHRU pasme-se, a quem compete atribuir casas de habitação social aos mais carenciados, sendo tal contradição particularmente grave pois que se pretende despejar o Recorrente executando uma pessoa que há mais de 25 anos deixou de residir no locado.

Termos em que deve o Recurso ser admitido e julgado procedente por provado”.

8. Foi proferido, então, despacho pela presente Relatora, em que pode ler-se:

As alegações do recorrente apresentadas por último são visivelmente inúteis para contrariar a conclusão a que se chegou por força da lei – de que o recurso é inadmissível, nos termos antes explicitados.

E para o caso de com a referência a “estar em causa interesse de particular relevância social” o recorrente pretender aludir agora – quando, de todo o modo, já não poderia – à via da revista excepcional, recorde-se o que se disse antes, ou seja, “que se configura um obstáculo maior (…).

Nos termos do artigo 629.º, n.º 1, do CPC, ‘[o] recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa’.

Ora, o valor da presente causa está fixado em € 5.064,88, o que significa que é consideravelmente inferior à alçada do tribunal recorrido e que o valor em que a decisão impugnada é desfavorável ao recorrente inferior a metade da alçada do tribunal recorrido”.

Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o presente recurso de revista.

Custas pelo recorrente”.

9. O recorrente vem agora insistir na admissibilidade do recurso, através do mecanismo da reclamação para a conferência, previsto no artigo 652.º, n.º 3, do CPC.

Alega o seguinte:

AA, tendo sido notificado da douta decisão singular, por não se conformar, vem Reclamar para o Exmo . Presidente do Supremo Tribunal de Justiça contra a não admissão do Recurso, nos termos e com os fundamentos seguintes:

1º O presente Recurso foi interposto como de Revista, com efeito suspensivo, designadamente por se considerar que:

2º Por um lado, está em apreço a manutenção numa casa social do IHRU na qual o Reclamante e o seu agregado familiar residem há mais de 25 anos, sem qualquer interrupção e com o conhecimento do IHRU.

3º Pretender colocar na rua um agregado familiar no contexto descrito no artº anterior configura uma casa com interesse de particular relevância social.

4º De facto, ao longo de 25 anos, que quem efetuou as obras de conservação no locao que acendem a mais de 20000,00€ foi o Reclamante com flagrante omissão do IHRU em efetuar as obras, sendo certo que nos termos da lei de base das rendas o IHRU não pode proceder a qualquer aumento da renda pois que o castigo da não realização das obras consiste nessa proibição de aumento a qual sanção não pode deixar de existir no que toca ao direito de uso e habitação por parte do reclamante.

5º Dispõem assim o Reclamante um titulo legitimo contra que regula a habitação a nível nacional e ao mesmos tempo figura no presente processo como entidade gestora do património social.

6º Para alem da relevância já invocada tem base legal na CRP (segurança na designadamente de natureza social e no artigo 672º nº1 al b) do CPC, habitação,

7º Importa ainda sustentar que pretender executar quem não reside no locado há mais de 30 anos e que por ventura terá falecido há duas décadas, eventualmente para prejudicar o direito de defesa do Reclamante, não pode deixar de enquadrar a figura jurídica do abuso de direito prevista no artº 334º do CC invocado na Conclusão 16ª, o que atento o caráter ostensivo de tal violação, deve determinar a ilegalidade do procedimento judicial escolhido pelo IHRU.

8º Efetivamente, é notória a falta de interesse passivo do falecido!!!

Termos em que, deve a presente Reclamação ser admitida, julgada procedente por provada proferindo-se despacho a admitir o Recurso de Revista”.


*


A questão a decidir pelos Juízes nesta Conferência é, em síntese, a de saber se é ou não inadmissível o recurso de revista.

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos relevantes para a presente decisão são os apresentados no Relatório que antecede e que se dão aqui por reproduzidos.

O DIREITO

Mais uma vez o recorrente / ora reclamante vem aduzir argumentos que, visivelmente, não são de todo atendíveis nesta sede.

As razões – razões cumulativas – pelas quais este recurso não é admissível foram claramente explicadas / reiteradas nos dois despachos que antecederam a presente decisão, pelo que é dispensável repeti-las.

Dir-se-á ainda mais: torna-se visível que o reclamante vem insistir numa pretensão cuja falta de fundamento ele próprio não pode razoavelmente ignorar.


*


III. DECISÃO

Pelo exposto, confirma-se o despacho reclamado e mantém-se a decisão de inadmissibilidade da revista.


*


Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*


Lisboa, 3 de Julho de 2025

Catarina Serra (relatora)

Orlando Nascimento

Carlos Portela