I - Quando uma parte faz derivar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre uma determinada fracção, de toda posse que exerceu sobre ela desde 2006 até Setembro de 2022, mas em que uma parcela dessa posse já havia sido alegada noutra acção, em que se decidiu com trânsito em julgado no sentido da improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade fundado na usucapião, é de concluir no sentido da identidade da causa de pedir entre as duas acções.
II – O período de posse não considerado na acção anterior teria relevância para afastar os limites do caso julgado formado pela decisão nela proferida, se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade nela formulado tivesse sido julgado improcedente com o fundamento de que ainda não tinha decorrido o tempo necessário para a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade.
a. Se declarasse e reconhecesse que ela, Autora, é a única dona e legítima proprietária e possuidora do seguinte prédio identificado em 1.º da presente petição: a fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao n.º 9 do prédio sito na Rua da ..., lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ... composta por casa destinada a habitação de rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, inscrita no Serviço de Finanças de ... sob o artigo matricial urbano ..94-G daquela freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha ..27-G também da freguesia de ..., onde se encontra definitivamente inscrito a favor da Autora;
b. Se condenasse o réu a entregar a ela, autora, o referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
c. Se condenasse o réu a pagar a ela, autora, a quantia correspondente ao valor locativo do imóvel, durante o período da sua ocupação desde Janeiro de 2007 até à presente data de 06.09.2022, ou seja, pelo menos €101.520,00 (cento e um mil quinhentos e vinte euros líquidos, a que corresponde o valor ilíquido de €141.000,00 (cento e quarenta e um mil euros);
d. Se condenasse o réu no pagamento a ela, autora das quantias vincendas desde a presente data até à efetiva restituição do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, nos termos considerados no ponto anterior, ou seja, pelo valor locativo mensal mínimo de €750,00 (setecentos e cinquenta euros) ilíquidos, a que corresponde o valor mensal líquido de €540,00 (quinhentos e quarenta euros), acrescida de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia que decorra até à sua efetiva desocupação e entrega à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória;
e. Se condenasse o réu abster-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte da Autora do imóvel já identificado.
Para efeito alegou em síntese:
• Que o prédio acima descrito veio à sua posse por ter comprado o terreno em 2011, no qual construiu, entre os finais do ano de 2002 e o início do ano de 2033, um prédio urbano em regime de propriedade horizontal, com as fracções autónomas A e B;
• Que o direito de propriedade da autora sobre a fracção B encontra-se definitivamente reconhecido pelo tribunal por decisão proferida no âmbito dos processos números 121/06.6..... e 610/12.3.2..., ambos do Juiz ... deste Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro;
• Que o réu, que viveu em união de facto com a autora, está a ocupar a fracção desde o final de 2006 sem qualquer título.
O réu contestou e deduziu reconvenção. Nesta sede pediu:
1. Se declarasse e reconhecesse que ele, réu/reconvinte, é o legítimo dono e possuidor da fracção Autónoma, designada pela letra “B”, sita na Rua ..., nº 9, lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., composta por casa destinada a habitação de rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, inscrita no Serviço de Finanças de ... sob o artigo .49 daquela freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..27, da indicada freguesia de ..., por ter adquirido o prédio por usucapião;
2. Se ordenasse o cancelamento da inscrição registral a favor da autora e a inscrição registral do direito de propriedade a favor dele, réu/reconvinte;
3. Se condenasse a autora/reconvinda a abster-se da prática de actos lesivos dos direito e posse do réu/reconvinte.
A autora respondeu, alegando que a matéria invocada pelo réu na contestação/reconvenção já havia sido por ele invocada na contestação da acção n.º 121/06.6..... e na petição inicial da acção n.º 610/12.3.2..., pelo que a reconvenção violava a autoridade do caso julgado e a excepção do caso julgado formados naquelas acções.
O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu:
a. Declarar que a autora é a única dona e a legítima proprietária e possuidora da fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao nº 9 do prédio sito na Rua da ..., lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., composta por casa destinada a habitação de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, inscrita no Serviço de Finanças de ... sob o artigo matricial urbano ..94-B daquela freguesia e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha ..27-B também da freguesia de ..., onde se encontra definitivamente inscrita a favor da A.;
b. Condenar o réu a entregar à autora o referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
c. Condenar o réu a abster-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte da A. do imóvel já identificado.
d. Absolver o réu dos restantes pedidos deduzidos pela autora;
e. Absolver a autora dos pedidos reconvencionais deduzidos pelo réu;
f. Absolvo as partes dos pedidos de condenação por litigância de má fé.
Apelação:
O réu não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo se alterasse a decisão em conformidade com as conclusões do recurso.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 24 de Março de 2025, julgou a apelação improcedente e, em consequência, confirmou a decisão recorrida quanto à acção e declarou procedente a excepção dilatória de caso julgado, absolvendo a autora da instância reconvencional.
Revista
O réu não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo se alterasse o acórdão do tribunal da Relação do Porto, conforme às conclusões do recurso.
Os fundamentos expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão que julgou verificada a excepção do caso julgado, declarou a inutilidade da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto e manteve a decisão proferida na 1ª instância quanto ao reconhecimento do direito de propriedade da recorrida.
2. No processo 610/12.3.2..., foi proferida decisão que julgou improcedentes, por violação da autoridade do caso julgado, em face da decisão proferida no processo 121/06.6....., os seguintes pedidos: 1º declaração do autor como único dono e legítimo possuidor do prédio sito em ..., composto pela fração “B” do artigo ..94 da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..27; 2º - condenação da Ré a reconhecer o (ali) Autor como único e legítimo dono do referido prédio; 3º - de condenação da ali Ré a proceder à entrega do mesmo prédio ao (ali) autor; 4º - de alteração do registo.
3. O que significa que, no processo 610/12.3.2..., se operou uma apreciação relativa da factualidade aí alegada pelo autor, isto é, apenas na relação com o processo 121/06.6..... e com a decisão aí proferida – cfr. certidão judicial junta pela autora aos presentes autos em 07/09/2022.
4. Assim, com o devido respeito, entende o recorrente não poder erigir-se a factualidade alegada e ou dada como provada no processo 610/12.3.2... como elemento impeditivo do conhecimento da reconvenção.
5. Ou seja, a decisão proferida no processo 610/12.3.2... não faz caso julgado relativamente à reconvenção nos presentes autos.
6. Acresce que os factos alegados na reconvenção não são os mesmos dos alegados no processo 121/06.6..... e no processo 610/12.3.2..., nem o facto jurídico essencial genético é o mesmo.
7. A realidade invocada na reconvenção (a causa de pedir) – e espelhada nos factos dados como provados nos pontos 18, 19, 28, 31, 34 e 36 dos factos provados na decisão da 1ª instância – é nova e diferente e abrange uma temporalidade que se estende para além (para o futuro) dos processos 121/06.6..... e 610/12.3.2... e os factos essenciais de tal realidade não poderiam ter sido alegados nestes processos, além de que o prazo necessário à aquisição do direito de propriedade por usucapião só se preencheu posteriormente a tais acções, pelo que nunca tais factos, incluindo o do decurso do prazo da usucapião, poderiam estar abrangidos pela eficácia do caso julgado.
8. Como dizem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação (nota 10) ao artigo 581º, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, “Também não há caso julgado se a segunda acção tiver por fundamento facto jurídico da mesma natureza que o invocado na primeira, mas ocorrido posteriormente à data em que a sentença foi proferida, ou reportado simplesmente a período temporal diferente (v.g. usucapião)”.
9. Mesmo que pudesse admitir-se a existência do caso julgado – e não o admite o recorrente -, sempre a aquisição do direito de propriedade por usucapião, a verificar-se, o faria caducar.
10. Pelo que importa verificar se o recorrente adquiriu originariamente o direito de propriedade, com fundamento em usucapião, sobre o imóvel em causa nos autos.
11. Declarando-se não haver caso julgado – como é de justiça que se declare -, devem os presentes autos ser remetidos ao venerando Tribunal da Relação para apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto e das demais questões suscitadas na apelação.
12. O douto Acórdão proferido padece de erro de julgamento e violou, além do mais, as normas dos artigos 581º, nº 4, 619º, nº 1, e 621º, todos do Código de Processo Civil.
A autora respondeu. Começou por alegar que havia uma relação de dupla conforme entre o acórdão da Relação e a decisão da 1.ª instância, razão pela qual não cabia recurso. De seguida sustentou a manutenção da decisão recorrida, com os seguintes fundamentos expostos nas conclusões:
a. Seja como for, o pedido reconvencional não poder proceder porque viola a autoridade do caso julgado em relação à ação n.º 121 e porque constitui exceção do caso julgado em relação à ação n.º 610, sendo relevante apreciar esta dupla vertente do caso julgado, como o faz a Relação do Porto;
b. E, quanto à ofensa da autoridade do caso julgado, o STJ vem admitindo que esta dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a exceção dilatória (como que substituindo-a pela relação de prejudicialidade entre o objeto da segunda ação e o objeto da primeira), embora não dispense a identidade subjetiva, que evidentemente se verifica, como o recorrente confirma e aceita;
c. No seguimento do defendido na réplica (artigos de 37.º a 53.º) e no requerimento após o convite da Relação do Porto, entrado em 10.03.2025 (ref.ª formulário ......72 e ref.ª Citiu ....88), ambos ora dados por reproduzidos, há violação da autoridade do caso julgado, quanto à preclusão ocorrida na contestação da ação 121, e também a exceção do caso julgado, quanto ao acórdão proferido na ação 610, como de resto melhor vem explicado no acórdão recorrido;
d. Sem prescindir, e tal como julgou a 1.ª instância, a posse do recorrente não era, nem é, titulada nem pacífica, pelo que mesmo no caso da não verificação do caso julgado, sempre será improcedente o pedido reconvencional, mantendo-se o teor da decisão.
Saber se o acórdão recorrido, ao julgar a apelação improcedente e ao confirmar a decisão recorrida quanto à ação e ao absolver a autora do pedido reconvecional com fundamento na excepção de caso julgado, violou os artigos 581.º, n.º 4, 619..º, n.º 1, e 621º, todos do Código de Processo Civil.
A resposta suscita a questão de saber se não é admissível revista do acórdão da Relação por existência de dupla conforme.
O ora relator decidiu, no despacho inicial, que não havia dupla conforme e que o recurso era admissível.
Provados
1. Na Conservatória do Registo Predial de ... está descrito sob o nº ..27/20010601 o prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo ..94, casa de r/c e 1º andar e logradouro, que confronta, do norte, com CC, do nascente e sul, com caminho, e, do poente, com Junta de Freguesia de ....
2. Está constituído em propriedade horizontal, sendo que a fração “B” corresponde ao r/c e 1º andar direitos.
3. Tem como titular inscrito na matriz AA.
4. A 29/03/2001, foi celebrado entre BB, como promitente-comprador, e DD e mulher EE, como promitentes-vendedores, o “Contrato-Promessa de Compra e Venda de fls. 229, nos termos do qual estes prometem vender àquele, que o promete comprar, por 3.700.000$00, o terreno de que estes são donos e legítimos possuidores a confrontar, do norte, com CC, do nascente e sul, com caminho, e, do poente, com Junta de Freguesia de ... (...), inscrito na matriz rústica sob o artigo ..13 da freguesia de ..., concelho de ..., com aproximadamente 750 m2.
5. Por escritura de 22/05/2001, AA comprou a DD e mulher EE, por 1.200.000$00, o prédio rústico composto de um terreno a vinha e milho, sito nos ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área de 650 m2, a confrontar, do norte, com CC, do nascente e sul, com caminho, e, do poente, com Junta de Freguesia de ....
6. A ora A. AA, propôs a ação nº 121/06.6..... contra BB e contra FF e mulher GG, pedindo a declaração de nulidade, por simulação, do negócio jurídico titulado pela escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ... a 13/12/2004 e o cancelamento dos eventuais registos feitos com base no mesmo negócio.
7. Esta ação foi julgada parcialmente procedente, com declaração (no que interessa) da nulidade do contrato de compra e venda titulada pela escritura de 13/12/2004 lavrada no Cartório Notarial de ..., compra e venda celebrada entre o réu BB, como vendedor, em representação de AA, e FF, como comprador, por € 50.000,00, da fração autónoma inscrita na matriz sob o artigo ..94 e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..27.
8. Esta sentença foi confirmada pelo douto Acórdão da Relação do Porto de 19/03/2020, que transitou em julgado a 02/07/2020.
9. BB propôs ação de condenação contra AA, que correu termos, sob o nº 610/12.3.2..., no Juízo Central de ... – Juiz ..., a pedir que seja declarado único dono e legítimo possuidor do prédio sito em ..., composto pela fração “B”, inscrita sob o artigo ..94 da freguesia de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..27, a qual (ação), no saneador-sentença, terminou com a absolvição da instância da Ré, por caso julgado.
10. O Tribunal da Relação do Porto, por douto Acórdão de 25/05/2021, julgou parcialmente procedente o recurso interposto do antes referido saneador-sentença e alterou a decisão para a de improcedência dos pedidos formulados na petição inicial de: 1º - declaração do autor como único dono e legítimo possuidor do prédio sito em ..., composto pela fração “B” do artigo ..94 da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..27; 2º - condenação da Ré a reconhecer o (ali) Autor como único e legítimo dono do referido prédio; 3º - de condenação da ali Ré a proceder à entrega do mesmo prédio ao (ali) autor; 4º - de alteração do registo, por violação da autoridade do caso julgado.
11. O mesmo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/05/2021 ordenou que os autos prosseguissem os ulteriores e normais termos para apreciação do pedido subsidiário formulado na ação (pedido subsidiário este de condenação da ali Ré e ora A. a restituir ao ali A. e ora R., “a título de enriquecimento sem causa, quantia correspondente ao valor do imóvel, no montante de € 130.000,00 e nunca inferior a € 119.000,00, ou ao menos correspondente ao valor que resultar da perícia a efetuar ao mesmo”).
12. O Supremo Tribunal de Justiça, por douto Acórdão de 14/12/2021, não conheceu da revista excecional.
13. A ação n.º 610/12.3.2... encontra-se a correr os seus regulares termos para conhecimento do pedido subsidiário formulado pelo ali A. e ora R.
14. HH nasceu a .../.../1997 e foi registado como filho de BB e de AA.
15. BB nasceu a .../.../1960 e foi registado como filho de II e de JJ, casou a .../.../1980 com KK da qual se divorciou por sentença transitada em julgado a .../.../1994.
16. Por escritura de 19/05/1994, BB e sua ex-mulher KK procederam à partilha dos bens do casal com adjudicação ao BB dos seis lotes de terreno para construção da verba nº 4, situados nos ... da freguesia de ..., descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nºs. ...9 a ..64 que resultaram do loteamento a que foi submetido o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..22, cujo alvará nº 13/993, omissos na matriz, mas com inscrição já pedida a 23/08/1993.
17. Por escritura de 11/07/2002, BB vendeu a LL, por € 82.301,65, uma casa com logradouro e quintal sita no Bairro dos ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrita na matriz sob o artigo ..36 e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..64.
18. O R. exigiu que a autora abandonasse a fração em discussão na presente ação a 09/11/2006.
19. O réu continuou a residir e ainda reside no mesmo imóvel com o filho, detém as chaves do mesmo, aí pernoita e toma as suas refeições e aí recebe os familiares e amigos.
20. A autora e o réu viveram em união de facto desde 1994 a 9 de Novembro de 2006.
21. A fração “B” em discussão nesta ação foi inscrita na matriz no ano de 2002.
22. A autora nunca deu, ao réu, autorização para ocupar o imóvel em litígio nesta ação.
23. O réu propôs à autora entregar-lhe € 30.000,00 para esta doar a fração “B” ao filho de ambos
24. O réu sabe que não tem título que justifique a ocupação da fração e que o faz contra a vontade expressa da autora.
25. Se tivesse a posse da fração, a autora poderia dá-la de arrendamento.
26. A autora reside na Alemanha desde 2010.
27. É a autora que vem suportando o IMI da fração “B” desde 28/07/2022, por só ter podido reinscrever o prédio em seu nome no Serviço de Finanças após o trânsito em julgado da decisão proferida na ação nº 610/12.3.2....
28. O preço do terreno onde foi construído o prédio urbano que nele está erigido, constituído em propriedade horizontal com as frações “A” e “B”, foi pago com dois cheques pessoais do ora réu, sacados sobre a conta nº ......25 do BCP, conta esta de que era exclusivo titular o ora réu.
29. A partir do ano de 1998, a autora passou a trabalhar, auferindo rendimentos próprios, pelo que passou a partilhar com o R. BB as despesas domésticas.
30. E ajudava-o na aquisição e venda de imóveis.
31. O réu, quando a 09/11/2006 exigiu à autora que abandonasse a fração, declarou-lhe que fazia tal exigência por se considerar o dono da casa.
32. A autora nunca reconheceu o réu como o dono da casa.
33. Tendo abandonado a casa em resultado das ameaças que o réu lhe fazia e do mau relacionamento do “casal”.
34. A declaração do réu de que se considerava e era o dono da casa foi feita à autora no convencimento de que, efetivamente, era o dono do imóvel.
35. Também a autora se considerava e considera dona do imóvel.
36. O réu tem-se mantido a ocupar a casa desde 09/11/2006 e fá-lo ostensivamente e ininterruptamente”.
Não provados
a. Que a autora interpelou o réu por várias vezes, para abandonar o imóvel e para lhe entregar as chaves do mesmo, diretamente e através de terceiros, designadamente através do filho de ambos e dos mandatários;
b. Que reconheceu, a 09/11/2006, expressamente, que o réu era o dono da fração;
c. Que a autora não se opôs à afirmação feita perante ela de que o réu se considerava dono do imóvel e também sem oposição abandonou o imóvel;
d. Que o réu ocupa a casa sem oposição de quem quer que seja, designadamente da A.;
e. Que a autora não construiu e não pagou a construção do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, com as frações autónomas “A” e “B”;
f. Que o réu tem-se mantido a ocupar a casa no convencimento de que exerce um direito próprio;
g. O valor pelo qual pode ser arrendada a fração “B”.
A resposta é negativa.
O acórdão sob recurso entendeu que a reconvenção deduzida pelo réu, ora recorrente, era idêntica à acção que correu termos sob o n.º 610/12.3.2..., quanto aos sujeitos, aos pedidos e à causa de pedir.
Nessa acção – o ora réu era aí autor; e a ora autora era aí ré – o autor pediu (com relevância para a presente revista):
• Se declarasse que ele era o único dono e legítimo possuidor do prédio, sito em ..., composto pela Fracção B, do artigo ..94, da freguesia de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..27, por o ter adquirido por usucapião; - seja a ré condenada a reconhecer o autor como o único e legítimo dono do referido prédio e a proceder à respectiva entrega ao autor;
• Se condenasse a ré a reconhecer o autor como o único e legítimo dono do referido prédio e a proceder à respectiva entrega ao autor;
• Se ordenasse o cancelamento da inscrição registral a favor da ré.
Estes pedidos foram julgados improcedentes por acórdão proferido, em 25 de Maio de 2021, pelo tribunal da Relação do Porto, já transitado em julgado. No essencial, o acórdão julgou improcedentes os pedidos por entender que a questão da aquisição, pelo réu, direito de propriedade sobre a fracção B, por usucapião, havia sido apreciada na acção que correu termos sob o n.º 121/06.6..... e na fundamentação da decisão aí proferida afastava-se a aquisição, pelo ora réu, do direito de propriedade sobre a fracção por usucapião. Segundo o acórdão, tal decisão gozava de autoridade de caso julgado no âmbito da acção n.º 610/12.3.2..., razão pela qual tal autoridade determinava a improcedência da acção.
O réu, ora recorrente, não põe em causa o acórdão recorrido, na parte em que nele se afirmou que, entre a reconvenção deduzida na presente acção e o processo que correu termos sob o n.º 610/12.3.2..., havia identidade quanto aos sujeitos e aos pedidos.
Com o que ele não concorda é com a afirmação de que também existe identidade quanto à causa de pedir. A sua discordância alicerça-se na seguinte linha argumentativa.
Em primeiro lugar, na alegação de que, no referido processo (610/12), operou-se uma apreciação da factualidade alegada pelo autor em relação com a alegada no processo n.º 121/06.6...... Logo – conclui o recorrente - os factos alegados no processo n.º 610/12 não podem ser invocados como fundamento impeditivo do conhecimento da reconvenção.
Em segundo lugar, na seguinte alegação:
• Que a realidade invocada na reconvenção, espelhada nos factos dados como provados nos pontos números 18, 19, 28, 31, 34 e 36, era nova e diferente da invocada nos processos números 121/06 e 610/12 e abrangia um período que se estendia para além destes processos;
• Que os factos essenciais de tal realidade (provados nos pontos números 18, 19, 28, 31, 34 e 36 da presente acção) não poderiam ser alegados naqueles processos;
• Que o prazo necessário para aquisição do direito de propriedade por usucapião só se preencheu posteriormente a tais acções, pelo que nunca os factos invocados na reconvenção poderiam estar abrangidos pela eficácia do caso julgado.
Em terceiro lugar, na alegação, deduzida a título subsidiário, de que, mesmo que houvesse caso julgado, sempre a aquisição do direito de propriedade por usucapião, a verificar-se, faria caducar o caso julgado, pelo que devia verificar-se se o recorrente adquiriu o direito de propriedade por usucapião.
Salvo o devido respeito, nenhuma delas colhe contra o acórdão recorrido.
Em primeiro lugar, não procede a alegação de que os factos alegados no processo n.º 610/12.3.2... não podiam ser invocados como fundamento impeditivo do conhecimento da reconvenção. Na verdade, uma vez que o acórdão sob recurso entendeu que a causa de pedir da reconvenção era idêntica à da acção que correu termos sob n.º 610/12.3.2..., já decidida com trânsito em julgado, é bom de ver que, à luz do conceito de caso julgado constante do n.º 1 do artigo 580.º do CPC e da noção de causa idêntica a outra, constante dos n.ºs 1 e 4 do artigo 581.º do mesmo diploma, a causa de pedir que deve ser comparada com a da reconvenção só poderá ser a da acção que correu termos sob o n.º 610/12.3.2....
Com a segunda linha argumentativa, o recorrente intenta demonstrar que a causa de pedir da reconvenção, constituída, segundo ele, pelos factos julgados provados sob os pontos números 18, 19, 28, 31, 34 e 36, não é idêntica à causa de pedir da acção correu termos sob o n.º 610/12.3.2.... No seu dizer, trata-se de uma realidade nova, diferente e que abrange um período que se estende para além dos considerados nos processos números 121/06.6..... e 610/12.3.2.... Acrescenta que os factos essenciais de tal realidade não poderiam ser alegados em tais processos e que o prazo necessário à aquisição do direito de propriedade por usucapião só se completou depois de tais acções.
Pese embora o respeito que nos merece esta argumentação, ela não colhe. Vejamos.
Nos termos da 1.ª parte do n.º 4 do artigo 581.º do CPC, há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. De acordo com este preceito, nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva do direito real.
Como é sabido, o direito de propriedade – o direito real que está em causa nos autos – pode fundar-se em vários factos jurídicos, concretamente, em contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e outros factos previstos na lei (artigo 1316.º do Código Civil).
O direito de propriedade sobre a fracção B) invocado na acção n.º 610/12.3.2... e na reconvenção fundam-se na usucapião.
Esta identidade é, no entanto, insuficiente para se afirmar que a causa de pedir das duas acções é idêntica. E é insuficiente porque o facto jurídico de que deriva o direito real, tido em vista no n.º 4 do artigo 581.º do CPC, não é o facto jurídico abstracto que, nos termos da lei, constitui modo de aquisição do direito de propriedade. O facto jurídico que conta para aferir da identidade da causa de pedir é o facto jurídico concreto de onde a parte faz derivar o direito que invoca. E por facto jurídico concreto quer-se significar o seguinte quando o modo de aquisição do direito de propriedade invocado for a usucapião, como sucedeu no caso. Visto que a usucapião consiste na manutenção da posse do direito de propriedade por certo lapso de tempo (artigo 1287.º do Código Civil) e que a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251.º do Código Civil), a usucapião na sua veste concreta significa posse concreta e posse concreta significa a concreta actuação que a parte exerce sobre a coisa possuída. Continuam, assim actuais, as seguintes palavras de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a propósito do n.º 4 do artigo 498.º do CPC de 1961 (correspondente ao actual n.º 4 do artigo 581.º): “...na acção de reivindicação por exemplo, destinada a fazer valer o direito de propriedade do autor contra o terceiro possuidor da coisa, começa por se exigir (de acordo com a teoria da substanciação), além da indicação do direito cujo reconhecimento se pretende e do efeito que se quer obter, a menção do facto concreto (a compra, a doação ou a deixa testamentária, ou a ocupação, a acessão, a usucapião, etc) que serve de base ao pedido” (Manual de Processo Civil Coimbra Editora 1984, página 693).
Situando-nos no domínio dos factos concretos que foram invocados na reconvenção e na acção n.º 610/12.3.2..., para sustentar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre a fracção B), é de reconhecer que aqueles que o réu, ora recorrente, invocou na reconvenção não correspondem na íntegra aos que alegou na acção que correu termos sob o º 610/12.3.2....
Em sede de reconvenção, os actos de posse que fundaram a invocação da usucapião consistiram no facto de o réu, ora recorrente, residir na fracção B) e de aí ter o seu centro de vida, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém e na convicção de exercício de um direito próprio.
Na acção supracitada, foram invocados como actos de posse os alegados sob os artigos 36, 40, 44, 50, 54 a 74, 77 a 79 (ponto n.º 81 da petição), concretamente:
• No ano de 2001, o autor contactou e ajustou com DD e mulher EE, a compra do terreno a esta pertencente, inscrito na matriz predial rústica freguesia de ... sob o artigo ..13;
• Pagou o preço do terreno com dois cheques pessoais sacados sobre a conta nº ......25 do BCP;
• Esteve presente na realização da escritura pública de compra e venda do terreno de DD e mulher;
• O autor pagou a sisa/imt, os preços da escritura pública de compra e venda e do registo predial de aquisição do prédio;
• O autor encomendou o projecto de urbanização para o terreno adquirido a DD e mulher,
• Efectuou todas as reuniões necessárias com os autores do projecto;
• E pagou o projecto de obra através das suas contas bancárias;
• O autor requereu o licenciamento da construção junto da Câmara Municipal de ...;
• Posteriormente, requereu o averbamento do pedido de licenciamento para o nome da ré;
• O autor pagou todas as taxas administrativas através das suas contas bancárias;
• O autor ajustou com empresas e empresários das várias especialidades da construção civil, como pedreiros, carpinteiros, pintores, electricistas, canalizadores, etc., a construção das duas moradias geminadas no terreno adquirido a DD e mulher;
• Negociou e acordou com tais empresas e empresários o preço dos materiais de construção e das obras ajustadas;
• Fez as encomendas dos materiais e serviços;
• E procedeu aos respectivos pagamentos através das suas contas bancárias;
• O autor trabalhou diariamente nessas obras, acompanhando e dirigindo os trabalhos, recebendo os materiais, recebendo os fornecedores e os técnicos da Câmara Municipal e de outros serviços nas vistorias legais;
• O autor pagou as taxas administrativas pelo pedido de autorização da constituição da propriedade horizontal e pagou os emolumentos devidos pela constituição da propriedade horizontal e respectivos registos, através das suas contas bancárias;
• O autor construiu no terreno adquirido a DD, sito em ..., uma moradia bifamiliar, composta pelas Fracções A e B, as quais se encontram descritas sob a descrição registral nº ..27 da freguesia de ...,
• Compondo-se a Fracção B da casa de rés-do-chão e primeiro andar direitos;
• O autor ajustou com a sociedade I......., Lda, com sede em Rua dos ...;
• E também com a ré e com a sócia desta, MM;
• A angariação de interessado na aquisição da moradia, correspondente à Fracção A, sita na Rua do ..., em ...,
• Tendo instruído ambas, I........, Lda, e ré e sócia, quanto às condições e preço da venda do imóvel,
• Bem como a comissão pela venda;
• O autor pagou à ré e sócia desta, MM, o montante de € 2.974,96, de comissão pela venda da moradia;
• O autor reservou a outra moradia, a correspondente à Fracção B, para sua casa de morada de família,
• Tendo aí passado a morar, a partir de 2003, o autor, e a ré e o filho destes;
• Em Dezembro de 2004, já após a conclusão da construção da moradia correspondente à Fracção B, o autor construiu uma outra garagem, um telheiro, uma churrasqueira, colocou o pavimento no pátio exterior e colocou o gradeamento exterior da moradia,
• O autor praticou todos os actos descritos nos artigos 36º a 40º, 44º, 50º, 54º a 74º, 77º a 79º desta PI, à vista de toda a gente;
• Sem oposição de quem quer que fosse,
• Por todos sendo visto como o único e exclusivo dono,
• Tudo isto fazendo, por si e antepassados que representa, há mais de 20, 30 anos, de modo contínuo.
Comparando os factos alegados num e noutro processo, vemos que há diferenças e semelhanças. Para o caso interessam-nos as semelhanças. E a semelhança que existe é a seguinte: tanto na reconvenção como na acção supracitada, o réu, ora recorrente, erigiu, como actuação possessória, o facto de residir na fracção e de nela ter o centro da sua vida. Com a seguinte diferença: na reconvenção, invocou a residência desde 9 de Novembro de 2006 até à data da citação dele para a presente acção (29-09-2022); na acção supracitada, havia-a invocado desde 2003 até à data da propositura de tal acção, que ocorreu em 2012. Cotejando estes períodos, vê-se que o da reconvenção compreende parte do alegado na acção n.º 610/12.3.2..., concretamente o que vai de 2006 a 2012.
Nesta parte, a causa de pedir da reconvenção é claramente idêntica à da mencionada acção.
Quanto aos actos de posse sobre a fracção exercidos depois da propositura da acção n.º 610/12.3.2... (de 2012 a 2022), apesar de serem privativos da reconvenção, eles não podem ser considerados para descaracterizar a identidade da causa de pedir entre as duas acções. Com efeito, eles não têm autonomia como facto de onde deriva o direito de propriedade invocado pelo réu, ora recorrente. Eles ligam-se aos actos anteriores, dando-lhes continuação.
Deste modo, uma vez que, na reconvenção, o réu, ora recorrente, faz derivar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre a fracção de toda posse que exerceu sobre ela desde 2006 até Setembro de 2022 e tendo uma parcela dessa posse já sido alegada na acção supra referida, é de concluir no sentido da identidade da causa de pedir entre a reconvenção e a acção anterior.
Só assim não seria, isto é, os actos de posse sobre a fracção exercidos depois da propositura da acção n.º 610/12.3.2... (de 2012 a 2022) teriam relevância para afastar os limites do caso julgado formado pela decisão proferida em tal acção, se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade nela formulado tivesse sido julgado improcedente com o fundamento de que ainda não tinha decorrido o tempo necessário para a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade. Nesta hipótese, o caso julgado seria afastado por aplicação do artigo 621.º do CPC, na parte em que dispõe que se e a parte decaiu por não ter decorrido um prazo, a sentença (leia-se sentença transitada em julgado) não obsta a que o pedido se renove quando o prazo se preencha.
Não é esta, no entanto, a hipótese dos autos. Como se escreveu acima, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor do réu, ora recorrente, com fundamento na usucapião (bem como os dois outros dois pedidos dele dependentes) foi julgado improcedente com base no caso julgado constituído pela decisão proferida na acção n.º 121/06.6...... Não foram, pois, razões ligadas à insuficiência do prazo da usucapião que ditaram a improcedência da acção.
Por último contra o acórdão recorrido não vale a alegação de que, ainda que existisse caso julgado, a aquisição do direito de propriedade por usucapião faria caducar o caso julgado.
Em primeiro lugar, no Código de Processo Civil – diploma onde está prevista a excepção de caso julgado – não está prevista a figura da caducidade do caso julgado.
Em segundo lugar, a alegação do recorrente tem contra si o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea i), todos do CPC. Com efeito, decorre destes preceitos que, quando julgue procedente a excepção do caso julgado, o juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância. Logo, uma vez que o acórdão sob recurso julgou verificada a mencionada excepção, não lhe cabia verificar se o ora recorrente adquiriu o direito de propriedade sobre a fracção B por usucapião. Cabia-lhe, como fez, absolver a autora da instância reconvencional.
Decisão:
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de o recorrente ter ficado vencido, condena-se o mesmo nas custas do recurso.
Lisboa, 3 de Julho de 2025
Relator: Emídio Santos
1.º Adjunto: Orlando Nascimento
2.ª Adjunta: Catarina Serra