I. O aditamento de um fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou o reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal a quo, não descaracteriza a dupla conforme.
II. A dupla conforme não é impeditiva de revista sob o fundamento de a Relação ter errado na aplicação das normas de direito processual, conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e do uso indevido /não uso dos poderes oficiosos de correcção da decisão de facto.
III. Estando em causa afronta de norma de direito probatório material ou a contradição entre os factos, o Tribunal da Relação detém poderes oficiosos de correcção da decisão de facto e reapreciação da prova; fora de tais situações, essa competência fica na dependência da satisfação pelo recorrente do ónus da impugnação eficaz da decisão de facto.
IV. Não tendo o apelante concretizado nas conclusões de recurso quais os pontos da matéria de facto que reputa divergentes da prova realizada, impõe-se a rejeição da impugnação da decisão de facto e reapreciação pela Relação por incumprimento do ónus primário, que delimita o objecto e o fundamento do apontado erro de julgamento.
1. Na presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que AA intentou, contra E-REDES DISTRIBUIÇÃO DE ELECTRICIDADE S.A. foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, e em consequência absolveu a ré do pedido.
2. Na sequência do recurso de apelação interposto pela autora, a Relação proferiu acórdão que negou provimento ao recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
3. Inconformada, a Autora interpõe recurso de revista.
As conclusões que apresentou, após convite ao aperfeiçoamento pelo anterior Senhor Conselheiro relator, são as que se transcrevem:
«1) Deve se dar a renovação da prova e exame no local, para que a melhor decisão material possa ser tomada ainda neste processo, mesmo que tenha sido junta mais de uma vintena de documentos (com fotos do local inclusive) e produzidos 11 testemunhos da parte da Autora (E suas declarações de parte) e mais um ou dois testemunhos verdadeiramente relevantes da parte da Ré.
2) com a renovação da prova (testemunhal e com a nomeação de um perito pelo Tribunal) e com o Exame no local, melhor se poderia dar como provado o que se alegou aqui.
3) Perdeu-se rendimento actual e potencial daqueles prédios e como foi declarado pela Autora e corroborado por algumas das suas testemunhas (Vide depoimentos já descritos na impugnação da matéria de facto com os segmentos descritos nas conclusões aperfeiçoadas referentes à sessão de 23 de jan. de 2023 -12:20 12:46 00:26:53 Testemunha: BB
15:07 15:30 00:22:50 Testemunha: CC
15:31 15:49 00:17:31 Testemunha: DD
15:50 16:10 00:19:53 Testemunha: EE
4) As nulidades invocadas estribam-se na total desvalorização ou a valoração errada da prova que conduziu à falta de fundamentação da Sentença e a sua contradição entre os factos provados e a mesma decisão.
5) A prova--Mormente na prova gravada--Impõe outra decisão na matéria do Direito da acção.
6) Não se pode afastar o recurso oficioso ao regime do art.º 662.º n.º 2 al. A ou b) do CPC.
7) A para além de ser nula esta acepção--De que se poderia afastar este instituto---o que se invoca expressamente nos termos do art.º 615.º e 666.º do CPC--é uma violação da Lei processual, nos termos expostos consiste uma violação da Lei processual a rejeição do Recurso no plano da matéria de facto pela interpretação feita pela Primeira e Segunda instância.
8) a Autora refere que nas certidões de teor do registo predial dos prédios em apreço que juntou, referiu que nelas não se encontra registado nenhum ónus de servidão administrativa, nem nas cadernetas prediais.
9) Nem a Autora nem a sua mãe alguma vez foram notificadas pessoalmente de tal servidão ou dela tinham conhecimento e mesmo assim não o tiveram nos seus documentos cadastrais, matriciais e registais.
10) Esta servidão não era de facto do conhecimento das proprietárias--a mãe, que nos idos de 1983-84 não via, como nenhum cidadão de perfil médio via os editais nos Jornais de Comarca para exercer os seus direitos de indemnização contra a EDP na altura uma empresa pública.
11) Em 1983-84 vivíamos tempos de avanço de uma modernização das infraestruturas de um país, na sua electrificação, que avançavam por um interior empobrecido, sem infraestruturas e em largas faixas sem energia eléctrica a uma distância de dez anos após a Revolução do 25 de Abril de 2974.
12) Quanto à prescrição invocada do prazo geral de 20 anos como correcto a aplicar na decisão (nos termos do art.º 306.º n. º1 do CC) é efectivamente descabido, mal interpretado e aplicado de forma errada.
13) Como é que as proprietárias tinham sequer noção de que as servidões tinham sido constituídas em 1983-84? invocam-se como “servidões administrativas”, mas nem esse título esse título figura nos documentos, mas tão só as “licenças de exploração”, ou de instalação (Cfr. Docs. Juntos pela Ré).
14) A mera instalação dos postes e atravessamento das linhas não é cunhada na presente acção e para os efeitos da presente acção como o “facto expropriativo danoso” central, mas sim quando em resultado dessa mesma instalação é feita uma desmatação.
15) É em março-abril de 2020 com a provada desmatação e corte de pinheiros, dada na acção como provada que se dá este facto danoso expropriativo.
16) Ou seja o prazo de prescrição ou todos os prazos de prescrição ora suscitados só se podem contar a partir deste facto.
17) Note-se que só é feita uma desmatação em 2020 após a instalação de postes em 1983-84--- Imposta pela Lei da gestão de faixa de combustível e do plano de combate a incêndios do município de Oleiros em 2020--Apenas neste ano.
18) Nos demais anos até março de 2020 o coberto florestal abafava, cobria e ocultava boa parte das linhas e dos postes, sem, todavia, criar dano na propriedade para além da sua desvalorização parcial ou residual--incomparável à de 2020.
19) O depoimento da testemunha FF 23 de janeiro de 2023, quando a mesma refere no fim do seu depoimento que a floresta de pinheiros cobria postes e linhas e que esse impacto visual ou florestal era mínimo residual e até inexistente. 16:15 16:24 00:08:53 Testemunha: FF
20) Deve concluir-se pela ausência de qualquer facto prescritivo, seja ao abrigo do art.º 306.º n.º 1 do CC ou do art.º 498.º n.º 1 devendo cair por terra qualquer procedência do instituto da prescrição na presente acção.
21) de acordo com a própria Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 62º nº 2 diz que “a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada mediante pagamento de justa indemnização”.
22): A indemnização resultante da Constituição e da Lei não prescreve pois mesmo que se entenda que a dita servidão administrativa já existisse como a R. afirma, a indemnização não prescreve---idem sobre os Direitos de propriedade e prescrição (cf. art.º 62º nº 1 e 2 da CRP e art.º 298º nº 3 e art.º 474º do CC)”
23) A imprescritibilidade deste Direito é conectada à imprescritibilidade do direito de propriedade em causa e com a sua consagração constitucional nos termos do art.º 62.º n.º 1 e n.º 2 da CRP.
24) O desenvolvimento “daquela servidão” isso não exclui o interveniente na gestão da faixa de combustível--A Ré--De se eximir à responsabilidade de indemnizar a Autora pelo sacrifício imposto na sua propriedade e sua desvalorização.
25) A Ré, não se preocupou em saber ou notificar os proprietários da terra onde ocorreu a intervenção, nem por nota no alpendre (só há meia dúzia e casas na área dos prédios), nem por telefone, carta, “pombo-correio”, mail, sobre a intervenção, nem tão pouco avisar que os pinheiros estão disponíveis para recolha após a intervenção.
26) Não o fez e negligente ou culposamente (por dolo eventual) e os pinheiros desapareceram. Isto não cabe na discricionariedade dos poderes da Ré, conferidos por Lei mesma a Lei relativa à gestão das faixas de combustível, Lei esta que deve ser interpretada e aplicada sem colidir com a demais Lei ordinária e constitucional.
27) O Acórdão faz uma leitura enviesada do diploma da gestão das faixas de combustível em clara contravenção da Lei Fundamental mormente no seu artigo 62.º n.º 1 e 2, quanto à extensão e protecção do Direito de propriedade, sendo por isso, a acção do tribunal também ela inconstitucional.
28) A Autora demonstrou os danos e prejuízos do corte de pinheiros, amplamente e com recurso a documentos juntos e aos testemunhos que arrolou (e nas declarações de parte) e demonstrou que os mesmos desapareceram--Facto dado como provado.
29) A Autora admite que o corte foi legal--o que é ilegal é terem acometido a uma empresa ou sociedade o corte e a mesma não ter assumido responsabilidade pelo desaparecimento dos pinheiros.
30) Ou isso ou então negligentemente ou com dolo eventual permitiram que os pinheiros “desaparecessem” quando era sua responsabilidade vigiar o corte e o depósito dos pinheiros, alertar os proprietários para a sua remoção e na impossibilidade guardarem-nos.
31) A Ré e a sua sub-contratada não assumiram os seus deveres de vigilância, alerta e guarda do material lenhoso--Que é um património natural e susceptível de avaliação pecuniária), ou seja, existindo uma culpa “in vigilando” e uma omissão de cuidado que provocou o referido facto danoso expropriativo.
32) A Ré falhou em todas estas formas de aviso incluindo na publicação do edital que foi feito a 8,8 Km (oito quilómetros e sensivelmente a oitocentos metros) do local de intervenção, ou seja, na câmara Municipal de Oleiros--É que o vale ... se situa longe da Câmara Municipal e no meio do pinhal, no campo.
33) Como se disse antes a comunicação pública foi a 18 de março e a publicação do Decreto é que é de dia 20 de março!
34) À Ré não cabia ficar na posse da biomassa principalmente porque a mesma tinha valor económico para o proprietário. Nem cabia à Ré nem ao seu comissário ou contratado e foi isso que aconteceu.
35) Os pinheiros cortados foram às centenas, eram adultos, praticamente todos! apresentaram-se documentos, testemunhos, avaliações e valores.
36) In casu a Autora tem o direito a receber uma indemnização pelo corte abusivo dos pinheiros porque a proprietária não foi avisada previamente nem informada sobre esta intervenção.
37) Idem pelos “lucros cessantes” porque jamais poderá ter um rendimento dessas faixas de terreno das suas propriedades tendo direito a receber uma indemnização nos termos do artº 564º nº 1 e nº 2; e do artº 566º e 567º do CC (Código civil).
38) A Ré ao ter subcontratado uma entidade para proceder ao corte que não curou de guardar os pinheiros provocou por negligência e dolo eventual um prejuízo à proprietária-- Responsabilidade esta que é inteiramente da Ré.
II. Admissibilidade e objecto do recurso
1. O artigo 671.º, n.º 3, do CPC limita o acesso ao recurso de revista nos casos em que ocorra dupla conformidade decisória nas instâncias- “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.
O propósito normativo na racionalização deste acesso assenta no objectivo de robustecer as funções de orientação e uniformização da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que a Relação confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pelo tribunal da 1.ª instância.
1.1. A sentença analisou a pretensão da autora sob o enquadramento do regime da responsabilidade por facto ilícito, através da constituição de uma servidão administrativa para transporte de energia eléctrica, prevista no artigo 37.º do DL n.º 43335 de 19-11-60 e base XIII do anexo ao DL n.º 185/95 de 27-06.
A indemnização peticionada visa ressarcir a autora da redução do rendimento da propriedade, tendo concluído o tribunal de primeira instância que tal servidão se mostra validamente constituída, mas que o direito indemnizatório da autora constante das als. C) a G) do petitório já se mostra prescrito “ uma vez que desde a data da constituição da servidão até à propositura da acção já tinha decorrido mais de 20 anos (na verdade quase 40 anos), pelo que sempre teria decorrido o prazo fixado no artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil, que manda aplicar o disposto no artigo 309.º do Código Civil.”
Mais se considerou, quanto ao alegado corte de árvores pela Ré no ano de 2020- “que não tendo a Autora provado que as árvores cortadas se localizavam fora de tais larguras acima referidas, e tendo-se provado que a Ré cumpriu o disposto no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho, em vigor à data dos factos, por inexistir facto ilícito da Ré, improcederá a pretendida indemnização vertida no pedido B), o que se decidirá.”
1.2. A Relação julgou a apelação improcedente, tendo rejeitado a apreciação da impugnação da matéria de facto, por falta de cumprimento dos ónus previstos nos artigos 640.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. a), do CPC.
E, também, no uso dos poderes oficiosos previstos no artigo 662.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC, não detectou vício de depoimento ou dúvida probatória e, manteve a decisão sobre a matéria de facto do tribunal a quo.
Em sede de aplicação do direito, pronunciou-se sobre a excepção da prescrição do direito da autora, confirmando in totum o julgado da sentença.
Considerou-se no acórdão recorrido que o prazo ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309.º do CC, foi ultrapassado “e ainda que se admitisse ser aplicável ao caso o regime do art. 498º n. º1 do CC, a previsão desta norma não estaria verificada por faltar a demonstração do momento do conhecimento do facto danoso pelo lesado.”
As instâncias empreenderam, portanto, o mesmo raciocínio acerca da prescrição do direito indemnizatório invocado pela autora, discorrendo sobre a conjugação entre os prazos de prescrição em sentido unívoco e convergente:
“É essa a razão, aliás, da articulação dos dois prazos: o prazo ordinário só valerá justamente quando aquele titular ignora o direito (pois se o titular do direito o conhece, ocorrerá a prescrição mais curta dos 3 anos a partir desse conhecimento1. “
No que concerne à responsabilidade da ré, pelo alegado corte de árvores no ano de 2020, o acórdão recorrido acompanhou também a sentença e concluiu que a conduta se afigura conforme ao direito, em aplicação do DL 124/2006, de 28.06 e o Dec. Regulamentar nº 1/92, de 18.02.
Apreciaram-se ainda as questões suscitadas em torno da contagem dos prazos sob o enquadramento das “Leis Covid “, e o alegado abuso do direito.
2. A fundamentação essencialmente diferente a que alude o artigo 671º, nº3, do CPC, segundo ABRANTES GERALDES 2 engloba situações como as seguintes:
a. Confirmação da decisão da 1.ª instância a partir de um quadro normativo substancialmente diverso, como sucede nos casos em que a uma determinada qualificação contratual sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico.
a. Condenação do réu fundada na aplicação de regras de um determinado contrato, confirmada pela Relação, mas ao abrigo de outro contrato ou do instituto do enriquecimento sem causa.
b. Quando um determinado resultado tenha sido sustentado na apreciação da validade de um contrato e a Relação confirme o resultado a partir da apreciação oficiosa da nulidade desse mesmo contrato.
c. Quando a ação foi julgada improcedente na sentença de 1.ª instância e a Relação confirme essa mesma apreciação a partir de uma exceção perentória.
d. Quando a primeira decisão tenha absolvido o réu da instância com fundamento numa determinada exceção dilatória e a Relação tenha encontrado motivo para a mesma decisão noutra exceção dilatória.
Tratando-se de conceito legal vago e indeterminado - “fundamentação essencialmente diferente” - deve ser concretizado no sentido de entender que se verifica quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação se alicerce de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos àqueles em que assentou e se fundamentou a decisão do tribunal a quo.
Na densificação do conceito - fundamentação essencialmente diferente- sublinha aquele autor que não são de atender- «(…) discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representam efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação. De uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância.»
Circunstancialismo que justamente sucedeu no acórdão recorrido. Isto é, foram apreciados os argumentos invocados pela recorrente atinentes aos prazos Covid e ao abuso do direito, no âmbito da apreciação da responsabilidade por facto ilícito; e aditaram-se fundamentos jurídicos em aprofundamento da apreciação do objecto do recurso, que, contudo, não procederam, nem abalaram a adesão aos fundamentos da decisão de 1.ª instância e a partir do mesmo quadro normativo.
Ora, o aditamento de um fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou o reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal a quo, não descaracteriza a dupla conforme.
Na linha da jurisprudência consistente deste Supremo, não existe diversidade essencial da fundamentação, mesmo quando os fundamentos de direito que a Relação utiliza em reforço e complemento, não acarretam consequências necessárias nos efeitos qualitativos ou quantitativos da parte dispositiva3.
O acórdão em escrutínio não alterou a qualidade e extensão do efeito do dispositivo, nem tampouco o núcleo central do silogismo judicial conducente ao resultado decisório - não relevando para a inoperância da dupla conforme “uma diferente forma de apreciar um mesmo ponto relativo a um mesmo instituto”4.
Verifica-se, pois, dupla conforme que obsta à interposição da revista ordinária.
3. A recorrente aponta também ao acórdão a violação dos artigos 640.º e 662.º do CPC, alegando que:
- O acórdão recorrido errou ao não conhecer da impugnação da matéria de facto por falta de cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do CPC;
- O acórdão recorrido violou a lei processual ao afastar o recurso oficioso ao regime do artigo 662.º, n.º 2, al. a) ou b), do CPC.
Falamos em rigor de uma desconformidade do acórdão com a lei processual, reconduzível ao disposto no artigo 674º, nº1, al) b do CPC, pelo que a revista é admissível neste segmento.
Sem prejuízo, o objeto válido da revista admitida como a presente, fica circunscrito à inobservância do disposto nos artigos 640º e 662º do CPC no âmbito da reapreciação da matéria de facto.
A descaracterização da dupla conforme está limitada à alegada violação do direito adjetivo – a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto- excluindo do objecto da revista as demais questões suscitadas pela recorrente.
É orientação do Supremo de que o controlo do uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto pela Relação corresponde a questão que emerge “ex novo” no acórdão impugnado, inexistindo “conformidade decisória” com a primeira instância.
A exemplo do Acórdão do STJ de 04-07-20235:
«(..)4. Na verdade, “A decisão de facto é da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o aresto recorrido afronte disposição expressa de lei, nomeadamente, quanto às regras atinentes à impugnação da decisão de facto”.
5. “(…) esta delimitação não é totalmente rígida. Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662º” ou quando se trate de “sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674º, nº 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682º, nº 3.”»6
E, no Acórdão do STJ de 19-03-2024, na Revista n.º 150/19.0T8PVZ.P1. S17:
« Estando unicamente em causa o reconhecimento, ou não, do fundamento legal para a rejeição pelo Tribunal da Relação da impugnação da matéria de facto, por incumprimento da exigência estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a decisão desta questão jurídica apenas se coloca no âmbito da apreciação do acórdão recorrido, inexistindo, por sua própria natureza, qualquer pronúncia da 1ª instância sobre a matéria, o que significa que não é logicamente concebível a constituição de dupla conforme nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.
4. Delimitado o âmbito da revista à matéria supra indicada, compulsadas as conclusões da recorrente, em interface com o acórdão impugnado, as questões a decidir são as seguintes:
• Da rejeição do conhecimento da impugnação da matéria de facto por violação do disposto no artigo 640º do CPC;
• Da rejeição da intervenção oficiosa da Relação no âmbito do artigo 662.º, n.º 2, als. a) ou b) do CPC.
II. Fundamentação
A. Os Factos
Relevam para a decisão as incidências processuais enunciadas no relatório, sem prejuízo da compulsa do teor integral das peças em análise.
B. O Direito
1. Da rejeição do conhecimento da impugnação da matéria de facto por violação do disposto no art. 640.º do CPC
O acórdão recorrido rejeitou o conhecimento da impugnação da matéria de facto por entender não se mostrar cumprido quer o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, por falta de indicação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, nem o previsto artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, ao ter referido os meios de prova de forma genérica, sem os relacionar com os factos impugnados e sem indicar as exactas passagens da gravação das testemunhas e declarações de parte; nem indica qual a decisão a proferir sobre as questões de facto nem remete para as formulações factuais que considera ser tidas como provadas.
De modo a apreciar se, a recorrente observou os ónus impostos no artigo 640.º do CPC, respiguemos as seguintes conclusões do recurso de apelação:
1) o Mmo. Juiz a Quo, no seu relatório faz uma enumeração dos testemunhos gravados e uma valoração dos mesmos contestável, porque de todos só valora sem qualquer justificação atendível o depoimento do funcionário da Ré: GG---Única testemunha reputada pelo Mmo. Juiz como “credível”, sem se perceber porque as outras não são também credíveis.
2) Todos os outros testemunhos e declaração de parte foram olimpicamente desvalorizados e até ignorados para a formulação da decisão que se impugna sem quaisquer mais contemplações e em total ignorância do valor específico dos depoimentos e dos factos que os suportam.
3) Este posicionamento, removeu da pertinência para a decisão 12 depoimentos---12 (doze)-- (um por declarações de parte) e 11 de testemunhas, inclusive da própria Ré.
4) todos os depoimentos juntos pela Autora (suas declarações e testemunhas) emergem de pessoas que verdadeiramente e à altura dos factos conheciam (algumas até antes e também após os factos) o terreno, verificaram os cortes feitos no terreno, os postes eléctricos e a extensão do seu desbaste florestal.
5) A Autora, a mesma descreveu com acuidade e com conhecimento de causa e com conhecimento jurídico--Porque participou na elaboração da P.I.---os factos alegados e a prova junta.
6) A autora não logrou obter um perito local para avaliar os seus danos--Por não existirem numa base de dados ou de conhecimento acessível sequer no distrito de Castelo Branco, mas arrolou testemunhas que a ajudaram a determinar com conhecimento técnico da extensão dos danos.
7) Autora não era proprietária dos terrenos à altura de 1983/84, mas sim a sua mãe---A Autora herdou os terrenos da sua mãe--Que nem era jurista nem lia (como a esmagadora maioria dos cidadãos) à época editais em jornais de comarca sobre licenciamentos à sociedade EDP.
8) A Autora não logrou obter uma relação entre os contratos de arrendamento feitos, as propostas de compra do imóvel e a sua desvalorização, mas observa de acordo com regras de experiência comum dos danos e atravessamentos de linhas eléctricas---Os danos continuam lá visíveis para todos e originados por responsabilidade da Ré e seus contratados.
9) Pela prova junta se tornou evidente (E nos documentos juntos com a P.I.) e nas testemunhas de um dano fundamentalmente percebido após 2020 e não antes---a operação de gestão das faixas de combustível só ocorreu em 2020 e nunca, o que contribuiu para a apenas percepção actual do impacte dos postes e linhas e o desbaste florestal associado.
10) Sim, a Autora, efectivamente adquiriu um veículo Alfa Romeu com o corte de pinheiros numa das suas propriedades e muitas das testemunhas ouvidas sabem nem que seja por regras de experiência comum, que o valor de pinheiro cortado seria suficiente para tal compra e o testemunharam!
11) Os terrenos desvalorizaram porque apresentam verdadeiras chagas territoriais e florestais-- De pinheiros essencialmente--E mesmo que não se encontre dado estatístico dessa desvalorização, pela prova junta se pode verificar que esse dano e desvalorização foi actual e também potencial.
12) A participação dos depoentes BB, CC e EE, foi essencial para a Autora redigir o articulado aperfeiçoado com o corte dos pinheiros efectuado, suas medidas e extensões (diâmetros, altura e tipologias) e, no entanto, os seus valiosos depoimentos foram totalmente desvalorizados, desvalorizados e até vilipendiados (Como o da Autora) --Vide gravações.
13) E contribuíram estes depoentes para tudo o que está formulado na P.I. aperfeiçoada, nos termos dos seus artigos 34.º a 37.º--Vide a mesma peça como artigos fundamentais para avaliar a extensão dos danos nos terrenos da Autora.
14) Os danos abrangem um local de enorme preservação natural e ecológica e ideal para utilização e rentabilização em sistema de agricultura biológica ou permacultura. O que acarreta também prejuízos consideráveis para a A. em termos turísticos e de aproveitamento de solos.”
15) estas três testemunhas citadas tiveram um conhecimento do corte já em 2020--E não apenas um funcionário da Ré, como se lavrou----São locais da terra, habitam na aldeia de ... e do ..., a cerca de 4,5km dos terrenos, e tiveram conhecimento do corte mesmo antes do seu exame mais contemporâneo em 2022.
16) As testemunhas HH, II, DD e FF são todas elas testemunhas oculares dos danos e da “descoberta” dos mesmos a partir de 2020.
17) Quanto à prova por declarações de parte da Autora AA (Pags. 13 a 15 da Sentença) e na prova gravada no dia 23 de janeiro de 2023 das 10h26 às 12h17 da sessão a mesma confirmou que aperfeiçoou um articulado com uma descrição detalhada de estimativas de pinheiros cortados, sua idade, valor, área de corte territorial, diâmetro, a distinção se são de faxina se não são, com indicações de valores, coadjuvadas pelas testemunhas BB, CC e EE.
18) Juntou três certidões prediais dos terrenos (que não têm qualquer averbamento de qualquer servidão administrativa) e três cadernetas prediais e três geo-referenciações dos terrenos e conhece “com profusão, os prédios de que é proprietária”? Ao contrário do afirmado pelo Mmo. Juiz “A quo”.
19) prova produzida pelas testemunhas da Autora e da Ré, indicam para um corte na primavera de 2020, com a maior probabilidade para a segunda metade do mês de março.
20) É do conhecimento público e largamente em todos os meios de comunicação pública e social, que a partir de 18 de março de 2020 foi decretado o estado de emergência sobre a pandemia da doença COVID-19 que pôs todo o país de quarentena---E o corte foi feito neste período.
21) os terrenos não se integram na área de primeira habitação da Autora, que reside em ..., e a mesma Autora só pôde deslocar-se numa das brechas legalmente previstas da quarentena ou pouco depois da primeira quarentena quando se deu conta do corte.
23) As testemunhas HH, II, DD e FF também se deram conta do desbaste nessa primavera de 2020 por visita ao local.
24) A Autora nem podia ser medianamente diligente para acompanhar um corte de que não foi avisada, notificada pessoalmente ou postalmente, nos seus terrenos.
25) Os mesmos cortes foram feitos na obscuridade da circulação pública de um país de quarentena, ou seja, às escondidas do escrutínio dos proprietários e público (como convinha) e porque não se quis fazer de outra maneira.
26) Todos os documentos que a Autora juntou são prova válida para os factos de que serviram suporte e que foram articulados, todos!
27) O depoimento de BB--Segmento de 23/1/2023 das 12h20 às 12h46--Confirma pura e simplesmente o conhecimento da testemunha local que melhor apreende e avalia aquele perímetro florestal--E colaborou intensivamente no levantamento feito do aperfeiçoamento do articulado, sobre os pinheiros cortados, e confirmou-o no seu depoimento ainda que por vídeo conferência no Tribunal de ....
28) Existe um engano evidente da parte do julgador---Ora, se o corte foi de pinheiros (centenas ou mesmo milhares de pinheiros naquela área) e se estes foram cortados na primavera de 2020, e sabendo a lentidão de um crescimento do pinheiro (para um adulto segue-se a soma de 30 anos), o terreno de corte nunca apresentaria significativas diferenças de 2020 para 2022.
29) Este absurdo de julgamento, revela desconhecimento do território, da floresta e da biologia--As próprias fotos juntas no processo o demonstram e esta análise em 2022, é perfeitamente válida sobre os pinheiros cortados em 2020, porque os mesmos nada cresceram--Esta é razão de ciência e é do senso comum.
30) As testemunhas HH e II uma vez que conheciam os terrenos antes da primavera de 2020 e observaram com os seus próprios olhos o grau de devastação florestal, na primavera de 2020, o seu depoimento não pode ser desvalorizado---Vide segmentos de 23 de janeiro de 2023-14h19 às 15h00.
31) O depoimento da testemunha CC-Segmento de 23/1/2023 das 15h07 às 15h30--confirma perfeitamente que conhecia das dimensões do pinhal cortado em 2020--Ele esteve lá e viu-o e tal é afiançado perante alguém que é Procurador da República junto do Tribunal de Oleiros e da Comarca de Castelo Branco.
32) O depoimento de DD--Segmento de 23/1/2023 das 15h31 às 15h49--Revela que a mesma conheceu o grau da devastação florestal e mais conhece os terrenos há mais de 20 anos.
33) A mesma testemunha refere que nos técnicos da EDP em todos os terrenos vizinhos tinham procedido assim em cortes análogos---Sem avisar, notificar ninguém e não dando contas do que fizeram--Uma actividade costumeira, como disse.
34) Também como mulher da anterior testemunha, reside na aldeia do ... a 4,5Km dos terrenos e deles tem um conhecimento profundo e directo.
35) A testemunha EE, faz “limpezas da floresta” efectivamente, conhece os terrenos há anos trabalhou e trabalha para a fileira da indústria florestal e também assistiu à devastação florestal ocorrida---Segmento de 23/1/2023 das 15h50 até às 16h10.
36) O depoimento da testemunha FF deve ser correctamente reflectido---A testemunha é filha da Autora conhece o terreno há mais de 20 anos e ainda testemunhou sobre o facto de aquele corte tão extenso foi o único que testemunhou em toda a sua vida no terreno.
37) Quanto às testemunhas da Ré há que assinalar os seguintes traços comuns nos seus depoimentos: Não conhecem o terreno com conhecimento local e duradouro; Não conhecem a Autora; Não conhecem a própria freguesia e vagamente o município; São todos funcionários da Ré; Só muito recentemente têm ligação ou responsabilidades na área de gestão florestal da Ré; Pouco ou nada conhecem daquele pinhal em concreto; têm uma pia convicção de que Ré procede em tudo bem neste tipo de operações; Acreditam que as sub-contratadas da Ré para desbastar floresta cumprem o caderno de encargos, são responsáveis e não ficam com os pinheiros, pese embora de nada sabem sobre quem controla a sua actividade--E se bem ou, se mal; Não sabem nem entendem que têm de saber o que sucedeu aos pinheiros cortados-- Está tudo nas gravações.
38) A testemunha JJ--Segmento de 23/1/2023 das 16h53 às 17h38 é desconsiderada (novamente) pelo Mmo. Juiz, mas, no entanto, foi a que produziu o mais extenso dos depoimentos das testemunhas da Ré e dos mais relevantes no plano do corte florestal.
39) A mesma testemunha admite no seu depoimento (Fim do seu segmento de gravação) de que não existiam quaisquer operações de corte antes de 2020 por causa da mora na existência de um plano municipal de gestão de faixas de combustível.
40) Sobre o depoimento único que o Mmo. Juiz no meio de tanto que foi dito considerou, há que assinalar que o depoimento do Sr. GG--Segmento de 29/5/2023 das 10h17 às 11h01 em nada contraria o que as outras testemunhas disseram sobre a extensão do corte, antes o complementa.
41) Foram bem mais os pinheiros cortados no seu depoimento insuficiente e lamentavelmente foi esta a única testemunha considerada.
42) Existe apenas um conhecimento do corte florestal apenas a partir de 2020 (março de 2020)
43) O atravessamento dos postes apesar de ter o seu impacto e na desvalorização dos terrenos, nunca foi objecto de um corte de pinheiros como operado.
44) A Autora só teve conhecimento dos direitos que lhe assistiam a partir de 2020.
45) A Autora não teve conhecimento por qualquer meio de éditos de servidões administrativas muito menos por documentos (Vd. As certidões juntas)
46) Em 1983/84 ninguém da família da Autora teve de conhecimento de qualquer édito em jornal de Comarca nem se podia exigir tal conhecimento a cidadão de perfil médio na altura e mormente quando ao conhecimento jurisprudencial desta matéria e da invocação de direitos junto da EDP.»
Em análise.
Preceitua o artigo 640.º, n.ºs 1 e 2 do CPC:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
É entendimento generalizado neste Supremo Tribunal, segundo o qual o ónus previsto no artigo 640.º do CPC se desdobra em dois tipos:
- Um ónus primário que respeita à obrigação de indicação dos concretos pontos de facto impugnados, por se tratar de uma imposição de delimitação do objecto do recurso - n.º 1 do artigo 640.º do CPC;
- Um ónus secundário que visa possibilitar um mais facilitado acesso aos meios de prova gravados pertinentes para a apreciação da impugnação da matéria de facto - n.º 2 do artigo 640.º do CPC8 .
Na averiguação do cumprimento destes ónus deverá atender-se também aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com prevalência dos aspectos materiais sobre os aspectos formais9 - cfr. os já citados Acórdãos do STJ de 20-10-2015, Revista n.º 233/09.4TBVNG.G1. S1, e de 18-01-2011, Revista n.º 701/19.0T8EVR.E1. S1.
O que se exige então ao recorrente: i) a indicação dos pontos concretos da matéria de facto que impugna; ii) os concretos meios de prova em que funda a sua discordância; iii) caso haja prova gravada, as passagens que fundamentam essa impugnação; iv) e a decisão que deve ser proferida, no entender do recorrente, relativamente à matéria impugnada.
In casu, importa verificar se, a recorrente cumpriu afinal os ónus primário e secundário, em especial o previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPC.
Da análise das conclusões aperfeiçoadas, temos que a recorrente não impugna em concreto e de forma directa, qualquer facto provado ou não provado da matéria de facto.
A recorrente discorre sobre a prova produzida, omitindo, porém, essa identificação especificada, de quais os factos que no seu entender foram incorrectamente julgados e que pretende ver reapreciados pela Relação.
Utiliza a seguinte técnica de impugnação- parte do resumo dos depoimentos, empenhada, em exprimir de forma prolixa e confusa a sua discordância sobre a valoração que foi feita da prova, que alega ser errada.
Processo que desenvolve sem a correspondência específica à factualidade cujo sentido probatório foi acolhido na sentença.
Daí que, embora guiados na tarefa pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, é forçoso concluir que a recorrente não satisfez o ónus de impugnação da matéria de facto - artigo 640.º, n.º 1, al. a) do CPC- que dita a rejeição da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
Prosseguindo a jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal, e que culminou no recente Acórdão de Uniformização e Jurisprudência nº12/2023 de 14.11.2023, onde se expressa com clareza:
«(...) Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.»
Isto dito, o acórdão recorrido concluiu que a recorrente não satisfez o ónus de impugnação de harmonia com a estatuição das als. b) e c) do n.º 1 e a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC.
Ou seja, não indicou as passagens da prova gravada em que alicerça a discordância com a matéria de facto, não procedeu à transcrição dos depoimentos, não indicou qual a decisão que, no seu entendimento, deveria ser considerada, ainda que o pudesse fazer nas alegações.
Admite-se que a recorrente tentou ainda aperfeiçoar (sem êxito) as conclusões do recurso de apelação neste aspecto, apesar de o convite que lhe foi dirigido não o prever, nem ser legalmente admitido10.
Na doutrina, salienta Abrantes Geraldes11 «(…) não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do artigo 652.º, n.º 1, al) a, na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº 3 do art.639.º.»
Em suma, não tendo a recorrente indicado, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no artigo 640º nº 1, als. a) e c) do CPC, deve o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte.
O acórdão não justifica alteração neste segmento.
2. Da rejeição do conhecimento oficioso do artigo 662.º, n.º 2, als. a) ou b) do CPC.
Invoca a recorrente que o acórdão não acionou o recurso oficioso aos poderes conferidos à Relação na reapreciação da matéria de facto vinda da primeira instância.
Analisemos.
É recorrível para o Supremo a alegação sobre o não uso pela Relação dos poderes de correcção da matéria de facto, e que lhe são conferidos pelo artigo 662.º, nº1 e nº2 do CPC, não abrangida na limitação estabelecida no seu nº4.
O artigo 662.º do CPC estabelece um verdadeiro segundo grau de jurisdição sobre a apreciação da prova.
Ao Tribunal da Relação, por força do que se acha disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663º, n.º 2, do CPC, cabe apreciar criticamente as provas indicadas pelas partes recorrentes em fundamento da impugnação, de forma conjugada e contextualizada, por forma a criar a sua própria convicção12.
Uma distinção, contudo, se impõe traçar nos poderes- deveres do Tribunal da Relação com previsão no artigo 662º do CPC.
No que respeita aos meios de provas sujeitos à livre apreciação, o exame crítico da Relação está limitado ao que resulta da impugnação da matéria de facto pelo recorrente, vinculado ao cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.
Se, foi satisfeito, na reapreciação da matéria de facto, então a Relação fica autorizada a proceder à análise dos demais meios de prova e factos provados e não provados, (ainda que não impugnados), com vista à formação de uma convicção própria, obtida activa e criticamente em face dos elementos probatórios indicados ou mesmo adquiridos oficiosamente.
Estando em causa norma de direito probatório material, ou a contradição entre os factos, então o Tribunal da Relação deve intervir na reapreciação da prova e à alteração dos factos dados como provados e não provados, ainda que o recorrente não tenha procedido correctamente ou não tenha procedido de todo à impugnação da matéria de facto.
Abstraindo de tais situações de actuação oficiosa da Relação, a sua intervenção e exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto correção ficará, pois, na dependência da satisfação pelo recorrente de um específico ónus de impugnação.
Na situação em análise, o acórdão da Relação confirmou, com idêntica fundamentação, o julgado de 1.ª instância, tendo rejeitado a reapreciação da matéria de facto, pelas razões expostas e que se acolheram como corretas.
A motivação da decisão da matéria de facto vinda do tribunal a quo alicerçou-se em prova de livre apreciação (artigo 607º, nº5, do CPC) e não ocorre situação enquadrável no nº1do artigo 662º do CPC, pelo que não competia à Relação reapreciar a decisão de facto, como sustenta a recorrente 13.
IV. Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente a revista.
Lisboa, 3 de Julho de 2025
Isabel Salgado (relatora)
Fernando Baptista de Oliveira
Emídio Francisco Santos
_______
1. Salvo na hipótese, claramente marginal, em que toma conhecimento do direito quando faltam menos de 3 anos para se perfazerem os 20 anos.
2. Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição, pp. 412 e 413.
3. Cfr. neste sentido, inter alia, os Acórdãos do STJ de 28-05-2015, Revista n.º 113/07.8TBMNC.G1. S1; de 06-12-2018, Revista n.º 7507/16.6TLSB.L1. S1; e de 08-02-2024, Revista n.º 987/20.7T8STR.E1. S1, todos in www.dsgi.pt.
4. MARIA DOS PRAZERES BELEZA, “Restrições à admissibilidade do recurso de revista e revista excepcional”, A Revista n.º 1, STJ, Lisboa, 2022, p 29.
5. No proc. nº 19645/18.6T8LSB.L1. S1. disponível in www.dgsi.pt
6. No mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 05-04-2022, proc. n.º 1916/18.3T8STS.P1. S1; e de 31-03-2022, Revista n.º 505/17.4T8FAR.E1. S1, in www.dgsi.pt.
7. .
8. cfr. Acs. do STJ de 20-10-2015, Revista n.º 233/09.4TBVNG.G1. S1, de 03-11-2020, Revista n.º 294/08.3TBTND.C3. S1, de 21-03-2019, Revista n.º 3683/16.6T8CBR.C1. S2, e de 17-12-2019, Revista n.º 363/07.7TVPRT-D. P2.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt.
9. Cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, p. 199 e ss.
10. Cfr. Acórdãos do STJ de 14-09-2023,Revista n.º 2667/20.4T8PDL.S1; de 14-02-2023, Revista n.º 1680/19.9T8BGC.G1. S1, in www.dgsi.pt.
11. Abrantes GERALDES, obra citada, p. 198.
12. Cfr. inter alia, os Acórdãos do STJ de 04-07-2023, Revista n.º 19645/18.6T8LSB.L1. S1; de 15-06-2023, Revista n.º 6132/18.1T8ALM.L1. S2; de 24-10-2023, Revista n.º 24966/19.8T8PRT.P1. S1; de 14-07-2021, Revista n.º 1333/14.4TBALM.L2. S1, in www.dgsi.pt.
13. Casos em que a modificação da matéria de facto passa pela aplicação de regra de direito probatório material que não foi respeitada pelo tribunal a quo.