I. Seguindo a orientação prevalecente no Supremo Tribunal, a infração rodoviária, fazendo presumir a culpa do infractor, não demonstra, por si só, ser causa determinante de um acidente e exige o nexo causal entre a violação da norma estradal e a produção do dano.
II. Na ausência da demonstração de culpa dos condutores dos veículos na eclosão do sinistro, subsiste a imputação do dano pelo risco ligado à circulação automóvel e aos parâmetros da responsabilidade objetiva e ausência de causa legal de exclusão.
III. O condutor do motociclo que veio a falecer em consequência da colisão com o veículo ligeiro não corresponde ao padrão da “vítima vulnerável”, conecta com a tutela dos utentes não motorizados das vias de trânsito, acolhida pela lei do seguro obrigatório e reflectida na jurisprudência do TJUE.
IV. A repercussão do risco despoletado por cada um dos veículos intervenientes na colisão que não suporta distinguo na contribuição de cada um dos condutores para o evento danoso, vale a regra de repartição igual.
1. AA e BB intentaram acção declarativa com processo comum, contra CARAVELA -COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 495.391,19, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais.
Alegaram em síntese que CC, cônjuge e pai dos autores, faleceu em consequência do acidente de viação que se traduziu no embate entre o ciclomotor que aquele conduzia e o veículo ligeiro, conduzido por DD, com culpa exclusiva, tendo o proprietário transferido para a Ré a respetiva responsabilidade civil pelos danos de circulação.
A Ré contestou, impugnando a dinâmica do acidente descrita na petição inicial, e imputou ao falecido condutor do motociclo a exclusiva culpa na produção do sinistro, declinando a responsabilidade do segurado pelos danos peticionados.
Citou-se o Instituto da Segurança Social, I.P., que deduziu pedido de reembolso de prestações pagas à viúva do falecido.
Prosseguiu a instância os demais termos e após a realização da audiência final, a sentença julgou a acção improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.
2. Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação da sentença, reclamando a substituição por acórdão, no sentido de condenação da Ré no pagamento de indemnização pelos danos peticionados, na medida da responsabilidade a atribuir ao condutor do veículo segurado, mas não inferior a 70%.
A Relação julgou procedente a apelação e anulou a sentença, voltando os autos ao tribunal a quo para ampliação da matéria de facto, conforme o disposto no artigo 662º, nº2, al) a e c) do CPC1.
Cumprido tal desiderato, foi proferida nova sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.
Discordantes, os autores interpuseram recurso de apelação.
Pugnaram pela alteração do julgado e renovaram a posição anterior, segundo a qual, face à ausência de prova de culpa dos intervenientes no acidente, valha no caso a regra prevista no artigo 506º do Código Civil e, a Ré condenada a pagar aos autores a indemnização pelos danos peticionados, na medida da contribuição do condutor do veículo segurado, ou por presunção, em igual medida.
A Relação manteve, porém, o julgado de improcedência da acção e absolveu a Ré dos pedidos2.
3. Subsistindo o seu inconformismo, os autores interpuseram revista excecional para o que invocaram os fundamentos enunciados no nº2 do artigo 672º, nº1, al) a e b) do CPC.
Alegaram e assim concluíram:
(i) Nesta revista excecional está em causa a questão de saber, em matéria de acidentes de viação e da socialização da responsabilidade, se a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505.ºdo Código Civil, máxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima ter atuado com culpa, de modo a conduzir a uma repartição de responsabilidade;
(ii) Por outro lado, impõe-se a admissão da presente revista excecional precisamente pela pertinência de se vir a esclarecer se poderemos estender a qualidade de vítimas mais vulneráveis ou desprotegidas aos utilizadores motorizados das estradas, designadamente para efeitos de aplicabilidade desta nova interpretação progressista e atualista do art. 505.º do CC;
(iii) É certo que no caso sub judice estamos perante um acidente de viação ocorrido entre um veículo automóvel e um motociclo, no entanto, não temos quaisquer dúvidas em afirmar que o juízo de ponderação a efetuar quanto à proteção a dar a determinadas categorias de vítimas, tidas por mais desprotegidas, se deve efetuar à luz do caso concreto, sob pena de se desvirtuar a tal lógica de socialização da responsabilidade decorrente da circulação de veículos;
(iv) A decisão recorrida, partindo da conclusão de que o condutor do motociclo (lesado) teve culpa na produção do acidente, afastou logo a responsabilidade do condutor do veículo ligeiro de passageiros sem sequer ter apreciado a hipótese de este poder ser responsabilizado pelo risco;
(v) Na opinião dos aqui Recorrentes, deveria o tribunal recorrido ter aderido a uma interpretação progressista e atualista do art. 505.º do Código Civil, no sentido de nela se acolher as regras do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo;
(vi) O douto acórdão recorrido, ao não ter equacionado nem apreciado a responsabilidade do condutor do veículo ligeiro com base no risco, mesmo havendo culpa do lesado, encontra-se em contradição com outro acórdão do STJ já transitado em julgado no domínio da mesma legislação - artigos 503.º, 505.º e 570.º do CC - e sobre a mesma questão fundamental de direito - concorrência de culpa e risco em ação emergente de acidente de viação, designadamente o acórdão proferido em 28.3.2019, no Processo n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1 (cuja cópia se junta), sendo certo que não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a matéria em questão;
(vii) O presente recurso é importante para a melhor aplicação do direito, já que importa definir com rigor o quadro legal que impõe uma especial atenção e proteção aos utilizadores vulneráveis (nos quais se incluem igualmente os motociclistas, designadamente quando intervêm em acidentes com veículos de maior dimensão e massa), relativamente à preponderância do risco geral da circulação de um veículo automóvel, na definição de responsabilidades pelos danos sofridos por aqueles em resultado de um acidente, designadamente no que concerne à extensão e gravidade dos danos, tendo por base o principio da socialização do risco;
(viii) Ademais, importa apurar se a força cinética de um veículo em movimento faz (ou não) que ele seja causa adequada da gravidade dos danos resultantes de um acidente no qual o mesmo interveio, uma vez que o risco e culpa dos intervenientes são fatores concorrenciais na determinação da responsabilidade pelos danos que resultaram do acidente;
(ix) Assim justifica-se a promoção do presente recurso de revista excecional, no sentido de se definir, com rigor, o quadro legal em que será legítimo ao julgador excluir o contributo causal do risco inerente à circulação de um veículo automóvel e atribuir o acidente exclusivamente à esfera da malograda vítima mortal ou do seu comportamento descuidado;
(x) Sendo um acidente de viação uma realidade dinâmica, deve entender-se que para a sua ocorrência concorrem ou contribuem determinados aspetos que têm uma repercussão direta na extensão e gravidade dos danos sofridos pelos intervenientes, designadamente o tipo de veículos envolvidos, as suas massas e as velocidades imprimidas;
(xi) Outrossim, a matéria em apreço é de enorme relevância social, já que se projeta no direito de indemnização de inúmeras vítimas de acidentes de viação e que se repetirão potencialmente numa plêiade de casos futuros, contribuindo assim para a certeza e segurança da aplicação do direito;
(xii) A presente revista excecional tem assim como fundamento a violação de lei substantiva, porquanto tanto a sentença proferida pelo Juízo Central Cível do ... como o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, não operaram uma correta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 503.º, 505.º e 570.º do Código Civil, bem ainda o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, 35.º, n.º 1 e 38.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada, motivo pelo qual deverá ser a mesma admitida nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) do CPC;
(xiii) O presente recurso vai interposto contra o douto acórdão, que julgou a apelação promovida pelos Recorrentes totalmente improcedente, considerando o facto de, tal como sucedeu na primeira instância, ter considerado que a culpa na produção do acidente coube na totalidade ao malogrado condutor do motociclo de matrícula JH, pelo que, com base nessa premissa, arredou a possibilidade de aplicação da tese da concorrência entre o risco do veículo ligeiro de passageiros de matrícula TX e o facto ilícito praticado pelo lesado;
(xiv) Salvo o devido respeito, a decisão recorrida incorreu em manifesto erro de julgamento, já que, em face da escassez da factualidade considerada provada (designadamente ao não se ter apurado a velocidade a que circulava o veículo ligeiro de passageiros de matrícula TX, bem como, as distâncias entre os veículos intervenientes quando passaram a circular pela via mais à esquerda da VR1 e o local onde se imobilizou o veículo de matrícula TX), não permite inferir a solução mais radical de excluir o contributo causal do risco inerente à circulação do veículo de matrícula TX e atribuir o acidente unicamente à esfera da malograda vítima mortal ou do seu comportamento descuidado;
(xv) A colisão segundo a factualidade considerada provada no caso sub juditio, pode ter tido várias dinâmicas possíveis que não vieram a ficar demonstradas, pelo que se trata de um caso de concorrência heterogénea, entre o risco e culpa do lesado, na medida em que contribuíram causalmente para o acidente, não só o comportamento da vítima, mas também o risco gerado pela condução do veículo, cujo condutor tem a direção efetiva do mesmo e o utiliza no seu próprio interesse, nos termos do art. 503.º, n.º 1 do CC;
(xvi) Assim, deve-se considerar que a conduta culposa do condutor do motociclo lesado é concausal com a presunção de culpa que incide sobre o condutor do veículo ligeiros de passageiros de matrícula TX, que não se mostra totalmente ilidida, importando, por isso, nos termos do art. 570.º, n.º 1 do CC, determinar a proporção da responsabilidade a atribuir ao lesante, pela qual responde a Ré seguradora, por força do contrato de seguro celebrado;
(xvii) O que, de acordo com a interpretação atualista do preceituado no art. 505.º do CC, reclama a subsunção desta situação concursal de causas de dano à norma que estabelece o critério para se definir a proporção com que cada veículo contribuiu para os danos sofridos (vide art. 570.º do mesmo diploma legal), o que in casu deverá ser fixada em proporção idêntica (50% para o lesado e 50% para o risco do veículo);
(xviii) Sendo a Ré seguradora responsável por 50% dos danos resultantes do acidente, em virtude do contrato de seguro que vigorava, deve a presente revista proceder e, em conformidade, ser o presente processo remetido ao Tribunal da Relação para ser fixada a indemnização competente, nos termos do disposto no arts. 679.º e 655.º ambos do Código de Processo Civil.
(xix) A decisão recorrida violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 503.º, 505.º e 570.º do Código Civil, bem ainda o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, 35.º, n.º 1 e 38.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada; (…) O douto acórdão recorrido deve ser revogado, dando-se provimento ao presente recurso e determinando-se a sua substituição por outro que considere que para o acidente de viação em apreço nos presentes autos, também concorreu o risco inerente à circulação estradal do veículo automóvel de matrícula ..-..-TX, tudo de acordo com as conclusões supra»
II. Admissibilidade e objecto do recurso
1. Questão prévia
Atestados os requisitos gerais de recorribilidade e a dupla conforme, a Formação admitiu a revista excepcional com o fundamento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672º do CPC.
Na motivação do recurso os autores alegam amiúde, que a matéria de facto provada sugere que também o condutor do veículo ligeiro assumiu conduta ilícita e apta à imputação culposa (negligente) e, em concorrência com a culpa do condutor do motociclo na produção do acidente, mormente, a violação das regras a atender na manobra de ultrapassagem.
Designadamente, invocam : “o douto acórdão recorrido, ao afastar a culpa do condutor do veículo automóvel, apesar de este ter realizado uma manobra de mudança de via de circulação no âmbito de uma ultrapassagem – manobra essa, só por si, considerada perigosa –, quando é certo que a presença do motociclo de matrícula JH a circular atrás de si deveria ter sido por este devidamente percecionada já que apesar de ser de noite, a estrada era bem iluminada e o motociclo circulava com o sistema de iluminação acionado, veio a desconsiderar o comando estradal incito no artigo 38.º n.º 1 do Código da Estrada que impõe a obrigação ao condutor que vai realizar tal manobra de apenas a realizar após se ter certificado que a via a que se propunha aceder se encontrava totalmente desimpedida.
Para afirmarem:
- “nos presentes autos caberá igualmente ao condutor do veículo seguro, quer porque se verificam todos os pressupostos legais no âmbito responsabilidade subjetiva - artigo 483.º, n.º 1 do CC - quer porque se verificam, subsidiariamente, os pressupostos no âmbito da responsabilidade pelo risco - artigo 503.º, n.º 1 do mesmo diploma legal - que aqui também se invoca para os devidos e legais efeitos.
O objectivo da intervenção do Supremo Tribunal, no caso, face à dupla conforme de julgados foi sintetizado no seguinte extracto do acórdão da Formação:
«No caso, importa densificar o conceito do que são vítimas vulneráveis e apurar a preponderância do risco geral da circulação de um veículo automóvel na definição de responsabilidades pelos danos.
Não se encontrando ainda sedimentada a jurisprudência sobre esta temática, também no presente caso se justifica com esse enfoque a intervenção clarificadora e estabilizadora do Supremo Tribunal de Justiça, cuja resolução demanda a valoração jurídica de um contexto factual não linear, em que está em causa o embate traseiro de um motociclo num veículo automóvel, em que ambos se encontram a efetuar uma ultrapassagem».
Em anotação ao artigo 672º do CPC e da revista excecional prevista na alínea a), nº1, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa referem:
«Para esta primeira exceção são elegíveis situações em que a questão jurídica suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas. Na verdade, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, embora a lei não distinga entre questões que emergem do direito substantivo ou do direito adjetivo. Não bastará, pois, o mero interesse subjetivo da parte3.»
Apesar disso, in casu.
Os recorrentes sustentam que o acidente não ocorreu por culpa exclusiva do condutor do motociclo, imputando responsabilidade por facto ilícito (culpa concorrente) ou pelo risco ao condutor da viatura segurada e, no limite, reclama a tutela das vítimas vulneráveis.
Na medida em que a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487.º, n.º 2, do CC), o que constitui matéria de direito, o Supremo deve tomar conhecimento na revista.
Situando-se a apreciação do mérito do direito no âmbito da responsabilidade civil, implicará a reavaliação da matéria de facto na dupla vertente da causalidade do acidente e da causalidade dos danos.
2. Tema decisório
Assim sendo analisadas as conclusões dos recorrentes em interface com o acórdão da Relação, o tema decisório traz a debate as seguintes questões:
• A culpa dos intervenientes na produção do acidente; concorrência; a responsabilide pelo risco;
• A imputação pelos riscos inerentes à circulação do veículo; interpretação actualista do artigo 505º do CC; a doutrina e jurisprudência;
• A culpa exclusiva / culpa reduzida do lesado na relevância causal do acidente e a exoneração/contribuição da responsabilidade pelo risco do proprietário/detentor do veículo;
• A “vítima vulnerável” enquanto risco na circulação rodoviária; a jurisprudência do TJUE.
III. Fundamentação A. Os Factos
Vem provado das instâncias:
1. CC nasceu no dia ........1976, tendo casado catolicamente com a autora AA, no dia ........1997.
2. Na constância desse matrimónio nasceu, no ........1999, o autor BB.
3. CC faleceu no passado dia ........2018, no estado de casado com a Autora
AA.
4. Em documento de procedimento simplificado de habilitação de herdeiros o autor BB declarou os aqui autores são os únicos e universais herdeiros de CC.
5. No dia ........2018, pelas 00,15 horas, na Via Regional 1(VR1), entre o quilómetro 20,800 e 21,000, na freguesia de ..., concelho do ..., ”ocorreu um acidente de viação”4; o veículo ligeiro de passageiros, de marca Hyundai, modelo Matrix, com a matrícula ..-..-TX, propriedade de EE, era conduzido por DD, e o motociclo de marca Honda, modelo PC41, de matrícula ..-JH-.. era conduzida pelo seu proprietário, CC.
6. Essa artéria tem cerca de 7 metros de largura e é composta por duas vias de circulação afetas ao mesmo sentido de marcha, separadas ao centro por uma linha longitudinal descontínua.
7. O seu piso era (como é) em asfalto.
8. O relatório de autópsia médico-legal realizado ao condutor do motociclo concluiu que o falecido CC, apresentava uma TAS de 0,80 g/l (com uma margem de erro de 0,10 g/l).
9. Através de contrato de seguro, titulado pela apólice n.º .........26, a ré seguradora assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-TX.
10. Foram imediatamente acionados os meios técnicos de socorro, tendo comparecido no local uma equipa da EMIR e os Bombeiros Voluntários ....
11. Em consequência do acidente ocorrido no momento e local referidos em 5., corre os seus termos, na 2a Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (D.I.A.P.) da Comarca da Madeira - ..., inquérito criminal sob o número 212/18.0..., no âmbito do qual não foi proferido ainda despacho de acusação/arquivamento.
12. A VRI, entre o km 20,800 e 21,000, considerando o sentido de marcha F...... (oeste) - S.... .... (este), é uma via de sentido único, a qual se descreve em reta, sendo antecedida de uma ligeira curva para a direita.
13. A velocidade máxima permitida para o local era (como é) de 80 km/h.
14. Essa artéria encontrava-se iluminada, através de postes de iluminação pública, existentes de 25 em 25 metros, os quais se encontravam a funcionar.
15. O embate provoca a queda do motociclo e do seu condutor no pavimento.
16. O veículo de matrícula TX prosseguiu a sua marcha tendo-se imobilizado mais à frente do local onde ficou o corpo do motociclista.
17. CC ficou prostrado no chão.
18. O condutor do veículo automóvel segurado na ré, com a matrícula ....-TX, circulava, no momento e local referidos em 5. pela via de trânsito direita, no sentido Oeste/Este. 19.Seguindo atrás de outra viatura que ali também circulava, pelo mesmo sentido (Oeste/Este) e pela mesma via (da direita).
20. Pretendendo ultrapassar tal viatura que seguia à sua frente.
21. O condutor do veículo automóvel segurado junto da ré, com a matrícula ..-..- TX, realizou a mudança de via para a esquerda, sinalizando tal manobra.
22. Indo, assim, ocupar a via esquerda da estrada – Via Regional 1 (VR1) -, onde circulava. 23.Ocorreu um embate entre o lado esquerdo traseiro do veículo segurado na ré, com a matrícula ..-..-TX, com o motociclo de matrícula ..JH-...
24. Após embate, o condutor do veículo automóvel segurado na ré, com a matrícula ..-..-TX, continuou a sua marcha, durante mais alguns metros.
25. O motociclo, com a matrícula ..-JH-.., deixou demarcado, no pavimento da via esquerda daquela Via Regional 1 (VR1), um rasto de travagem que se desenvolve numa extensão de 51,80 m e termina junto à berma esquerda, onde ocorreu o embate.
26. Seguindo-se um rasto de derrapagem, numa extensão de 38,20m, ficando o condutor do motociclo, com a matrícula ..-JH-.. imobilizado no pavimento junto à berma esquerda da Via Regional 1 (VR1).
27. O motociclo com a matrícula ..-JH-.., que seguia com o sistema de iluminação ligado, percorreu uma distância de 90 metros, após o seu condutor ter iniciado a travagem até ao ponto onde embateu.
28. O condutor do motociclo, com a matrícula ..-JH-.. seguia a uma velocidade acima de 80 Kms/h.
29. Antes de embaterem, o veículo segurado na ré, com a matrícula ..-..TX e o motociclo com a matrícula ..-JH-.., provinham de uma curva, seguida de lomba.
30. A vítima sofreu múltiplos traumatismos.
31. Tendo sido reencaminhada para o Hospital ..., no ....
32. Onde chegou já cadáver.
33. A vítima sofreu inicialmente o impacto do embate.
34. O CC dedicava afeto, amor e carinho à autora AA com quem se encontrava casado há mais de 21 anos.
35. Existindo uma cumplicidade entre ambos.
36. A vítima nutria por seu filho amor e ternura.
37. A sua falta provocou e vai continuar a provocar por toda a vida dos autores uma tristeza, consternação e pesar.
38. A autora AA mergulhou numa áurea de tristeza e descrença.
39. Tal sofrimento permanece, sendo certo que a mesma revive, quase diariamente, vários episódios que viveu com o seu marido.
40. Essas revivescências têm afetando a autora psicologicamente, com reflexos ao nível da sua alegria de viver.
41. A autora AA anda abatida, deixou de conviver socialmente, raramente sai de casa, passando os dias a chorar.
42. Tal agonia, tem-se agravado paulatinamente com o decurso do tempo, perturbando o equilíbrio psicológico e emocional do seu agregado familiar.
43. O seu filho também anda triste.
44. Questionando a mãe continuamente porque é que a mesma está sempre a chorar. 45. O filho amava a vítima.
46. Com as cerimónias fúnebres os autores despenderam a quantia de € 2.677,89, tendo recebido um subsídio por morte pago pelo ISS da ... no valor de € 1.286, 70, pelo que a este título os Autores tiveram uma despesa de € 1.391,19.
47. A vítima exercia a função de vendedor de loja de 1.a classe, na Ilha da ..., ao serviço da sociedade comercial H..., Lda, com sede na Rua ..., ... ..., auferindo nos oito primeiros meses do ano de 2018, a quantia média de € 1.256,16.
48. O falecido CC geria ainda um estabelecimento comercial de ..., denominado de R..., Lda, sito na Rua ..., nada recebendo a esse título.
49. A autora AA trabalhava nesse estabelecimento comercial.
50. O agregado familiar da vítima era composto por si, pela sua esposa, a autora AA, e pelo seu filho, o autor BB.
51. A autora AA ajudava o marido na gestão do negócio de ....
52.O autor BB, à data do óbito de seu pai, era estudante.
53. Era com os rendimentos auferidos pelo falecido e pela autora AA que ambos pagavam mensalmente a prestação do crédito bancário que tinham contraído (para compra de uma habitação e para obras), no valor global de € 380,21.
54. Em virtude do acidente e do falecimento de CC, a autora tem recorrido à ajuda de familiares e amigos.
55. À autora foi concedida pensão de sobrevivência pelo Instituto da Segurança Social, IP-..., no valor mensal de € 449,50.
56. Em virtude do falecimento de CC, a autora AA requereu ao Instituto da Segurança Social, IP subsídio por morte e pensão de sobrevivência, tendo tal Instituto, através do Centro Nacional de Pensões, processado e pago à autora, até á data da apresentação do correspondente pedido de reembolso, a quantia de 14.314,20 euros, sendo 1.286,70 euros a título de pensão por morte de CC e 13.027,50, a título de prestações de pensão de sobrevivência, relativas ao período de 10-2018 a 10-2020.
57. O valor mensal atual da pensão de sobrevivência que o Instituto da Segurança Social, IP está a pagar à autora AA é de 446,38 euros.
58. O condutor do motociclo com a matrícula ..-JH-.. mudou de via, da direita para a esquerda, na Via Regional 1 (VR1) sem sinalizar tal manobra.
E, Não Provado:
a) Na artéria referida em 12. a 14. transitava um veículo automóvel, pelo corredor de circulação mais à direita, atento o sentido de marcha F....... – S.... ...., a uma velocidade nunca superior a 60 km/hora; b) Imediatamente atrás deste veículo e pelo mesmo sentido de marcha, circulava o motociclo de matrícula JH, igualmente pelo corredor de circulação mais à direita, mas a uma velocidade nunca superior a 80 km/h e com o sistema de iluminação ligado; c) Quando se aproximava do quilómetro 20,800, o condutor do motociclo depara-se com o veículo referido em a) a transitar pela sua hemifaixa de rodagem, a uma velocidade inferior à sua, pelo que, decidiu efetuar uma manobra de ultrapassagem ao mesmo;5e) Já que não circulava qualquer outro veículo por esse corredor de circulação mais à esquerda; f) Entretanto, pelo mesmo sentido de marcha e imediatamente atrás do motociclo, transitava, igualmente pelo corredor de circulação mais à direita, o veículo de matrícula TX, a uma velocidade nunca inferior a 110 quilómetros/hora; g) Cujo condutor resolve, de igual modo, realizar uma manobra de mudança de via, da direita para a esquerda, já que atenta a diferença de velocidades entre os veículos, se tinha aproximado repentinamente dos veículos que transitavam à sua frente; h)O seu condutor não se apercebeu que o condutor do motociclo de matrícula JH tinha realizado, em primeiro lugar, essa mesma manobra; i)E veio a embater com a sua frente na traseira do motociclo; j) Projetando-o para a frente e para a esquerda de forma desgovernada; l) Em consequência desse embate, o pneu traseiro bloqueou e o motociclo de matrícula JH prossegue a sua marcha; m) Obliquando para a sua esquerda, originando o embate entre a sua frente e parte lateral esquerda nos rails de proteção existente do lado esquerdo da faixa de rodagem; n) Na altura referida em 15. o motociclista se separa do motociclo; o)Vindo o corpo a rebolar pelo pavimento; p) Seguindo o motociclo de rastos pelo pavimento; q)A imobilização referida em 16. ocorreu umas dezenas de metros mais à frente; r) No momento referido em 17. CC estava a esvair-se em sangue e a gemer; s) No local referido em 5. o limite de velocidade era de 90 km/h; t) A viatura referida em 19. seguia em marcha mais lenta; u) O condutor do veículo automóvel segurado na ré, com a matrícula ..-..-TX, olhou para o retrovisor de tal viatura, com o intuito de verificar se na sua retaguarda, vinham veículos a circular na via da esquerda da Via Regional 1 (VR1), para onde queria ir, para onde queria seguir; v) Certificando-se que não; 6Z) o referido em 23. ocorreu quando o veículo já se encontrava em plena via esquerda do seu sentido de marcha; aa) No momento referido em 23., o condutor do motociclo, com a matrícula ..-JH.., caiu e continuou, também, durante alguns metros, em derrapagem pelo pavimento da Via Regional 1 (VR1)); bb) No momento referido em 26., o condutor do motociclo ficou no final das marcas de derrapagem; cc)O motociclo ficou, definitivamente, imobilizado no ponto referido em 27.; dd) O veículo segurado na ré, com a matrícula ..-..- TX circulava a uma velocidade de 61 Kms/h; 7ff) Devido ao referido em 8., o condutor do motociclo com a matrícula ..-JH-.. apresentava os sentidos entorpecidos e os reflexos limitados; gg) Os meios referidos em 10. demoraram cerca de 10 minutos a chegar; hh) Período no qual, a vítima agonizava no pavimento da VR 1; ii)Após a sua chegada, os bombeiros e a equipa do EMIR procederam à imobilização da vítima em plano duro; jj) Entretanto a vítima entrou em paragem cardiorrespiratória; ll) Imediatamente os técnicos de socorro procederam à reanimação do sinistrado. mm) Durante todo esse período de agonia, que se estendeu durante, pelo menos, algumas dezenas de minutos, a vítima mergulhou em angústia; nn) A projeção da vítima estendeu-se por várias dezenas de metros; oo) Seguidamente voltou a suportar dores quando embateu, de forma totalmente desamparada, contra os railes de proteção e, seguidamente, contra o pavimento da estrada e quando o seu corpo rebolou pela mesma até ao local onde se imobilizou; pp) Tendo sido nesse lugar onde ficou prostrado em sofrimento a aguardar a chegada dos meios de socorro; qq) Seguidamente essa angústia acompanhou a vítima durante toda a assistência médica que teve no local do sinistro, durante toda a viagem para o hospital; rr) A vítima apercebeu-se, minuto após minuto, que a sua vida estava a fugir-lhe, tendo plena consciência do que lhe estava a acontecer, designadamente da perceção da sua morte iminente; ss) Tanto mais que nos momentos imediatamente posteriores ao embate, ele reagia às interpelações; tt) Envolvendo o mesmo o numa tristeza; uu) A autora AA auferia a quantia mensal de € 592 euros; xx) Era com os rendimentos auferidos pelo falecido e pela autora AA que ambos pagavam mensalmente: - O valor dos prémios dos contratos de seguros de vida e multirriscos, no valor mensal global de cerca de € 34,49; - As despesas com água, luz, gás, televisão e internet de sua habitação, no valor mínimo de € 250,00; - As despesas com água, luz e gás da habitação da mãe do falecido, no valor mínimo de € 250,00; - As despesas com a alimentação, vestuário, medicamentos e demais encargos da vida quotidiana do agregado familiar que se computam em € 400,00. - As despesas com telecomunicações no valor de € 100,00; - As despesas com combustíveis e manutenção automóvel e do motociclo (respetivos contratos de seguro), no valor mensal de € 200,00; -Despesas com médicos e medicamentos, no montante de € 50, 00, num total mensal de cerca de € 1.665,00; zz)O referido em 54. era para manter o snack bar aberto; aaa)A autora desconhecia completamente o “know-how” inerente a esse negócio; bbb) Os autores apenas sobreviveram, em primeiro lugar, com a ajuda da família e amigos e, seguidamente, com o valor da pensão de sobrevivência; ccc) O exercício da atividade referida em 48. e 49. importava um rendimento mensal nunca inferior a 1500 euros. (…).”
B. O Direito
1. Da causa
1.1. Situamo-nos no âmbito de acção de responsabilidade civil por acidente de viação, sendo intervenientes o motociclo conduzido por CC, que em consequência, faleceu e, a viatura ligeira de passageiros conduzida por DD.
Os autores, herdeiros do falecido CC, reclamam indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da morte do seu cônjuge e pai e demandaram a Ré, seguradora para a qual o proprietário da viatura ligeira, EE, transferiu a responsabilidade civil pela circulação da viatura.
1.2. Da factualidade provada - pontos 5., 12., 13 a e 18. a 29. e 58. - resulta que o embate ocorreu à noite, numa via de 7m de largura, com duas hemifaixas, em local que se desenvolve em recta, sendo o limite máximo de velocidade de 80 km/hora; o piso estava seco, era de noite e havia boa iluminação da via; ambos os veículos provinham de uma curva, seguida de lomba. O condutor do veículo ligeiro de passageiros realizou mudança de via de circulação, no âmbito de uma manobra de ultrapassagem, que sinalizou.
Neste interim, o condutor do motociclo de matrícula ..-JH-.., que circulava no mesmo sentido de marcha, em velocidade superior a 80Km, ingressou na faixa mais à direita, sem sinalização, travou extensamente, não logrando evitar o embate na parte traseira lateral esquerda da viatura ligeira, imobilizando-se na berma esquerda.
O motociclo imobilizou-se mais a diante e o condutor ficou prostrado na berma esquerda, gravemente ferido, vindo a falecer. O motociclo deixou marcado no pavimento da via esquerda da VR1, um rasto de travagem numa extensão de 51,80 metros e que termina junto à berma esquerda, local onde ocorreu o embate.
O condutor do motociclo apresentava uma TAS de 0,80 g/l.
O acórdão recorrido concluiu, que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do motociclo, pela infração das normas estradais relativas à manobra de ultrapassagem e à velocidade de circulação “superior” à permitida no local.
Com o devido respeito, não alcançamos semelhante juízo de causalidade na eclosão do sinistro.
Em adverso, afigura-se que o espectro factual apurado (malgrado o envio dos autos à primeira instância determinado pela Relação com vista à ampliação e fundamentação da matéria de facto) acerca da dinâmica do acidente, não autoriza o nexo de causalidade entre a conduta do condutor do motociclo e a travagem que realizou, que por consequência implicou o embate e a queda da vítima.
Os factos não permitem tampouco elucidar qual a velocidade a que seguia o veículo ligeiro, e quando enceta a manobra de ultrapassagem já se encontrava na sua retaguarda o condutor do motociclo.
De resto, em contradição com aquela conclusão da culpa do condutor da motorizada, afirmou-se a dado passo no acórdão recorrido : «(…) não é possível aferir, de forma minimamente segura e concludente, quais as condições da via onde o motociclo ingressou vindo da via da direita, o concreto local onde - com reporte à via de trânsito onde teve lugar - o embate se deu, o mesmo sucedendo com a velocidade relativa dos veículos intervenientes no acidente, apenas se sabendo que o motociclo circularia a mais de 80 Km/h. (cfr. facto provado em 28), comprometendo-se, desse modo, irremediavelmente, a compreensão da dinâmica relativamente a esses aspetos fundamentais do acidente verificado. »
Constatação que no quadro da restante matéria apurada, não permitia, a nosso ver, ajuizar, em contradição manifesta, que afinal o acidente se ficou a dever à conduta culposa do motociclista - velocidade, álcool, e falta de sinalização da manobra de ultrapassagem.
1.3. Revisitando os factos.
Sendo a velocidade um conceito relativo, diz-se no caso que a motorizada seguia a velocidade “superior” à permitida no local 80Km/hora; o que em rigor não esclarece acerca da velocidade que imprimia o seu condutor, seria 81 ?95?110 km/h?
Sobre as manobras de ultrapassagem, os factos revelam apenas que o ligeiro de passageiros iniciou a manobra de ultrapassagem a um veículo que seguia adiante e que o condutor do motociclo saiu da fila direita para a esquerda, sem assinalar esta manobra.
Sobre o rasto de travagem deixado no pavimento.
Desde logo, os sinais de travagem de um motociclo não se podem equiparar aos de um veículo automóvel, não significando a mesma velocidade, sendo menor para o motociclo, também o rasto pode resultar da fricção da viatura no solo.
Acresce que, o rasto pode explicar diversos cenários, v.g. o motociclo travou por o ligeiro ter surgido inopinadamente à sua frente, quando já se encontrava na fila esquerda, ou contra si, travou por se aperceber tardiamente da presença da viatura ligeira em execução de manobra de ultrapassagem.
Sucede que o ponto crucial e indispensável na compreensão do sinistro-as circunstâncias causais da travagem do motociclo – não encontra respaldo algum na matéria de facto, permanece em branco.
Sobre as manobras de ultrapassagem, de acordo com a matéria de facto, apuramos que o veículo ligeiro de passageiros iniciou a manobra de ultrapassagem a outro veículo que seguia na dianteira, e que o condutor do motociclo saiu da fila direita para a esquerda sem assinalar esta manobra.
Por último, a alcoolémia detectada na vítima não tem a expressão de causa e efeito com o acidente, como consta do facto não provado.
Donde, não se representa segura a formulação de juízo de prognose póstuma sobre as causas do acidente, em particular, não se identifica a relação causal entre a infração estradal – manobra não sinalizada - por parte do condutor do motociclo e a eclosão do acidente.
A infração de normas estradais, fazendo embora presumir a culpa do infrator - não dispensa a prova em concreto do nexo de causalidade entre a infração verificada e a produção do dano.
Seguindo a orientação prevalecente no Supremo Tribunal, a mera infração rodoviária não demonstra, por si só, a causa determinante de um acidente, i.e, a violação de regras de trânsito não implica automaticamente que essa infração tenha sido a causa exclusiva ou principal do acidente.
Como se expressa no Acórdão do STJ de 18/01/2022:8
«1. A infração de normas estradais, fazendo embora presumir a culpa do infrator - se não forem por ele demonstradas circunstâncias excecionais excludentes do juízo de imputação subjetiva -, não dispensa a prova em concreto do nexo de causalidade entre a infração verificada e a produção do dano. (..)»
Em razão do exposto, a imputação do acidente a título de culpa (exclusiva) ao condutor do motociclo ditada pelo acórdão recorrido não pode prevalecer.
2. Da responsabilidade pelo risco
Estando em causa um acidente do qual derivou a morte do condutor de um dos veículos envolvidos na colisão, cujas causas não se apuraram, resta imputar a responsabilidade pelo acidente com base num risco próprio da circulação do veículo - estão preenchidos os pressupostos de aplicação do artigo 503º nº 1, do Código Civil.
Inexistindo demonstração de culpa dos condutores dos veículos na produção do sinistro, subsiste a imputação do dano pelo risco ligado à circulação automóvel e associada aos parâmetros da responsabilidade objetiva estabelecida no artigo 503º, nº1, do Código Civil, posto que não concorre ao caso causa de exclusão9.
2.1. A responsabilidade civil na circulação rodoviária
A vida contemporânea é, como se sabe, atingida pelos perigos em crescendo da aplicação do conhecimento técnico e científico que demonstrou a insuficiência da resposta por via do sistema da responsabilidade civil, assente no princípio da culpa.
Alteração de paradigma que ditou a necessidade de soluções jurídicas construídas na base da imputação objectiva, de par com o reforço normativo na imputação negligente pelos múltiplos deveres de cuidado, tendentes ao controle dos riscos de tantas e múltiplas actividades complexas e geradoras de perigos.
Faz notar MIRANDA BARBOSA, MAFALDA:
«A realidade se tem mostrado fecunda em suscitar casos que evidenciam a falência dos quadros tradicionais no que respeita à causalidade. Não raras são, na verdade, as hipóteses em que os critérios usualmente mobilizados se mostram imprestáveis para cumprir o desiderato do jurista: encontrar uma solução que se mostre normativamente fundada e materialmente adequada10.»
É hoje lugar-comum afirmar-se que aquela vertente corresponde a uma nova tendência no regime de responsabilidade civil contemporânea, a exemplo da marcada ampliação dos danos suscetíveis de reparação, com a extensão da obrigação de ressarcir os danos morais com vista a que a reparação proporcionada ao lesado seja a mais abrangente, e o alargamento do Quadro de ilicitude fundado no acatamento de um conjunto de deveres objectivos de cuidado. Desafios incontornáveis no domínio da responsabilidade por acidentes de viação e um dos segmentos pioneiros na admissão da responsabilidade pelo risco, pelo extraordinário potencial danoso de que se revestem.
Como nos dão conta R.P. COUTINHO DE MASCARENHAS ATÁIDE e A. BARROSO RODRIGUES: «(..) são inúmeros os factores que fazem dos veículos de circulação terrestre uma esfera de riscos rebeldes ao controlo humano, por mais cuidadoso que este se revele. Além de eventuais falhas mecânicas ou eléctricas do próprio veículo e doenças súbitas que possam acometer o condutor, as contingências climatéricas e as irregularidades do piso são ainda susceptíveis de interferir de forma decisiva na segurança do tráfego, neutralizando a diligência que possa ser empregue pelos seus participantes, em especial, automobilistas, ciclistas e peões, embora o cuidado com que estes actuem seja passível de reduzir de forma considerável os índices de sinistralidade que, em boa parte, tem por causa intervenções descuidadas.11»
Aqui chegados, resultando a imputação do dano no âmbito da responsabilidade objective e firmada no risco, fica prejudicada a apreciação das questões suscitadas a jusante, qual seja concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo para a produção do sinistro.
Essa problemática não é já chamada à solução do caso em juízo. Uma nota complementar.
O acidente de viação envolveu o motociclo conduzido pela infeliz vítima que colidiu com o veículo ligeiro, pelo que não estamos perante “vítima vulnerável”, conecta com a particular tutela dos utentes não motorizados das vias de trânsito, acolhida pela lei do seguro obrigatório e reflectida na jurisprudência do TJUE.
Daí que apesar de prejudicada a sua análise perante o rumo da solução jurídica alcançada, dificilmente vingaria a tese dos recorrentes, no sentido de integrar o condutor da motorizada no grupo de vítimas mais frágeis ou sobre-expostas aos riscos da circulação rodoviária12.
3. A repartição e a medida do risco
A repercussão do risco despoletado por cada um dos veículos intervenientes na colisão no caso e circunstâncias concretas que se analisaram, não suporta distinguo na medida de contribuição de cada um dos condutores para o evento danoso, valendo a regra de repartição igual, conforme ao disposto no artigo 506º, nº2, do Código Civil.
Por último.
A apreciação dos danos que justificam reparação e a fixação dos quantitativos compensatórios e indemnizatórios são da competência da Relação que ficou anteriormente prejudicada pelo desfecho absolutório do acórdão ora revogado13.
4. Em síntese conclusiva:
• De acordo com os factos assentes, não é possível extrair juízo seguro sobre a(s) causas do acidente de viação;
• Não se infere da matéria fundamento para a imputação de culpa na sua produção a qualquer dos intervenientes; ou que nas circunstâncias concretas pudesse(m) evitar ou minorar as consequências do sinistro;
• Resultando da colisão dos veículos a morte do condutor da motorizada, não fica liberado o proprietário da outra viatura da obrigação de indemnizar os danos no âmbito da responsabilidade pelo risco inerente à circulação de veículos, prevista no artigo 505º do Código Civil;
• Nas circunstâncias apuradas fica comprometida a destrinça na medida de contribuição do risco de cada um dos condutores para o evento danoso, valendo a regra da repartição igual.
IV. Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, procede a revista, e em consequência: a) Revoga-se o acórdão recorrido;
b) E em substituição, julga-se parcialmente procedente a acção, condenando a Ré a pagar aos autores a indemnização pelos danos apurados e correspondente a 50% dos valores a fixar;
c) Determinar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, para que se possível, pelo mesmo Colectivo, proceda à apreciação dos danos apurados indemnizáveis e fixe o respetivo quantitativo.
Lisboa, 3 de julho de 2025
Isabel Salgado (relatora)
Maria da Graça Trigo
Emídio Francisco dos Santos
________
1 A sentença culmina no seguinte dispositivo: “"I) Anular a decisão recorrida, em conformidade com o disposto no artigo 662.Q, n.°s. 2, ais. b) e c) do CPC, com a baixa dos autos à l.ªinstância para que: a)Seja determinada a requisição da filmagem/gravação da via, aquando do embate, para, após oportuna visualização da mesma pelo Tribunal recorrido e sem prejuízo da observância do disposto no artigo 415.e do CPC, serem retiradas as conclusões inerentes à produção de um tal meio de prova; b)Após o que, seja proferida nova sentença, em que:i) Seja esclarecida a matéria do facto n.sº 21) em face do disposto no artigo 38.2 do Código da Estrada e das alíneas u) a z) dos factos não provados; ii) Seja consignado no facto n.sº 23) qual a parte do motociclo JH que embateu no TX;iii) Seja consignado, em conformidade com o disposto no artigo 5.Q do CPC, em complemento dos fatos 21) a 23), onde seguia o motociclo aquando da manobra do TX;iv) Devendo fundamentar a sua decisão em face da prova real e pessoal já constante nos autos e da que seja colhida em resultado do determinado em a); e II) Julgar prejudicada a apreciação da impugnação da matéria de facto e de direito, relativamente às questões C), D) e E) supra enunciadas".
2 O dispositivo final do acórdão é o seguinte:” a)Determinar a alteração da redação do ponto 27) dos factos provados para a seguinte: [27) O motociclo com a matrícula ..-JH-.., que seguia com o sistema de iluminação ligado, percorreu uma distância de 90 metros, após o seu condutor ter iniciado a travagem até ao ponto onde embateu"];b)Determinar a eliminação das alíneas d), x) e ee) dos factos não provados;c)Determinar o aditamento ao rol dos factos provados um ponto - n.s 58 - com a seguinte redação: ["58- O condutor do motociclo com a matrícula ..-JH-.. mudou de via, da direita para a esquerda, na Via Regional 1 (VR1) sem sinalizar a manobra"]; d)Determinar a alteração da redação do facto provado n.sº 21) para a seguinte:[ "21. O condutor do veículo automóvel segurado junto da ré, com a matrícula ..-..-TX, realizou a mudança de via para a esquerda, sinalizando tal manobra"];e)Julgar, no mais, improcedente a impugnação de facto deduzida pelos recorrentes; e f)Julgar improcedente a apelação.”
3 2ª edição, p.839
4 Enunciado que aditámos, por ser o sentido factual único a retirar e, cuja falta se deve, por certo, ao elenco inicial dos factos provados que resultaram por acordo, sem a ulterior interligação com a matéria provada após a audiência final; não consta da sentença ou no acórdão (e os recorrentes reproduziram nas alegações).
5 d) Eliminado pelo acórdão.
6 x) Eliminada pelo acórdão recorrido 7 ee) Eliminada pelo acórdão recorrido
8 Proc. nº2318/18.7T8AVR.P1. S1., in www.dgsi.pt
9 Cfr- artigo 505º do CC - A responsabilidade objectiva do detentor é excluída se o facto danoso não se dever ao risco específico criado pelo veículo, a saber, quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resultar de uma causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
10 In E-book –outubro 2018, CEJ “Novos Olhares sobre a responsabilidade civil”.
11 In Acidentes de Viação. Responsabilidade Subjectiva, Presunções de Culpa., Revista Julgar nº46, 2022.
12 Cfr. Ac.STJ de 20.02.2020, Proc. nº4926/17.4T8VIS.C1. S1.in www.dgsi.pt; malgrado tenha sido esse o escopo da admissão da revista excecional pela Formação.
13 Do artigo 679º ex vi 665º do CPC, resulta que STJ não substitui a Relação nesta circunstância.