PATERNIDADE BIOLÓGICA
PERFILHAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
REGISTO
CANCELAMENTO
PRECLUSÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
FALTA
ELEMENTO DE CONEXÃO
NACIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
ACESSO AO DIREITO
Sumário


I. É admissível a cumulação, na mesma acção, dos pedidos de impugnação de paternidade – e cancelamento do corresponde registo – e de investigação de paternidade biológica para reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta no registo de nascimento.
II. Dada a relação de preclusão existente entre a impugnação da perfilhação e a investigação da paternidade, a julgar-se incompetente em razão da nacionalidade o tribunal português relativamente à impugnação da perfilhação, comprometida fica o prosseguimento da ação para determinação da paternidade biológica (ut 82.º, nº3, do CPC).
III. A ação de impugnação da paternidade, visando possibilitar a correção de uma atribuição legal de paternidade que se julga não corresponder ao vínculo real de parentesco, constitui instrumento necessário para que o autor possa exercer os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família consagrados, respectivamente, nos artigos 26.º, n.º1, e 36.º, n.º1, ambos da Constituição.
IV. Todavia (no caso dos autos) determinando-se a incompetência dos tribunais portugueses para julgar a impugnação da perfilhação (até por força da interpretação comumente aceite dos critérios plasmados no art.º 62.º do CPC), não se restringe de forma intolerável o direito de acesso do recorrente aos tribunais e, indirectamente, os próprios direitos fundamentais de natureza substantiva que lhe assistem, como o direito de constituir família e o direito à identidade pessoal.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível


I – RELATÓRIO

AA instaurou contra BB e CC, ação declarativa, sob a forma de processo comum, intitulada Acão de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade, peticionando:

- Que se declare que o Autor não é filho do segundo Réu, CC, anulando-se a perfilhação do segundo Réu ao Autor, e que consta do seu assento de nascimento de São Tomé, devendo disso ser dado conhecimento aos registos daquele país para que procedam à sua anulação;

- Que seja reconhecida a paternidade do Primeiro Réu, BB, relativamente ao Autor seu filho, AA, estabelecendo-se por decisão judicial a filiação que ainda não foi estabelecida por perfilhação voluntário do mesmo e, por via disso, declarar-se que o Autor é filho do Primeiro Réu, ordenando-se que tal paternidade conste e fique averbada no assento do respectivo nascimento.

Para tanto, alegou, em síntese:

- ter o A. nascido no dia .../.../1970, na freguesia da ..., concelho de São Tomé, em São Tomé e Príncipe, constando do seu assento de nascimento como sendo filho de DD (já falecida) e CC, aqui 2.º R.;

- este último disse ao A. que não é o seu pai e que apenas o tinha perfilhado aquando do seu nascimento e a pedido da sua mãe;

- o A., por vários elementos que recolheu, chegou à conclusão que o seu pai biológico é o 1.º R., ao qual se dirigiu, em Portugal, dizendo-lhe que “pretendia que essa paternidade fosse reconhecida e averbada no seu assento de nascimento de forma a conseguir adquirir nacionalidade portuguesa”;

- por falta de cooperação do 1.º R., o A. teve de recorrer aos meios legais “para ver reconhecido o seu direito pessoal da paternidade”, já que o demandante nasceu como fruto de relações sexuais mantidas entre a sua mãe e aquele 1.º R., com a consequência de a paternidade registral não corresponder à paternidade biológica.

Juntou documento comprovativo do seu assento de nascimento, do qual resulta constar como seu pai o 2.º R. e ter a sua mãe, DD, o estado civil de solteira.

O R BB veio invocar a exceção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional dos Tribunais Portugueses, alegando em síntese que, vem alegado pelo A. que a sua conceção resultou de relações de cópula entre a mãe falecida do A. e o 1º R. BB, ocorridas em São Tomé e Príncipe, tendo o A. nascido e sido registado nesse país; não se verificando nenhum dos critérios consagrados no artigo 62.º do CPC.

Respondeu o A, pugnando pela improcedência da exceção invocada.

O 2.º R., citado em Moçambique, não contestou.

Em audiência prévia – uma vez tramitada a fase dos articulados e tendo em vista o saneamento dos autos –, conheceu-se da matéria da “Da competência internacional”, âmbito em que foi proferida decisão que julgou o Juízo de Família e Menores de ... internacionalmente incompetente e, consequentemente e ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, al. a), e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, absolveu os RR da instância.

Inconformado, apelou o Autor para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por decisão proferida pelo relator ao abrigo do disposto no art.º 656.º do CPC., julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Desta decisão reclamou o Autor para a Conferência que, por Acórdão de 11-02-2025, indeferiu a reclamação, confirmando a improcedência da Apelação e, nos termos desta, confirmou a decisão recorrida, aduzindo, para tanto os seguintes fundamentos (que se extraem do respectivo sumário):

1. – Intentada, simultaneamente, pelo filho/registado, nos mesmos autos, ação de impugnação da perfilhação e de investigação da paternidade, quando se mantinha o registo da filiação decorrente da perfilhação (o perfilhante como pai no assento de nascimento), a norma do art.º 1848.º, n.º 1, do Cciv. Veda a ação de investigação de paternidade, por o reconhecimento de paternidade, que se pretende através de sentença na ação investigatória, ser contrário à filiação constante do registo de nascimento, o qual não foi ainda retificado, invalidado ou cancelado.

2. – Assim, para o efeito de determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, não releva aquela ação de investigação de paternidade, que não é admitida legalmente, mas apenas a causa de pedir e o pedido da prioritária ação de impugnação da perfilhação.

3. – Se a perfilhação e o registo ocorreram em país estrangeiro, de que são cidadãos nacionais o demandante e o demandado na ação de impugnação da perfilhação, residindo o autor em Portugal e o réu em Moçambique, sendo a mãe do autor também de nacionalidade estrangeira e tendo os factos tendentes a demonstrar a desconformidade com a verdade biológica ocorrido no estrangeiro, a circunstância de o autor residir em Portugal não permite, só por si, conferir aos tribunais portugueses competência internacional para tal ação impugnatória.

4. – Doutro modo, sempre os tribunais portugueses seriam competentes para qualquer ação de impugnação da perfilhação intentada por um residente em Portugal, ainda que tudo o mais fosse estranho à ordem jurídica portuguesa e a Portugal e o demandado residisse no estrangeiro.

5. – Uma tal situação conferiria ao autor (apenas em atenção à sua residência) o benefício – injustificado – de poder demandar o réu nos tribunais portugueses, apesar de o demandado, vivendo no estrangeiro, nenhuma ligação ter a Portugal, mas ficando obrigado a exercer a sua defesa no foro do autor, e não no tribunal do seu próprio domicílio (ou do seu país), desvantagem significativa para que não se encontra respaldo.

6. – A interpretação normativa no sentido da incompetência internacional não viola, atentas as circunstâncias do caso, preceitos ou princípios de ordem constitucional.


**


Inconformado, o Autor vem interpor recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:

1. O recorrente entende que a decisão recorrida se encontra errada e por isso interpõe o presente recurso de revista, sendo a mesma admissível, nos termos do disposto nos arts. 629.º n.º 2 a), 671.º, 672.º n.º 1 a), 674.º e 676.º do CPC.

2. A presente revista, como recurso ordinário/normal, é legalmente admissível, porquanto a fundamentação do Tribunal da Relação de Coimbra é substancialmente diferente daquela plasmada pelo Juízo de Família e Menores de ..., sendo assim o recurso de revista admissível nos termos do disposto no art. 671.º n.º 3 do CPC.

3. O caso em apreço configura uma causa cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para melhor aplicação do direito, atentos os direitos pessoais em discussão, pelo que, é o presente recurso admissível, nos termos do previsto no art. 672.º n.º 1 alínea b) do CPC.

4. É nosso entendimento que os tribunais portugueses são competentes para conhecer da ação de impugnação de perfilhação, nos termos intentados e que qualquer norma que seja interpretada no sentido de limitar os direitos fundamentais, viola a Constituição, enquanto interpretação limitativa do exercício de um direito pessoal e fundamental à identidade pessoal.

5. A Meritíssima Juiz da Instância de Família e Menores de ..., pronunciou-se no sentido de julgar procedente a exceção da incompetência internacional invocada pelo Réu e, nessa medida, determinar a absolvição dos Réus da instância, decisão que foi mantida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com diversos fundamentos.

6. Da relevância jurídica, claramente necessária para melhor aplicação do direito: Está em causa nos presentes autos a verdade biológica, sobre a paternidade do Autor, bem como o direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

7. O conhecimento da ascendência é um direito fundamental de todo o ser humano, pois, todo o homem tem o direito de conhecer e investigar a verdade biológica da sua filiação, de modo a que assim se protejam os direitos fundamentais previstos na nossa Constituição, como o direito à identidade pessoal, o direito à integridade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, direitos aos quais acresce o direito de constituir família, previsto no art. 36.º da CRP.

8. Estando estes autos enquadrados no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias, não podem os cidadãos ser tratados de forma desigual, pois todos os cidadãos têm direito à mesma dignidade e igualdade perante a lei, e nessa sequência todos têm direito à sua identidade pessoal, e a ter conhecimento de quem são os seus progenitores.

9. Os direitos fundamentais são de extrema relevância jurídica, e cuja limitação não pode ocorrer, sob pena de se verificar uma desigualdade no tratamento da mesma questão em diferentes situações como é o caso dos presentes autos.

10. A questão da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da ação de impugnação de perfilhação, é de extrema relevância jurídica, devendo aceitar-se como competentes os tribunais portugueses para conhecer das referidas ações, nos termos peticionados nos presente autos.

11. O Autor, apresentou ação onde na mesma peticionou a impugnação da perfilhação e a investigação da paternidade, sendo certo que tanto o despacho proferido pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, como o acórdão que ora se recorre, apenas se pronunciaram pela incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da ação de impugnação de perfilhação, em suma, por o 2º Réu, que consta no registo de nascimento do Autor, ser São Tomense e residir em Moçambique, não se pronunciando quanto ao demais.

12. O Autor não poderia instaurar ação de investigação de paternidade, sem impugnar a paternidade constante do seu registo de nascimento. Mais, nada obsta a que na mesma ação o Autor peticione os dois pedidos, como o fez.

13. Se é certo que para conhecer da investigação de paternidade os tribunais portugueses são competentes, pois Autor e 1º Réu residem ambos em Portugal, e foi em Portugal que o Autor descobriu que o 1º Réu seria o seu pai biológico, nada obsta a que a impugnação de perfilhação aqui ocorra, e seja decidida na mesma demanda.

14. Mais, o 2º Réu, que consta no registo de nascimento do Autor, como sendo seu pai, foi regularmente citado, em Moçambique, da presente ação, tendo decorrido o prazo da contestação, sem que se tenha pronunciado.

15. A competência internacional dos tribunais portugueses para os termos da presente ação depende, pois, como emana do art. 62º do CPC, da verificação de alguma das circunstâncias nele previstas.

16. A análise deste preceito, como tem sido escrito em vários acórdãos, inculca que o propósito do legislador foi o de alargar o mais possível o âmbito da competência internacional aos tribunais portugueses.

17. Basta que um dos elementos da causa de pedir tenha conexão com o território português, para que se atribua competência internacional aos tribunais portugueses.

18. Existem três critérios para a definição da competência internacional dos tribunais portugueses. O primeiro critério previsto na alínea a) do referido art. 62.º, assenta no princípio da coincidência, isto é, a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a ação dever ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência interna territorial estabelecidas pela lei portuguesa e que constam dos arts. 70.º e ss do CPC.

19. Logo por aqui, pode dizer-se que, por força da coincidência entre a competência territorial e a competência internacional, os tribunais portugueses podem julgar quaisquer ações que devam ser propostas em Portugal, segundo a aplicação das regras daquela competência interna.

20. O segundo critério, o da alínea b) do mesmo art. 62.º do CPC, integra o princípio da causalidade, o que significa que os tribunais portugueses têm competência internacional sempre que o facto que serve de causa de pedir na ação tenha sido praticado em território nacional ou, tratando-se de uma causa de pedir complexa, algum dos factos tenha ocorrido em Portugal.

21. O terceiro critério o da alínea c) do mesmo artigo, que radica no princípio da necessidade, traduz-se em os tribunais portugueses terem competência internacional quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de uma ação proposta em tribunal português ou quando a sua propositura no estrangeiro constitua apreciável dificuldade para o autor, embora sempre se exija que entre a ação a propor e o território português exista um qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.

22. Assim, a competência territorial vem prevista nos arts. 70.º e seguintes do CPC, onde se estabelecem várias regras especiais e uma regra geral. Não estando a hipótese dos autos abrangida por nenhuma regra especial, o regime que se lhe aplica é o estabelecido no art. 80.º do CPC, cujo n.º 1 prevê que “Em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu”.

23. Logo, por força do princípio da coincidência, é este Tribunal competente para conhecer da presente demanda.

24. Havendo pluralidade de Réus, deve aplicar-se a regra prevista no art. 82.º do CPC, pelo que, pode o Autor escolher o tribunal no qual instaura a ação.

25. Ainda que assim não fosse, a verdade é que o Autor só descobriu que o segundo Réu CC não era o seu pai biológico, e que o mesmo seria o primeiro Réu BB, depois de já estar a residir em Portugal há alguns anos, onde de facto tem a sua morada e onde trabalha.

26. Pelo que, sempre teremos um dos factos ocorridos em Portugal, como refere a alínea b) do art. 62.º do CPC, o conhecimento da sua paternidade biológica.

27. E note-se que a lei apenas exige que se verifique uma das situações elencadas nesse preceito.

28. Contudo e sem prescindir, sempre há que referir que o Autor nem sequer tinha condições de instaurar a ação em S. Tomé, porquanto os parcos rendimentos que tem, são para sustento da sua família, nunca seriam suficientes para ter de ir com regularidade a outro país.

29. Acresce ainda que se verifica um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, previsto na alínea c) do art. 62.º do CPC, pois o conhecimento da sua paternidade biológica adveio ao Autor em Portugal, quando o mesmo já residia e trabalhava em Portugal; o Autor tem residência em Portugal, tal como o primeiro Réu, logo verificam-se os referidos elementos de conexão.

30. Assim, e atento o exposto, verifica-se que os Tribunais portugueses são competentes para conhecer da presente ação, nomeadamente da impugnação da perfilhação, porquanto verifica-se mais que uma das situações previstas no art. 62.º do CPC, sendo que apenas é exigível a verificação de uma dessas situações.

31. A impugnação de perfilhação tem de ocorrer antes ou simultaneamente à investigação de paternidade. Ora, se os tribunais portugueses são competentes para conhecer da investigação de paternidade, nada obsta a que não o sejam para conhecer da impugnação de perfilhação.

32. Foi em Portugal que o Autor descobriu que aquele que constava no seu registo de nascimento como pai, não seria o seu pai, mas sim o primeiro Réu.

Acresce que o Autor vive há anos em Portugal, onde tem a sua residência fiscal e trabalha, sendo eu nem sequer teria condições para se deslocar a São Tomé e ali requerer a impugnação da perfilhação.

33. Ainda que assim não fosse, a verdade é que sendo os tribunais portugueses para conhecer da investigação de paternidade, nada impedia que a ação continuasse os seus trâmites, ainda que estivesse sujeita à interposição de nova ação de impugnação da perfilhação no tribunal estrangeiro.

34. Até porque o acórdão proferido julga apenas incompetente para a ação de impugnação de perfilhação e não de investigação de paternidade, o que significa que considera competente para conhecer de tais ações.

35. Conforme se pode verificar, existe, não só uma, mas várias situações, do art. 62.º do CPC, em que se enquadram os presentes autos.

36. Existem assim várias situações que permitem concluir pela competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da presente demanda, pelo que nunca deveria ter sido julgada procedente a exceção da incompetência internacional, pois como se viu são os nossos tribunais competentes para conhecer das questões colocadas nos autos.

37. A declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de ação de impugnação de perfilhação, cujo conhecimento ocorreu em Portugal e com filho residente também em Portugal, viola os princípios constitucionais básicos, o direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

38. O conhecimento da ascendência é um direito fundamental de todo o ser humano, pois, todo o homem tem o direito de conhecer e investigar a verdade biológica da sua filiação, de modo a que assim se protejam os direitos fundamentais previstos na nossa Constituição, como o direito à identidade pessoal, o direito à integridade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, direitos aos quais acresce o direito de constituir família, previsto no art. 36.º da CRP.

39. Assim, estando em causa um direito fundamental, relativamente à identidade pessoal, qualquer limitação que seja imposta para a sua descoberta e necessidade de petição da paternidade, deverá considerar-se inconstitucional, por violação direta de um princípio consagrado na nossa Constituição, não se devendo proibir ou prejudicar o direito a esse conhecimento, pois, ninguém deve ficar privado do direito à sua identidade pessoal e historicidade, por violação clara do previsto nos arts. 18.º, 26.º e 36.º da CRP.

40. Estando estes autos enquadrados no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias, não podem os cidadãos ser tratados de forma desigual, pois todos os cidadãos têm direito à mesma dignidade e igualdade perante a lei, e nessa sequência todos têm direito à sua identidade pessoal, e a ter conhecimento de quem são os seus progenitores.

41. O direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na identificação pessoal e na constituição daquela identidade, como também, o direito ao conhecimento das próprias raízes, direito este que não deve ser de forma alguma privado ao recorrente.

42. Aliás tal tem sido o entendimento da nossa doutrina e jurisprudência supra citadas.

43. Assim, entende o Recorrente, que não se verifica a exceção da incompetência internacional, e consequentemente que os Tribunais portugueses são competentes para apreciar a questão em apreço, uma vez que se verificam as situações do art. 62.º do CPC.

44. Sem prescindir que sempre se deverá considerar inconstitucional a norma do art. 62.º do CPC, sempre que esta seja interpretada no sentido de limitar direitos fundamentais, previstos na CRP, como os direitos à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

45. E assim entende o recorrente que a decisão recorrida, nos aspectos ora colocados em crise, encontra-se errada não configurando a decisão mais justa e equitativa que o caso em apreço merece.

46. Violando, pois e assim, entre outras, as normas dos arts. 62.º e seguintes do CPC, arts. 18.º, 26.º e 26.º da CRP.

Nestes termos, pugna o Recorrente pela revogação da decisão recorrida, decidindo-se, a final, pela inconstitucionalidade da norma do artigo 62.º do CPC, por violação do disposto nos arts. 18.º, 26.º e 36.º da CRP, sempre que a sua interpretação seja no sentido de limitar os direitos constitucionalmente previstos, e consequentemente decidir-se pela improcedência da exceção da incompetência internacional.

Nenhum dos Réus contra-alegou.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

Se é certo que há dupla conformidade decisória, já que o Tribunal da Relação de Coimbra na decisão recorrida confirma, sem voto vencido e sem fundamentação essencialmente diferente (ao contrário do alegado, mas não justificado pelo Autor/Recorrente) a decisão da primeira instância, estamos, porém, perante uma das hipóteses em que, nos termos do art.º 629.º, n.º1, al. a) do CPC, o recurso é sempre admissível, dada a alegada violação das regras da competência em razão da nacionalidade. Trata-se, deste modo, de fundamento recursivo que, por força dessa disposição, em conjugação com o estabelecido no art.º 671.º, n.º3, 1.ª parte, descaracteriza a dupla conformidade, embora limitando o objecto do recurso à análise dessa mesma questão.

Deve, pois, ter-se por admissível o presente recurso.


**


Vem impugnada na presente revista a decisão que considerou verificada a excepção de incompetência absoluta e absolveu os réus da instância, por se ter entendido que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente causa.

Discordando deste entendimento, sustenta o recorrente que se encontram verificados, no caso presente, os factores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previstos no artigo 62.º do Código de Processo Civil, defendendo a revogação da decisão proferida e a prolação de decisão que considere o tribunal internacionalmente competente.

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir consiste apenas em saber se cabe ou não aos tribunais portugueses a competência internacional para a tramitação e decisão da ação – na dupla vertente da interposta “ação de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade”.

Questão esta cuja análise, ainda assim e mais uma vez tendo em conta as alegações de recurso e a decisão recorrida, podemos subdividir em três passos, a saber:

i. Da admissibilidade da cumulação dos pedidos de impugnação da perfilhação e de investigação de paternidade e da sua relevância na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer a presente ação;

ii. Da (in)competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da impugnação da perfilhação;

iii. Da alegada inconstitucionalidade da interpretação do art.º 62.º na medida em que exclui a competência internacional dos tribunais portugueses, por limitar direitos fundamentais, nomeadamente o direito à identidade pessoal.

III – Fundamentação

III.1. Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos a considerar são os que já antes se deixaram explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos.

III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

i) Da admissibilidade da cumulação dos pedidos de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade e da sua relevância na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer a presente ação.

Decorre dos autos um pedido complexo, composto por uma ação de impugnação da perfilhação, intentada pelo filho, aqui recorrente, contra o 2.º Réu e por uma ação de investigação da paternidade contra o alegado progenitor biológico, o 1º réu (artigos 1869.º e 1817.º, n.º 1, ambos do Código Civil).

Do art.º 1848.º do C.C., segundo o qual não é admitido o reconhecimento contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for rectificado, declarado nulo ou cancelado, decorre não ser possível estabelecer novo vínculo de paternidade ou de filiação (biológicas), enquanto não for afastada a paternidade registada.

Parece ser compreensível, assim, a inviabilidade de uma pretensão de estabelecimento da paternidade através de decisão judicial, no seio de ação de investigação, sem que se mostre afastada – previamente – a paternidade estabelecida por via de perfilhação e, como tal, registada. Ou seja, havendo paternidade registada, não pode haver reconhecimento conflituante, no caso por via de investigação de paternidade (através de sentença), enquanto o registo originário (o que consta do assento de nascimento) não for modificado (por retificação, declaração de nulidade ou cancelamento).

No caso dos autos existe registo da paternidade do recorrente., figurando como pai o 2.º R. e por isso o autor começa por atacar a perfilhação, impugnando-a, já que a considera não correspondente à verdade biológica (considera ser seu pai biológico o 1.º R., contra ele deduzindo a ação de investigação).

O preceito do Código Civil em causa, conjugado com o disposto no art.º 3.º do Código do Registo Civil,1 visa salvaguardar a prova privilegiada decorrente das menções exaradas nos registos, quanto a factos que a ele estejam obrigatoriamente sujeitos – e que se entendem estar em rigoroso paralelismo com a verdade dos factos. Está, por isso, em causa o princípio da tutela da fé pública do registo e da segurança que ela tem de imprimir relativamente aos factos ou aos actos registados. Nessa medida, a verdade registral deve prevalecer e impor-se sobre a verdade factual, ainda que se saiba desconforme com esta, enquanto esse registo não for suprimido. 2

A precedência das ações de impugnação da perfilhação – tal como as de impugnação da paternidade presumida do marido da mãe, primeiro, e de investigação da paternidade, depois – é, nestes moldes, perceptível.

Nessa medida, os dois primeiros pedidos do A. enquadram-se no âmbito da impugnação da perfilhação, com vista a afastar a paternidade registada: («a) declarar-se que o Autor não é filho do segundo Réu CC; b) Anular-se a perfilhação do segundo Réu ao Autor, e que consta do seu assento de nascimento de São Tomé, devendo disso ser dado conhecimento aos registos daquele país para que procedam à sua anulação». Já os pedidos subsequentes ganham sentido no domínio da investigação da paternidade, visando c) que se estabeleça, por decisão judicial, a “filiação que ainda não foi estabelecida por perfilhação voluntário do mesmo e, por via disso, d) Declarar-se que o Autor é filho do Primeiro Réu, ordenando-se que tal paternidade conste e fique averbada no assento do respectivo nascimento; // e) Condenar-se o Primeiro Réu a reconhecê-lo.

É clara, por isso, a relação de precedência e de preclusão dos primeiros pedidos relativamente aos últimos.

Mas aquilo que se pretende apurar é se tais pedidos podem cumular-se numa mesma ação ou se devem ser objeto de ações distintas.

Tem-se entendido, no sentido da admissibilidade da acumulação daquele conjunto de pretensões nos mesmos autos, que a tramitação comum não contraria nem belisca a necessária e afirmada precedência da impugnação da paternidade, nem a aludida tutela registral. E, a nosso ver, certeiramente, pois se improcedente for a impugnação, inviável será sempre a investigação, prevalecendo o exarado no registo.

E, no caso dos autos, em decorrência do já indicado, que os factos registados só podem ser judicialmente impugnados desde que seja pedido o respectivo cancelamento ou rectificação (artigo 3º, nº 2, do CRC) não se colocaria qualquer problema, já que esse é um dos pedidos explícitos do autor nos autos, no que concerne à impugnação da perfilhação.

Deste modo se permite concentrar num só processo os dois procedimentos, sem obstáculo substantivo suficientemente relevante que o permita impedir e, por outro lado, com ganhos em termos de economia processual, posto que assim se evita a duplicação de autos.

A este propósito, escreve-se no Acórdão do STJ de 23 de Janeiro de 2014 (Processo n.º 2729/12.1TBVCD.S1)3: “É admissível a coligação de réus, sem ofensa do preceituado no artigo 1848.º, nº 1 do CC, com vista à investigação de paternidade para reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta no registo de nascimento, com respectivo averbamento neste, desde que, simultaneamente e em momento prévio, seja deduzido pedido de impugnação da paternidade presumida e do cancelamento do corresponde registo”

Não se vislumbram, assim, segundo o aresto em causa, razões, no sistema jurídico vigente que obstaculizem a presente coligação de réus, com a formulação de pedidos em simultâneo, sem necessidade de duas acções sucessivas: uma, para impugnar a paternidade e cancelar o registo no atinente à menção da paternidade e da respectiva avoenga e outra, procedendo aquela, para investigar a paternidade. Crendo-se, até, que tal coligação se encontra em conformidade com as modernas exigências do processo civil, que procuram agilizar este de forma a se alcançar a desejada justa composição do litígio em tempo útil, com observância, da maior economia de meios.

É igualmente, entre outros4, o entendimento consagrado no recente Acórdão do STJ de 17-06-2025 (no Processo n.º 6556/22.0T8MAI.P1.S1, desta 2.ª secção) em cujo sumário se escreve “ 6. Dúvidas não podem restar quanto à admissibilidade da cumulação na mesma acção dos pedidos de impugnação da paternidade e consequente cancelamento do registo de paternidade e de investigação de paternidade biológica.

Em reforço deste entendimento valem as regras previstas na 2ª parte do nº1 do art.º 36º do Código de Processo Civil, onde se permite que um mesmo autor demande conjuntamente vários réus, por diferentes quando estes estão entre si numa relação de prejudicialidade ou dependência.”.

Por todas estas razões não estaria o autor, ora recorrente, impedido de, sem mais, cumular numa só ação aqueles dois conjuntos de pedidos, desde que observada a admitida precedência do primeiro deles.

Sucede, porém, que, dada a necessária precedência do julgamento daquele primeiro conjunto de pedidos, têm para o efeito de estar, antes mesmo do juízo de mérito, verificados, por referência a ele, os respectivos pressupostos processuais, entre os quais a competência do tribunal onde a ação foi proposta para julgar o respectivo litígio.

Chegando à conclusão de que algum dos pressupostos não se encontram verificados quanto à impugnação da perfilhação, mesmo que o estejam relativamente aos pedidos efetuados no âmbito da investigação da paternidade, não pode a ação prosseguir, tendo o tribunal que absolver os réus da instância relativamente a todos eles.

Foi exatamente o que sucedeu no caso dos autos, quando se determinou na primeira instância e se confirmou na Relação a absolvição dos réus fundada na incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer e julgar a impugnação da perfilhação.

Não releva – e, por isso, não procede – o alegado pelo recorrente no sentido de que se a “impugnação da perfilhação tem de ocorrer antes ou simultaneamente à investigação de paternidade (…) se os tribunais portugueses são competentes para conhecer da investigação de paternidade, nada obsta a que não o sejam para conhecer da impugnação de perfilhação”.

Diríamos de outra forma, essa sim de acordo com as regras e princípios antes expostos: dada a relação de preclusão existente entre a impugnação da perfilhação e a investigação da paternidade, se julgado incompetente em razão da nacionalidade o tribunal português relativamente à impugnação da perfilhação, comprometida fica, por razões evidentes, o prosseguimento da ação para determinação da paternidade biológica.

Conclusão que é, aliás, confirmada pelo disposto no artigo 82.º do CPC, que regula as hipóteses de competência territorial dos tribunais em caso de pluralidade de réus e cumulação de pedidos, quando no seu n.º 3 dispõe: “Quando se cumulem, porém, pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade deve a ação ser proposta no tribunal competente para a apreciação do pedido principal.”

Nessa medida, ainda que se pudesse concluir serem os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer da investigação da paternidade (na medida em que o 1.º réu, pretenso pai biológico, tem domicílio em Portugal), o prosseguimento da ação estará dependente, sempre, da competência destes para tramitar a impugnação da perfilhação.

ii) - Da (in)competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da impugnação da perfilhação;

O Recorrente defende a revogação da decisão de absolvição da instância, por considerar não se verificar a incompetência, em razão da nacionalidade, do Tribunal recorrido, ao contrário do entendimento adotado por este nos autos.

Ora, das considerações antes expendidas e para o efeito da determinação da competência internacional, o que importa é a causa de pedir e o pedido da ação tendo em conta apenas a pretensão de impugnação da perfilhação (deixando de lado a sucedânea investigação da paternidade).

Sendo a aferição da competência feita pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir), há que atender, para o efeito, aos factos alegados e não contraditados pelo próprio autor.

Assim, temos que:

- O A. nasceu, em ........1970, na freguesia da ..., concelho de São Tomé, em São Tomé, constando do seu assento de nascimento, como sendo filho de DD e de CC, o 2º Réu;

- Este assento de nascimento foi lavrado com base em declarações directas dos pais do registando depois de lido em voz alta perante todos e confirmado vai assinado pelo pai CC e testemunhas EE, FF e GG. Tanto a mãe como o pai, no estado de solteiros, ela natural de ..., residente em ..., e ele natural de ..., residente em ..., em São Tomé.

- O 2.º Réu, CC reside em Moçambique.

- Em ... de ... de 1970, mediante declaração voluntária e testemunhada, o 2º R. CC perfilhou o A., em São Tomé e Príncipe, perante oficial público, segundo ajudante da Conservatória de Registo Civil Conservador de São Tomé, de acordo com o Direito daquele País.

- O A., a sua falecida mãe, e o seu pai, 2º R., são cidadãos são-tomenses.

- Do que vem alegado na petição inicial, resulta que a concepção do Autor resultou de relações de cópula entre a mãe do autor e o primeiro R, ocorridas em São Tomé, tendo aquele nascido naquele país.

De acordo com o artº 59º do CPC, sem prejuízo do estabelecido no Direito da União Europeia ou em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artºs 62º e 63º do CPC.

Face ao objeto da revista, excluída a aplicação ao caso presente dos regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, cumpre reapreciar a decisão recorrida, na parte em que considerou não verificados os factores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previstos no artigo 62.º do CPC, designadamente nas alíneas b) e c) invocadas pelo recorrente.

Ora, nos termos desta disposição, a competência internacional depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias:

a) poder a ação ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência territorial estabelecidas nas leis portuguesas;

b) ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) não poder o direito invocado tornar-se objeto efetivo senão por meio de ação proposta em território português, ou não puder ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Escrevem LEBRE DE FREITAS/ ISABEL ALEXANDRE5 que nesta norma “são enunciados três critérios de atribuição da competência internacional com origem legal aos tribunais portugueses, habitualmente designados por critérios da coincidência (alínea a)), da causalidade (alínea b)) e da necessidade (alínea c))”. Esclarecem ainda os autores (ob. cit., p. 154) que “cada um dos fatores atributivos de competência tem valor autónomo, pelo que basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes”.

No que respeita à previsão da alínea a), à luz do disposto no artigo 80.º do CPC, e não estando o caso previsto nos artigos anteriores ou em disposições especiais, o tribunal competente seria o do domicílio do réu, o que, residindo o 2.º réu em moçambique, e não em Portugal, não constitui fator de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, conforme se entendeu na decisão recorrida e vem confirmado na apelação.

Quanto ao critério definido na alínea b) (ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram), também não descortina qualquer elemento ou fator de conexão, por esta via, à ordem jurídica portuguesa. De facto, a causa de pedir na ação de impugnação da perfilhação, é integrada pelos factos reveladores da manifesta não correspondência entre a paternidade decorrente da declaração do perfilhante exarada no registo de nascimento do autor e a verdade biológica. No caso dos autos, o autor, tal como a sua mãe e o 2.º réu, é são-tomense, nasceu e foi registado em São Tomé, mediante declaração voluntária e testemunhada, o 2.º R. perfilhou o Autor, perante oficial público, na Conservatória de Registo Civil de São Tomé, de acordo com o Direito daquele país, além de que, perante o alegado na petição inicial, a concepção do Autor resultou de relações de cópula ocorridas em São Tomé, constatando-se que todos os factos que fundamentam a impugnação ocorreram fora de Portugal. Por isso, nenhuma conexão se vislumbra entre os factos integrantes da causa de pedir e o território português, sendo absolutamente irrelevante a circunstância de o recorrente residir atualmente em Portugal e muito menos relevante a razão de, como alega, apenas lhe ter chegado ao conhecimento não ser filho biológico do 2.º réu, e sim do 1.º, em Portugal quando já aqui residia e trabalhava. De outro modo, como resulta do Acórdão recorrido, “qualquer ação de impugnação da perfilhação intentada por um residente em Portugal, ainda que tudo o mais fosse estranho à ordem jurídica portuguesa e a Portugal [todos os envolvidos fossem cidadãos estrangeiros, bem como residentes no estrangeiro (à exceção do autor), a perfilhação tivesse ocorrido no estrangeiro, assim como o registo respetivo, lavrado por autoridade estrangeira, com a sentença a ter de ser imposta a entidade de registo estrangeira].

Por fim, segundo o art.º 62.º c), de onde decorre o critério da necessidade, serão internacionalmente competentes os tribunais portugueses se o direito invocado não poder tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou verificar-se para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, existindo entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Em primeiro lugar, deve salientar-se ser entendimento comum consagrar este preceito um verdadeiro princípio da necessidade, no sentido de que apenas é admissível a extensão de competência nela prevista se a instauração da ação em tribunal estrangeiro não permitir a efectivação do direito pretendido exercer pelo autor.

Em anotação ao preceito, JOSÉ LEBRE DE FREITAS /ISABEL ALEXANDRE6 esclarecem que a razão de ser tal regra é a de “prevenir conflitos negativos de jurisdição e evitar situações com claro recorte objectivo de denegação de justiça, quer nos casos de impossibilidade absoluta, quer nos de impossibilidade relativa, ou dificuldade em tornar efectivo o direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro”, salientando que “tal dificuldade tem de ser manifesta: a oneração do autor com a propositura da ação no estrangeiro tem como limite a razoabilidade do sacrifício que lhe é exigido, à luz do princípio da boa fé”. E acrescentam: “verifica-se a primeira hipótese quando nenhuma das jurisdições com as quais o caso se encontra conexo se considera competente para o conhecimento da ação ou quando a jurisdição estrangeira não reconhece, em abstrato o direito carecido de tutela”; “na segunda hipótese incluem-se tradicionalmente as situações de guerra ou de ausência de relações diplomáticas”.

Ou como escrevem ANTÓNIO ABRANTES GERALDES /PPAULO PIMENTA/ LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA7, a “al. c) contém uma cláusula de salvaguarda tendente a evitar que, atenta a impossibilidade de ordem prática ou jurídica (v.g. recusa de competência) ou a grave dificuldade na instauração da ação num tribunal de outro Estado, o direito em causa pudesse ficar sem tutela efetiva (v.g. casos de guerra ou outras calamidades). Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição da competência aos tribunais nacionais exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, seja de ordem pessoal (v.g. nacionalidade ou residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar em território nacional o bem que é objeto imediato ou mediato da ação)”.8

Nesta senda e no que respeita à primeira categoria de situações prevista na citada alínea c) – o direito invocado não poder tornar-se efectivo senão por meio de ação proposta em território português –, não decorre da alegação do autor qualquer elemento demonstrativo da impossibilidade de impugnar nos tribunais são-tomenses a paternidade estabelecida por declaração do 2.º réu, designadamente em virtude de a jurisdição desse Estado não se considerar competente para a apreciação do litígio ou a legislação aí vigente lhe não conferir o direito que pretende exercer, não configurando, por isso, nenhuma das circunstâncias por si invocadas, qualquer caso que possa configurar-se como sendo de impossibilidade absoluta de exercer o respectivo direito.

Relativamente à segunda categoria de situações prevista na alínea em apreciação – verificar-se para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro – (os casos designados de impossibilidade relativa), e embora invocando, o ora recorrente, dificuldades económicas que alegadamente o impedem de propor a ação num tribunal são-tomense, também não se vislumbra que tais dificuldades possam configurar ou integrar o conceito de “dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro” a que se refere o preceito em análise enquanto critério de atribuição de competência aos tribunais portugueses.

Em conclusão, não se demonstrando que a ação de impugnação da paternidade não poderá ser intentada, sem dificuldade manifesta e desrazoável, em São Tomé, não se mostra preenchida a previsão da alínea c) do referido artigo 62.º, conforme considerou o Tribunal recorrido.9

Tanto mais que, não tendo as autoridades são-tomenses que acatar as decisões dos tribunais portugueses, sempre o autor teria de propor em São Tomé uma outra ação de reconhecimento da sentença do tribunal português que eventualmente considerasse sem efeito a perfilhação e mandasse cancelar o correspondente registo da paternidade relativamente ao 2.º réu, necessária para que prosseguisse e procedesse à ulterior e peticionada investigação da paternidade. O que, até do ponto de vista da sua eficácia, comprova o acerto da decisão recorrida quando julgou incompetentes os tribunais portugueses para julgar o caso dos autos.

Além disso, exige a lei, nestas hipóteses, a existência de um factor ou elemento de conexão relevante (pessoal ou real) com a ordem jurídica e o território português, o que, no caso dos autos, como já se viu, também não se verifica.

Assim sendo, não se apurando existir qualquer dos invocados factores de atribuição de competência internacional, cumpre concluir que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para o presente pleito, pelo que se impõe julgar improcedente a revista, mantendo a decisão recorrida.

iii) - Da alegada inconstitucionalidade da interpretação do art.º 62.º que exclui a competência internacional dos tribunais portugueses, por limitar direitos fundamentais, nomeadamente o direito à identidade pessoal.

Entende o autor, por fim, que a interpretação do art.º 62.º levada a cabo pelo tribunal recorrido, ao afastar no caso dos autos a competência dos tribunais portugueses, limita o seu “direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa” e, como tal, deverá ter-se por inconstitucional.

Vejamos:

Desde logo, deve começar por admitir-se que o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade podem ser fundadamente invocados, quer para ver juridicamente reconhecidos vínculos de paternidade biológica, quer para impugnar vínculos jurídicos de paternidade contrários à verdade biológica.

De facto, como reiteradamente vem afirmando a jurisprudência constitucional, o direito ao conhecimento da paternidade biológica e o direito à constituição e/ou destruição do respectivo vínculo jurídico cabem no âmbito de proteção, quer do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP (que se encontra incluído entre os direitos, liberdades e garantias referenciados no artigo 18º), quer do direito fundamental de constituir família, plasmado no artigo 36.º, n.º 1, da CRP.

Segundo GOMS CANOTILHO e VITAL MOREIRA10, no âmbito normativo do direito à identidade pessoal reconhecido pela Constituição, além do direito natural à diferença de cada ser humano, decorrente do caráter único, indivisível e irrepetível de cada pessoa humana concreta, que tem expressão mais relevante no direito ao nome, inclui-se o direito à “historicidade pessoal”, expresso na relação de cada pessoa com aquelas que lhe deram origem. Nesta dimensão relacional, em que a pessoa humana também se define em função de uma “memória” familiar conferida pelos antepassados, extrai-se o direito ao conhecimento da progenitura, de que resulta, além do mais, o direito à investigação da paternidade ou da maternidade.11

Como expressivamente salienta GUILHERME DE OLIVEIRA12, “saber quem sou exige saber de onde venho”, podendo, por isso dizer-se que essa informação é um factor conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo.

Por outro lado, também se pode dizer, segundo o autor, “(…) que a identidade pessoal, a integridade moral e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade exigem que se afaste a paternidade jurídica que não corresponde a um vínculo biológico”, pois “se ficar vedada a possibilidade de impugnar um vínculo que não corresponde à verdade biológica porque a paternidade continua a constar do registo, torna-se impossível promover a subsequente investigação da paternidade biológica e satisfazer os direitos fundamentais mencionados”13 .

Deste modo, a ação de impugnação da paternidade, visando possibilitar a correção de uma atribuição legal de paternidade que se julga não corresponder ao vínculo real de parentesco, constitui instrumento necessário para que o autor possa exercer os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família consagrados, respectivamente, nos artigos 26.º, n.º1, e 36.º, n.º1, ambos da Constituição.

Todavia, no caso dos autos, determinando-se a incompetência dos tribunais portugueses para julgar a impugnação da perfilhação, até por força da interpretação comumente aceite dos critérios plasmados no art.º 62.º do CPC, não se restringe de forma intolerável o direito do recorrente de acesso aos tribunais e, indirectamente, os próprios direitos fundamentais de natureza substantiva que lhe assistem, como o direito de constituir família e o direito à identidade pessoal, com os conteúdos acima delimitados.

Na verdade, como antes visto e parece evidente, não se impede o Autor de propor ação tendente a obter aquele desiderato, apenas se considera que para dela conhecer não são competentes os tribunais portugueses, por não se verificar qualquer elemento de conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa. Neste sentido, pode sempre o autor, desencadear ou impulsionar a instauração de uma ação cuja procedência determinará o cancelamento do registo da paternidade do 2.º réu, o que viabilizará o estabelecimento da paternidade biológica por via da correspondente investigação, estando desse modo garantida a viabilidade prática do seu direito à identidade pessoal.

Aliás, se estivéssemos perante uma hipótese de impedimento ou impossibilidade absoluta, de ordem prática ou jurídica, ou perante uma grave dificuldade na instauração da ação num tribunal de S. Tomé, de modo a que o direito em causa pudesse ficar sem tutela efectiva, por força da alínea c) daquele artigo 62.º, os tribunais portugueses seriam competentes, o que julgamos ter ficado suficientemente esclarecido não acontecer no caso dos autos.14

Não tem, pois, razão o recorrente quando afirma que a interpretação que as instâncias fizeram do art.º 62.º do CPC constitui uma limitação ao seu direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa”.


*


Sustenta, ainda, o recorrente que a interpretação em causa adoptada pelo tribunal recorrido viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, invocação claramente destituída de qualquer razoabilidade.

De facto, não se percebe como a circunstância de se considerarem incompetentes os tribunais portugueses para conhecer da ação de impugnação da perfilhação, não estando em confronto qualquer caso ou direito de terceiro com tratamento diverso, possa contender com o princípio da igualdade.

Deve, assim, decair igualmente a pretensão do Recorrente fundada nas alegadas inconstitucionalidades do art. 62.º do CPC.


**


IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 03.07.2025

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Orlando dos Santos Nascimento (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Isabel Salgado (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

_______


1. Nos termos do qual a prova resultante do registo civil, quanto aos factos a ele obrigatoriamente sujeitos, não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e de registo (nº 1).

2. Segundo, também, PIRES DE LIMA/ ANTURES VARELA, Código Civil Anotado, “Trata-se, de algum modo, de uma simples concretização do princípio hoje proclamado no artigo 4.º do Código de Registo Civil, segundo o qual «a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo»”

3. Em www.dgsi.pt

4. Aliás, neste sentido vai de forma praticamente unânime quer a doutrina quer a jurisprudência (cfr. REMÉDIO MARQUES, na anotação ao art.º 1848º, nº1 do CC – Código Civil Anotado, - Livro IV, Direito da Família, pág.766 e entre outros o acórdão do STJ, de 18.02.2015, no processo 4293/10.7TBSTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.).

5. Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 153)

6. ob. cit., p. 156-157. Cfr., ainda, ISABEL ALEXANDRE, Direito Processual Civil Internacional I, AAFDL Ed., Lisboa, 2021, pp. 220 e ss.

7. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 94

8. A 2ª parte do preceito comportando as situações em que existe uma impossibilidade jurídica e prática, engloba também as hipóteses em que, sendo possível aceder ao tribunal estrangeiro, advenham riscos sérios para a liberdade do interessado (guerra, exílio político), a ordem jurídica estrangeira se oriente por princípios significativamente distintos dos vigentes na ordem jurídica portuguesa, ou a propositura da acção imponha custos insuportáveis, quer em razão da distância física, quer em função do distanciamento linguístico.

9. De facto, como se observa no Acórdão recorrido, nada mostra que a ação de impugnação da perfilhação não possa ser intentada na República de São Tomé e Príncipe (ou na República de Moçambique, se se atender ao domicílio do respetivo demandado), País dotado, obviamente, de sistema jurídico e judicial, com legislação e tribunais próprios, designadamente com competência cível, em matéria de impugnação da perfilhação.

  Também nada mostra que o aqui A. esteja impedido de se deslocar ao seu País, a República de São Tomé e Príncipe, com vista à instauração da ação, sabido que poderá até nem ter de ali se deslocar, tendo em conta a operância dos atuais meios de comunicação à distância, podendo outorgar e enviar procuração forense a advogado que lhe intente a ação na Justiça do seu País.

10. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., pág. 462)

11. Também neste sentido o Acórdão do STJ de 09-11-2022, processo n.º 26/19.0T8BGC.G1.S1, em cujo sumário se escreve:

  “I- O direito à identidade do indivíduo, enquanto expressão da sua verdade pessoal e da sua integridade moral, consagrado nos artigos 25º,nº 1 e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que se encontra incluído entre os direitos, liberdades e garantias referenciados no artigo 18º do mesmo diploma legal, constituindo condição sine qua non para a afirmação na família e na sociedade, abrange o conhecimento das origens genéticas (paternidade biológica) e o estabelecimento do correspondente vínculo jurídico, que compõem a estrutura essencial subjacente à sua própria historicidade enquanto ser social, inserindo-se no núcleo essencial e íntimo da pessoa e do cidadão.

  II – Está, portanto, em causa o reconhecimento do direito absoluto e pessoalíssimo à sua própria identidade através da possibilidade do conhecimento da ascendência e marca genética, que se inscrevem indelevelmente na genealogia do ser humano, com profundas e impressivas projecções no campo social e histórico.” (in www.dgsi.pt).

12. Caducidade das ações de investigação, in “Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977”, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 49-58 e in “Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família”, Ano I, n.º1, 2004, p. 7-13.

  Cfr. também e a propósito o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/11, onde se lê «a ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de autodefinição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afetiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal.

13. Manual de Direito da Família(com a colaboração de RUI MOURA RAMOS), 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 476-477

14. Além disso, estando em causa o direito de ação, como salienta o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2017, embora a propósito do estabelecimento de prazos de caducidade mas que, até por maioria de razão, podemos ter em conta, estarão em causa normas meramente condicionadoras desse direito, e não normas restritivas, já que apenas “definem os pressupostos e condições do seu exercício”, não “encurtando ou estreitando o conteúdo e alcance do direito fundamental”, ainda que, todavia, fiquem sujeitas ao padrão de controlo material ou substantivo de proporcionalidade imposto pelo artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

  Por outro lado, no entender do Tribunal Constitucional, a Constituição da República Portuguesa não impõe a maximização da proteção do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto componente essencial dos direitos à identidade pessoal e a constituir família.