CASO JULGADO
IDENTIDADE SUBJETIVA
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
EXCEÇÃO
RECOLHA DE AMOSTRAS DE ADN
PATERNIDADE BIOLÓGICA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
JUSTO IMPEDIMENTO
DESPACHO DE PROSSEGUIMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
Sumário


I. A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior, pressupondo uma repetição de causas (cfr. artigo 580.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
II. A inversão da posição das partes na segunda acção (o ora autor é o então réu e o ora réu é o então autor) não invalida a identidade das partes e nem afecta a identidade do pedido e da causa de pedir, sucedendo apenas que o pedido e a causa de pedir são formulados de forma inversa (pela negativa ou pela positiva, consoante a formulação na primeira acção seja, respectivamente, pela positiva ou pela negativa).

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: BB

1. Na acção declarativa proposta por AA contra BB proferiu o Tribunal de 1.ª instância decisão com o seguinte teor:

Conforme se afere da certidão judicial junta aos autos pelo Autor sob o doc. 4, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela, sob o n.º 27/1971, a ação de investigação de paternidade ilegítima, sob a forma de processo ordinário, na qual figurava como Autor o Ministério Público (em representação do menor BB, aqui Réu) e como Réu o aqui Autor, no âmbito da qual foi pedido que o aqui Réu fosse reconhecido como filho ilegítimo do aqui Autor «com as consequências da lei e designadamente a de usar o seu apelido “CC”».

A referida ação foi julgada procedente, por sentença proferida no dia 05 de abril de 1972, a qual transitou em julgado.

No caso em análise, o Autor socorre-se da presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, com vista à alteração da sentença proferida nos referidos autos de investigação de paternidade ilegítima n.º 27/1971, mediante a obtenção de um meio de prova que aí não foi produzido (exame pericial de ADN), o qual, no seu entender, é suscetível de infirmar os fundamentos de facto da referida decisão.

Ora, esta pretensão não pode ser alcançada através da propositura de uma ação declarativa comum.

Com efeito, o meio processual idóneo à impugnação de uma decisão judicial já coberta pela autoridade do caso julgado é o da interposição do recurso extraordinário de revisão previsto no art.º 696.º do CPC, desde que verificados os respetivos pressupostos.

Por outro lado, o recurso de revisão deve ser interposto no Tribunal que proferiu a decisão a rever, conforme prescreve o art.º 697.º, n.º 1, do CPC.

Em face do exposto, decide-se indeferir liminarmente a presente ação - cf. art.º 590.º, n.º 1, do CPC.

Custas pelo Autor.

Registe e notifique”.

2. Tendo o autor AA apelado para o Tribunal da Relação de Guimaraes, veio a ser proferido, por maioria, Acórdão com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida”.

3. O autor AA interpõe agora recurso de revista deste Acórdão formulando as seguintes decisões:

O objeto da presente ação

1. O recorrente interpôs uma ação (declarativa comum) a pedir a prestação de um facto (realização de testes de ADN) a uma pessoa (o recorrido) que nos tempos da ditadura do Estado Novo foi considerada, por ficção jurídica (ou, se preferirmos, por raciocínio inferencial abdutivo), e para efeitos puramente jurídicos, como seu filho ilegítimo.

2. O objeto dos presentes autos não se confunde com o objeto de quaisquer outros autos que já tenham sido decididos e transitado em julgado.

3. A presente ação não tem em vista uma qualquer alteração direta e/ou imediata de uma qualquer realidade jurídica (maxime, a resultante da sentença proferida nos autos n.º 27/1971) — ela pretende, isso sim, apurar a Verdade biológica.

4. Para além disso, no cenário da sua procedência — o que seria uma homenagem à Verdade e um hino à Justiça —, a destruição do julgado na dita sentença careceria ainda da interposição de uma nova ação e, mais ainda, da procedência dessa ação.

5. De onde sobressai, e sempre com o devido respeito, que o único meio processual adequado e idóneo para alcançar o desiderato do apuramento da Verdade biológica (através da realização de testes de ADN) — o que constitui o objeto da presente ação — é, na década de 20 do século XXI, a ação de processo comum.

A concreta ausência dos pilares teleológicos que fundamentam o erigir do caso julgado

6. Os pilares teleológicos para a existência do caso julgado têm sido desenhados em torno de dois fundamentos:

o prestígio dos Tribunais, que poderia ser posto em causa «se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente»;

e a certeza/segurança jurídica, pois sem a força do caso julgado poderia surgir uma «situação de instabilidade jurídica (...) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas».

7. Parece-nos manifestamente desprestigiante para o Sistema Judiciário que um Tribunal impeça a descoberta da Verdade material (para mais numa situação de facto tão sensível quanto o real parentesco biológico).

8. Não há paz social ou segurança/certeza jurídica num Sistema que, sobretudo numa questão de tão grande relevância pessoal e social, prefere três saltos no escuro (com uma probabilidade teórica de 50%) a um consolidado exame probabilístico de 99,999%!

Inexistência de limites objetivos de qualquer julgado aplicáveis à presente situação (ausência de prejudicialidade e autonomia material e ontológica dos presentes autos)

9. Os factos dados como assentes nos autos n.º 27/1971 e que relevam para os presentes autos, mesmo que dotados da força do julgado em relação ao objeto da presente ação (no que não se concede), não são o suficiente para descartar a premência e autonomia da existência desta, para a prejudicar (o que basta para obliterar qualquer putativa força do “julgado”)

10. Mais de cinquenta anos depois de ter sofrido tanta injustiça, nos presentes tempos de liberdade de expressão e de progresso científico (de assinalável relevância para a descoberta da Verdade biológica), os fundamentos para o Autor intentar a presente ação são:

a sua integridade familiar (a Verdade para si, para a sua mulher, para as suas filhas e para o seu neto);

e a sua Verdade Histórica — a sua Memória!

11. Uma ação (como é o caso da presente) dirigida à concretização de um direito de personalidade tão fundamental — verdadeiramente constituinte do ethos humano (uma ação simbólica, moral, íntegra e histórica) — jamais pode ser prejudicada pelos “factos” (para mais não excludentes ou, sequer, completamente conflituantes com o pedido da presente ação) de uma ação arbitrária e aleatória.

12. Qualquer putativa interpretação de que há uma “autoridade do julgado” obstaculiza a realização de direitos de personalidade fundamentais (pois ergue muralhas injustificáveis para algo tão essencial, íntegro e puro como a descoberta da Verdade biológica — da Verdade material!).

Violações normativas

13. A decisão em crise, ao errar na aplicação da lei, violou os arts. 2.º (n.º 1 e n.º 2), 10.º/3/b), 546.º, 580.º (n.º 1 e n.º 2), 581.º, 619.º/1, 621.º e 696.º, todos do Código de Processo Civil, bem como os arts. 25.º/1, 26.º/1, 36.º e os n.ºs 1 e 4 do art. 20.º, todos da Constituição da República Portuguesa e, ainda, os arts. 6.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”.

4. Responde o réu BB, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência, nos termos que se seguem:

1. Na sentença proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 16.01.2025, decidiu em suma: que a pretensão do recorrente/A., ao formular o pedido de condenação do recorrido/R. a realizar os exames de ADN de modo a apurar o verdadeiro parentesco biológico, terá de ser improcedente, uma vez que, na pretérita ação ordinária que correu termos no Tribunal Judicial de Mirandela, sob o N.º 27/71, em que o aqui Recorrente /A. figurou como Réu, e o Recorrido/R. como Autor, decidiu que este é filho ilegítimo daquele.

2. A autoridade do caso julgado não permite que se intente uma nova ação com o mesmo objeto, que seja suscetível de definir, de modo diverso, a mesma relação jurídica, que já foi decidida por sentença em ação anterior.

3. Decisão, que o Recorrente vem agora contestar através do presente recurso de revista, com fundamento no D. Voto de Vencido proferido.

4. Alegando que o objeto dos presentes autos não se confunde com o objeto de quaisquer outros autos que já tenha sido decidido e transitado em julgado, alegando que a presente ação não tem em vista qualquer alteração direta da realidade jurídica, proferida nos autos de ação 27/01971, mas sim, o que pretende com a presente ação é apurar a verdade biológica.

5. A sentença anterior que declarou o recorrido como filho ilegítimo já se encontra transitada em julgado, há mais de cinquenta anos.

6. Tendo a questão da paternidade sido decidida de forma definitiva pelo sistema Judiciário à data, daí que a realização de um teste de ADN para reavaliar a paternidade contraria o princípio da coisa julgada, que visa garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações.

7. Na verdade, a declaração de filho ilegítimo implica que, sob a legislação vigente à época, o recorrente não tinha o dever de reconhecimento da paternidade, pelo que, a imposição da realização de um teste de ADN agora, cinquenta e quatro anos depois, fere os direitos do recorrido e a lógica da decisão anterior.

8. A insistência do recorrente na realização do teste de ADN é vista como a violação dos princípios da boa-fé e da dignidade da pessoa humana do recorrido. O recorrido, já reconhecido como filho ilegítimo, construiu sua vida com base nessa realidade, e um teste de ADN poderá causar danos emocionais e psicológicos irreparáveis.

9. Entende o recorrido que o ora recorrente não apresentou mudanças de circunstâncias suficientemente relevantes desde a decisão proferida na ação 27/1971, que justificassem a realização de um teste de ADN, tendo o recorrente o ónus de provar a necessidade da realização do teste de ADN.

10. A mera dúvida sobre a paternidade, o desejo de saber a verdade biológica, integridade familiar do recorrido e a sua verdade histórica, não são, por si só, um fundamento suficiente para desconsiderar uma decisão judicial anterior, e não se sustentam como um fundamento jurídico válido.

11. O interesse superior do recorrido deve ser tido em consideração, por este Tribunal, podendo a realização de um teste de ADN gerar conflitos desnecessários, além de expor o recorrido a situações de constrangimento e sofrimento psicológico.

12. A análise de todas as provas ou indícios considerados pelo Meritíssimo Juiz que proferiu a Sentença anterior (ação27/1971) devem ser reafirmadas, devendo prevalecer sobre a mera solicitação de realização de um teste genético, que não altera o fato da paternidade reconhecida (filho ilegítimo).

13. A confirmação ou não da paternidade não altera a situação jurídica já estabelecida e pode levar a um desfecho que não trará benefícios reais para nenhuma das partes.

14.O Recorrido discorda dos argumentos apresentados pelo Recorrente, pois entende que a D. Decisão do Tribunal da Relação de Guimarães é plenamente correta e conforme à jurisprudência aplicada nos Tribunais Portugueses, não se vislumbrando quaisquer razões que justifiquem a sua alteração.

15. 0s argumentos do Recorrente não demonstram a violação de norma jurídica ou a existência de erro de julgamento, mas sim uma simples discordância quanto à interpretação dos factos e do Direito aplicável.

16. A interpretação da lei feita pelo Tribunal a quo deve ser respeitada, uma vez que se encontra alinhada com a interpretação consolidada na jurisprudência Portuguesa”.

5. Foi proferido no Tribunal da Relação de Guimarães o seguinte despacho:

Porque está em tempo e tem legitimidade, admito o recurso, que é de revista, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo.

Notifique e remeta ao Supremo Tribunal de Justiça”.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se o caso julgado impede o prosseguimento da presente acção.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal a quo decidiu que os factos a considerar são os que constam do relatório do Acórdão recorrido (e expostos no essencial no relatório do presente Acórdão).

O DIREITO

Como ensina Manuel de Andrade, o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas1.

Na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respectivamente, como a “vertente negativa” e a “vertente positiva” do caso julgado2.

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC). Ao lado da excepção de caso julgado assente sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, existe a excepção de caso julgado baseada em decisão anterior proferida sobre a relação processual. À primeira chama-se “caso julgado material” e está regulada no artigo 619.º do CPC e à segunda chama-se “caso julgado formal” e está regulada no artigo 620.º do CPC. Enquanto o caso julgado formal tem apenas força obrigatória dentro do processo em que a decisão é proferida, o caso julgado material tem força obrigatória não só dentro do processo como, principalmente, fora dele3.

Por sua vez, a autoridade de caso julgado tem o efeito de impor uma decisão e por isso constitui a “vertente positiva” do caso julgado.

Explicando as duas vertentes ou efeitos do caso julgado, afirma Rui Pinto que, “se o efeito negativo do caso julgado (exceção de caso julgado) leva à admissão de apenas uma decisão de mérito sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo (autoridade de caso julgado) admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. Em termos de construção lógica da decisão, na autoridade de caso julgado a decisão anterior determina os fundamentos da segunda decisão; na exceção de caso julgado a decisão anterior obsta à segunda decisão4.

Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade, embora não prescinda da identidade subjectiva5.

Veja-se, em ilustração, o que se diz Acórdão deste Supremo Tribunal de 11.11.2020 (Proc. 214/17.4T8MNC.G1.S1):

Quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda acção anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do STJ vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira”.

Explica bem este ponto José Lebre de Freitas dizendo que “o efeito positivo do caso julgado, pressupondo igualmente a identidade das partes, assenta sempre na existência duma relação de prejudicialidade entre a primeira e a segunda ação: na primeira terá de se ter decidido questão jurídica cuja resolução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na segunda (…)6.

Acrescenta ainda aquele autor que “[p]ara o efeito, entende-se por questão prejudicial toda aquela cuja solução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito, quer se trate de questão fundamental, relativa à causa de pedir ou a uma exceção perentória, quer respeite ao objeto de incidentes que estejam em correlação lógica com o objeto do processo7.

Posto isto, analise-se a situação dos autos.

Na presente acção, o autor formula o pedido de condenação do réu “a realizar exames de investigação biológica de parentesco/paternidade (filiação) — i.e., testes de ADN (por recolha de amostras de sangue, saliva ou de um fio de cabelo) — em relação ao Autor, de modo a apurar, cientificamente, o verdadeiro parentesco biológico que existe entre ambos”.

Sucede, porém, que há alguns anos correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela, sob o n.º 27/1971, uma acção de investigação de paternidade na qual figurava como autor, então menor, BB (ora réu) e como réu AA (ora autor). No âmbito desta acção o autor pedia para ser reconhecido como filho do réu “com as consequências da lei e designadamente a de usar o seu apelido ‘CC’”. A acção foi julgada procedente por sentença proferida no dia 5.04.1972, naturalmente, há muito transitada em julgado.

É visível que se verifica uma repetição de causas, com identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC).

Como se viu, o então réu é o ora autor e o então autor é o ora réu. Mas esta inversão de posição das partes não invalida a identidade das partes8 e nem tão-pouco a identidade do pedido e da causa de pedir.

Como explicam, em anotação ao artigo 581.º do CPC, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “[a]o conceito de repetição é indiferente que seja ou não a mesma a posição das partes no segundo processo, podendo ser autor na segunda ação o réu da primeira e vice-versa [ ]; consequentemente, é também irrelevante que, na segunda ação, se peça o mesmo que na primeira ou o inverso do que nela se pediu, repetindo-se a causa quando, por exemplo, é pedida numa ação a declaração de que o contrato é mulo e na outra a declaração de que é válido. Basta, pois, a identidade dos sujeitos (n.º 2) e a identidade do pedido, independentemente de quem é autor e réu e de quem afirma a situação jurídica ou a situação de facto e requer a consequente providência judicial9.

Quanto ao pedido, não restam dúvidas de que, através da presente acção, o autor pretende obter o mesmo efeito jurídico, mutatis mutandis, que o réu visou com a acção anterior. É verdade que o pedido formulado é, aparentemente, diferente – o autor pede a condenação do réu “a realizar exames de investigação biológica de parentesco/paternidade (filiação) — i.e., testes de ADN (por recolha de amostras de sangue, saliva ou de um fio de cabelo) — em relação ao Autor (…)”. Mas este pedido de condenação é só um meio para realizar um propósito último, propósito este que é, declaradamente, o de “(…) apurar, cientificamente, o verdadeiro parentesco biológico que existe entre ambos”, concluindo – é inevitável pressupor – pela inexistência de parentesco10. Ora, na anterior acção ficou definitivamente estabelecido que o autor era pai do réu, pelo que a pretensão do actual autor implicaria a revisão da anterior decisão, o que não é admissível a não ser através do recurso extraordinário de revisão (cfr. artigos 696.º e s. do CPC). Como bem explicaram as instâncias, o recurso de revisão seria o meio de tutela jurisdicional adequado à pretensão do recorrente (a reapreciação ou o reexame da mesma causa), não a presente acção.

Tal como o pedido, a causa de pedir reflecte a inversão da posição das partes, revestindo nesta acção uma formulação negativa (compõe-se de factos que apontam para que o autor não é pai do réu) enquanto na anterior acção revestia uma formulação positiva (compunha-se de factos que apontam para que o autor é pai do réu).

Em síntese, verifica-se uma repetição de causas, acarretando o prosseguimento da presente acção o risco de a decisão anterior, transitada em julgado, vir a ser contrariada (cfr. artigo 580.º, n.º 2, do CPC).

O sistema jurídico combate este risco através da excepção de caso julgado ou vertente negativa do caso julgado (cfr. artigo 580.º, n.º 1, do CPC). Como excepção dilatória que é [cfr. artigo 577.º, al. i), do CPC], a excepção de caso julgado é obstáculo à decisão de mérito (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do CPC).

Por tudo isto, não há dúvidas de que o Tribunal recorrido fez bem em confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, não existindo qualquer disposição da lei fundamental ou ordinária nem qualquer disposição da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que tenha sido violada e sendo, bem pelo contrário, aquela a decisão que inexoravelmente resulta do sistema jurídico.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente.

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Lisboa, 3 de Julho de 2025

Catarina Serra (relatora)

Isabel Salgado

Fernando Baptista

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1. Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307.

2. Além de ser utilizada na doutrina, a distinção é habitual na jurisprudência. Cfr., por todos, o Acórdão do STJ de 30.03.2017 (Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1), e o Acórdão do STJ 22.06.2017 (Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1). Parafraseando este último, pode dizer-se que “[I]mporta ter presente que, no que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito que tanto a doutrina [1] como a jurisprudência têm distinguido duas vertentes: a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução neste compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais”.

3. Salientando este facto cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 308-309.

4. Cfr. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – Algumas notas provisórias”, in: Julgar Online, Novembro de 2018, p. 28.

5. Cfr., neste sentido, na jurisprudência, os Acórdãos de 19.06.2018 (Proc. 3527/12.8TBSTS.P1.S2), de 13.09.2018 (Proc. 687/17.5T8PNF.S1), de 6.11.2018 (Proc. 1/16.7T8ESP.P1.S1), de 28.03.2019 (Proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1), de 30.04.2020 (Proc. 257/17.8T8MNC.G1.S1), de 11.11.2020 (Proc. 214/17.4T8MNC.G1.S1), e de 9.12.2021 (Proc. 5712/17.7T8ALM.L1.S1).

6. Cfr. José Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2019, n.ºs 3-4, p. 700.

7. Cfr. José Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, cit., p. 697.

8. A identidade das partes não é, evidentemente, prejudicada pelo facto de na anterior acção o Ministério Público ter agido em representação do então autor, que era menor. Como dizem José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 592], “[h]avendo representação, a parte é o representado e não o representante”.

9. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, cit., p. 592.

10. Não há como pressupor que a conclusão pretendida pelo autor é a existência de parentesco, porquanto, se assim fosse, ele não teria qualquer interesse em agir.