I. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021 (Proc. 1906/20.6T8VCT.G1.S1), “para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos ‘vínculos afectivos próprios da filiação’ para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre o(s) progenitor(es) e a criança; é preciso ver em que é que, existindo esta ligação, ela se concretiza. Ela deve traduzir-se em gestos, actos ou atitudes que revelem de que o(s) progenitor(es) têm(tem) não só a preocupação como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança. Sempre que, ao contrário, existam factos que demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC, os ‘vínculos afectivos próprios da filiação’”.
II. Mas existe ainda um aspecto que, sendo uma forma de ser do vínculo e por isso podendo passar despercebido, é igualmente essencial – trata-se da estabilidade ou do carácter estável do vínculo, que pressupõe, naturalmente, a constância e a coerência do comportamento do progenitor em relação à criança bem como do comportamento que ele exibe perante a criança (já que esta tende a olhar para ele como uma referência ou um exemplo a seguir no futuro).
Recorrente: AA
Recorridos: BB e CC
1. Em Maio de 2019 foi instaurado pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de ... processo de promoção e protecção relativo a BB, nascido a .../.../2019, na altura, com alguns dias de vida, na sequência de informação do Centro de Saúde de ... (que se iniciou com uma participação feita pela mãe ao Serviço Social desse Centro de Saúde).
Tal informação relatava uma situação de falta de acompanhamento da gravidez, instabilidade habitacional (casal a viver num quarto, com rendas em atraso e iminência de despejo, ausência de rede de apoio familiar, ausência de rendimentos, ausência de autorização de residência da progenitora em Portugal e queixas da mãe relativamente ao comportamento do pai).
O processo foi arquivado e remetido pela CPCJ ao Ministério Público, para instauração de processo judicial de promoção e protecção, na sequência de recusa de consentimento dos progenitores à intervenção daquele organismo.
2. A 16/6/2019 foi instaurado processo judicial de promoção e protecção relativamente ao menor BB, em que foi aplicada medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais, que vigorou entre 9/7/2019 e 16/11/2019.
3. Em 16/11/2019 foi a medida substituída por medida de acolhimento residencial, que veio a ser mantida até 22/11/2022.
4. Nesta última data foi a medida substituída por apoio junto da mãe.
5. Na sequência do nascimento da criança CC, encontrando-se este com cerca de 6 meses de idade, a .../.../2021, foi instaurado procedimento urgente, que determinou o seu acolhimento residencial, decisão que veio a ser validada judicialmente por decisão de .../.../2021.
6. Em 22/11/2022, correndo o processo de promoção e protecção relativamente aos dois irmãos, foi a medida de acolhimento substituída por apoio junto da mãe.
7. Em execução desta medida, perante oposição do progenitor à sua manutenção, a sinalização da creche da agressividade verbal da mãe sobre os filhos e a referência à mãe ter batido nas costas do filho BB com um martelo (com sinais visíveis de hematoma no sítio assinalado), por acórdão de 28/6/2023, foi novamente aplicada a ambos os menores, em substituição da medida de apoio junto da mãe, medida de acolhimento residencial.
Nesse acórdão foi ainda ordenada a realização de uma perícia psiquiátrica colegial à mãe e a expedição de carta rogatória à justiça brasileira com objectivo de obter informação sobre o agregado familiar alargado da progenitora e seu histórico familiar.
8. A medida de acolhimento residencial está em execução desde 3/7/2023 em casa de acolhimento residencial da associação ..., Associação de Solidariedade Social — ..., em ..., com autorização de visitas à mãe, incluindo dormidas aos fins de semana e contactos de uma hora ao longo da semana.
9. Realizada a perícia à progenitora e devolvida a carta rogatória pela justiça do Brasil, promoveu o Ministério Público a substituição da medida de acolhimento residencial aplicada aos menores BB e CC pela medida de confiança a instituição com vista à adopção.
10. Ambos os progenitores manifestaram nos autos a sua oposição a tal medida.
Apresentaram depois os progenitores as suas alegações e requerimentos de prova.
11. Na sequência disto, realizou-se debate judicial e foi proferido o acórdão objecto de recurso, que decidiu pela aplicação de medida de promoção e protecção de confiança com vista a adopção a ambas as crianças.
12. Dessa decisão apelaram ambos os progenitores.
13. Na data do acórdão, deu o Ministério Público entrada a requerimento, juntando comunicação proveniente da instituição em que as crianças se encontram acolhidas, onde consta, designadamente:
“(...) vimos, por este meio, perguntar a V.Ex.ª se mantém autorização dos contactos diários da progenitora com os menores.
A progenitora tem autorização para ir buscar os filhos à escola, levá-los às terapias, como também realizar visitas dentro e fora do contexto de CAR.
(...)
A equipa técnica encontra-se muito preocupada com toda a situação social/emocional da mãe, uma vez que a mesma não se encontra emocionalmente estável com toda a situação”.
14. Nessa mesma data, foi proferido despacho no processo, cujo teor é o seguinte:
“Na sequência da decisão proferida na data de hoje de aplicação aos menores BB, nascido a ........2019, e CC, nascido a ........2021, da medida de confiança a instituição em vista a futura adoção, veio o M.P. dar respaldo da preocupação da Equipa Técnica da CAR relativamente ao bem-estar dos menores, em virtude da progenitora não se encontrar emocionalmente estável, certamente devido à decisão proferida nos presentes autos e também retirada recente do bebé recém nascido.
Ora, a decisão hoje proferida pelo coletivo de juízas ainda não transitou em julgado, tendo o eventual recurso que venha a ser interposto no prazo de 10 dias efeito meramente suspensivo, por imperativo legal (cf. artigo 124º/1/2 LPCJP), o que significa que à partida deveria ser mantido o regime de convívios.
Porém, o regime em vigor de amplos convívios dos menores com a mãe, fora da casa de acolhimento residencial, num contexto em que já foi tomada pelo tribunal uma decisão de confiança dos menores a instituição em vista a futura adoção, por razões comportamentais da figura materna associadas a «transtorno borderline» de que padece, mas não reconhece, nem trata, coloca notoriamente em perigo estas crianças, que ficam expostas às oscilações comportamentais da progenitora, pelo que se determina a alteração do mesmo, ordenando-se que os menores BB e CC permaneçam acolhidos na CAR «..., Associação de Solidariedade Social», até que o acórdão hoje proferido transite em julgado, sem exceder os 3 meses (cf. artigos 37º e 35º/1/f) da LPCJP), restringindo-se os convívios destas crianças com a mãe a visitas supervisionadas no PEF (e até que estas visitas tenham início, a duas videochamadas supervisionadas pela equipa técnica da CAR, com periodicidade bissemanal), e os convívios das crianças com o pai a duas videochamadas bissemanais, também supervisionadas pela equipa técnica da CAR.
Notifique e comunique à EMAT e CAR”.
15. Por correio electrónico datado de 10/3/2025 solicitou a instituição onde as crianças se mostram acolhidas informação aos autos cujo teor, na sua parte relevante é:
“(...) a Sr.ª AA contatou-nos, via WhatsApp, na passada sexta-feira a informar-nos que, atendendo à sua Advogada, a Dr. DD que não estávamos a cumprir com o despacho.
Passo a citar a informação facultada pela progenitora referente à sua Advogada “Quanto às videochamadas, segundo o despacho elas deveriam ser bissemanais e supervisionadas pela Equipa Técnica da CAR. Sugiro que fale com a Dr.ª EE para perceber porque é que este despacho não foi ainda cumprido.”
Reforço que, antes das visitas se iniciarem no PEF, as videochamadas da progenitora deram-se sempre duas vezes na semana (às segundas e quintas-feiras) e foram sempre supervisionadas pela Equipa Técnica.
Ficamos a aguardar, com brevidade, esclarecimento quanto a isto, uma vez que, a Sr.ª AA aguarda resposta da nossa parte”.
16. Na sequência disto, foi proferido despacho datado de 13/3/2025 cujo teor é:
“O despacho judicial de 30-01-2025 é claro no seu sentido e alcance (cf. ref.ª citius n.º ......85). Os convívios com a mãe passam a ser supervisionados no PEF, ocorrendo até início destes convívios supervisionados no PRF, a duas videochamadas supervisionadas pela equipa técnica da CAR entre a mãe e as crianças, com periodicidade bissemanal, as quais cessarão obviamente após o início dos convívios no PEF”.
17. Após prolação deste despacho subiram os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, que, em 8-05-2025, proferiu Acórdão com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, negam-se as apelações, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique-se e registe-se”.
18. Inconformada, vem a progenitora AA interpor recurso de revista “nos termos do disposto nos artigos 672.º, n.º 1 alíneas a) e b) e 674.º, n.º 1, alíneas a), e b), ambos do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 126.º e ainda dos artigos 123.º e 124.º, ambos da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro”.
Conclui as suas alegações assim:
“1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido nos autos que negou a apelação da recorrente, mantendo integralmente, a decisão recorrida
2. Decisão esta que aplicou aos menores BB e CC, nascidos respetivamente a 28-04-2019 e 20-02-2021, filhos de AA e de FF, a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, nos termos dos artigos 35.º, n.º 1; al g), 38.º e 38.º e 38.º-A da lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e 1978.º do Código Civil.
3. Não concorda a progenitora, ora recorrente, com a posição firmada no Acórdão recorrido, motivo pelo qual dele recorre.
4. Há um claro erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas e princípios aplicáveis ao caso concreto, constantes dos artigos 1978.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil e 34.º, 35.º e 38.º-A, alínea b), da LPCJP.
5. Assim, atenta a relevância jurídica da questão e por estarem em causa interesses de particular relevância social como a adopção, o direito a constituir família e o direito ao estabelecimento da filiação, por um lado e,
6. Por outro lado, atenta a situação factual, e as consequências impactantes e irreversíveis da decisão, estão verificados os requisitos constantes das alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 672.º do C.P.C, pelo que deve ser admitido o recurso.
7. A medida de confiança a instituição com vista a adopção é a derradeira medida de protecção das crianças, que deve ser aplicada apenas e quando mais nenhuma medida se mostra apta a proteger o superior interesse de uma criança.
8. Isto porque, a sua aplicação determina o corte total dos laços afectivos da criança com os seus progenitores e demais família biológica.
9. A aplicação da medida de confiança com vista à adopção – artigo 35.º alínea g), da LPCPJ – pressupõe que não existam ou que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objectiva de qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 1978.º do C.C., e deve respeitar os princípios da actualidade, necessidade e proporcionalidade.
10. O principal princípio orientador de qualquer intervenção e que vem elencado no artigo 4.º da LPCPJ é o do “interesse superior da criança.”
11. Outro dos princípios orientadores é o da proporcionalidade da medida, sendo certo que, deve ser respeitado, também, o primado da continuidade das relações psicológicas profundas, ou seja, a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo, inequivocamente, prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante (al.g) do art. 4.º)
12. Atenta a matéria dada como provada, e contrariamente ao que foi decidido pelo Tribunal a quo, entendemos não estarem estabelecidas, no caso da recorrente, graves e reiteradas condutas activas de colocação dos filhos em risco designadamente constituídas por agressões verbais e físicas, como também não estão estabelecidas graves e reiteradas condutas omissivas, traduzidas em falta de cuidado.
13. Com efeito, uma leitura dos pontos 4, 5, 16, 25, 35, 39, 69, 74, 75, 76, 82, 83 a 88 demonstra que a recorrente tem procurado, ao longo do tempo, estruturar a sua vida, de modo a permitir a reunificação familiar.
14. Não se olvida os episódios relatados em 39, 51, 54, 55, 58, 59, 91, que indiciam que a progenitora estava mentalmente esgotada.
15. Fazemos notar que em todas as situações relatadas envolvendo as técnicas das instituições, a preocupação da progenitora é sempre com o bem-estar dos filhos e com a sua saúde.
16. Ainda que, muitas vezes, não seja a forma mais correcta de se expressar.
17. Aliás, conforme resulta do ponto provado em 151, “Apesar das oscilações de humor e impulsividade, AA esforça-se por estar presente na vida dos filhos e em colmatar as suas necessidades, acompanhando o menor CC à terapia da fala às quintas-feiras, das 16h00màs l 6h45m, e o menor BB à psicóloga, às sextas-feiras, das l4h00m às l4h45m, acompanhando ainda os filhos às atividades da natação, e expressando espontaneamente afeto pelos filhos (todos os dias, quer em visitas quer em videochamadas diz-lhes que os ama muito, abraça-os e dá-lhes beijos).
18. Não está evidenciado um comportamento que traduza maus tratos, negligência, desinteresse ou incapacidade da progenitora cuidar dos filhos,
19. Sempre se refira que o episódio do martelo, dado como provado em 92, não tem sustentação em mais nenhuma prova que não o que disse uma criança que, à data, tinha quatro anos.
20. Certo é que há seis anos que a Recorrente se mantém na ilha de ..., com a vontade inabalável de poder ter os seus filhos junto de si, o que aconteceu, nomeadamente, entre Novembro de 2022 a Junho de 2023.
21. Por outro lado, os menores vêem na progenitora a figura materna de referência.
22. Acresce a isso, os sentimentos negativos demonstrados pelos menores no momento da separação da progenitora, a qualidade dos contactos da progenitora com os menores, quer sejam contactos telefónicos, videochamadas ou visitas, e, ainda, o facto da progenitora estar presente em todos os momentos possíveis da vida dos filhos, como já se disse.
23. Se aliarmos, ainda, o facto de a progenitora não apresentar nenhuma psicopatologia invalidante, nem nenhuma doença mental, só podemos concluir o Tribunal a quo não podia ter mantido a decisão da primeira instância de aplicar a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.
24. Tanto mais que, conforme resulta do facto provado em 157, a progenitora mostra-se recetiva ao seu acompanhamento psicológico.
25. A medida aplicada não acautela devidamente o interesse superior dos menores.
26. Não se pode concluir que há um enfraquecimento sério do vínculo filial, que determine a aplicação da medida de promoção e protecção de confiança com vista a futura adopção, existindo, como tal uma errada interpretação do disposto na alínea d), do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil.
27. A decisão de aplicar a medida de confiança a instituição, face à matéria dada como provada, viola os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e protecção das crianças, que veem consagrados no artigo 4.º da LPCPJ.
28. Pelo exposto, deve
a) o presente recurso ser admitido;
b) ser revogado o acórdão proferido que determina a medida de confiança a instituição dos menores com vista a adopção por errada interpretação da alínea
d), do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil, e substituído por outro que tenha efetivamente em conta o superior interesse dos menores BB e CC, isto é, medida de apoio junto da progenitora, ou, em alternativa, a medida de promoção e protecção de acolhimento institucional, por ser de JUSTIÇA!”.
19. Em representação das duas crianças, veio o Ministério Público responder às alegações dizendo, em conclusão:
“I. Não pode o Ministério de Público, na salvaguarda do superior interesse das crianças, deixar de concordar integralmente com a decisão de 1ª instância, e com o douto Acórdão do TRL, ora em recurso, que a manteve na íntegra, os quais se sustentam na extensa matéria de facto provada que aqui se dá por reproduzida, integrando-a, acertadamente, no artigo 1978.º, n,º 1 d) do Código Civil.
II. Ao menor BB foi aplicada uma medida de proteção de apoio junto dos pais com escassos 3 meses de idade (em ........2019) e uma medida de acolhimento residencial com apenas 6 meses de idade (em ... de 2019).
III. Ao menor CC foi aplicada uma medida de acolhimento residencial com apenas 6 meses de idade (em ........2021).
IV. Desde então até hoje, ambos os menores têm passado a sua vida em acolhimento residencial, com pequenos intervalos em que são sujeitos à medida e apoio junto da mãe, que logo é revogada porque corre mal.
V. Do elenco dos factos provados resulta a manifesta incapacidade dos pais, e, neste caso da figura materna, para, sem a intervenção e o apoio permanente de terceiros, proporcionar aos menores os cuidados básicos, um bom ambiente familiar e proteção.
VI. Os factos que se foram sucedendo ao longo destes anos demonstram à saciedade que a expetativa de que a progenitora venha a alterar os seus comportamentos e a adquirir capacidades e competências que lhe permitam acolher, proteger e satisfazer as necessidades dos menores, é nula.
VII. Não obstante as perícias psiquiátricas não terem conseguido determinar se a recorrente sofre de patologia psiquiátrica e qual, o relevante é que os comportamentos instáveis e as perturbações emocionais existem e foram observados ao longo destes 6 anos (para além da história anterior da recorrente, que deixou dois filhos no Brasil, na altura em que veio para Portugal de 12 e 5 anos, entregues judicialmente aos pais).
VIII. Ao longo destes 6 anos a progenitora teve inúmeras oportunidades de demonstrar ser capaz de cuidar e de proteger as crianças, quer aquando das medidas de apoio junto da mãe que foram determinadas, quer nos fins de semana e folgas em que as crianças lhe foram confiadas no decurso da medida de acolhimento residencial, e não o demonstrou, tendo por diversas dessas vezes colocado os menores em perigo, nomeadamente sujeitando-os a maus tratos;
IX. As atitudes da mãe oscilam entre repetidas declarações de amor e saudade pelos filhos, e que incluem convívios e visitas mutuamente gratificantes, com fases de grave violação de deveres parentais, incluindo afirmações verbalizadas do tipo "vocês só me atrapalham", "um dia mato-os", e repetidas notícias de agressões aos filhos, inclusivamente com um martelo.
X. Basta-nos percorrer toda a factualidade assente para concluir, como conclui o Acórdão, que: a mãe recorrente não foi capaz de assegurar, até ao presente, uma adequada proteção, educação apoio e desenvolvimento dos filhos sujeitos destes autos, nem sequer uma estruturação minimamente estável da própria vida e, principalmente, que não existe nenhum elemento que, com um mínimo de consistência, leve a razoavelmente prever que o venha a fazer num futuro vislumbrável.”.
XI. É o superior interesse da criança que deve nortear qualquer decisão, devendo prevalecer em detrimento dos interesses dos progenitores que com ele não se harmonizem (artigo 1978.º, do CC).
XII. A prevalência da família biológica deve ceder quando se conclui que a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento são das crianças sejam postos em perigo, por ação ou omissão dos pais, como é o caso.
XIII. Não se nega a existência de laços afetivos entre a recorrente e as crianças, mas não existem os vínculos próprios da filiação, caracterizados estes como aqueles em que os progenitores têm, “não só a preocupação, como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança”.
XIV. Sempre que, ao contrário, existam factos que demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC, os “vínculos afectivos próprios da filiação”.
XV. Em suma, como se diz no Acórdão recorrido, “o acolhimento institucional não é uma solução definitiva ou duradoura e não pode ser encarado como uma forma de manter um vínculo biológico in extremis”
XVI. Os menores já passaram grande parte das suas vidas institucionalizadas, devido a ações e omissões dos progenitores. Tempo demais.
XVII. Em face da inexistência de alternativa, quer junto do pai, quer da família alargada, circunstância que a recorrente aqui nem questiona, a única decisão viável para estar crianças, é a que foi tomada, de confiança para adoção”.
20. O Exmo. Desembargador Relator determinou a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.
OS FACTOS
São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:
1. O menor BB nasceu a ...-...-2019 e CC nasceu a ...-...-2021, e são filhos de AA e de FF.
2. A progenitora dos menores, AA, manteve um relacionamento com FF por dois anos, iniciado através do Facebook, tendo alterado a sua residência do ... para Portugal, em ... de 2017, deixando naquele país uma filha e um filho menores de idade, sendo a filha com 11 anos e filho com 4 anos.
3. O casal conheceu-se pessoalmente e viveu em ... na casa da progenitora de FF, mudando-se para ..., onde viveu na Rua ..., ... (num quarto arrendado, em moradia habitada no piso superior pelo proprietário GG), de onde saiu com dois meses de rendas em atraso, e posteriormente na Rua ..., ....
4. Em janeiro de 2019 AA solicitou apoio à «...», referindo estar grávida, sem qualquer acompanhamento médico, ser natural do Brasil, mas não ter autorização de residência, nem rede de suporte/apoio, denunciando ser o seu companheiro muito controlador, sendo então proposto a AA a sua integração em ..., na sequência do que a mesma desapareceu, sem deixar contacto telefónico.
5. Em 7 março de 2019, AA, a viver em ..., contactou novamente a «...», sendo então aconselhada a contactar o Gabinete Intermunicipal de Apoio à Vítima (GIAV), o que esta fez a 14-03-2019, dia em que AA foi acompanhada ao Centro de Saúde pela técnica do GIAV, onde foi sujeita a consulta de enfermagem de saúde materna, sendo referenciada para consulta de obstetrícia e serviço social do Centro Hospitalar de ...
6. A 20-03-2019 AA aceitou o seu acolhimento em ..., tendo para o efeito ficado agendado atendimento com a assistente social do Centro Hospitalar ... (CH...) para o dia seguinte.
7. AA compareceu ao atendimento no dia 21-03-2019 com a assistente social do CH... e o agente da PSP, tendo a própria mudado a sua intenção de integrar ..., referindo que tinha conseguido um quarto na ....
8. A PSP chegou a ser chamada à residência do casal, sita na Rua ..., ..., em ... porque alguém ouviu gritos e viu AA a ser puxada pelos cabelos para dentro de casa, tendo sido aplicada a 22-03-2019 a FF, na sequência deste episódio, a medida de coação de proibição de contactos com AA, sendo o mesmo posteriormente condenado no âmbito do processo abreviado 216/19.6....., a 30-052019, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143° e 145°/1/a)/2 do C.P., na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova e cumprimento de deveres.
9. No dia 3 de maio de 2019, na visita domiciliária realizada pela assistente social do CH... - Dr.ª HH e pela enfermeira II, foi mencionado pelos proprietários do quarto, onde AA vivia com FF, que foram eles que tiveram de arranjar bens para o bebé, uma vez que os pais da criança não tinham nada preparado e não tinham dinheiro para tal, estando as rendas do quarto em atraso, as quais deveriam ser pagas até o dia 15-05-2019 ou AA teria de sair.
10. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de ... instaurou, em 22 de Maio de 2019, processo de promoção e proteção ao menor BB, pela problemática de violência doméstica, na sequência da sinalização do Centro de Saúde de ..., referindo que a mãe da criança terá sido referenciada ao Serviço Social do Centro de Saúde, no dia 12 de março de 2019, no seguimento de uma participação da Linha Nacional de Emergência Social pela própria, sendo o processo da CPCJ arquivado por os progenitores terem recusado prestar o seu consentimento para a intervenção da Comissão a 31 de maio de 2019.
11. Na altura, a situação de perigo resultava da grande instabilidade habitacional do casal. total ausência de rede de apoio familiar, não seguimento da gravidez por AA, rendas do quarto onde o casal vivia em atraso, com ameaça de despejo, ausência de rendimentos, progenitora sem autorização de residência em Portugal e queixosa do comportamento controlador de FF.
12. Por acordo de promoção e proteção celebrado a 9 de Julho de 2019, foi aplicada ao menor BB a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, pelo Juízo de Família e Menores de ... — Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte (processo de promoção e proteção n.º 1056/19.8.8...), porquanto mantinham-se as problemáticas assinaladas em 11) e, além disso, a alimentação do menor BB não era a adequada, na medida em que até aos 4 meses de idade foi alimentado com leite de vaca.
13. Na data referida em 12) AA e FF viviam temporariamente em casa da mãe do progenitor em ..., habitação social sita na Rua ..., por terem sido despejados da casa onde viviam em ..., tendo o progenitor no âmbito do processo de promoção e proteção declarado em tribunal ter contrato de trabalho na empresa E........, trabalhando em Portugal e ....
14. Quando ouvida em tribunal a 09-07-2019 AA declarou ser formada em administração de empresas, estar à espera de ser atendida no SEF para legalizar a sua permanência em Portugal, pretendendo continuar no país, estando dependente dos rendimentos de FF, que se ausentava em trabalho para fora do país.
15. Na casa identificada em 13), juntamente com AA vivia também uma irmã de FF.
16. A 15-10-2019 a progenitora e o menor BB foram acolhidos em Centro de Acolhimento de Emergência, na sequência de queixa apresentada por AA, no sentido de que seria vítima de violência doméstica por parte da irmã de FF, que a vigiava e controlava quando este estava ausente do país, em trabalho.
17. No Centro de Acolhimento de Emergência a progenitora revelou inseguranças na prestação dos cuidados ao menor BB, não conseguindo distinguir os vários tipos de choro do filho, e delegando noutras utentes os cuidados de alimentação da criança, com a qual chegou a gritar de forma desadequada, tendo também verbalizado que pretendia sair da estrutura de acolhimento, sem se fazer acompanhar pelo filho.
18. Na primeira semana de novembro de 2019, o menor e a progenitora foram transferidos do Centro de Acolhimento de Emergência para uma ..., sita na ilha de ....
19. Nos primeiros dias de acolhimento na ... a progenitora apresentou comportamentos regulares, sendo capaz de asseverar os cuidados ao menor BB, mas volvida urna semana de acolhimento, a progenitora passou a revelar instabilidade psicológica, designadamente intensa frustração, recriminando o filho pelo que considerava as agruras da sua situação pessoal e de restrição de movimentos que as necessidades do menor lhe impunham, e a partir daí, com assomos de raiva e mesmo violência, traduzidos em episódios de gritar com o bebé, sacudi-lo com força e atirá-lo para cima da cama.
20. Assim, durante a permanência da progenitora e menor na casa abrigo, entre 6 -11-2019 e 16-11-2019, a progenitora chegou a verbalizar «Estou farta dele! Estou há um ano com esta criatura, 24h sobre 24h! Dá-me vontade de atirar contra a parede!» «Abre a porta, e vá gatinha até ao mato, desaparece!», tendo ainda sido descrita, pela ..., alegada situação em que BB levou bofetada da mãe e foi atirado para a cama após acordar a chorar.
21. A progenitora também não assegurava a totalidade dos cuidados de saúde. higiene, alimentação e segurança da criança, porquanto era frequente o menor apresentar eritema da fralda. tendo a mãe introduzido na alimentação do mesmo leite de vaca e iogurte, e não demonstrava compreensão pelo choro e necessidades constantes do BB, perante as quais aquela mostrava muita irritabilidade e intolerância, sendo necessária a intervenção das monitoras da ... para confortar e acalmar a criança.
22. No contexto descrito em 19) a 21), a autoridade policial, a solicitação dos responsáveis da casa abrigo, na ausência de alternativa familiar ou outra, conduziu de urgência o menor BB à casa de acolhimento residencial «... — Associação de Solidariedade Social» — ..., no dia 16-11-2019.
23. Após o acolhimento residencial do menor BB na Associação de Solidariedade Social ..., a progenitora foi residir para o ..., Associação para a Inclusão Social.
24. Desde que o menino foi acolhido, a progenitora compareceu todos os dias para a visita, à exceção dos fins-de-semana (regulamento da instituição), permanecendo em todas as visitas efetuadas durante uma hora ou mais, e revelando tanto a progenitora como o bebé satisfação no momento do encontro, demonstrando ainda a progenitora conseguir ser capaz de identificar as necessidades fisiológicas do filho (diferenciando entre fome e sono).
25. Em janeiro de 2020 a progenitora do menor mudou-se para um apartamento. enf ..., que partilhava com uma amiga e o filho desta, o qual era composto por piso único com cozinha, casa de banho, varanda e 4 quartos (ocupados por JJ. KK. AA e um quarto vazio), apresentando-se o mesmo em visita domiciliária realizada desarrumado, com roupas por cima das camas, loiça por lavar e loiça suja na mesa da cozinha. subsistindo então a progenitora dos rendimentos do trabalho em part-time (400,00), sendo elevados os seus encargos com a renda habitacional (300,00€).
26. Por decisão de 11-02-2020, a medida de acolhimento residencial foi prorrogada por três meses, a título cautelar e provisório.
27. No dia 13 de março de 2020 as visitas na instituição foram suspensas para todas as crianças acolhidas, tendo em conta o plano de contingência contra o Covid-19, sendo dada a alternativa aos progenitores de efetuarem videochamadas, duas vezes por dia, para ver o BB, desde que compatível com as rotinas do menino/valência.
28. O progenitor do menor efetuou visitas nos dias 2 e 3 de março, e compareceu na instituição para visita no dia 16 de março, apesar de estar em quarentena por determinação das autoridades de saúde ..., dia em que não lhe foi permitido visitar a criança por força do plano de contingência da CAR para prevenção da propagação da Covid-19, estando em todas as situações acompanhado de AA.
29. A 16-03-2020 o progenitor do menor quando lhe foi recusada a visita proferiu as seguintes expressões, «eu volto amanhã e resolvo isto à bala (...) eu parto isto tudo», na sequência do que a PSP foi chamada a CAR, ficando a guardar a porta de entrada.
30. Desde a referida data a progenitora efetuou as videochamadas agendadas, nas quais cantava para o filho, perguntava à funcionária como se encontrava o menino e perguntava quando poderia voltar a vê-lo presencialmente.
31. Também o progenitor telefonou para o menor, revelando interesse pelo filho, tendo chegado a cantar para ele.
32. Em 11-05-2020 a medida provisória de acolhimento residencial foi revista e mantida, por mais 3 meses.
33. A perícia psicológica de avaliação da personalidade da progenitora e das suas competências parentais realizada a 30 de junho de 2020, concluiu que:
«- Ao longo do processo avaliativo a examinada adotou uma postura que se pode considerar adequada, mas simultaneamente defensiva, pouco empática, procurando transmitir de si mesma uma imagem de adequação e autonomia. O seu discurso é fluente, contudo, por vezes se torna vago, omisso e com oscilações de humor.
- Possui um funcionamento cognitivo superior à média esperada para a população em geral, o que lhe possibilita boa capacidade para pensar em termos racionais, atuar de forma eficaz em relação ao meio envolvente e possuir estratégias de resolução de problemas.
- A informação apurada em entrevista forense não nos merece total confiança. Para além de que os dados que transmite nem sempre serem coincidentes com informações constantes nas peças processuais que tivemos acesso (nomeadamente o relatório social do Centro de Apoio à Mulher, em ...) e na entrevista realizada à técnica, Dra. LL, percebe-se que a examinada descreve a sua história de vida e relações afetivas entre os elementos do seu grupo familiar de maneira superficial.
- Apesar da avaliação instrumental da personalidade não ser passível de interpretação, devido à elevada defensividade/dissimulação da examinada, existem elementos na sua história pessoal e na forma como se descreve a si e às suas ações, que permitem inferir que a examinada manifesta um percurso de vida profissional e afetivo marcado pela volubilidade.
- Na globalidade, e do ponto de vista psicométrico, não terá ficado determinado a presença de psicopatologia invalidante na estrutura da sua personalidade. Contudo, o elevado grau de desejabilidade social e defensividade que adotou na abordagem das questões colocadas nas escalas de avaliação, tornou inconclusivo os resultados obtidos em algumas provas especificas (MMPI-2; EPQ; EDS-20), o que não permite tecer comentários sobre a sua personalidade. Além disso, o padrão de resposta obtido na escala EDS-20 poderá ter produzido um enviesamento significativo nas respostas da examinada a outros instrumentos de avaliação psicológica, nomeadamente o Inventário de Práticas Educativas.
- O modelo de vinculação é inseguro-evitante e pode condicionar as suas relações íntimas de parentalidade. Indivíduos com um estilo de vinculação inseguro, manifestam dificuldade e desconforto em relação à proximidade e intimidade, que as relações com as pessoas significativas podem implicar.
- Estes indivíduos tendem a evidenciar dificuldade em confiar no outro, uma vez que percecionam as figuras de vinculação como não responsivas em situações de adversidade cuidar e ser cuidado é algo que tendem a evitar, uma vez que percecionam este Mor como uni dependência desagradável.
- Partindo do princípio que o desempenho da parentalidade implica para os progenitores (pai e mãe), a passagem por um processo de maturação psicológico, feito através de reorganizações psíquicas afetivas (ou seja, capacidade para, ao longo do tempo, se vincular aos filhos, entrar em sintomia com eles e desenvolver vínculos afetivos estáveis, compreender as suas necessidades, saber como proceder para satisfazer essas mesmas necessidades. protegê-los, educá-los, assegurar a sua socialização e integrá-los na vida comunitária), podemos considerar que, no caso da examinada, esta não parece ter sido capaz de manter um núcleo familiar estável, para aí exercer as funções parentais de forma responsável, providenciando ao filho cuidados, conforto e segurança.
- Desta forma, parece-nos não haver garantia de que, mantendo-se a examinada inserida num contexto de vida instável e mantendo um modelo de vinculação inseguro venha a conseguir desempenhar com competência as funções exigidas ao exercício de urna parentalidade responsiva e sensível».
34. Por sua vez, a perícia médico legal, de avaliação psicológica do progenitor, concluiu que o padrão relacional de instabilidade e conflito que o progenitor mantém com a progenitora, bem como as deslocações recorrentes ao estrangeiro, impacta negativamente na sua capacidade de exercer as funções parentais de forma regular e securizante para o BB, bem como a sua capacidade para manter um núcleo familiar coeso.
35. AA após saída do Centro de Acolhimento passou a beneficiar de apoio social e psicológico por parte da Associação ..., estabilizando emocionalmente e efetuando um percurso positivo, mostrando-se responsável, perseverante e organizada. e manifestando uma constante preocupação com o bem-estar do menor BB, pelo facto de estar institucionalizado, encetando todos os esforços para que o mesmo regressasse ao seu seio familiar (assiduidade nas visitas, autonomização em casa, aquisição de berço, carrinho. etc).
36. Os progenitores visitaram juntos o menor BB na CAR nos dias 2, 8, 9. 14, 16, 23, e 28 de junho de 2020 e 4 de agosto de 2020, durante as quais o BB encontrava-se satisfeito e foi sempre acarinhado por ambos, gostando ambos de cantar juntos para o filho, o que deixava o BB feliz, não sendo observado na interação entre mãe e filho nem rispidez nem hostilidade.
37. O progenitor voltou a visitar o filho a 24 de setembro de 2020, altura em que o BB revelou alguma dificuldade em ir para o pai e em reconhecê-lo, e a 29 de setembro realizou outra visita, conseguindo este transmitir calma e captar a atenção do BB.
38. Em outubro de 2020 o progenitor já havia abandonado a postura de ameaça, relativamente à equipa técnica da CAR, passando a respeitar os funcionários e regras da instituição, principalmente desde que as visitas presenciais foram reiniciadas, tendo alterado o seu padrão relacional agressivo para um padrão mais aceitável, visitando o menor com menos frequência, por força de não residir na ilha, mas contactando a equipa técnica com frequência para saber do filho.
39. Por sua vez, a progenitora apesar de manifestar interesse, amor e envolvimento para com o BB, continuava a revelar que perante situações geradoras de angústia, tornava-se agressiva não com o filho, mas sim com as pessoas à volta, com oscilações bruscas de humor.
40. Em outubro de 2020 os progenitores do menor estavam reconciliados, encontrando-se AA grávida do menor CC (no segundo trimestre), altura em que FF passou a participar economicamente no pagamento da renda do apartamento onde AA passou a habitar, coabitando com esta por períodos intercalados de 15 dias, centralizando ambos a relação conjugal como fundamental para a reunificação com o filho BB, e desvalorizando o casal a instabilidade recorrente na vida do agregado familiar, pautado por recorrentes episódios de violência doméstica, queixas na PSP, entrada na casa abrigo e por consequência alterações de residência, sempre que a díade voltava a reunificar-se.
41. Na altura FF fez referência ao passado da figura materna como pautado pelo consumo de substâncias psicoativas, diagnóstico de bipolaridade e ninfomania, e admitiu a existência no passado, antes e após o nascimento do menor BB. de episódios de violência doméstica.
42. A 15-12-2020 foi a medida de acolhimento residencial prorrogada, excecionalmente, por mais 3 meses, pelo Juízo de Família e Menores de ... - Juiz ... Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. tendo nesta data a progenitora, quando ouvida em tribunal declarado manter relação amorosa com o pai do BB, de quem esperava o CC, estando o FF em ... a trabalhar para que pudessem pagar a renda, passando 15 dias com ela e 15 dias em ..., pretendendo fixar residência em ... com os filhos, beneficiar de acompanhamento psicológico por parte da Associação .... e que progenitor fosse encaminhado para a mediação familiar.
43. No ..., a 24 de dezembro de 2020, os progenitores foram ambos à CAR ver o filho BB, estando revoltados pelo facto de não lhes ter sido dada autorização para o BB ir a casa passar alguns dias no Natal.
44. O BB reagiu bem à presença tanto da progenitora como do progenitor, juntos ou individualmente, ficando normalmente menos agitado quando estava na presença dos dois.
45. No dia 24 de fevereiro de 2021, ambos os progenitores compareceram para a visita com o irmão recém-nascido, CC.
46. Além das visitas presenciais, os progenitores mantiveram videochamadas regulares com o menor BB, mesmo nos dias em que também fizeram visita na instituição, com a duração de cerca de uma hora, as quais eram muito apreciadas pelo menor.
47. Em fevereiro de 2021 o progenitor do menor BB estava a trabalhar em empresa de construção civil na ilha de ....
48. A 12-04-2021 a medida de acolhimento residencial foi novamente prorrogada, por 3 meses, iniciando-se convívios do menor em casa dos progenitores, aos fins de semana, indo estes buscá-lo ao estabelecimento escolar na quinta feira, após o horário escolar, levando-o à escola na sexta-feira, passando com este o fim de semana e entregando-o na segunda-feira na escola, voltando este para a instituição de segunda até quinta-feira.
49. O menor BB manifestou sempre alegria e boa disposição quando os pais o iam buscar à creche, mas no regresso (segunda-feira), apresentava um estado de tristeza, com choro, chamava pela mãe e pelo pai e, muitas vezes, levava algum tempo até acalmar, revelando dificuldade em separar-se das figuras parentais.
50. A 5 de junho de 2021 o casal encontrava-se separado, sendo que no fim-de-semana de 17 a 21 de junho, no domingo (18.06.2021) a mãe contactou telefonicamente a CAR a informar que menino tinha febre e que se mantivesse esta situação iria solicitar que uma funcionária o levasse ao Hospital pois «não podia» (sic).
51. No dia seguinte, a mãe voltou a contactar a CAR, muito agressiva verbalmente pelo facto de ter-se apercebido que a medicação Aerius que o menino tomava há alguns meses (com indicação médica, para as alergias) tinha como efeito secundário sonolência, e no dia 21 de junho a progenitora telefonou e, novamente, acusou as funcionárias de administrarem aquela medicação ao filho, para que ele «dormisse toda a noite e elas pudessem ir para a varada firmar e dormir nos sofás» (sic), tendo o menino regressado à C.A.R. com uma pequena nódoa negra na coxa esquerda.
52. A 21-06-2021, o pai compareceu na CAR a exigir que o menino deixasse de tomar a medicação, e ameaçou falar com a sua advogada caso na CAR se continuasse a dar a medicação prescrita pela médica ao BB.
53. No fim de semana de 24 a 28 de junho de 2021, especificamente no domingo (2706-2021). a mãe enviou mensagem para o telemóvel da CAR a perguntar se podia levar o menino neste mesmo dia, pois este não queria comer, mas mais tarde acabou por responder que iria levá-lo na segunda-feira, pois o BB tinha acabado por fazer a refeição.
54. No dia seguinte, segunda-feira (28-06-2021). a mãe levou o filho após a hora limite de entrada na creche, tendo-o deixado na receção da instituição, mas ao deixá-lo. estava visivelmente cansada, tendo referido enquanto o deixava na receção «fica aí, estou faria, ele só chora, não quer vestir, não quer comer, não quer ir para a creche, estou farta» (sie), tendo o BB ficado imóvel na entrada da instituição, e quando o funcionário pegou nele ao colo, este ficou a soluçar, tendo a progenitora ido embora sem se despedir do menino.
55. Neste mesmo dia, a técnica da CAR telefonou para AA, no sentido de entender o sucedido, tendo esta referido que o filho havia rejeitado a refeição ao almoço e apenas tinha conseguido dar-lhe o jantar, apresentando-se emocionalmente exausta, pois chorava muito, e referiu que achava melhor o BB deixar de ir aos fins-de-semana «até o tribunal decidir», mostrando dificuldade em cuidar do CC e do BB simultaneamente.
56. No entanto. a 02-07-2021 (sexta-feira), a mãe acabou por ir buscar o menino à Instituição, tendo alegado que não conseguia estar afastada muito tempo do mesmo.
57. A 30-07-2021 a medida de acolhimento residencial aplicada ao menor BB foi novamente prorrogada por mais 3 meses.
58. A 06-09-2021 a progenitora, por volta das 22 horas de Portugal Continental. enviou uma mensagem áudio ao FF a dizer «Não preciso da tua ajuda, vem buscar este filho de puta (referindo-se ao CC de 7 meses de idade), só me apetece matá-lo» (sie.), tendo o pai, inclusive, ouvido a criança a chorar, na sequência do que se deslocou à GNR de ... e mostrou a mensagem, tendo esta entidade articulado de imediato com a PSP de ..., que, recebendo tal ocorrência, se deslocou a casa de AA por volta das 22 horas locais.
59. Aquando da chegada da PSP à residência de AA, esta apresentava instabilidade emocional e comportamental, e, de forma nervosa, colocou de imediato o bebé nos braços do agente da PSP, solicitando que o levassem para uma instituição, tendo entregue aos agentes da PSP uma mala com os pertences do bebé.
60. Neste seguimento, o irmão germano do menor BB, o CC, foi acolhido nesta mesma noite na CAR ... — Associação de Solidariedade Social, onde se encontrava o irmão, sendo suspensos os convívios do BB aos fins de semana em casa da mãe.
61. A 24 de setembro de 2021 foi aplicada aos menores BB e CC, por acordo de promoção e proteção, a medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 meses. sendo determinada a sujeição da progenitora a perícia psiquiátrica em vista a aferir-se se sofria de patologia psiquiátrica ou perturbação da personalidade que dificultasse ou a incapacitasse de sozinha assumir os cuidados dos filhos, sem pôr em causa a saúde ou a vida dos mesmos. e a sujeição do progenitor a nova perícia psicológica de avaliação das suas capacidades parentais, e a frequência do programa "Contigo", vocacionado para a consciencialização do agressor do impacto negativo da violência doméstica e prevenção da reincidência, sendo permitidas visitas dos progenitores aos menores, na CAR, mas em momentos distintos.
62. A 7-09-2021 a progenitora foi observada de urgência no serviço de psiquiatria do H..., por verbalizar ideação suicida, concluindo-se nesta observação que se apresentava sem psicopatologia ou diagnóstico psiquiátrico major a necessitar de intervenção, sendo aconselhado acompanhamento psicoterapêutico, pela situação vivenciada pela mesma.
63. A perícia psiquiátrica à progenitora concluiu que AA não possui nenhuma patologia psíquica major, mas apresenta traços de funcionamento desadaptativos, nomeadamente impulsividade e baixa tolerância à frustração, que poderão interferir com a sua capacidade de desempenhar as capacidades parentais, sendo sugerido que mantivesse o acompanhamento em consulta de psiquiatria e fosse também sujeita a acompanhamento psicoterapêutico, para ganho de competências parentais.
64. AA foi adotada em bebé, e por força das viagens frequentes dos seus pais e dos trabalhos destes, passava muito tempo aos cuidados de terceiras pessoas, tendo sido uma adolescente rebelde.
65. AA, aos 15 anos de idade, no Brasil, foi diagnosticada com a doença psiquiátrica de «Transtorno Bipolar», e entre os 18 e os 19 anos de idade, com «Transtorno de Personalidade Borderline», vivenciado, quando não medicada, ciclos de alegria e tristeza alternados e mudanças bruscas de humor, beneficiando de acompanhamento psiquiátrico e psicológico.
66. Não obstante, até há cerca de 11 anos AA beneficiava da supervisão da sua figura materna relativamente à toma da medicação psiquiátrica, em razão do que não adotava comportamentos agressivos, embora mantivesse instabilidade comportamental, situação que se alterou com a morte da sua progenitora em 2015, após doença oncológica prolongada, na sequência do que AA ficou desorientada, sem condições para cuidar dos filhos, tendo tomado a decisão de deixar de viver no ..., que concretizou em novembro de 2017.
67. Quando saiu do ... AA deixou aos cuidados do avô materno a filha MM (filha mais velha de AA e de NN. atualmente com 16 anos de idade), o qual posteriormente entregou a criança à guarda e cuidados cio respetivo progenitor, por não ter idade nem saúde para manter-se responsável pela neta, e ainda um filho mais novo, OO (filho de AA e de PP, atualmente com 11 anos de idade), cuja guarda AA havia perdido a favor do respetivo progenitor, em virtude de descuidar a alimentação, roupa e demais cuidados do menino.
68. A 18-03-2022 a medida de acolhimento residencial aplicada aos menores BB e CC foi revista e mantida, a título provisório, por 3 meses, solução que não mereceu a adesão da progenitora, que pretendia a reunificação dos menores consigo, nem do progenitor que pretendia a reunificação dos filhos com a avó paterna. determinando-se que a progenitora, por força das suas dificuldades em gerir situações de stress relacionadas com os filhos, frequentasse o projeto VINCA, em vista à promoção do desenvolvimento da vinculação afetiva entre as crianças e a mãe.
69. A 6-04-2022 foi homologado novo acordo de promoção e proteção, de aplicação aos menores BB e CC de medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 meses, iniciando-se convívios das crianças com a mãe nos dias de folga desta, entre as 09h00m de segunda-feira e as 18h00m de terça-feira.
70. No mês de abril de 2022, aquando do regresso à CAR e durante alguma das videochamadas feitas pela mãe às crianças, o BB deu alguns sinais de que o pai estaria viver em casa da mãe (verbalizou que «o papá está na casa da mamã» e «o papá dorme no sofá da mãe»).
71. No dia 6 de maio de 2022, o progenitor das crianças telefonou para a técnica da CAR, tendo referido que se encontrava a viver com a mãe das crianças há já algumas semanas, mas que, fruto de conflitos entre ambos, teria de procurar outro local para viver.
72. A 09-05-2022 o progenitor dos menores foi trabalhar e viver para a ilha do .... na área da construção civil para a empresa M.... tendo alterado posteriormente a sua residência para a cidade do ... na ilha da ...(Conjunto Habitacional ...).
73. A figura materna inicialmente realizava visitas às segundas, terças e sextas-feiras. mas com o início das idas das crianças a casa da mãe (segundas e terças feiras, com uma pernoita), as visitas na CAR passaram a ser apenas às sextas feiras.
74. Quando as crianças iniciaram as idas a casa da mãe, passou a verificar-se maior dificuldade por partes dos mesmos no momento de despedida da figura materna.
75. No mês de julho de 2022, ao ter conhecimento que as crianças estavam de férias, a mãe solicitou a realização de mais duas visitas semanais, nomeadamente às quartas e quintas-feiras.
76. Para além dos contactos presenciais, a mãe concretizava videochamadas e telefonemas diariamente, por vezes cerca de três a quatro vezes por dia.
77. O progenitor realizou visitas às crianças na CAR a 1-04-2022; 6.05.2022, sendo que a 14.06.2022 marcou visita, mas não compareceu.
78. O mesmo efetuou contactos telefónicos a 23.03.2022; 13.04.2022; 11.05.2022; 5.06.2022; 17.07.2022.
79. Das poucas visitas realizadas, denotava-se que FF era afável para as crianças, sentava-se e brincava com o BB, e pegava no CC ao colo, sendo então habitual apresentar comentários depreciativos em relação à progenitora.
80. Durante as videochamadas o progenitor perguntava como estavam as crianças. como tinha sido o dia deles e, por vezes, cantava para os filhos, sendo que as crianças, de modo geral reagiam bem, salvo algumas exceções em que o BB não queria falar.
81. Durante o acolhimento residencial as crianças receberam videochamadas da avó paterna (residente em ...), nos dias 11.03.2022; 6.04.2022; 3.05.2022; 6.06.2022; 6.07.2022, as quais não demonstravam interesse em falar com a avó, que não conheciam pessoalmente, apesar da mesma chamar por eles e pedir-lhes que mandassem beijos.
82. A mãe dos menores manteve-se a viver sozinha, num apartamento arrendado, constituído por dois quartos de cama, sala de estar, cozinha e casa de banho, pelo qual pagava 500.00€ de renda, beneficiando, desde fevereiro de 2022, de apoio mensal, no valor de 177.00€, por parte da Direção Regional da Habitação, trabalhando na área da restauração (Restaurante "..."), de quarta-feira a domingo, das 11h30m às 15H, e das 18H às 23H, folgando às segundas e terças-feiras e auferindo 798.25€ mensais de retribuição.
83. A figura materna, em junho de 2022, começou a beneficiar de acompanhamento psicológico (com o objetivo de trabalhar ao nível da impulsividade e gestão da frustração), pelo Gabinete de Psicologia da Freguesia de ..., com periodicidade semanal, tendo sido realizadas até 11-07-2022, seis sessões, registando-se uma boa assiduidade.
84. Nas várias visitas realizadas ao agregado da mãe, a EMAT verificou a asseveração dos vários cuidados aos filhos, mostrando-se AA bastante adequada e afetuosa com estes, assim como preocupada em proporcionar-lhes um ambiente familiar estável.
85. AA promoveu ainda momentos lúdicos com as crianças, quer através de brincadeiras em casa, quer através de passeios, estando os meninos sempre bem-dispostos e felizes junto da mãe.
86. As crianças iam satisfeitas para a casa da progenitora, regressando limpas e tranquilas, revelando dificuldade em despedir-se da mãe nos momentos de regresso à CAR.
87. A progenitora dos menor BB e CC deixou de exercer atividade laboral na área da restauração no mês de outubro de 2022 (despedimento amigável), tendo iniciado novo trabalho, a 2-11-2022, na Empresa de turismo..., sita na Rua da ..., como gerente de administração, sendo o horário de trabalho da mesma, das 9h às 17 horas, de segunda a sexta-feira, mediante retribuição na ordem dos 800.00€ mensais, acrescidos de 150,00E de subsídio de refeição, em cartão.
88. A 22-11-2022 a medida de acolhimento residencial aplicada aos menores foi substituída, a titulo cautelar e provisório, pela medida de apoio junto da mãe, pelo período de 3 meses, medida revista e mantida por decisão de 23-02-2023, data em que a mãe foi sinalizada para a Equipa de Integração Familiar, em vista a ser trabalhada ao nível das competências parentais e estratégias educativas, e fortalecer o exercício de uma parentalidade positiva, segura e protetora, intervenção que não se iniciou de imediato, por haver lista de espera.
89. A 23-02-2023 foi ainda determinada a retoma dos contactos das crianças com o pai, através de videochamadas, com periodicidade semanal, através do Ponto de Encontro Familiar. contactos que a 4-05-2023 não tiveram lugar por a progenitora recusar qualquer contacto dos filhos com o pai.
90. Na altura, a figura paterna dos menores residia na ilha da ..., onde trabalhava na área da construção civil, vivendo com a companheira, um filho desta de 12 anos de idade, e dois filhos gémeos recém-nascidos a ...-...-2023, num apartamento camarário, de tipologia T2, sendo sua pretensão ficar com os dois menores BB e CC a cargo, sendo apoiado nesta resolução pela sua companheira QQ, que tinha ainda outros dois filhos mais velhos de outra relação, encontrando-se um em ... e perspetivando o outro sair da ... para ir estudar.
91. No dia 16 de maio de 2023, a progenitora quando constatou que as creches dos filhos estavam encerradas, por ser feriado do ..., no interior de um minimercado próximo daquele estabelecimento de infância, dirigindo-se aos menores proferiu as expressões seguintes: «vocês só me atrapalham», «eu mato vocês», apresentando-se então nervosa e alterada porque tinha de trabalhar, o que não poderia fazer com os filhos aos seus cuidados.
92. No dia 17-05-2023, durante a tarde, no recreio, o BB, em conversa com uma auxiliar de educação disse que a mãe lhe tinha batido com um martelo, apontado para as costas, sendo detetado na altura no menor uma grande nodoa negra, do lado esquerdo na zona lombar, e pequenas marcas na nádega e abaixo da omoplata.
93. O BB disse ainda que a mãe tinha batido no irmão porque ele não queria comer, e que então ele tinha comido tudo, para não apanhar mais.
94. Ao chegar ao jardim de infância a progenitora manifestou-se esquiva e desconcertada ao ser confrontada pela auxiliar que lhe deu conhecimento de ter aplicado «arnidol» no menino, e inicialmente disse não saber o que se tinha passado, mas posteriormente afirmou que o BB se teria magoado nos carrinhos de choque, sendo que em audiência de julgamento afirmou que o menino se magoou no carrocel, nas .... para onde se dirigiusozinho de trotinete, retirando AA o menino do carrocel, onde esta juntamente com a sua trotinete
95. Em maio de 2023 a progenitora havia abandonado os acompanhamentos psicológico e psiquiátrico, por incompatibilidade com as suas obrigações profissionais, tendo-se apresentado em tribunal visivelmente ansiosa e cansada, revelando dificuldades em conciliar o trabalho com os cuidados dos dois filhos de 4 e 2 anos de idade.
96. Não tinha então qualquer suporte familiar ou outro na ilha, vivendo o seu pai RR, doente oncológico, e irmãs, no ....
97. Na sequência da oposição do progenitor à manutenção da medida de apoio junto da mãe, e sinalização efetuada pela creche que um dos menores frequentava, no sentido de que a progenitora havia sido verbalmente agressiva com os filhos, um dos quais que havia feito referência a ter sido agredido pela mãe nas costas com um martelo, por acórdão de 28-06-2023, foi aplicada a ambos os menores, em substituição da medida de apoio junto da mãe, a medida de acolhimento residencial, em execução desde 03-07-2023 na casa de acolhimento residencial «..., Associação de Solidariedade Social» — ..., pelo período de 6 meses. passando as crianças com a mãe os fins de semana, entre as 17h30m de sexta-feira e a manhã de segunda-feira, sendo aquelas recolhidas e entregues pela mãe na creche/escola, e ainda às segundas, terças, quartas e quintas-feiras, entre as 17h30 e as 18h30m, seja na CAR, seja no exterior.
98. No mesmo acórdão foi ordenado, face aos resultados inconclusivos das perícias psicológica e psiquiátrica realizadas à progenitora, a sujeição da mesma a uma nova perícia psiquiátrica, desta feita colegial, a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal em ..., em vista a, por um lado, encontrar-se explicação para os comportamentos da progenitora a nível médico/científico e, por outro lado, aferir-se se era possível modelar estes comportamentos, cessando-os, ou se antes as capacidades parentais da progenitora se encontravam irremediavelmente afetadas, e na afirmativa, em que medida.
99. Mais ordenou o tribunal a expedição de carta rogatória à justiça brasileira, ao abrigo da Convenção de Haia, de 18-03-1970, sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, de que o Brasil é Estado contratante, remetida diretamente à Autoridade Central daquele país (https://www.hcch.net/en/instruments/conventions/specialised-sections/evidence), em vista a obter informação social sobre o agregado familiar alargado cl progenitora (pai/irmãos/irmãs/ex-maridos ou ex-companheiros e filhos a residir no Brasil bem assim sobre eventuais comportamentos desviantes da progenitora no Brasil. em referência aos seus filhos, que ai residem.
100. A 15-09-2023, sexta-feira, o menor BB recusou-se a acompanhar a mãe na receção do rés-do-chão da CAR, tomando a iniciativa de subir as escadas para voltar à sua valência (sita no primeiro piso), repetindo várias vezes que não queria ir com a mãe porque esta lhe batia.
101. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 100) AA não forçou a criança BB a ir consigo, levando apenas consigo o menor CC, e, mais tarde, por volta das 19h30 falou com o filho BB por videochamada, procurando agradá-lo, mostrando os iogurtes e gelados que tinha comprado, na sequência do que o BB manifestou interesse em ir com a mãe, tendo afirmado «Ok, eu vou, mas não vais brigar comigo».
102. Na manhã do sábado seguinte, em resposta à pergunta da mãe « Você ontem não quis vir porquê?» BB respondeu «Você me bate e se você me voltar a bater em bato em você!».
103. Por vezes o menor BB utiliza na comunicação palavrões como caralho», «porra» e «bosta», termos utilizados por AA, verbalizando o menor que a mãe se refere à CAR como «uma porra» ou «uma bosta».
104. Na sequência do referido em 100) a 103) foram suspensos os convívios dos menores com a mãe ao fim de semana, por decisão de 27-09-2023, mantendo-se os convívios semanais entre mãe e filhos, entre as 17h30 e as 18h30, dentro e fora da CAR, bem como as videochamadas e telefonemas regulares da mãe às crianças.
105. Nos convívios dos menores com a mãe no interior da instituição aqueles apresentam agitação psicomotora (estão em constante movimento) e, apesar de se esforçar, AA não consegue manter os filhos calmos.
106. AA, após o 2° acolhimento residencial de BB e CC passou a manifestar revolta pelo acolhimento dos filhos, na presença destes, tendo no dia 8-11-2023 chamado a rececionista da instituição de «puta ignorante», conduta de revolta que alterna com períodos de manifestação de gratidão pelo que a CAR tem feito pelos filhos.
107. AA depois do 2° acolhimento residencial dos filhos verbalizou ao filho BB que o pai estava na cadeia e que não gostava dele, conversas que o BB expôs ao pai nas videochamadas que mantinha com o mesmo.
108. A mãe apresentou o seu novo namorado SS, nascido a ...-...-1983, de nacionalidade Alemã, aos filhos por videochamada, com quem, segundo a própria terá casado. e pretende ir viver com os dois menores e a criança em gestação, filha daquele, em ..., tendo as crianças inicialmente reagido com estranheza, mas manifestado com o tempo gostarem do mesmo, o qual nas visitas posteriores que fez aos menores no exterior da CAR revelou ser afável e cuidadoso com os menores.
109. SS quando ouvido em debate judicial, só após muita insistência cio tribunal é que indicou a sua morada na ..., onde reside desde 2017 com o agregado do tio, explicitando que tem como profissão a de angariador de clientes num hotel, estando desempregado e sem emprego fixo desde pelo menos julho de 2017, embora efetue alguns trabalhos para o tio com quem reside, sendo sua intenção arranjar emprego em ... e sustentar AA e os três filhos desta.
110. SS conheceu AA a ... de ... de 2023, aquando da sua passagem pela ilha de ... de um navio de cruzeiro vindo das ..., onde viajava, tendo regressado à ilha em setembro de 2023, onde permaneceu até dezembro de 2023, após o que regressou à ..., tendo entretanto regressado à ilha de ... entre 1 e 19 de maio de 2024, após o que viajou com AA para ..., regressando juntos para ... a 1 de junho, tendo SS regressado à ... sozinho a ... de ... de 2024.
111. SS só ocasionalmente envia a AA 400,00€ para a auxiliar financeiramente, dinheiro proveniente das economias daquele.
112. SS manifestou ser sua intenção regressar a ... quando o bebé em gestação, seu filho e de AA, nascesse. o que prevê aconteça entre 14 e 16 de janeiro de 2025.
113. SS tem três filhos na ... de dois relacionamentos anteriores, os quais estão aos cuidados das respetivas mães, com quem residem, mantendo aquele com os filhos convívios irregulares, e contribuindo também irregularmente para as despesas destes filhos, um dos quais residente em ....
114. AA subsiste economicamente do subsídio de desemprego e do subsídio de precaridade económica atribuído pelo Núcleo de Ação Social de ..., tenho passado a viver a partir de outubro de 2023 numa habitação sita na Rua da .... em ..., com boas condições de conforto e salubridade, constituída por uma sala, dois quartos, cozinha, casa de banho e uma divisão para arrumos, sendo ajudada financeiramente com caráter irregular também pelo seu pai RR.
115. A progenitora foi sujeita a nova perícia psiquiátrica no âmbito da qual não se objetivou a presença de sintomatologia que pudesse consubstanciar um quadro psicopatológico, nomeadamente sintomas da linha do humor ou da linha psicótica (com rutura do sentido da realidade, tal como delírios ou alucinações).
116. Na mesma perícia a inteligência, psicometricamente aferida, foi avaliada como acima dos valores da média esperada para a população em geral, conferindo-lhe uma boa capacidade para pensar em termos racionais, atuar de forma eficaz em relação ao meio envolvente, possuindo estratégias de resolução de problemas.
117. A avaliação psicométrica a que havia já sido submetida não permitiu validar nenhum perfil de personalidade, face à elevação de escalas que sinalizam tendência para responder de forma pouco sincera, com preocupação exagerada em transmitir uma ideia de si própria de adequação social, levantando a possibilidade de esforço no encobrimento de qualquer tipo de perturbação emocional.
118. Não obstante a invalidação das provas pelos elevados níveis de desejabilidade social demonstrada, a súmula dos dados fornecidos pela examinanda e pelas informações constantes dos autos permitiu aos peritos apurar a presença, ao longo dos anos, de traços de funcionamento e de relacionamento interpessoal desadaptativos, como, entre outros, instabilidade emocional e impulsividade, traços que terão modelado seguramente ao longos dos anos a expressão comportamental da examinada (incluindo na sua relação com os filhos).
119. Do ponto de vista psiquiátrico forense, para além das características mal adaptativas de personalidade, não se apurou a existência de qualquer patologia psiquiátrica.
120. A conjugação destes traços de personalidade da examinada e dos restantes resultados obtidos na avaliação instrumental de competências parentais (incluindo estilo de vinculação), poderá condicionar o exercício pleno da parentalidade, conforme explicitado no relatório de avaliação psicológica, referido em 33).
121. As características desadaptativas de personalidade da examinada poderão, se presente a necessária e indispensável motivação para o efeito, ser alvo de abordagem psicoterapêutica regular, com vista a promover um funcionamento interpessoal mais adaptativo.
122. A informação social obtida a 28-02-2024 pelas autoridades brasileiras. junto de TT (irmã de AA). dá conta que AA mudou-se para Portugal, não mais regressando ao ..., há 6 anos; «sempre foi uma pessoa com o emocional meio instável, mas é uma pessoa super do bem»; ... «sempre teve facilidade em arranjar namorados e já iria viver juntos; sempre gostou de festas. Entretanto rapidamente começavam as desavenças, pois ela sempre foi muito explosiva nas suas atitudes»; ... «(a)o final TT concluiu que se dava muito bem com sua irmã AA, mas reconhecia que esta sofria de problemas depressivos e alternava de comportamentos e, às vezes, tornava-se urna pessoa meio agressiva e por esta razão não conseguiu estabilidade nos seus casamentos, pois sempre havia muita briga e desentendimentos que contribuíam para os términos dos relacionamentos, redundado inclusive com as perdas das guardas dos filhos, inclusive com relação aos filhos nascidos no ..., OO e MM, que foram morar com os pais, em detrimento da mãe».
123. A informação social obtida a 01-03-2024 pelas autoridades brasileiras. junto de RR, dá conta que o mesmo é aposentado, pai de quatro filhos, designadamente UU, ..., 55 anos, residente em .... TT, ..., com 54 anos, residente em ... - RN, VV, ..., 48 anos, residente em ..., e de AA, sem profissão, residente em Portugal há 6 anos, a qual é sua filha adotiva, tratando-se de pessoa muito extrovertida, inteligentissima, animada e uma filha querida, que tentou cursar o ensino superior, chegando a iniciar os cursos de ... e ..., dos quais desistiu.
124. Mais resulta da informação social obtida pelas autoridades brasileiras junto do pai de AA, que a mesma tem quatro filhos, dois dos quais nascidos no ..., designadamente MM (filha mais velha de AA e de NN) e OO (filho de AA e de PP). que chegaram a morar com os pais em ..., mas «em decorrência dos frequentes desentendimentos (brigas) de AA com os pais de seus filhos, sempre se separavam e MM e OO foram morar com os respetivos pais e se mudaram de ...».
125. Mencionou na mesma informação o pai de AA «que AA gostava muito de festas e, apesar de boa filha e muito inteligente, em certas ocasiões perdia o controle emocional, o que fez com que não estabilizasse nos casamentos» e »[c]om relação aos cônjuges de AA» ... «eram pessoas bastante empáticas e tratavam bem os filhos», que «mesmo os seus filhos não mais morando com ele, quase todos os meses, dava ajuda financeira para eles. inclusive para AA», e que «sofreu um câncer e se submeteu a cirurgia, quimioterapia e radioterapia, mas estava quase curado, mesmo continuando a ingerir medicamentos em atendimento às prescrições médicas».
126. A informação social obtida a 01-03-2024 pelas autoridades brasileiras, junto de WW (madrasta de AA), dá conta que «AA não tinha condições para ter a guarda dos filhos, pois se tratava de uma pessoa muito descontrolada emocionalmente, portanto, sem as mínimas condições de exercer o poder familiar e de manter uma convivência pacífica com quaisquer pessoas», concluindo que «a situação de AA é de saúde mental, não de falta de caráter».
127. A informação social obtida a 05-03-2024 pelas autoridades brasileiras, junto de VV, irmã de AA, dá conta que «AA sofria de transtorno mental bipolar, com comportamento agressivo, hiperativa, impulsiva, com variações acentuadas do humor», sendo que «apesar do problema de saúde da bipolaridade com alternância comportamental, é uma mulher muito bonita, sedutora, simpática e comunicativa e sempre gostou de festas e de ingerir bebidas alcoólicas», tendo aconselhado, por várias vezes AA a procurar tratamento médico, mas esta não levava muito a sério os conselhos da família, mas «[m]esmo assim ainda teve algum acompanhamento psiquiátrico», sendo que «nos seus momentos de mau humor, reclamava muito de tudo e chegou a agredir o filho OO, com cenas chocantes, o que levou à separação, e PP (XX) ficou com a guarda do filho». ...«Ao final VV foi bastante incisiva ao afirmar que AA nunca deveria ter tido filhos e não acreditava que sua irmã fosse capaz de ter a guarda dos filhos menores portugueses, haja vista os inúmeros surtos de agressividade que tinha quando residia em ..., com os filhos OO e MM».
128. A informação social obtida a 29-02-2024 pelas autoridades brasileiras, junto de YY, 35 anos, empresária, irmã de PP, dá conta do pouco convivio desta com AA, que classificou «como uma doida/louca, pois abandonou o filho de 2 (dois anos) (OO), sem a menor comoção e foi embora. Finalizo dizendo que seu irmão PP não era um santinho e poderia ter todos os defeitos, mas não abandonou o filho OO».
129. A informação social obtida a 28-02-2024 pelas autoridades brasileiras junto de ZZ, mãe de PP, dá conta que a filha mais velha de AA, de nome MM, reside com o seu progenitor NN. no ..., com a avó paterna, a tia paterna e duas primas, frequentando em dezembro de 2023 o 9° ano do ensino fundamental.
130. O progenitor dos menores. FF, é natural de ..., tendo crescido no seio de uma família alargada, marcada por algumas mudanças de residência no território nacional. tendo os seus pais se divorciado quando tinha 7 anos de idade, tendo esta separação ocorrido devido a conflitos conjugais e consumos de álcool por parte do pai.
131. FF abandonou a escola quando estava no 6° ano para iniciar o seu percurso profissional, mas posteriormente frequentou um curso que lhe deu equivalência ao 9° ano, começando a trabalhar com 14 anos de idade na área da construção civil, tendo posteriormente enveredado por outras áreas profissionais.
132. Com 18 anos de idade FF teve uma primeira companheira, tendo desta relação nascido duas filhas, atualmente já maiores de idade.
133. Posteriormente conheceu uma senhora de etnia cigana, com quem teve um filho, AAA (criança que beneficiou de processo de promoção e proteção por falta de assiduidade escolar e problemas comportamentais), relação que durou cerca de 9 anos, sendo a vida familiar marcada por dificuldades económicas, constantes alterações de residência, e agressões psicológicas e físicas por parte de FF à mãe de AAA.
134. Aos 24 anos FF foi detido devido a trafico de estupefacientes e condenado a 6 anos de prisão, mas cumpriu apenas 4 anos no Estabelecimento Prisional de ....
135. O progenitor foi condenado a 30-05-2019, por sentença transitada em julgado a 07-11-2019, pela prática a 19-03-2019 de um crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143°, 145°/a)/2, do C.P., por referência ao artigo 132º/2/b) e c), do C.P., na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime (te prova. no âmbito do processo abreviado n.º 216/19.6....., que correu termos no Juízo Local Criminal de ... — Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte; e por sentença de 03-11-2021, transitada em julgado a 03-12-2021, pela prática a 13-05-2021. de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°/1/a)/2/a), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, no âmbito do Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 7151/21.6....., que correu termos no Juízo Local Criminal de ... — Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, sendo AA, em ambos os casos a vítima.
136. Após o termo da relação com AA, FF conheceu através das redes sociais BBB, residente na Região Autónoma da ..., na sequência do que alterou a sua residência para a ilha da ..., passando a aí trabalhar na área da construção civil, tendo vivido com BBB em união de facto até abril de 2024, resultando desta união o nascimento de filhos gémeos a ...-...-2023.
137. A viver na ilha da ... FF manteve contactos por videochamada com os filhos, durante as quais perguntava como estavam e como passaram o dia, sendo por vezes difícil às crianças manterem-se sossegadas e com atenção ao telemóvel. o que o pai sempre compreendeu, desligando a chamada quando verificava que os filhos estavam demasiado agitados.
138. Em abril de 2024 FF separou-se da sua companheira BBB (mãe dos seus filhos gémeos CCC e DDD, nascidos a ...-...-2023), por decisão da própria, por a relação conjugal ser muito instável, marcada por violência verbal, psicológica e física perpetrada por FF.
139. Quando vivia com BBB FF colaborava em algumas tarefas relativas aos filhos gémeos, mas, por vezes, sobretudo à noite, não queria acordar, ficava muito irritado e dizia que estava muito cansado, adotava comportamentos de controlo em relação à companheira, não queria trabalhar, gostava de estar em casa, sendo muito instável nos trabalhos, pois não aguentava muito tempo no mesmo trabalho.
140. O processo crime n.º BBB instaurado na sequência de queixa por violência doméstica apresentada por FF contra BBB foi arquivado, estando ainda pendente em investigação por crime de violência doméstica no DIAP do ...— ... secção, o processo crime n.º 1262/21.5T8PDL-A, em que consta como ofendida BBB e como suspeito FF.
141. Não obstante a distância geográfica, o progenitor manteve os contactos regulares por videochamadas com os filhos, evidenciando estes um maior desinteresse em manter conversa com o pai, e observando-se nas mesmas que o BB referia conversas influenciadas pela progenitora, tais como «tu não és meu pai», «não és da minha. família» e «eu tenho um pai novo». adotando a figura paterna perante o discurso do BB uma postura assertiva e adequada.
142. A avó paterna dos menores diminuiu os contactos com os netos, por ter iniciado trabalho por turnos, verificando-se que as crianças manifestam pouca interação com esta.
143. Em junho de 2024, FF mantinha-se a residir na ... em casa de um amigo, cuja morada recusou facultar, efetuando trabalho como pintor na área da construção civil, não estando inscrito como trabalhador ativo na base de dados da segurança social.
144. A 02-12-2024 o progenitor dos menores celebrou contrato de trabalho com a empresa «C..., Lda», na área da construção civil, sendo a retribuição base de 915,00€ (sujeita ainda a descontos legais), comprometendo-se a prestar trabalho fora do respetivo horário normal sempre que para tal lhe fosse solicitado e além das 30 horas semanais (até 2 horas por dia e 50 horas por semana), e celebrou contrato de arrendamento a 512-2024 relativo a habitação de tipologia T2, sita no caminho do ..., concelho do .... mediante o pagamento de 800,00€ de renda, mobilada com duas camas individuais, um sofá. uma mesa e cadeiras, e equipada com placa e forno.
145. FF tem convívios com os filhos gémeos, que residem com a mãe BBB, a qual manifestou disponibilidade para apoiar FF nos cuidados dos filhos BB e CC, se estes ficarem a residir e aos cuidados de FF.
146. Desde que foram suspensas as idas dos menores a casa da mãe aos fins de semana, estes têm-se mantido sempre na CAR, exceto nos dias comemorativos (i. e . Natal, Páscoa e aniversários), recolhendo a progenitora de 2° a 6" feira o BB no Jardim de Infância «Coração de Jesus» e de seguida, o CC na creche «Mundo Infantil», para posteriormente realizar a sua visita, até às 18h30m, as quais na sua maioria se concretizam em contexto fora da CAR, no âmbito dos quais a figura materna procura promover situações positivas para os filhos.
147. AA aquando dos convívios com os filhos mantém dificuldades eis ai controlar o comportamento destes, os quais estão constantemente a correr pelo hall de entrada da Instituição, a tocar nos objetos, a pular nos sofás, a abrir e fechar portas: a espalhar guloseimas pelo chão e a bater um no outro, sendo por vezes necessária a intervenção da Equipa Educativa e da Equipa Técnica da CAR, a qual não é aceite pela progenitora, que fica em tais situações irritada e agressiva, imputando o comportamento deles ao facto da Instituição não os saber educar e precisarem da mãe.
148. Na forma como se relaciona com todos os colaboradores da CAR AA assume uma postura impulsiva, agressiva e ameaçadora, com recurso a palavrões. sendo exigente e arrogante com aqueles.
149. Assim, a 28-08-2024, na CAR, na presença dos menores a progenitora atirou ao chão os pertences dos menores que tinha solicitado para fazer uma saída com os meninos, por o material não estar como ela queria, voltando a exigir outros pertences, num tom arrogante e exigente, demonstrando não estar satisfeita com o trabalho das colaboradoras da CAR.
150. E no dia 29-08-2024 AA enviou um SMS à CAR, referindo-se a outra criança utente da mesma instituição (EEE) como deficiente e doente mental, e alegando que a mesma estava sempre aos gritos, sendo que no dia 02-09-2024 quando a progenitora trouxe os filhos à CAR , após a visita, ao ouvir a voz do EEE, questionou os seus filhos dizendo: «É sempre assim esse deficiente, não se cala está sempre aos gritos?» e de seguida disse, aos altos berros «doente mental ... doente mental».
151. Apesar das oscilações de humor e impulsividade, AA esforça-se por estar presente na vida dos filhos e em colmatar as suas necessidades, acompanhando o menor CC à terapia da fala às quintas-feiras, das 16h00m às 16h45m, e o menor BB à psicóloga, às sextas-feiras, das 14h00m às 14h45m, acompanhando ainda os filhos às atividades da natação. e expressando espontaneamente afeto pelos filhos (todos os dias, quer em visitas quer em videochamadas diz-lhes que os ama muito, abraça-os e dá-lhes beijos).
152. O menor BB após o segundo acolhimento inicialmente brincava de forma calma com os colegas e o irmão e vinha bem das visitas com a mãe, mas com o passar do tempo foi mostrando resistência em ir com a mãe, dizendo que esta brigava e que lhe batia, sendo que após a suspensão das pernoitas dos menores com a mãe aos fins de semana, o menor BB passou a demonstrar revolta quando regressa à CAR, não querendo sair do colo da mãe, chorando aquando da separação à figura materna.
153. Além disso, na escola como na CAR, passou a ser agressivo com os colegas, bem como com o irmão, batendo nas crianças, dizendo palavrões e manifestado constante agitação.
154. Acresce que, na escola, perante a Educadora, o menor BB assume uma atitude ambivalente relativamente à mãe, na medida em que já disse não querer a mãe e já mencionou à Educadora o contrário, isto é, que quer a mãe e que vai ter com ela.
155. Na sequência do referido em 152) a 154), o menor BB passou a ter acompanhamento psicológico na LAPSIS.
156. Contrariamente ao BB, o CC é uma criança que gosta de brincar sozinha, apresentando algum atraso na linguagem, sendo acompanhado a este nível pela Equipa de Intervenção Precoce.
157. AA não tem juízo crítico sobre as suas oscilações de humor, e comportamento de agressividade verbal dirigida aos menores e os técnicos da Casa de Acolhimento Residencial, não reconhecendo ter qualquer perturbação psiquiátrica (seja «transtorno borderline» ou outra), declinando, por isso, o seu acompanhamento psiquiátrico ou tratamento psiquiátrico, estando, porém, recetiva ao seu acompanhamento psicológico.
158. Imputa os diagnósticos «de transtorno bipolar» e «transtorno borderline» que lhe foram feitos no Brasil, ao seu comportamento rebelde durante a adolescência e necessidade do pai mantê-la mais sossegada em casa, através da administração de medicação.
159. A progenitora não tem antecedentes criminais em Portugal.
160. AA imputa o acolhimento residencial dos filhos a preconceito contra si, e justifica não ter regressado ao Brasil com os filhos, quando os tinha aos seus cuidados, no âmbito de medida de apoio junto dos pais, apesar dos pedidos feitos neste sentido por FFF, pessoa que lhe é próxima, com o facto dos meninos e a própria estarem integrados na ilha de ....
161. A avó paterna, apesar de revelar disponibilidade para cuidar de BB e CC, não reúne condições para se constituir uma alternativa ao acolhimento residencial dos netos. não devido às suas condições habitacionais, mas devido aos horários laborais, e à postura de evitamento ao esclarecimento dos motivos do acolhimento de outros netos, filhos de BBB, sua filha, presença assídua na sua casa, com problemas de toxicodependência, e às fragilidades que evidenciou ao nivel da proatividade na resolução de problemas e na identificação de fatores de perigo para os netos, como seja a postura agressiva assumida pelo filho FF, e que esteve n base da sua condenação em penas de prisão suspensas.
162. Na restante família biológica não foram encontradas figuras adultas disponíveis e capazes de cuidar dos menores, em alternativa aos pais.
E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:
O Tribunal da Relação não encontrou nenhum facto não provado com interesse para a causa.
O DIREITO
Observações sobre a admissibilidade do recurso
Porque o presente processo é um processo de promoção e protecção de menor, logo, um processo de jurisdição voluntária1, cumpre verificar se estão preenchidos os requisitos específicos da admissibilidade da revista em processos de jurisdição voluntária.
Trata-se, mais precisamente, de apreciar se obsta à admissibilidade da revista (nos termos gerais) o artigo 988.º, n.º 2, do CPC, com o seguinte teor:
“Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Significa isto que, como se diz no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019:
“haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista [ ] em função dos [ ] fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de 'resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade'”2.
Verificando-se que o Tribunal recorrido se orientou por critérios de legalidade e que, como decorre das conclusões das alegações da recorrente antes transcritas, o presente recurso se prende, no essencial, com a interpretação de uma das norma jurídicas aplicáveis ao caso, designadamente a do artigo 1978.º, n.º 1, al. d), do CPC, conclui-se que não existe aquele impedimento3.
Determinante ainda para a admissibilidade do recurso é a inexistência do requisito negativo da dupla conforme (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC).
De facto, não obstante a decisão recorrida ter conformado, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância (razão pela qual, presumivelmente a recorrente interpõe revista excepcional), não há dupla conforme pois a fundamentação não é essencialmente idêntica.
Se não veja-se.
O Tribunal de 1.ª instância valorizou certa factualidade e retirou dela consequências de direito, partindo de certa caracterização da situação da recorrente para o efeito de aferição dos requisitos de aplicabilidade das normas, nomeadamente, da do artigo 1978.º, n.º 1, al. d), do CC.
Pode ler-se no Acórdão da 1.ª instância, na parte relevante:
“(…) as perícias identificaram em AA não só traços desadaptativos de personalidade, como também uma vinculação insegura evitante relativamente às figuras de referência afetiva (os seus progenitores), atestando os seus familiares mais próximos (RR e TT. pai e irmã) as rápidas alterações de humor da progenitora, variando entre a tristeza e a euforia, episódios de agressividade quando não medicada, comportamentos também atestados na primeira pessoa pelas colaboradoras da CAR, com quem a progenitora de relaciona regularmente, bem como pelas duas casas abrigo onde a progenitora esteve inicialmente acolhida com o menor BB, comportamentos que são indicadores da correção do diagnóstico de «perturbação borderline» feito à progenitora no Brasil, e que demandou que AA não só tivesse acompanhamentos psicológico e psiquiátrico naquele país desde a adolescência, como exigiu que tivesse supervisão na toma de medicação por parte da sua figura materna, de forma que se abstivesse de comportamentos mais agressivos, supervisão que passou a faltar-lhe com a morte da figura materna em 2015.
Ora, a literatura científica ensina que um progenitor com vínculo inseguro evitante e «perturbação borderline» da personalidade tem dificuldades em cuidar dos filhos devido a fatores emocionais, psicológicos e comportamentais que afetam a sua capacidade de responder de forma consistente às necessidades emocionais c físicas da criança, desde logo porque a instabilidade emocional intensa que vivenciam determina que oscilem entre momentos de proximidade extrema e de afastamento emocional à criança e tenham mudanças de humor extremas, explosões de raiva e impulsividade, tornando o ambiente doméstico imprevisível e até assustador para a criança. É ainda característico do progenitor com vínculo evitante minimizar as necessidades da criança, acreditando que esta deve ser «independente» demasiado cedo, e da pessoa portadora de «perturbação borderline» a adoção de condutas de controlo excessivo, fazendo com o progenitor com estas duas perturbações alterne entre períodos de negligência e períodos de hiperprotecção à criança.
Ademais, a dificuldade do progenitor com «perturbação borderline» regular as suas emoções resulta em conflitos constantes, que criam um ambiente caótico e emocionalmente instável para a criança, propício à ocorrência de episódios de agressividade verbal ou física, que constituem experiências traumáticas para a mesma.
Por fim importa ter presente que progenitores com «perturbação borderline» e vínculo inseguro evitante não reconhecem que precisam de ajuda, pelo que procuram fugir à supervisão e não aceitam o diagnóstico, recusando, em consequência, tratamento medicamentoso.
No caso presente a factualidade dada como provada relativa aos comportamentos de AA para com os filhos ao longo da pendência do presente processo de promoção e proteção encaixam na perfeição na descrição científica do progenitor com vinculo inseguro evitante e portador de «perturbação borderline», não sendo possível face à não aceitação do acompanhamento/tratamento psiquiátrico pela progenitora (aliás característico dos portadores de «perturbação borderline»), e falta de apoio familiar, inverter o padrão comportamental da progenitora, ora hiperprotetora, ora maltratante, o qual tem sido impaclante nas crianças, e explica o sofrimento e instabilidade emocional que evidenciam, expressos também na sua agitação psicomotora.
Acredita o tribunal que AA ama efetivamente os seus filhos, porém, por força das suas características de personalidade e comportamento instável adotado, a admitir agressividade física e verbal dirigida aos filhos, próprio de quem padece de «perturbação borderline», não tem capacidade para, sozinha, sem apoio constante de pessoas próximas, capazes não só de a conterem como dela cuidarem, proporcionar aos filhos de forma consistente cuidados básicos e afetivos. que lhes permitam crescer de forma equilibrada, e identificarem a sua figura cuidadora de referência como protetora c securizante.
Assim não é possível perspetivar a reunificação dos menores com a mãe, nem num futuro próximo, nem num futuro longínquo, por os comportamentos da mãe estarem associados às características/perturbação da sua personalidade e não ser provável que AA, a residir longe da família, e sem acompanhamento psiquiátrico, que rejeita, consiga regular de forma consistente o seu comportamento e humor, pressuposto indispensável ao exercício responsivo e capaz das responsabilidades parentais”4.
Veja-se agora o que quanto a isto disse o Tribunal a quo:
“(…) o presente recurso atém-se a uma reavaliação do mérito da decisão para tutela de interesse protegido, não a uma reavaliação da matéria de facto estabelecida nos autos.
Quer isto dizer, portanto, que a condição psicossocial apurada à mãe se mantém inalterada.
Isso não significa, há que começar por dizê-lo, que não assista à recorrente
alguma razão quando pretende pôr em causa a conclusão estabelecida pelo acórdão de sofrer de um distúrbio borderline.
De facto, o acórdão estabelece essa conclusão assentando-a em informações de avaliação psicológica realizadas pela progenitora quando vivia no Brasil, i.e. , antes de se estabelecer em Portugal e, principalmente, antes do nascimento dos filhos sujeitos deste processo.
Trata-se, portanto, de ilações extraídas de avaliações psicológicas anteriores a 2017, com mais de sete anos e, acima de tudo, não corroboradas pela avaliação psiquiátrica feita em
Portugal, nestes autos e em data recente (2023).
Na verdade, desta última avaliação não resultou qualquer diagnóstico de perturbação clinicamente valorizável e, nessa medida, a conclusão estabelecida pela decisão recorrida exorbita um tanto os pressupostos em que assenta (…).
Assim, esquecendo o passado conhecido à recorrente no Brasil (que a decisão recorrida também valorizou e que atesta que tem dois filhos de relações anteriores, tendo ambos ficado à guarda e cuidados dos respetivos progenitores masculinos, na sequência das separações, não demonstrando a mãe vontade e/ou capacidade para deles cuidar), e centrando a atenção apenas no período pós-2017 (altura da sua fixação de residência em Portugal) e, sobretudo, pós-2019 (altura do nascimento das crianças sujeitos dos autos), a vida pessoal da recorrente pode ser assim resumida (…)”5.
É visível, assim, que o Tribunal se distanciou, excluindo-a, parte da fundamentação – fundamentação de direito – expandida no Acórdão da 1.ª instância, acolhendo apenas a outra parte. Isto basta para se considerar que houve uma alteração substancial da fundamentação e que, por conseguinte, não se verifica o requisito da identidade de fundamentação exigido para a dupla conforme.
Dito de outra forma, e mais sinteticamente, sendo os mesmos conceitos indeterminados (constantes da norma do artigo 1978.º, n.º 1, al. d), do CC) preenchidos com recurso a complexos factuais heterogéneos, fica afastada a hipótese da dupla conforme.
Daí que o recurso seja admissível (por via da revista normal).
Do objecto do recurso
A norma cuja interpretação está no centro do presente recurso é a do artigo 1978.º, n.º 1, al d), do CC, com o seguinte teor:
“1 - O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
(…)
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança”.
Para realizar o propósito da interpretação correcta desta norma, cumpre fazer dois esclarecimentos.
O primeiro respeita directamente ao requisito de aplicabilidade da norma.
Como já se disse, entre outros, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2021 (Proc. 2389/15.8T8PRTD.P1.S1) e de 14.07.2021 (Proc. 1906/20.6T8VCT.G1.S1), o requisito enunciado no proémio do n.º 1 do artigo 1978.º do CC – a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação – é o único requisito da medida de confiança com vista à adopção, sendo as hipóteses previstas na al. d) e nas restantes alíneas da norma meras situações indiciárias, ou seja, situações que, ocorrendo, indiciam ou sinalizam a presença daquele requisito.
O tribunal deve, assim, aplicar a medida de confiança com vista à futura adopção quando, pela ocorrência de qualquer das situações enumeradas, se torne visível que não existam ou se encontrem seriamente comprometidos aqueles vínculos.
Em particular na situação prevista na al. d), a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação deriva de acção ou omissão, determinada seja por que razão for, que ponha em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança
Ajuda a precisar a hipótese o artigo 3.º, n.º 2, al. f) da LPCJP, dispondo:
“Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
(….)
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional”.
O segundo esclarecimento prende-se com o facto de a norma não surgir isolada e se integrar no sistema jurídico. A consequência disto é que, quando se afere da aplicabilidade da norma, não pode perder-se de vista / deve sempre ter-se em mente o princípio do superior interesse da criança.
Por outras palavras, e como se diz, sugestivamente, no sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de 21.05.2020 (Proc. 2719/17.8 T8PRD.S1):
“III. – Os requisitos do art. 1978.º do Código Civil devem ser apreciados de forma objectiva, tendo em conta, prioritariamente, o superior interesse do menor.
IV. – O relevo atribuído ao superior interesse do menor significa que deve atender-se à qualidade dos vínculos próprios da filiação, e não às meras intenções ou aos meros esforços dos pais, sempre que tais intenções ou que tais esforços não se revelem adequados ou suficientes para criar as condições necessárias ao desenvolvimento dos filhos” .
O princípio da prevalência do superior interesse da criança está consagrado no artigo 4.º da LPCJP, nos seguintes termos:
“[a] intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:
a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto (…)”.
A norma do artigo 4.º está em plena harmonia com a norma do artigo 34.º da LPCJP, em que se diz que a finalidade das medidas de promoção e protecção é a de afastar o perigo em que as crianças ou os jovens se encontram, proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral e / ou garantir a recuperação física e psicológica das crianças ou jovens que sejam vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
Mas volte-se à norma interpretanda e, sobretudo, à expressão “vínculos afectivos próprios da filiação”, aí adoptada. É visível que a esta expressão corresponde um conceito complexo.
Quer isto dizer, em síntese, que, como já se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021 (Proc. 1906/20.6T8VCT.G1.S1):
“para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos ‘vínculos afectivos próprios da filiação’ para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre o(s) progenitor(es) e a criança; é preciso ver em que é que, existindo esta ligação, ela se concretiza. Ela deve traduzir-se em gestos, actos ou atitudes que revelem de que o(s) progenitor(es) têm(tem) não só a preocupação como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança. Sempre que, ao contrário, existam factos que demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC, os ‘vínculos afectivos próprios da filiação’”.
Mas nem com todos estes elementos é possível apreender plenamente o conceito de “vínculos afectivos próprios da filiação”. É que nele não estão apenas compreendidas as referidas ligação afectiva e predisposição (na vertente do interesse e da capacidade) para prestar à criança os cuidados adequados; existe ainda um aspecto que, estando implícito à ideia de “vínculo” e por isso podendo passar despercebido, é igualmente essencial. Trata-se da estabilidade do vínculo ou da relação, pressupondo, naturalmente, a constância e a coerência do comportamento do progenitor em relação à criança e ainda do comportamento que ele exibe perante a criança (já que esta tende a olhar para ele como uma referência ou um exemplo a seguir no futuro).
Sucede que a factualidade provada não permite atestar que exista no comportamento da recorrente tais constância e coerência; demonstra, muito pelo contrário, inconstância, instabilidade e volubilidade pronunciadas na conduta da recorrente, que se reflecte necessariamente no vínculo que ela mantém com os seus filhos.
Para ilustrar esta conclusão poder-se-ia referir os factos provados atinentes à variabilidade do domicílio da recorrente (na maioria das vezes desapropriada para a habitação de crianças), a instabilidade no emprego, a insuficiência de rendimentos, a falta de prestação, nalguns momentos, de cuidados elementares às crianças e tantas outras circunstâncias caracterizadoras de uma situação em que, visivelmente, são afectados ou existe o risco de serem afectados a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento das crianças, conforme prevê o artigo 1978.º, n.º 1, al. d), do CC.
Opta-se, porém, apenas por destacar aqueles que revelam a instabilidade e a incoerência do comportamento em relação com os menores e perante os menores BB e CC. Revelam eles que, não obstante, nalguns momentos, a recorrente manifeste interesse, carinho ou apego por eles, esteja disponível para lhes prestar atenção e aparente ter estabelecido com eles uma ligação e mesmo uma ligação afectuosa (cfr., entre outros, factos provados 19, 24, 30, 35, 36, 39, 46, 49, 56, 74, 75, 76, 84, 85, 86 e 101), imediatamente a seguir inverte o seu comportamento, expressando profundo incómodo pela presença / existência das crianças e uma vontade quase indomável de “se libertar” delas (cfr., entre outros, factos provados 19, 20, 21, 39, 50, 51, 53, 54, 55, 58, 59, 91, 92, 93, 94 e 100).
O comportamento da recorrente é apreciado – note-se – ao longo do tempo (ao longo de um período de seis anos). Circunstâncias adversas podem acontecer num ou noutro momento da vida. Quando analisada uma atitude isolada ou “congelada” no tempo, pode criar-se a ideia de que a pessoa em causa não é suficientmente forte ou resistente, de que não é capaz de sobreviver aos maus momentos. A verdade, porém, é que a recorrente teve oportunidades sucessivas, e perante circunstâncias diversas (umas melhores, outras piores), para inflectir o seu comportamento, tornando-o constante na direcção acertada (o adequado à sua qualidade de mãe) e, por incapacidade ou uma qualquer outra razão, não o fez. Invariavelmente, a recorrente reincide na mesma conduta: manifesta, por vezes, grande atenção ou mesmo dedicação aos filhos, mas outras vezes parece não suportar a sua existência, reagindo, aliás, de forma explosiva ou violenta.
Nenhuma criança pode estar exposta a tamanha instabilidade.
Recorda-se que, em sede de revista, não é possível apurar factos relevantes para a causa. Nem é possível, tão-pouco, sindicar a decisão sobre a matéria de facto a não ser nos casos exepcionais do artigo 674.º, n.º 3, e 684.º, n.º 3, do CPC. A única possibilidade que resta, por conseguinte, a este Supremo Tribunal é de confrontar as alegações das partes com os factos fixados pelas instâncias e aplicar a solução de direito correspondente à situação que se lhe apresenta.
Tudo visto, e depois de uma análise cuidadosa das alegações das partes e da factualidade provada, não resta senão confirmar a decisão do Tribunal recorrido.
Revelando a factualidade provada a falta de capacidade da recorrente para a adopção de um comportamento que seja adequado à sua qualidade de mãe, constante e coerente, em suma, um comportamento susceptível de pôr em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento das crianças [cfr. artigo 1978.º, n.º 1, al. d), do CC] – o mesmo a que, por outras palavras, se refere o artigo 3.º, n.º 2, al. f), da LPCJP, isto é, um comportamento que afecta gravemente a segurança e o equilíbrio emocional das crianças –, não se vislumbra alternativa (pois não há possibilidade de fazer valer o Pai nem a Família alargada) à decisão de aplicação da medida de confiança com vista a futura adopção.
Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
Catarina Serra (relatora)
Maria da Graça Trigo
Fernando Baptista
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1. Cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5.11.2009 (Proc. 1735/06.OTMPRT.S1) ou de 16.03.2017 (Proc. n.º 1203/12.0TMPRT-B.P1.S1).
2. Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019 (Proc. 5189/17.7T8GMR.G1.S), já antecedido pelo Acórdão do STJ de 25.05.2017 (Proc. 945/13.8T2AMD-A.L1.S).
3. Verifica-se, por outras palavras, que, no caso presente, “a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão”. Cfr. o mesmo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019 (Proc. 5189/17.7T8GMR.G1.S).